P - Para começar, eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, data e local de nascimento. R - O meu nome é Severino Ramos Alves Neto. Eu nasci na cidade de Cabedelo no dia 18/07/1970. P - Onde fica Cabedelo? R - Cabedelo é uma cidade que fica na Paraíba, é a nossa cidade portuária...Continuar leitura
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Para começar, eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, data e local de nascimento.
R - O meu nome é Severino Ramos Alves Neto. Eu nasci na cidade de Cabedelo no dia 18/07/1970.
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Onde fica Cabedelo?
R - Cabedelo é uma cidade que fica na Paraíba, é a nossa cidade portuária. O porto da Paraíba fica em Cabedelo há 15 quilômetros de João Pessoa.
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E a tua família é de lá?
R - Toda família é de lá. Só a minha mãe que é cearense de Aracatiba. Meu pai veio buscar aqui e levou para lá. (risos)
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Está certo. Você sabe um pouquinho da história da família do teu pai, da família da tua mãe?
R - A história de meu pai é toda na Paraíba, os descendentes, as avós, as bisavós e etc, que inclusive, vem de família de pescadores. O meu avô tinha frota de barcos etc, meu pai continuo nessa linha e também com caminhões para transporte de material da Paraíba, foi assim que meu pai conheceu a minha mãe no Aracati. Que o pai dela já é descendente de holandês, que vieram ao Brasil. Terminou ficando radicalizado no Ceará e daí a minha mãe.
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Está certo. E você nasceu lá em Cabedelo.
R - Eu nasci em Cabedelo.
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Ficou lá quanto tempo?
R - Em Cabedelo, eu fiquei, se a gente for somar, eu creio que uns 16 anos, devido eu ter saído da cidade por motivos pessoais e de família. Meu irmão morava no estado, em Fortaleza e também em Rondônia e eu fiz, mas pouco tempo. Passado seis meses, um ano, retornava. Em 1987 foi que eu vim ao Piauí e desde então estou morando no Piauí.
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Onde você mora atualmente? Que cidade?
R - Moro em Teresina, Piauí, que é a cidade que me acolheu e que hoje seria a minha segunda cidade natal.
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Foi em Teresina que você conheceu o Aché?
R - Foi em Teresina. Eu em 1990 fui para o Exército e alguns amigos meus que estavam no Exército, conheceram outros amigos que trabalharam no Aché e foram se convidando a fazer testes no Aché. E eu fui o terceiro. Nós éramos sargentos. Veio o Pereira que convidou o Teonas. Teonas fez o teste, foi aprovado e depois me convidaram também. Eu fiz o teste, graças a Deus fui aprovado.
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Você á tinha ouvido falar do Aché?
R - Não, eu não conhecia o Aché. Interessante. O Teonas, ele veio para o Aché e eu acompanhei um pouquinho quando ele estava fazendo a seleção, estudando, levando material, literatura que levava para o quartel e eu, curiosamente, ficava perguntando o que era e acompanhando. Então, ele passou a pertencer ao Aché e daí a gente tinha pouco contato devido ao grande trabalho dele e devido ao meu trabalho no Exército. Mas aí, um certo final de semana, eles foram para Parnaíba e me convidaram. "Embora para Parnaíba." Eu fui com o pessoal do grupo Aché e foi onde nós começamos a conversar e os colegas perguntando: "Rapaz, você não quer fazer um teste no Aché?" E eu "logicamente, quando tiver oportunidade, eu quero." Devido a amizade deles, a confraternização que era feita naquele final de semana, isso foi um detalhe que realmente me chamou muita atenção. E eu fiz, estou aqui.
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Você sabia o que era ser propagandista?
R - Não, não tinha nem idéia do que era. Eu sabia o que era combater, o que era defender o país, mas defender o Aché eu não sabia o que era.
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E quando você entra exatamente na empresa?
R - Eu entrei na empresa no dia 5/07/1994. Eu saí do Exército no dia 16/06/1994 quando fui selecionado pelo Aché. Daí tem aquela preparação, depois dia 5 foi que eu vim fazer o curso.
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E você estreou aonde?
R - Eu estreei na cidade de Água Branca de Teresina com o doutor Alcione. A primeira propaganda a gente nunca esquece.
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Como foi?
R - Primeiro eu falei para ele que eu estava entrando na empresa naquele dia. Estava na minha primeira propaganda e tal. Se eu cometesse algum equívoco, ele me desculpasse porque realmente estava começando ali. E fui bem acolhido pelo médico. Tive essa sorte.
Um médico bem acolhedor e experiente e só fez me acalmar: "Não, fiquei à vontade, é assim mesmo e tal. Eu já me deparei com outros representantes que estavam começando. Então fique bem à vontade. Você está em casa."
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E deu tudo certo?
R - Deu tudo certo.
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Qual era a região que você fazia nessa época?
R - Nessa época, eu fazia o setor só de interior. Eu não trabalhava em Teresina. Eu trabalhava as quatro semanas do mês viajando. O setor de viagem, ele ensina muito para gente. É muito bom Eu acho que todo propagandista teria que trabalhar também no interior, que você vê as dificuldades, as estradas que tem que enfrentar. Muitas vezes não tem horário de almoço definido, devido aos percursos que você tem que fazer. E os horários, muitas vezes se você chegava 13:30, 14:00 na cidade você perde os horários dos médicos. Então, são estradas, que é carroçais, que parece barro. Você enfrenta ali 100 quilômetros, 200 quilômetros nesse tipo de estrada. Durante o verão é poeira. Durante o inverno é lama.
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Você começava a semana por que cidade? Conta para mim um pouquinho do roteiro que você fazia numa semana.
R - Eu saía de Teresina numa segunda-feira pela manhã. Ia para Água Branca que fica aproximadamente 130 quilômetros de Teresina. Aí vinha Água Branca, Regeneração, Amarante. Ia para Floriano. Floriano já fica 230 quilômetros de Teresina. Então, chegava em Floriano segunda-feira, 14:00, trabalhava em Floriano a tarde e no outro dia, o dia todo. Na terça-feira, eu já ia para Oeiras que é uma cidade que fica, acho que 80 quilômetros de Floriano. Oeiras, eu trabalhava pela manhã cedo. Tinha que sair umas 6:30 lá de Floriano para ter um melhor trabalho lá em Oeiras. De Oeiras, aí pegava o carroçal. Já não era mais asfalto. Saía de Oeiras para São João... Aliás, Simplício Mendes, onde tinha três médicos. Simplício Mendes para São João também carroçal. E de São João, a gente ia a São Raimundo Nonato. Chegava São Raimundo Nonato na quarta-feira, 17:00, 18:00. São Raimundo Nonato também é Piauí. Daí a gente ia a Remanso na Bahia. Fica há 90 quilômetros de São Raimundo Nonato. Aí já pegava 45 de asfalto, 45 de carroçal, né? De Remanso, aí a gente retornava à São Raimundo já na quinta-feira, né? Retornava à São Raimundo. Eu trabalhava os médicos que estavam faltando. Daí a Canto do Buriti na quinta-feira até Floriano, voltava para Floriano. E na sexta-feira, a gente retornava para Amarante, Água Branca e Regeneração para ir aos médicos que, por eventualidade, ficasse faltando. Chegava em Teresina, 16:00, 17:00 da tarde de sexta-feira.
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E cada semana um roteiro diferente?
R - Cada semana um roteiro diferente.
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No total, quantas cidades do Piauí você foi conhece?
R - Numa média de 36 cidades.
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Eram cidades que você já conhecia?
R - Não, não conhecia. Eu conheci através do Aché.
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Como é chegar numa cidade pela primeira vez?
R - Eu tive a sorte de ter um colega que trabalhava há três meses no Ache e na época nós viajávamos em dupla. Então, eu tive essa grande sorte de tê-lo comigo, ele já conhecia algumas cidades, mas realmente se eu não tivesse sorte teria sido muito mais difícil. Agora, já com ele não. Eu aprendi porque ele sabia algumas cidades, outras não. A gente descobriu junto. Quando a gente chega na cidade do interior, a primeira coisa é perguntar onde é os pontos que tem médico, onde são os postos de saúde, os hospitais. Geralmente a cidade tem um hospital, dois postos, dependendo do tamanho da cidade. Então, o trabalho é esse. É chegar na cidade, identificar logo os postos e visitar os médicos que geralmente estão nos postos porque naquela cidade ele tem que trabalhar para o Governo. Não tem outra opção. Ele deve ter um consultório, mas tem que trabalhar para o governo, se não, não dá.
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E muitos laboratórios frequentavam essas cidades?
R - Não. Aliás, essas cidades eram visitadas pelo Aché. Algumas cidades era o Laboratório Farmalab também fazia. Mas os demais laboratórios, como Roche e etc faziam os grandes centros, que é Parnaíba, Floriano e Picos. As demais cidades só o Aché mesmo.
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E quando você chega, o único propagandista a visitar aquele médico, como é a relação com esse médico?
R - O que eu mais gostava no interior era isso. A relação representante e médico, ela é muito maior do que na capital. Na capital, eu acho que os médicos vivem estressados ou alguma coisa assim, mas no interior, a receptividade do médico com o representante é uma maravilha. A gente marcava futebol, marcávamos almoços, jantar, entendeu? Coisa que na capital você faz, mas num número bem menor. No interior, quando você chega no consultório ou no hospital é prioridade. Nós somos recebidos de uma maneira bem diferente. Muitas vezes o médico diz: "Não, eu tenho que receber o propagandista que ele está viajando, ele está aqui a trabalho, então eu tenho que dar prioridade para ele." Dentro da capital não, "volta amanhã." Amanhã você volta no médico... Porque no interior, mesmo que ele esteja muito ocupado, le te dá uma prioridade por reconhecer o trabalho de você sair da capital e vim visitá-lo. E já capital não. Muitas vezes, se ele tiver alguma coisa para fazer, mesmo que dê um tempinho para você, "mas não, volte amanhã porque eu vou... Eu tenho um problema para resolver etc." No interior tem essa vantagem.
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E vocês levam algum tipo de informação importante para esse médico porque muitas vezes vocês acabam sendo a ponte desse médico com a capital. Tem uma coisa, assim, de levar recado, de levar algum tipo de informação?
R - Tem, tem. Inclusive, semana passada, eu tive em Luzilândia, uma cidade do Piauí e a doutora... Eu acho que é a terceira visita que eu faço, que eu não fazia esse setor, estou fazendo agora. Mas eu já tinha uma amizade com ela porque trabalhava em Amarante e ela fez esse comentário comigo. "Rapaz, eu fui a Teresina e tal, que eu tinha um óculos e etc e não tinha ninguém para mandar." "Pois doutora, estou a sua disposição. Se precisar de alguma coisa em Teresina, daqui para lá ou de lá para cá, eu estou à sua disposição." Aí ela pediu que eu trouxesse o óculos dela, inclusive já levei, já entreguei.
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Vira mensageiro?
R - Vira mensageiro. O importante é a gente realmente trazer benefícios para o médico, tanto profissional como pessoal, porque mesmo antes de entrar no Aché, quando eu estava no Exército, tinha uma concepção que para que conquiste a receita do médico, primeiro eu tenho que conquistá-lo. Se ele me vê como uma amigo ou como um excelente profissional, que está ali fazendo aquela interação, com certeza, ele vai prescrever meus produtos, mas primeiro tenho que conquistar ele.
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Você tem algum exemplo, assim, de como é essa aproximação, o que que fez diferença na hora de conquistar o receituário?
R - Muitos propagandistas são iguais. Às vezes, não faz diferença entrar propagandista A, B ou C. Então, a gente tem que procurar exatamente esse pontinho que está faltando. Muitas vezes, é um elogio, pelo que o médico fala. Por exemplo, tem um médico lá em Teresina que ele é um professor, é catedrático e etc. Então, quando eu disse para ele que a opinião dele, para mim significava muito, que muitos médicos o tinham como exemplo, aí ele ficou deslumbrado com a observação. E daí a gente vai conseguindo também muitas vezes no aniversário do médico você chegar com uma lembrança ou pelo simples fato de lembrar, convidá-lo para um jantar, para um almoço. Ou se a gente joga um futebol, como lá em Teresina nós temos o nosso futebol todo sábado. Se você sabe que o médico gosta de futebol, por que não convidá-lo para jogar com você, né? E lá nós temos várias partidas de futebol com times de médico e com o time do Aché. Não são times com os representantes de Teresina. Não, é o time do Aché e o time dos médicos. Então, tem os médicos de Caxias, que tem o time formado. Tem o médico de Campo Maior também tem o time formado e nós já realizamos várias partidas com esses médicos e com isso a proximidade fica bem maior.
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Caxias é um bairro de Teresina ou uma cidade?
R - Não, Caxias é uma cidade do Maranhão. Fica à 60 quilômetros de Teresina.
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E aonde acontecem esses jogos?
R - Nós fazemos aquela troca. Marcamos sempre dois jogos. Por exemplo, pessoal de Caxias. Nós marcamos um jogo em Teresina, depois tem o segundo jogo que é lá em Caxias. De Campo Maior da mesma forma. Nós marcamos um jogo em Teresina, eles vieram e depois nós fomos à Campo Maior que fica à 80 quilômetros de Teresina, também é próximo, é uma hora de viagem. Aí nós jogamos também lá.
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Propagandista contra médico?
R - Propagandista contra médico.
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Vocês não deixam os médicos ganharem só para agradar, não?
R - Não, na hora do jogo não tem isso. Na hora do jogo, realmente quem vence é o melhor.
Caxias, nós ganhamos uma partida e perdemos outra. De Campo Maior também, nós perdemos lá, mas ganhamos em Teresina.
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Ainda um pouquinho sobre o interior, eu queria que você contasse mais sobre essa paisagem, esse dia a dia de viajante?
R - A nossa paisagem
em Teresina é interessante. Teresina tem dois rios que cortam, que é o Parnaíba e o Poti. O Parnaíba separa Teresina, Piauí do Maranhão e é impressionante quando você passa para o Maranhão como é mais verde. Questão de dois, três quilômetros já entrando no Maranhão, você já percebe diferença. Já no Piauí não. No Piauí realmente é muito árido, é muita seca. A paisagem é cinza. Quando não é época de chuva realmente é cinza e uma vegetação rasteira, tipo savana e os animais que a gente mais vê são carneiros, cabras que se adaptam melhor a região e aí aqueles pequenos agricultores conseguem sobreviver com essas criações, já que a plantação não dá.
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E quando chove, como fica?
R - Ah não, quando chove é uma maravilha. Quando chove, já começa a brotar as folhas porque não sei como é que aquelas plantas conseguem resistir tanto tempo com tanto sol. Realmente só a natureza, só Deus para conseguir fazer isso aí. Basta um pouquinho de água que já começa a ficar verde, fica muito bonito.
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E são quilômetros e quilômetros desabitados ou são cidadezinhas pequenas?
R - Chega ter quilômetros e quilômetros desabitados. Também tem pequenos povoados, mas, por exemplo, você chega a pegar 90, 100 quilômetros sem habitação, sem realmente ter uma casa. Só mesmo mato e quando aparece uma casa a gente não sabe como é que consegue sobreviver sem ligação. Realmente uma situação interessante.
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E as cidades que você citou antes são cidades pequenas ou cidades grandes que sobrevivem do que?
R - Olha, as cidades
sobrevivem muito da ajuda do governo. No Piauí, por exemplo, tem 252 mil quilômetros quadrados. Já a minha Paraíba tem 50 mil quilômetros quadrados. Então, cabe cinco Paraíbas dentro do Piauí. Ele é geograficamente muito extenso e a população, ela não tem de onde tirar. Realmente tem que ter ajuda do governo. Daí, na época que eu estava no Exército, eu fazia exatamente isso. São muitas cidades que eram como calamidade pública e daí nós levávamos o arroz, o feijão, a farinha e o milho. Eram quatro itens, itens básicos só. Então, ele sobrevive muito dessa ajuda. Agora, até o ano passado, o Exército estava fazendo entrega de água, para você ter idéia. Alguns anos atrás, a gente entregava alimentação. Hoje, até a água a gente tem que estar entregando. O governo entrega e o Exército só fiscaliza. Faz se segurança.
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E os médicos ficam em postos de saúde, pequenos hospitais?
R - Ficam em postos de saúde e em hospitais. Alguns deles moram na maior cidade. Vai lá tirar um plantão, ou dá aquela assistência diária e retorna para a sua cidade. Nem sempre ele mora naquela cidade. Às vezes, ele procura aquela cidade que é um pouco maior, que tem uma estrutura melhor e mora lá e fica prestando assistência nas cidades mais próximas.
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E como é que funciona o receituário numa região tão pobre? Quer dizer, esses pacientes, eles conseguem ir até farmácia comprar os seus remédios?
R - Olha, nós temos uma linha de produtos que o custo não é tão difícil também. Muitas vezes, dois reais, dependendo para quem seja, é muito dinheiro. Mas nessas cidades que nós trabalhamos, nós temos retorno, devido a uma linha de produtos... O produto não é popular, mas o preço, às vezes, se torna acessível a aquela população.
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Ainda um pouquinho sobre as viagens, vocês viajavam em duplas quando você começou?
R - Em 1994 era dupla. Na época eu viajava com o Gílson. O Gílson estava com dois meses de empresa e eu entrei. Nós passamos a trabalhar juntos. Era muito bom trabalhar em equipe. Trabalhar em equipe não. Equipe nós trabalhamos. Trabalhar em dupla com um companheiro que você passa a ter uma convivência com aquela pessoa, às vezes, eu acho que ele sabe mais de mim do que a minha própria esposa. Porque eram cinco dias com ele e dois em casa. Até a gente brincava que era morando no mundo e passeando em casa.
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E como era essa divisão, por exemplo, no carro? Porque você passa quase que dividindo espaço com a pessoa. Quem dirigia? Vocês iam se revezando, como era isso?
R - Alguns colegas faziam o seguinte; "essa semana, eu que dirijo. Na próxima semana é você." Eu com o Gílson, não. Eu acho não seria interessante uma semana para cada um. "Não, você dirige, se você cansar, eu dirijo." Se os dois estiverem cansados, a gente pára." Porque eu acho que estrada não tem aquela "não, essa semana sou eu, tenho que dirigir." Não, você está cansado, começou a bater aquele cansaço, então pára, eu dirijo porque a gente não pode brincar realmente em estrada. Pode ser uma ida sem volta. Então, a gente fazia isso, em termos de divisão do carro. Na mala, a metade eram os produtos dele, a outra metade eram os meus, os meus produtos. No banco traseiro também. A mala dele de um lado e a minha do outro. E no hotel também as camas eram separadas. A dele de um lado e a minha do outro. (risos)
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Esse carro era de vocês?
R - Não, o carro era do Aché.
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Já era do Ache?
R - É, eu tive também essa felicidade
porque em 1994, acho que foi quando o Aché começou a proporcionar esse benefício, só que quem trabalhava na capital tinha que ter no mínimo dois anos para ter esse benefício. Quem fosse para o interior não. Já teria o benefício direto. Então, eu fui beneficiado nesse sentido.
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E tinha rádio nesse carro?
R - Tinha, tinha rádio.
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E como fazia? Vocês tinham o mesmo gosto musical ou brigava muito por causa da música?
R - Não, Para conviver com uma pessoa, acho que não é difícil, eu não me apego a essas coisas, entendeu? Eu procuro, "não, se está te agradando, então tudo bem. Segura aí, deixa aí." Logo porque eu gosto de música e gosto de futebol, mas não sou fanático. Então, se ele preferir, está numa estação, não tem problema não.
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E dessas cidades todas que você conheceu, teve alguma que te marcou mais, assim, alguma situação que considera a tua grande aventura como propagandista do interior do Piauí que pudesse dar um exemplo?
R - Sei.
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Tem alguma que te marcou de forma especial, alguma cidade?
R - Você fala de história, de causos, alguma coisa assim?
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É, ou alguma cidade que você nem imaginava que tinha aquela realidade, que vocês acabam desbravando?
R - É,quando a gente vê a realidade das cidades, a pobreza, que eu acho que não é só no Piauí que existe isso. A gente vê em vários estados do sul, norte, leste, oeste, que vê tudo isso aí. No Piauí, quando... Às vezes, a gente chega, não imagina que a situação era tão difícil daquele jeito. Algumas cidades que a gente entrava muitas vezes para saber exatamente como era, se era viável visitar ou não. E o que mais marca nesse sentido é exatamente a falta de poder aquisitivo das pessoas, principalmente crianças. A gente vê criança realmente desnutridas, em situação assim, triste mesmo.
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Em termos de causos, você gostaria de registrar algum?
R - Em termos de causos, na cidade de Floriano... Pode falar o nome do médico, não pode?
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Como você quiser.
R - Vou falar só o codinome dele. O nome dele é Araújo, eu conheci ele como Araujinho. E foi numa dessas minhas primeiras visitas em Floriano, fui visitar esse médico e não sabia que o mesmo tinha um gosto sexual diferente, né? E ao entrar no consultório, entrei só, infelizmente entrei só, e daí fui me apresentar para o médico. "Olha, doutor, Laboratório Aché, meu nome é Ramos..." Antes que eu falasse mais alguma coisa, ele olhou para mim, se ajeitou, assim, na cadeira e disse: "Você não é o Ramos, você é um tronco." Olha, me deixou, assim, totalmente desarmado, está certo? Então, o que foi que eu fiz? Tentei não sorrir, não sei nem como é que fiquei na situação, mas fiz a propaganda e nunca mais visitei esse médico só. Visitava acompanhado com um colega para evitar e procurava propagar na frente para não ficar só e evitar alguma coisa desagradável.
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Está certo. Vai passando por várias situações que você nem imagina.
R - É, tem situações também do carro quebrar. Já teve acidentes. Eu me deparei com uma situação até um pouco difícil, quando eu estava vindo de Picos, que fica à 330 quilômetros de Teresina. Quando eu saio de Picos, na saída tem muitas barraquinhas, quatro pedacinhos de madeira com alguma coisa cobrindo, que daí eles vendem mel, castanha, que lá também tem muita produção de mel. E eu venho na velocidade aproximada de 100 quilômetros e daí uma garota de bicicleta no acostamento. Quando eu boto o carro praticamente na contramão, já conduta minha, eu sempre ando com os faróis acesos e sempre tem alguém no acostamento, eu boto o carro no meio da pista, daí para dar uma distância maior. Mas quando eu cheguei, acho que a uns 10, 15 metros dessa garota, ela entrou na frente do carro e realmente atravessou. Ela não entrou na diagonal, realmente entrou na frente do carro. Aí eu freei, mas infelizmente cheguei a bater. Ela quebrou pára-brisa e tal. Nessa época eu estava trabalhando em dupla com o Rubens, já não era mais com o Gílson. Ele ficou muito mais desesperado do que eu. Não sei como, eu mantive a calma, parei o carro, voltei. Daí a garota estava se levantando. O nome dela é Maria de Jesus e tinha 14 anos na época. Aí eu
peguei ela, levantei, disse "você vai entrar no carro, e vou te levar para o hospital." E ela disse "não, moço, não quero ir. Quebrei o seu carro todinho." Devia ter visto o pára-brisa quebrado. Aí, nisso veio alguns rapazes que moram lá e perguntei se a conheciam? "Rapaz, não eu conheço." Digo "pois, entre junto com ela para que fique mais tranquila", porque ela tinha muitas escoriações e bateu com a cabeça no pára-brisa. Eu não sabia até que grau estava a situação dela. Mas daí o colega entrou, o cidadão entrou e eu levei. Aí parei na polícia federal, comuniquei que tinha atropelado a garota e que estava levando para um hospital, estava socorrendo. Daí, eles só pediram o meu documento, que a ambulância não estava lá, tinha ido atender outra situação. E aí eu dei o documento e fui para cidade. Cheguei lá, os médicos já nos conheciam, nos deram todo apoio e enquanto o Rubens ficou com a garota sendo medicada, etc, exames, eu fui trocar o pára-brisa para poder viajar de volta. Só que quando troco o pára-brisa e retorno para o hospital, um segurança do hospital me chamou e disse: "Olha, toma cuidado que o pai dela está aí e está com alguns capangas”
eu digo "não, tudo bem." Ele disse "inclusive, é aqueles caras que estão encostado naquele carro" e mostrou quem eram. O pai dela tinha ido lá na outra clínica. Eu digo "não, tudo bem." E fui para a outra clínica. Quando eu chego na outra clínica, o Rubens estava com pai dela e quando eu chego, que desço do carro, ele diz: "Quem bateu no seu colega não fui eu, foi meu amigo aqui." Nisso eu pulei logo nele. Não sabia qual ia ser a situação deles, se estavam armado ou alguma coisa nesse sentido. Então, encostei nele. Ele "como foi a história?" Fui e contei, né? "Ela atravessou, infelizmente não deu para evitar." E isso ele estava com muita raiva de mim por ter atropelado a filha dele. Aí nós entramos na clínica, eu ajeitei tudo, consultas, exames, tal. Graças a Deus, ela bateu com a cabeça, mas não teve nada. "Cabeça dura, hein" Não teve nada, só fraturou clavícula, algumas escoriações e muitos pacientes que estavam no consultório, ouvindo a história me deram razão porque eu não tive culpa e mesmo assim socorri a vítima. Daí chega o pessoal da polícia federal para pegar os documentos, dados e etc. E eu perguntei ao policial, disse "fez a perícia?" "Não, fiz a perícia, mas realmente você não teve culpa. Você bateu freado e pela distância do freio, você não vinha em alta velocidade e já pegou na contramão. Mostra que você estava tentando evitar. E você não tem culpa. A culpa realmente foi da ciclista." Aí, tudo bem. O médico prescreveu os medicamentos do Aché, a gente já deu para a menina. Quando eu vou saindo, o pai dela me chama: "Você vai acionar seguro?" Eu pensando, eu digo: "Para quem mora no interior daquele, afastado da cidade, no povoado, está ligado nesse negócio de seguro de carro e etc. Deve ter sido alguém que orientou? Aí disse para ele: "Não, não vou acionar seguro não. Agora como você viu que o policial falou que a sua filha foi a culpada, ralou meu capô e o pára-brisa, eu vou te cobrar. Você vai pagar, você é responsável por ela." Ele "não, que isso", tal, não sei o que. Eu digo "não, você vai pagar." Só que eu sabia que ele não tinha condição nenhuma. "Não, desculpe", tal, não sei o que, disfarçou e foi embora. Melhor, passaram-se acho que 30 dias, retorno a Picos. E quando eu vou de volta a Picos, Teresina, geralmente eu compro um mel, compro castanha para levar para casa etc. Tem inúmeras barracas, adivinha em qual eu parei.
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A da família.
R - Na dele. Quando eu parei com o Rubens, eu já tinha trocado de carro, que o Aché trocava a cada seis meses, 40 mil quilômetros na época, a gente trocava de carro. O meu Palio, o meu Fiat Uno na época era um verde e eu tinha pego um azul. Mas quando ia parar na barraca, digo "não, mais para frente." Aí o Rubens "pára ali", "não, mais para frente." Quando eu parei, foi exatamente na dele. Quando eu paro, que eu olhei, estava ele e a esposa. Aí eu já tinha parado, eu não ia sair. Já estava descendo do carro e a senhora dele disse: "Olha Zé, o rapaz que bateu em nossa filha." Aí eu já fui completando: "E aí, como é que ela está?" "Tudo bem, tal." Aí desci, fui lá conversar com ele e perguntar como é que estava. Foi o melhor momento. Ele me pediu desculpas. Reconheceu que se fosse outra pessoa, poderia ter deixado a filha dele lá. Reconheceu que foi ignorante comigo e que eu mantive a calma e em momento algum eu agredi com palavras ou com gestos. Me deu o mel, me deu castanha, me deu cajuína e ofereceu para que sempre que houvesse algum problema na estrada, se tivesse próximo, mas foi um momento um pouco difícil.
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Queria, para terminar, perguntar o que você achou de ter registrado hoje um pouquinho das tuas histórias?
R - Olha, é interessante registrar histórias. Eu mesmo porque gosto, devido a ter na infância perdido meus pais logo cedo, sempre que vou a Paraíba, eu procuro contatos que tenham fotos e ultimamente eu tenho conseguido resgatar algumas fotos do meu pai, da minha mãe. Então, história eu acho que o país sem história é um país sem passado, é um país sem futuro. A gente tem que, realmente, saber aquela história, de onde vem, de onde começou o Aché, onde foi que os três protagonistas compraram, como começou, anunciaram nos classificados e onde vem aquela progressão, como aconteceu? Da mesma forma todo mundo gostaria de saber como surgiu o poder da terra. Quem não gostaria? Então, só existe posições científicas. Então, é muito bom que o Aché tenha essa iniciativa para que muitos que irão entrar no Aché saibam como a história, como funciona, como é o trabalho do interior, como é o trabalho dentro do Aché, na Dutra, como funciona tudo. A história é que vai realmente contar, vai contar tudo.
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Está certo. Muito obrigado pela participação.
R - É um prazer imenso. Espero que vocês obtenham o melhor sucesso possível, que alcancem até um pouquinho mais do que vocês desejam. Com certeza, é muito sucesso.
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Obrigada, obrigada.
R - Por nada.Recolher