Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Antonio Olar da Silva Campos (Doutor Dedé)
Entrevistado por Fernanda Prado e Marcelo da Luz
Paracatu, 10/06/2017
Realização Museu da Pessoa
KRP_HV15_Dedé
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Então, seu Dedé, primeiro eu gostaria de agradecer de o senhor ter topado participar dessa entrevista, de receber a gente aqui na sua farmácia. A primeira pergunta, eu queria que você falasse o seu nome completo.
R – Antonio Olar Alvares da Silva Campos.
P/1 – E a data e o local do seu nascimento.
R – Nasci na zona rural, em 03 de janeiro de 1933.
P/1 – Na zona rural em que...
R – Chamava Fazenda Lavado, município de Paracatu, hoje é município de Vazante.
P/1 – Fala pra gente o nome dos seus pais.
R – Martim Alvares da Silva Campos.
P/1 – E da sua mãe?
R – Eliseta Marcolina Duarte.
P/1 – E o que eles faziam, seus pais?
R – Fazendeiros, moravam na fazenda.
P/1 – O senhor conheceu seus avós?
R – Meus avós são falecidos, tanto materno como paterno.
P/1 – E como é que era essa fazenda?
R – Fazenda, essa fazenda da família. Meus pais tinham outras terras, mas lá ele morou na fazenda que era do meu avô. Meu avô era juiz de direito aqui em Paracatu, doutor Martinho Alvares da Silva Campos Neto. Ele foi juiz de direito aqui muitos anos, faleceu aqui. Deve ser o primeiro juiz de direito que teve em Paracatu. Meus pais foram morar na fazenda que foi construída por ele, ele adquiriu e na falta dele meus pais foram tomar conta da fazenda porque os irmãos deles todos estudavam. Eles são, é uma família de 16 irmãos.
P/1 – Do lado do seu pai?
R – Do lado do meu pai.
P/1 – E como é que era essa casa da fazenda?
R – Fazenda antiga, uma casa enorme, grande, de muitos cômodos. Casa batida de terra o chão, quase igual cimento a casa. Era muito alta e muito bem construída.
P/1 – O senhor tem irmãos?
R – Nós somos nove irmãos. Hoje nós somos cinco, faleceu já quatro. Deixa eu ver, é, cinco.
P/1 – E o senhor está em que lugar dessa escadinha dos nove filhos?
R – Estou no terceiro, do primeiro pra baixo.
P/1 – Como é que foi pro senhor ver a família crescendo?
R – A gente foi criado junto na fazenda até os sete, oito anos. Papai criou 14 filhos de pessoas, de vaqueiros lá, de pessoal que morava na fazenda. A fazenda era grande, tinha muito agregado e os meninos fugiam pra lá porque nós éramos muitos. Papai criou muito filho dos outros, três mulheres e 11 homens. Nós éramos uma turma, dormia num quarto do tamanho desse cômodo aqui, com as esteiras lá, quase tudo junto. Era muita gente.
P/1 – E como era na hora das comidas pra essa moçada toda?
R – Ah, comia. Tinha pessoas lá, tinha as que a mamãe criava, as que ajudavam e outras pessoas a mais que ajudavam, era muita gente, criava muita gente. Fazia comida lá em quantidade. Lá, mamãe, uma vez por semana, de duas em duas semanas, elas iam pra lá pra fazer biscoito. Fazia aqueles, tinha um caixotão enorme, enchia ele de biscoito. A meninada tinha fartura, comia à vontade. E latas de doce. Porque não vendia, não tinha comércio pra queijo, leite, o comércio fazia, gastava. Papai só comprava sal, arame e querosene, não comprava mais nada, tudo produzia lá, até roupa. Tudo. E produzia, alimentava esse povo todo, muita gente, era até de vestido bom. Nós ficávamos doidos, acho que eu gostava tanto da fazenda que eu tinha mais ou menos 14 anos, sair daqui a lá eram 78 quilômetros. Eu saí daqui uma hora da manhã e fui a pé porque era pra ter vindo um animal para eu pegar aqui, um pessoal, ele não veio e eu já tinha falado com o Gregório, já trabalhava na farmácia. Falei pro Gregório: “Amanhã eu não vou voltar porque eu vou pra fazenda”. Era primeira, mamãe ia casar uma das criadas, das filhas que ela criou, considerava como filha. E eu queria ir no casamento. Como adiaram o casamento, eu não sabia, era pra terem me buscado, eu fui a pé. Saí daqui uma hora da manhã e cheguei lá seis horas da tarde. Cheguei lá com as pernas meio duras, mamãe pôs uma água quente lá de sal, lavei, dei um banho nas pernas, estava com fome, jantei. No outro dia estavam moendo cana, eu levantei junto com o pessoal, eu tinha uma resistência muito grande, como eu tenho até hoje. Eu posso trabalhar 14 horas por dia que eu não sinto nada, estou disposto.
PAUSA
P/1 – Eu queria que o senhor contasse pra gente do que o senhor gostava de brincar quando era menino.
R – Naquela época, a gente gostava mesmo era de estar no curral, andar, ficar no engenho, ficar junto com o pessoal. Andar a cavalo. Lá na fazenda criava muita cabra. A gente brincava, juntava elas e brincava. Era o que a gente tinha. Naquele tempo, não tinha esses brinquedos, essas coisas que têm hoje, brincava, fazia um curral de madeira por brincadeira. E aos cinco anos a gente já tocava cavalo no engenho, piava vaca pros vaqueiros, andava a cavalo, campeava com os vaqueiros nas distâncias menores, gostava de andar a cavalo.
P/1 – Tinha algum lugar que o senhor ia quando montava cavalo, gostava mais de ir?
R – A gente ia na casa... Lá tinha muito agregado, a gente ia passear na casa deles, ia pros rios. O rio era perto, a gente ia pescar. Naquele tempo, a gente fazia chiqueiro pra pegar peixe. Todo dia de manhã, praticamente, a gente ia lá buscar o peixe, o peixe estava lá no chiqueiro. Vocês não sabem como é chiqueiro, fazia um chiqueiro, com uma armadilha, fazia uma ceva, colocava o milho ali e eles vinham comer e desarmava. Isso aí a gente fazia... A gente não parava, tinha um movimento sempre.
P/2 – E que rio passava lá?
R – Era o Paracatu, rio Paracatu.
P/1 – Como é esse rio?
R – O rio era um rio com bastante água. Tinha praia, bastante água. Tinha muita mata, naquele tempo tinha muita mata. Na margem do rio era só mata.
P/2 – E tinha navegação no rio?
R – Não. Só de canoa. O pessoal fazia canoa pra atravessar os rios de um lado pro outro. E andar pra pescar e tudo, pescaria. Não pescava, só amador, não existia comércio de peixe.
P/2 – O senhor disse que o pai do senhor era juiz de direito.
R – Meu avô. Foi juiz de direito aqui em Paracatu. Foi um dos primeiros juízes de direito, deve ter sido um dos primeiros juízes de direito que teve em Paracatu. Doutor Martim. Hoje tem o fórum, até está com o nome dele, o fórum aqui.
P/2 – E o que fazia um juiz de direito nessa época?
R – Ah, tinha muito. Naquele tempo tinha ele, era a mesma coisa, já tinha policial, tinha juiz, tinha comarca já, já tinha júri, tinha tudo.
P/1 – E como o senhor se sente sendo o neto dele, vendo que ele foi homenageado, que o fórum...
R – A gente se sente bem mas não tem vaidade por isso, não. Natural.
P/1 – A gente estava falando da sua meninice e dos trabalhos na fazenda. Qual dos trabalhos o senhor gostava mais de fazer?
R – Ah, eu gostava de piar vaca pros vaqueiros, tirar leite. Já começava a aprender a tirar leite e andar a cavalo. Eu gostava mesmo era de sair com os vaqueiros. Naquele tempo você saía depois do almoço e voltava à noite, saía a cavalo e ficava o dia todo. Levava umas coisas pra comer queijo, rapadura. O alimento da gente durante o dia era queijo e rapadura. Tinha um retiro que, a fazenda era grande e a gente juntava o gado nesse lugar, chamava varginha, maiada, bolo, os lugares lá dos campos da gente que fazia, e lá tinha um senhor que tinha um curral e morava lá. E duas horas, três horas da tarde ele estava lá com uma mandioca e uma carne de capivara, nos esperando pra comer. A gente estava com fome lá no campo, comia, juntava o gado ali, apartava e saía pra sede. Porque quando ia levar vacas pra dar cria, reunia, a fazenda grande, pra sair tinha que sair muito cedo e chegava à noite.
P/1 – E nessa sua meninice assim, quando algum dos meninos, irmãos ou irmãs ficava doente o que sua mãe fazia?
R – Tinha que vir aqui a cavalo. Lá dava muita malária naquele tempo, a gente tinha malária sempre. O dia que tinha a gente já levantava cedo esperando a febre. Dava a febre, duas horas assim tremia, quatro horas levantava, tava bom, fazia de tudo. E quando buscava remédio aqui era a cavalo. Quando os rios enchiam, deixava o cavalo num retiro que papai tinha na beira do rio, a gente atravessava, pegava um outro animal uns seis quilômetros depois do rio, chamava Fazenda Fecha Mão do Jó, um senhor, ele emprestava o animal e você vinha aqui, comprava o remédio, levava nuns foguetes. Porque às vezes o rio estava muito cheio, o sujeito não ouvia, aí ele estourava o foguete e vinha pegar ele, uma distância grande porque o rio ficava muito cheio. Naqueles tempos, os rios davam enchente enorme! E nós tomávamos remédio todos os dias. Tomamos remédio e ninguém ficou doente, ninguém ficou com falta de saúde. De manhã tinha uns pés daquele limão galego, a gente chupava, parece que tomava muito quinino e dava vontade de chupar limão. Tinha um rapaz que o papai criou, chamava Alexandre e Zé Coelho descascava limão e nós chupava limão até, mastigava limão e achava bom. E papai veio em Belo Horizonte (MG) e levou um vidrão de uns comprimidos que chamavam Pilocrisan, a gente tomava aquilo todos os dias. Tomava pra não dar anemia. E tomava também sulfato de sódio composto, que era feito aqui na drogaria Santiago, na farmácia, fórmula do doutor Santiago. Tomava com chá de picão, todos os dias pela manhã a gente tomava, com um pouquinho de sal de Glauber, de sulfato de sódio, que sal de Glauber é sulfato de sódio. Sulfato de sódio composto, tomava com chá de picão, todos os dias nós tomávamos. E parece que é isso que nós ficamos com saúde, ninguém ficou doente, todo mundo é disposto, meus irmãos são todos dispostos, trabalham... Não tem uma pessoa que ficou doente, todos com saúde.
P/1 – E tinha alguma prática vinculada a ervas?
R – As ervas mesmo que a gente usava lá eram só essas. Às vezes, fazia chá de fedegoso, que é amargo, que é pra malária, a gente tomava. Que era igual quinino, isso nós tomamos muito, chá de fedegoso, raiz de fedegoso. Isso nós tomávamos muito. Mamãe fazia uns chás lá, o que ela arrumava a gente tomava. Nós criamos todos com saúde, todos escaparam. Eu tive malária com 30 dias de nascido, quase morri. Tanto que por isso lá em casa quase todos começam por letra O, Osvaldo, Olivo, Omar, Olívia. E eu eles puseram Antonio porque fui batizado em casa e tinha que pôr nome de um santo, me puseram o nome. Tanto que na época ficava lá passando mal, que a febre é alta e aí achava que ia morrer e fizeram o batizado em casa. Naquele tempo, o bispo daqui ia lá todo ano na fazenda. Dormia lá, celebrava missa e fazia batizados lá, fazia casamento, que era muita gente que morava na zona rural, por ali. A fazenda era grande, mas todos os confrontantes lá tinham fazendas grandes, muita gente. Juntava pessoas que hoje, às vezes em um comício aqui poucos que juntam. E muita gente, as festas eram de muita gente. Quando o bispo ia pra lá, dormir lá, papai mandava buscar ele a cavalo. Uma vez por ano celebrava missa, fazia os batizados e casava as pessoas lá. Esse pessoal que mora junto, naquele tempo, às vezes não tinha como casar, juntava e depois casava. Nesse dia mamãe fazia questão de ir um por um atrás deles pra eles poderem casar, casava, fazia o casamento de todo mundo, não ficava ninguém morando junto sem...
P/2 – Tinha uma capela?
R – Tinha. A capela mesmo era dentro de casa, tinha lá um quartozinho lá que fazia um santo, umas coisas lá. A casa era grande.
P/1 – Fora esse evento da ida do bispo, quais eram as outras festividades de lá?
R – Tinha festa junina, tinha aquelas festas de reis que iam passando de um pra outro, pra outro, pra outro. E lá na fazenda tinha isso também, naquele tempo acho que aqueles fazendeiros antigos, aquele pessoal ali, cada um tinha seus redutos. Eles reuniam uma vez por mês em casa fazenda. Quando iam lá pra casa tinha um quarto grande, mamãe arranjava as pessoas, fazia comida pra eles, café e biscoito e outras coisas mais, dava isso, comia a noite toda, conversava a noite toda. Eles chegavam na sexta e saíam na segunda. Chegava na sexta e ficava o resto do dia, sábado, domingo e na segunda-feira de manhã almoçava, o almoço saía cedo e todo mundo ia embora. E depois juntava em outras fazendas. E às vezes discutia tudo. Naquele tempo, o pessoal não tinha rádio, não tinha meio de comunicação nenhum, sabia tudo o que estava passando, não sei como. Até hoje eu fico pensando como é que eles sabiam o que ia acontecer, sabia-se tudo, conversavam. Eles tinham uma união, se aparecesse qualquer coisa com um, ali se juntava todos, ali eram amigos, companheiros de verdade. Hoje você não vê isso.
P/1 – Como eram as noites na fazenda?
R – À noite a gente dormia cedo, não dormia tarde, não. Conversava, tinha aquele pessoal que gostava de contar história, tinha um pessoal antigo lá. A gente ouvia história deles. Tinha lá um pessoal que tinha, Domingo, que chamava Domingo Gandu, tinha um Henrique, que tratava ele como pé torto. Todo mundo tinha apelido, nós todos tínhamos apelido também. Eu, por exemplo, me conhecem por Dedé, tinha Dovas, Nenê, Bachocho, Mariquinha, todos tinham apelido. E eles também tinham. Contavam história, aquelas histórias, eles tinham muitas histórias e a gente gostava de ouvir as histórias. Assava mandioca, batata lá e comia. Naquele tempo, a fartura da fazenda era grande porque era muita gente, não tinha negócio pra nada, o que produzia era pra fazenda. Só comprava querosene, sal e arame, o resto produzia tudo. E remédio, quando tinha que vir aqui, só, o resto não comprava, produzia tudo. Fazia carne, matava toda semana, fritava, punha na gordura pra comer, tinha fartura. Muita caça, muito bicho naquele tempo, não era proibido caçada, se matava. Peixe era demais. Eu lembro que uma vez esse Domingo Gandu e esse Henrique, tinha um tal João Lavado, eles puseram os anzóis de pinda, que a gente punha em espera no rio, eles pegaram 11 surubins. Teve que ir lá na fazenda buscar um carro de boi pra trazer os surubins. Até nos deu um que era enorme, dois homens altos carregaram o surubim pra mamãe e o resto eles distribuíram lá no povoado, nos agregados lá, tanto peixe que pegava. Peixe pegava a hora que quisesse, ninguém pescada, não tinha essa pescaria comercial, era só pra consumo. A fazenda era até bom, eu tive uma infância boa, era na roça, no mato, mas a infância foi boa, ótima.
P/2 – O senhor viveu lá até quando?
R – Eu vivi lá até oito anos, vim pra Paracatu com oito anos, estudar.
P/2 – Quando o senhor veio...
R – Meus pais não vieram nessa época, não. Eu e o meu irmão mais velho ficamos na casa de Gastão Pereira. Papai pagou uma empregada pra Gastão Pereira, ele não cobrava nada mas tinha uma lá pra fazer as coisas, naquele tempo as coisas não eram fáceis. Gastão Pereira depois ficou muito amigo de papai, era até compadre. Gastão Pereira também tinha muitos filhos. E nós ficamos um ano lá e papai depois mudou pra Paracatu, moramos lá no Largo do Mirante. Depois mudou pra Patos [de Minas, MG]. Foi quando eu saí de Paracatu e fui pra Patos. Eu comecei a trabalhar em Paracatu em 1946, três de março de 1946. Eu tinha 13 anos e trabalho em farmácia até hoje. Quando papai ia mudar pra Patos, depois ele até atrasou e eu queria ir pra Patos, eu trabalhava com Gregório. Quando Gregório formou, Pedro tinha ido pra Belo Horizonte, eu fui trabalhar com Gregório pra aprender. E era Gregório, Guilhermina, João, que eles tratavam João da bicicleta, porque depois começou bicicleta, ele andava, que era aplicador de injeção, Zé Taveira e Zé Cardoso. Eu era menino, eles já eram rapazes, mais velhos. E comecei a trabalhar aí. Quando eu fiz o tiro de guerra, estava querendo ir pra Patos, como eu fui, Gregório não queria que eu fosse. Ele tinha uma farmácia em Unaí [MG], me pediu pra ir pra Unaí pra ficar lá uns 30 dias e um outro funcionário de lá vir pra cá pra ver se eu entrosava lá, ficava lá e não ia embora, ele não queria que eu saísse não. Mas aí eu fiquei, demorei, em vez de 30 dias eu fiquei 40. Cheguei aqui, Gregório tinha uma farmácia em Fróes. Ele falou: “Agora você vai pra Fróes e César vem pra aqui. Queria me entregar uma farmácia em Fróes eu tinha 18 anos, 19, tinha terminado de fazer o tiro de guerra, muito novo, ele queria me mandar lá pra Fróes, eu não quis ir. Eu falei: “Não, Gregório, eu não vou, não”. Tomar conta de uma farmácia assim, eu até tive sorte porque na minha época eu poderia ter entusiasmado e ido, mas eu vi que eu não tinha condições de tomar conta de uma farmácia. Ele achava que eu tinha, mas eu achava que não. Cabeça minha era melhor que a dele, ele era o dono da farmácia, Gregório, e eu não fui. Aí fui pra Patos, fui trabalhar com Benedito Miguel, Farmácia Americana lá na Rua Feira de Santana. Benedito Miguel era um sujeito muito bom também, trabalhei com ele, fiquei morando na casa dele e trabalhando na farmácia. Depois eu fiquei lá uns dois anos e falei pro Benedito: “Olha, Benedito, agora eu vou para uma farmácia num lugarejo pra mim”. Ele falou: “Não, você não vai fazer isso, não. Fica aqui, eu estou precisando d’ocê”. Eu falei: “Não, eu vou”. Ele falou: “Se ocê for, eu vou pôr a farmácia pra você e você vai me pagar daí a seis meses. Você não vai me pagar nada, daí a seis meses você começa a me pagar”. Aí eu aceitei, mas como papai tinha recurso e a gente tinha sempre um gado, umas coisas que ganhava e já tinha, eu pedi a papai pra vender umas reses pra mim, peguei o dinheiro com o que eu já tinha, fui lá e paguei ele com 90 dias. Aí continuei comprando dele. Ele me fazia medicamento quase pelo custo, me ajudou muito. Depois, algumas coisas que ele tinha condições de comprar à vista pra mim, aliás, comprar em laboratório, tinha um laboratório que se chamava Laboratório Dumont, de Araxá [MG], aí a gente comprava, ele comprava e me cedia, só pagava o carreto. Eu tinha farmácia num lugarejo, pegava um ônibus todo mês e ia lá fazer compra. Comprei dele durante o tempo que eu fiquei nesse lugarejo. Depois eu fui pra Vazante, que era perto. Vazante já era cidade, um povoado. Lá em Vazante fiquei mais de dez anos. A história mais é esta. Eu não tinha vontade de sair de Vazante, Vazante foi muito bom pra mim, pessoal muito bom, não tinha médico, eu fiquei quase 11 anos nessa região toda, por isso que eu adquiri muita prática, tudo, porque não tinha médico, você tinha que se virar. E eu tinha muita sorte porque quando a pessoa passava mal eu conhecia e mandava pra fora, mandava pra Patos, mandava pra Lagamar [MG], mandava pra Coromandel [MG]. Eu tinha uma passagem interessante que é difícil porque eu tinha chegado em Vazante tinha uns 30, 60 dias. Não, tinha mais. Eu cheguei em janeiro, a festa era em maio, eu sei que na festa um sujeito, João de Melo, era candidato a prefeito, tanto que ele foi eleito no ano que eu fui pra Vazante. E aí estava a farmácia, tinha uma outra farmácia mais antiga, que era Oscar, que eu já tinha trabalhado com ele em Unaí e ele resolveu sair de Unaí e foi pra Vazante porque ele era daquela região lá. Ele já era antigo lá na farmácia, muito conhecido, bom farmacêutico. Eu cheguei e pus uma farmácia, comprei uma farmácia de um rapaz lá que chamava... Esqueci o nome, não me lembro o nome bem, depois vou lembrar. Entrei de sociedade com ele, depois ele resolveu ir embora, a senhora dele estava pra da dar a luz, foi pra Coromandel. De Coromandel, eles quiseram mudar, mudaram pra Belo Horizonte, ela foi nomeada pra ser professora, era muito inteligente, era professora e foi transferida pra Belo Horizonte. Ele me vendeu a parte dele. E eu estava numa festa num alpendre, estava João de Melo com a família, estava o Baldino e a menininha na mão de uma filha de um Baldino. A menininha cansada, cansada, olhando assim rouca. Passei assim andando e voltei, falei: “De quem é essa menina?” “É de João de Melo” “Baldino, essa menina está com crupe. Vamos ver se nós saímos com ela agora, senão ela vai morrer”, porque fecha aqui a traqueia, né? Aí, eu ajudei a sair, tinha um tal de Odilon, que era o único que tinha um carro lá disponível, que era motorista. Eu falei pro João de Melo: “Pega a menina e vamos dar jeito dela chegar em Patos agora, logo, não pode demorar”. Fui chegando lá, eles tiveram que fazer cirurgia, abrir aqui, ó, a traqueia pra ela respirar. Se chega mais atrasado um pouco ela tinha morrido. E aí abriu o caminho pra mim. Todo mundo, salvei a menina. E fiquei lá. Pessoal não gostava que eu saí. Até hoje eles falam... Ia mostrar pra vocês [procuram placa]. Agora, há pouco mesmo, eu fui homenageado, eles gostavam, não queria sair de lá, não. Mas como o doutor Santiago estava velho e não queria acabar com a farmácia, com nome, ele tinha amor aqui, não tinha pra quem passar. Eles me consideravam como da família, foram atrás de mim, até por intermédio de um meu tio, que era doutor Jacinto, advogado deles, foi em Vazante atrás de mim, eles mandaram recado para vir aqui que queria falar comigo, queria que eu adquirisse a farmácia pra continuar e eu não quis vir, ele mandou atrás de mim. Eu vim, cheguei aqui, não tinha como falar não. Aí adquiri a farmácia e voltei pra cá. Eu saí daqui em 1953 e voltei pra aqui em 1967, estou aqui até hoje.
P/1 – A gente já vai continuar a história da farmácia. Eu queria que você contasse pra gente, a primeira vez que o senhor veio pra cidade, com sete, oito anos de idade, pra ir pra escola. Eu queria que você contasse dessa escola, como é que foi estudar, aprender a ler.
R – A gente começou a ir pra escola e, naquele tempo, os meninos que estavam aqui quando chegava um sujeito da zona rural, eles montavam em cima, criticando, chamando de queijeiro, ia atrás da gente querendo tomar merenda, até tomaram algumas vezes. Aí, eu mais Osvaldo tínhamos muito medo de polícia, criança do mato, da roça, não conhecia. Aí nós falamos: “Agora, nós vamos fazer isso, vamos chamar esses meninos, vamos marcar um encontro com eles num lugar aí e vamos dar uma surra neles”. Nós éramos dispostos. Tinha um lugar que chamava Tanque das Neves, eles jogavam futebol. “Queijeiro, nós vamos encontrar ali tantas horas”. E eles foram. Nós, ó, ganhamos a parada (risos). Aí ficamos famoso, começava o negócio e eles nos deixaram estudar porque senão não estudava, não. Eles ficavam atrás de você chamando: “Queijeiro, queijeiro, queijeiro” e a gente ficava com medo de enfrentar eles assim porque tinha medo, não era medo deles não, porque nós estávamos acostumados na roça, naquele tempo a gente fazia, já montava a cavalo, fazia de tudo, montava naqueles bezerros lá. E aí nós estudamos, fomos pra escola e ficamos na escola. Aí ficou foi o contrário, ficamos famoso lá porque daí eles nos respeitavam, aí estudamos.
P/1 – E como é que fazia pra ter as coisas, caderno, os lápis?
R – Comprava tudo, aqui a gente comprava nas lojas. Papai tinha recurso, comprava, comprava tudo o que a gente precisasse. A gente tinha pasta, tinha lápis, tudo organizado. Dona Joana, que era a mulher que nós moramos, que era a esposa do Gastão, tinha um cuidado danado. Nós tínhamos um quarto pra dormir ali, tudo arrumadinho. Eles nos tratavam como filhos.
P/1 – Qual era a escola?
R – Escola Afonso Arinos, é que tinha na época, é o grupo Afonso Arinos que tem ali na praça do Rosário. Depois, eu fui pra praça anexa. Depois eu não continuei, não, depois eu deixei e fui trabalhar. Doutor Antero até queria que eu fosse pra Belo Horizonte, doutor Antero, o que era do Santiago, que era irmão do Gregório. Queria que eu fosse pra Belo Horizonte e eu mesmo não quis ir. Poderia ter ido. Ele falou: “Você vai pra Belo Horizonte”. Ele queria por na casa de Pedro e custear até as despesas. Meu tio até, por mim mesmo que eu não formei, não estudei porque nessa época e depois já tinha condições.
P/1 – O senhor falou até a data que senhor começou a trabalhar. Como foi o seu primeiro dia de trabalho?
R – Ah, não é fácil, não. Ao chegar eu era muito acanhado, cheguei e eles me deram toda a liberdade. Naquele tempo, a gente começava lavando seringa, fervendo seringa e fazendo limpeza. Mas logo eu desenvolvi, eles me deram todas as condições de eu desenvolver e eu ia fazer limpeza. A farmácia era 11 cômodos, era ali, ó. Eu limpava ela, ficava limpinha, todos os dias, de manhã lavava ela toda e à tarde passava pano na frente. Arrumava os remédios que Gregório falava assim: “Aquieta Dedé, aquieta. Vai ficar quieto aí”. Muita coisa ele pedia pra mim ficar parado, eu não ficava, o dia inteiro eu trabalhava. Arrumava a farmácia um vidro em cima do outro, a farmácia ficava um espelho. Por isso que ele apegou comigo e não queria que eu saísse da farmácia. E eu fui desenvolvendo, fazia manipulação, fazia tudo, já pouco tempo depois, uns três, quatro anos eu já fazia manipulação, já entregava tudo, manipulava medicamento, fazia pomada, fazia aqueles pós ferruginosos, pílulas, cápsulas, fazia tudo. Media naquelas balancinhas de precisão, fazia tudo. Comecei a trabalhar e não parava, não. E trazia a farmácia arrumadinha, graças a Deus toda vida eu fui disposto, trabalhei muito. E ele ficava querendo que eu parasse e eu não parava, não, trabalhava. Depois desenvolvi e fazia de tudo, atendia balcão, aviava receita, manipulava. Doutor Antero, que era médico, esse povo, médico de primeiro era trabalhador, eles atendiam a cavalo, ia pra todos os lados na zona rural, qualquer hora da noite que chamava, eles estavam prontos pra atender as pessoas. Nas férias meus pais iam pra fazenda e eu ficava dormindo na farmácia, lá em cima, é o prédio ali do sacolão, lá em cima. Doutor Antero morava ali, eu chamava ele à noite, podia estar chovendo o jeito que fosse, ele ia lá, me chamava, vestia uma capa, eu pegava um guarda-chuva, a malinha dele e nós ia nessas beiras de praia tudo duas, três horas da manhã, quatro horas, cinco horas, atender as pessoas. Não tinha preguiça, não. Então ele atendia essa zona rural a cavalo. Sem cobrar nada, praticamente não cobrava. O pessoal pagava, mas eles não se importavam com dinheiro, não, atendia o povo, tivesse dinheiro ou não tivesse. Era a mesma coisa, nem perguntava. O pessoal pobre, nessas beiras de praia, fui muitas vezes com doutor Antero atender de madrugada, com chuva. E aí eu fiquei apegado a eles e eles também, tanto que eles não queriam que eu saísse. Gregório tentou de toda maneira, todas as vezes que eu vinha a Paracatu visitava Gregório, saía aqui, nós saímos junto aí, eu era rapazinho. Quando ficava aqui nas férias eu ia almoçar com ele no hotel, na casa de dona Iaiá, almoçava e jantava, tomava refeição lá. Tinha um senhor que era promotor, doutor Geraldo Serrano Neves, era um sujeito inteligente, muito bom. Ele vinha todos os dias 11 horas, 11:30, chegava aqui, pegava e a gente ia lá na dona Iaiá almoçar junto. E doutor Geraldo Serrano Neves tinha eu como se fosse uma pessoa da família dele, todo lado que queria me chamava pra ir com ele, ele era promotor de Justiça, sujeito muito bom. Famoso. Até onde nós moramos no Alto do Córrego é com o nome dele, Doutor Geraldo Serrano Neves, promotor de justiça.
P/2 – O tiro de guerra era o alistamento militar?
R – Era. Alistamento militar, tiro de guerra. Aqui tinha o tiro de guerra, depois ele acabou. Eu devo ter sido uma das penúltimas turmas, depois veio um outro, que era com o tenente Silva, ficou um tempo e depois acabaram com o tiro de guerra, não sei por quê. Mas ele funcionou aqui bastante tempo, eu fui da classe de 1933. Fiz o tiro de guerra e saí de Paracatu. Terminou o tiro de guerra em novembro, fiquei em Unaí no mês de dezembro pra Gregório. Cheguei aqui no dia um ou dois de janeiro, dia três eu fui pra Patos.
P/2 – Teve algum fato, alguma história que o senhor lembra dessa época do tiro de guerra?
R – Tiro de guerra era turma muito unida. A gente tinha a turma muito unida. Um dia eu saí mais Hilário, trata ele por Lalim, fizemos umas farras. Lalim não era muito certo não, nós descemos aí, Lalim deu um chute numas portas, tudo, mas foi no conhecimento do tenente Silva. Eu estava com Lalim e Lalim que deu chute na porta, eu não queria que ele fizesse aquilo, mas fui companheiro dele e depois lá na hora fomos nós dois, eu não falei que não tava junto. Ele falou: “Aconteceu isso, quem é que”. Nós levantamos e falamos: “Fomos nós, nós que fizemos isso. Aí saímos aí tudo, fiz isso”. Ele nos pôs aguar umas mangueiras lá que você tinha morrido. Tirar água no poço, deu um castigo bom. Nós aguamos as mangueiras. Terminou ele nos deu uma picareta, estava fazendo uma estrada pra sair na praia, tinha uns barrancos lá e ele mandou cortar lá de picareta. A gente não tinha costume com ferramenta pesada. Eu tinha, mas ele não, porque eu fui criado na zona rural, a gente fazia todo o serviço. Mas a mão nossa inchou, nós ficamos com a mão bem inchada, teve que dar banho na mão de água de sal. Mas fizemos. Mas foi bom, nós não achamos ruim, não. E evitamos de fazer outras, foi bom.
P/1 – Eu queria voltar pro processo de descobrimento do universo farmacêutico. Como foi pro senhor ir descobrindo isso, essa relação de doença e cura, do que serve pra cada coisa?
R – Ó, você sabe o que acontece? Naquela época, os médicos tinham diagnóstico. Médico olhava as pessoas e sabiam o que tinha, o médico não tinha muito erro, não. E a gente foi criado no meio deles, doutor Antero, doutor Zé Neiva, doutor Fortunato. Gregório viajava às vezes pra Belo Horizonte com Santiago e eu ficava aí e doutor Joaquim Brochado, dessas famílias antigas de Paracatu. Era um médico muito bom. Doutor Antero falava: “Chegou indicação aí”, vinha as indicações da zona rural: “Você leva em doutor Joaquim pra dar a receita”. Eu ia. Chegava lá, doutor Joaquim tratava a gente como uma pessoa, como amigo dele, como pessoa de responsabilidade. Chamava, conversava com a gente, fazia receita. A primeira vez que eu fui, ele falou: “Você é filho de quem”, ele conhecia a família toda, que nosso avô tinha sido juiz de direito, aí a política era meio brava, tudo, eles tinham umas rixas, mas era muito amigo da família. Inclusive eu tive um tio que casou com uma parente de doutor Joaquim Brochado, doutor Carlos, que foi naquela época deputado estadual. E ele conversava, explicava muito as coisas, conversava muito, que era uma conversa aproveitável, eu gostava até de ir lá levar as indicações pra ele receitar, quando o doutor Antero estava fora. E no meio deles, receituário, tudo, a gente foi praticando, foi adquirindo experiência, experiência de muitos anos. Eu vou fazer 72 anos de farmácia, em março do ano que vem, tenho 71 anos de farmácia. Vivi dentro da farmácia.
P/1 – E o primeiro remédio manipulou, o senhor fez todinho.
R – Primeiro, a gente começou fazendo gotas amargas. Gotas amargas são tinturas. A gente comprava os vidros todos esterilizados, tudo limpinho, não era esses vidros assim não, alguma coisa que a gente lavava, vinham os vidros todos na medida certinha. Não era difícil porque tinha um cálice de medida, a gente colocava tantos centímetros de cada coisa, tintura de badiana, tintura de noz-vômica, tintura disso, daquilo e a gente fazia as fórmulas, chamavam Gotas Amargas, umas gotas digestivas. Era coisa simples, mas tinha que saber. Depois, comecei a fazer Água Vienense, um purgativo que a gente fazia, fazia com sene, maná, rosa branca e sal de Glauber. Tinha as medidas, media tudo certinho, fervia, fazia infusão, filtrava, punha o rótulo e estava pronto, era um purgante. Fazia limonada purgativa com ácido cítrico, mas era sulfato de sódio e ácido cítrico; porque ácido cítrico era limão, pra dar sabor nas limonadas. Fazia limonada, depois que a gente já estava fazendo muitas coisas deixava, eles não deixavam a gente fazer as coisas assim, não, tinha acompanhamento. Tinha esse João da farmácia, que tratava ele de João da farmácia, foi criado dentro da farmácia, quem criou ele foi Soquinho. Era já de mais idade, tinha casado e eu acompanhava o serviço dele, Gregório também acompanhava. E a gente foi desenvolvendo: “Mede aqui”, eu media, conferia com as balanças de precisão, outras horas era tintura, muitas vezes era pomada, a gente fazia muita pomada, muita. Tinha umas pomadas que chamavam pasta lassar, tinha pomada de recreio, tinha pomada mercurial, tinha muita coisa que a gente manipulava. Manipulei muita coisa. Pós ferruginosos, que eram feitos de ruibarbo, outras coisas mais que a gente fazia os pós ferruginosos, que era pra anemia. Naquele tempo, tinha que manipular, antigamente tinha pouco medicamento, remédio oficial.
P/1 – O senhor contou que saindo de Paracatu foi que o senhor abriu o seu próprio negócio.
R – Eu fui trabalhar com Benedito Miguel, lá em Patos.
P/1 – Mas depois de Patos o senhor...
R – Depois de Patos eu fui prum lugarejo, já perto de Vazante, chamava Biboca, Brejinho. Lá o lugar era Brejinho, era Biboca, chamava lá Cabeludo, uns nomes lá assim, Gameleira. E eu tive farmácia lá quase dois anos e depois eu fui pra Vazante. Vazante, tudo tem umas coincidências. Eu fui em Vazante, eu gostava de fazer uns negócios, vendi um gado pro Manuelzinho, que eles tratam de Manuelzinho Feijão. E eu ajudei ele a levar o gado, ele tinha uma fazenda chamava Bainha, perto de Vazante. “Eu vou te comprar esse gado, você podia largar a farmácia”, eu vendi o gado, queria receber dele, ele ia me pagar lá em Vazante. Eu fui com ele. Dormi lá em Vazante que no outro dia eu vinha embora pro Brejinho. E estava lá num barzinho, tudo, conheci Didico, que era o dono, comprei a farmácia dele. Didico, conversando de farmácia falou assim: “Dedé, você podia fazer uma sociedade comigo”. Eu falei: “Por quê?” “Eu faço uma sociedade com ocê que eu sei que ocê vai dar conta disso aqui. Eu não posso ficar aqui muito tempo mais porque minha esposa está com um problema pra dar a luz e eu estou querendo levar ela pra Coromandel’, ele era de lá, Coromandel. Eu falei: “Didico, então tá. Você me dá um tempo?”. Eu fui lá em Brejinho, tinha um sujeito lá daqueles do Maranhão, que esse pessoal do Maranhão é da turma de Lampião. Ele tinha uma fazendinha lá perto chamava Biboca e gostava de mexer com remédio. E ele já tinha uma farmacinha lá, mas era muito pequenininha e eu fui nele e falei assim: “Você quer me comprar aquela farmácia? Os medicamentos que tão lá” “Compro” “Vamos lá”. Fui lá e vendi pra ele assim, sem dar balança, sem nada, ele me comprou. Eu lembro daquilo, foi 3 contos e 500 reais, 3 mil réis e 500 reais era 3 contos e 500 naquele tempo, na moeda. (risos) E fui pra Vazante. Cheguei lá e fiz sociedade com ele, logo Didico foi pra Coromandel, me entregou a farmácia e eu continuei com ela. Aí ele falou: “Vou te vender o resto porque eu não tenho condições de voltar pra cá, não, agora nós vamos mudar pra Belo Horizonte”. Eles foram pra Belo Horizonte e eu fiquei lá. E lá eu fiquei quase 11 anos, entrei em janeiro e saí em julho. Eu entrei lá em 1957 e saí em 1967, em julho de 1967.
P/1 – E conta como foi esse processo de volta a Paracatu.
R – Paracatu, como eu te falei, os Santiago ficaram velhos, doutor Antero tinha falecido num acidente. Pedro tinha ido pra Belo Horizonte. Gregório, que era o caçula, estava querendo ir embora pra Brasília. E eles estavam todo, Pedro não poderia vir, Gregório queria entregar a farmácia pra Pedro, eles tinham que encontrar uma pessoa pra comprar ela. Não queriam acabar com ela, não tinha quem passasse a farmácia, foi atrás de mim em Vazante. Mandou um recado, eu não vim, mandou doutor Jacinto, amigo deles, era advogado deles. O doutor Jacinto é irmão de papai e foi lá em Vazante me buscar. E eu vim, mas vim pensando que não vinha fazer negócio com eles, não estava querendo fazer, não. Porque em Vazante eu estava sozinho, não tinha médico, não tinha nada, farmácia era uma só. Tinha muita amizade lá, não tinha nada. Tanto que eu fiquei lá em Vazante, hoje não é tanto porque aquele pessoal antigo lá, quase não tem ninguém mais, mas é uma viagem, é um lugar que eu gosto de ir, de vez em quando, quando eu posso eu vou lá. Vou no sábado à noite, à tardezinha, durmo lá e venho no domingo, de vez em quando eu faço isso ainda. E nisso eu vim e acabei comprando a farmácia. Fui em Vazante, trouxe uma parte da mercadoria, vendi algum, já tinha uma outra farmacinha lá, vendi prum outro. A farmácia minha era grande, ela era maior do que essa aqui, era muito estoque. Porque naquele tempo a gente fazia estoque. Vendi uma parte da Lagamar, prum sujeito lá de Lagamar e uma parte da medicação, aqueles medicamentos eu trouxe uma parte, poderia ter trazido a farmácia toda, foi um erro meu. Vendi uma parte e bem nem recebi, eu poderia ter trazido tudo pra cá. E aí fiquei aqui. Cheguei, estou aí até hoje.
P/1 – O que fez o senhor aceitar essa proposta de continuar com a drogaria Santiago?
R – Em consideração a eles porque eles queriam que deixassem a farmácia tradicional Santiago, farmácia de muitos e muitos anos. Você pensa bem, eu comecei com eles em 1946, ela já era farmácia antiga. Eu passei por ela já tem 71 anos. Ela era antiga quando eu comecei a trabalhar com eles, era farmácia antiga, que ela tinha começado na rua do Álvaro, ficou lá muito tempo, depois passou, que ela era antiga. Eu vim pra aí em março de 46, três de março. E eu tenho as memórias, a cabeça boa. Raramente eu esqueço das coisas. E vim. Não tinha jeito, fiquei. Acabei fazendo, fui lá em Vazante, negociei lá e vim pra cá. Eu era disposto pra fazer as coisas, era resolvido, tinha opinião, fazia. Não ficava pensando, não, fazia.
P/1 – Como foi a viagem de Vazante pra cá com a mercadoria, com as coisas?
R – Eu trouxe naquele tempo em caminhão, trouxe mudança, tudo, de caminhão e a medicação. A família veio de condução e eu vim no caminhão com a medicação, eu e a minha esposa viemos, os meninos já estavam aqui. Nós ficamos morando aí em cima, porque Gregório já tinha mudado, a casa a gente já tinha mandado fazer uma limpeza aí, tal, os meninos ficaram aí porque tinha pessoas que trabalhavam com a gente há muitos anos. E a gente veio depois, eu mais a Lena e trouxe tudo as coisas que a gente tinha. Tinha uma casinha lá, vendi. E com esse dinheiro a gente pagou o pessoal... Gregório não era, tinha uma parte que era de Pedro, outra era de Gregório, outra eles tinham dado uma porcentagem pra João, que era antigo, já trabalhava com ele já era sócio também. Comprei, deixei só as cotas, deixei drogaria Santiago, está até hoje.
P/2 – Quando o senhor diz aí e aponta, onde que era a farmácia?
R – Era ali onde é o sacolão, farmácia era ali.
P/1 – Fala o nome da rua.
R – A Rua das Flores, antigamente ainda era Rua das Flores, depois que passou pra Doutor Sérgio Ulhôa. Rua das Flores, que era essa rua aqui. Farmácia era ali onde é o sacolão, onde verdureiro ali, sabe, não tem a fotografia ali? Eu comprei ali, depois que eu passei pra cá. Por isso que lá a farmácia era toda de móveis antigos, muito bonito, tinha até uma registradora daquelas todas desenhadas, de manivela, que eu não soube aproveitar, poderia ter passado pra cá. Eu achei que tinha que ter uns móveis modernos, diferentes, abri aqui e pus uns móveis. Não é metalão não, tem um móvel pesado, tipo de metalão, que pus. Depois eu não gostei daquilo. Muito tempo depois tornei a pôr outro, não gostei, depois eu resolvi mudar. Veio uma pessoa fazer um projeto aqui, mudar estilo, mudei tudo e consegui comprar aqueles móveis ali. O outro a madeireira Paracatu fez essa, modulou essa daqui e fez um tipo de antigo, um modelo acompanhando coisa antiga. Porque não tinha, não arranjava isso assim pra comprar mais. Igual não, igual a gente tinha lá, não.
P/2 – O que era aqui na época que a farmácia era lá?
R – Aqui, quando eu comecei... Aqui foi uma porção de coisa, foi cinema, foi clube de patinação, mas quando eu comecei ali aqui já era Banco Hipotecário. Aqui foi Banco Hipotecário muito tempo, depois passou Banco do Estado, aqui eu já adquiri do Banco do Estado. Mas eu não adquiri mesmo do Banco do Estado [de Minas Gerais] porque eles negociaram com o Gilson Jordão e Gilson me vendeu aqui, eu comprei com o Gilson, negociaram com o Gilson uma casa porque queria mudar pra avenida, o Banco do Estado na época. E eu adquiri aqui, aqui já era Banco do Estado, é que foi muitos anos Banco Hipotecário. Quando eu saí de Paracatu aqui era Banco Hipotecário, quando eu saí de Paracatu em 1953. Não sei quando acabou o Banco Hipotecário, quando eu voltei já era Banco do Estado.
P/1 – Nessa sua volta o que mais o senhor percebeu de mudanças na cidade, o que mais estava diferente aqui?
R – Eu não achei muita diferença, não. Porque eu já saí daqui já era adulto. Aquele pessoal lá antigo, quando eu saí daqui, praticamente estava todos aí. Aquele povo antigo virou tudo meus fregueses. Aqueles Botelho, aquelas famílias tradicionais, os Adjuto, Cordeiros. Cheguei, tive a maior acolhida possível aqui, ó. Cheguei e fui bem acolhido e conhecia eles todos, não tinha. E eu vez em quando vinha em Paracatu, vinha aqui pra visitar Gregório, porque Gregório, eu comecei com ele, nós ficamos muito amigos. Gregório gostava muito de mim, porque eu andava muito com ele, saía aqui, ia pros barzinhos com ele. Gregório gostava de umas bebidas nas farras mas eu não gostava, não. Eu bebia, mas era muito pouco, eu nunca fui de bebida, toda vida eu não fui, tomava de vez em quando assim. Até hoje deve ter uns 40 anos, praticamente, eu não bebo. Eu nunca fui de beber, nunca fui de ter vícios assim. Gostava de uma festa, ia nas festas e ia nos clubes, ia nos carnavais, mas não sou de dança. Ia só com a família, mas nunca fui de bebedeira, de bebida. Tanto que eu não bebo, tomo uma cerveja de vez em quando, mas nunca tomo mais do que cinco copos de cerveja, nunca.
P/1 – E como é que foi ser reconhecido pela cidade? Qual a sensação de ser reconhecido quando o senhor anda pela cidade, o doutor Dedé, de ser uma referência.
R – Mas eu não sou doutor, né? Eles me chamam. A referência, não, toda vida eu entrosei bem com o pessoal porque praticamente eu tinha família aqui, que eu tenho a família nossa, Campos, porque tem doutor Joaquim, que é meu primo, tem doutor Iná, que era dono do cartório. Ainda nesse tempo tio Geraldo, que era irmão de papai morava ali, ó, que a gente tinha um bom entrosamento. Tio Geraldo morreu de enfisema pulmonar. Quando ele viu que ele ia morrer, ele me chamou no quarto e contou a vida dele pra mim e falou assim: “Ó, você vai tomar conta de Joaquim, Iná, vai tomar conta dos meus filhos pra mim. Vou entregar pra você, ocê que vai ser o chefe deles”. Mas eu nunca fui porque eles não precisavam, doutor Joaquim já era advogado, Iná era diretor aí do colégio, eram pessoas idôneas, mas ele tinha tanta confiança, confiança mais em mim que achava que eu tinha cabeça boa, não sei, mas ele achava que eu era a pessoa que tinha que ficar no lugar dele responsável e eles não precisavam de mim não porque eles eram tudo, todos já cabeça feita, pessoas equilibradas, não tinha nada, não.
P/1 – Como é cuidar das pessoas de Paracatu tantos anos?
R – Eu acho uma coisa bem agradável, acho bom. Acho uma coisa que eu faço a minha obrigação porque você é acolhido numa cidade, é um dever seu. O que eu posso fazer eu estou pronto. Qualquer coisa que Paracatu precisar de mim, eu estou disposto a ajudar. O que eu posso fazer, alguma coisa, se eu for útil.
P/1 – E o senhor se lembra de um caso diferente que apareceu, de inusitado ou engraçado, diferente, de alguém que veio te procurar, alguma coisa...
R – Procura sempre, até hoje tem, muitos assim, chegar à noite, de madrugada, duas horas, depois as pessoas agradecer, vim cá agradecer e falar as coisas às vezes. Porque você pensa bem, eu, por exemplo, as experiências que a gente tem, que vocês têm tudo. Por exemplo, chega uma pessoa com um apêndice, se eu pegar na pessoa e ver assim, eu sei que a pessoa está com apêndice e está pra supurar, isso muitas vezes eu já mandei: “Vai pro hospital porque você está com o apêndice pra supurar”. E o sujeito chega lá, é operado, se não chegar naquela hora, chega e vem agradecer, é natural. Esses casos acontecem porque é a experiência da vida, automaticamente você sabe o que é, muitos casos você sabe, ué. Tem experiência. Você vê que uma pessoa está passando mal, coração, está pra ter um infarto, a gente tem conhecimento disso, não é médico, a prática. Você sabe que a prática, o bom é você ter teoria e prática, se você só tem teoria não funciona, se você só tem prática também não funciona. Mas a prática ajuda muito.
P/1 – Foi em busca dessa teoria que o senhor foi fazer...
R – Que eu fui desenvolvendo no serviço. Fui fazer o curso de farmacêutico prático.
P/1 – Conta como foi esse curso.
R – Esse curso, o Pedro, eu tinha um primo que é lá da escola, do Conselho Regional de Farmácia, e Pedro falou: “Ó, tem um curso aqui, você vem cá fazer ele”. Aluízio, Valdemir e Pedro, eu fui. Eu fui até umas duas ou três semanas, eu tive poucas aulas, pra fazer o curso. Fui, tive sorte que fui aprovado.
P/1 – E o que o senhor pode falar sobre a venda dos medicamentos? O que mudou, desde o começo...
R – Mudou demais. Muito. Eu acho que a medicação de primeira era melhor do que a de hoje. Os laboratórios eram só de boa representação, laboratórios éticos. No meu tempo, os laboratórios eram Pfizer, Roche, Squibb, Control Wyeth, Behring, Bayer e outros, só laboratórios muito bons. Hoje todo mundo fabrica remédio. Pra mim piorou demais. A medicação boa que tinha, os medicamentos eram mais confiáveis. Tanto que eu não gosto de similar. Às vezes compro similar, poucos similares, no mais compro alguns que são vendidos, tem as farmácias populares e tudo que são medicamentos mais populares, eu gosto só de produto ético, porque você confia. E de poucos laboratórios, eu não compro de qualquer laboratório, não. Até hoje eu compro pra mim, pra uso e outras coisas mais, quando o pessoal faz indicação eu prefiro só os produtos éticos, de bons laboratórios. Behring ainda a gente tem, tem o Novartis, tem Pfizer, tem muito laboratório bom ainda, mas de primeiro era só laboratório bom, não tinha nenhum ruim. Eu não conheço da minha época nenhum fabricante ruim, os laboratórios eram todos bons, produto importado, os sais eram todos importados. Não tinham esses sais que compra de qualquer... Os sais eram todos importados, as embalagens eram todas muito bem-feitas, muito seguras.
P/1 – E o senhor sabe de algum tratamento popular feito com coisas naturais da região que são comuns aqui?
R – Eu nunca mexi com produtos de raiz, de plantas assim. Mas o pessoal mexe com muita planta, muita coisa. Toda vida eu nunca fui de preparar medicamento. Preparar fórmula, tudo, quando era medicamentos de primeira linha, de produtos oficiais.
P/1 – Aqui ainda faz manipulação?
R – Na farmácia aqui, não. Nós íamos até colocar manipulação, mas depois deixamos. Porque manipulação, como o professor da Daniela falou, se tiver uma uma auditoria, ela nunca fica 100% nas fórmulas porque você abre um vidro perde qualidade, torna a abrir, você compra pra fazer muitas fórmulas. Se você usa pouco, cada vez que você abre e mexe ela vai perdendo qualidade. Com o tempo, você vai fazer uma fórmula aí e ela já cai a qualidade. E aí nós desistimos. Como ele falou, de qualquer maneira é bom pra ganhar dinheiro mas é uma coisa que você não tem garantia 100% do que você manipula. Aí eu falei: “Ah, não vou mexer com isso, não”. Nós não mexemos. Porque Daniela é bioquímica, farmacêutica, nós íamos fazer, começamos até contratar, fazer as coisas pra montar o laboratório e resolvemos. Melhor vender o remédio ali, se ele não fizer efeito você culpa... Você não foi quem fabricou, né? Se fizer análise de um medicamento e ele não der 100% não foi você que manipulou. Eu não gosto muito de estar aventurando muita coisa, não.
P/1 – O senhor falou que é casado. Fala um pouquinho como o senhor conheceu sua esposa, o nome dela.
R – A minha esposa é Dalene Resende Campos. Conhecemos, eu tinha farmácia lá. Ela é de Coromandel, mas eles tinham mudado pra [inaudível,] um lugarejo lá perto de Vazante. Eu conheci ela na casa do tio dela. O tio dela chama Ubaldino, era um comerciante, tinha uma loja e ela veio passear em Vazante e, de vez em quando, ela vinha e ficava lá, nós ficamos nos conhecendo lá, conversando, tal e daquilo ali nasceu, criou um início do namoro. Ficamos conhecidos, conversando um tempo. Namoramos pouco tempo, acho que uns dois anos ou mais um pouco. Eu sou dez anos mais velho do que ela, ela tinha uns 17 anos, mais ou menos, eu já tinha uns 27 anos, casei com quase 30 anos.
P/1 – E nesse tempo de namoro o que os senhores faziam?
R – Conversava, encontrava, ia sempre na casa dos pais. Eles tinham um filho em Patrocínio [MG] e foi passar um tempo lá e eu ia em Patrocínio ver ela, a gente encontrava. Ia pro cinema. Ficamos conhecidos, namoramos um tempo, encontramos um tempo. Nós ficamos namorando uns dois anos ou mais. Quando eu casei com ela, ela era muito moça, nós casamos ela já tinha 19 anos e eu já tinha 29, é. Nos conhecemos ela tinha 17, casamos dois anos depois.
P/1 – E como foi o casório?
R – Casório foi simples, foi lá no lugarejo, não teve festa, não teve nada. Casamos na casa deles lá, o padre foi lá, o escrivão, casamos. E nós viajamos no mesmo dia, fomos pra Patos e de Patos eu contratei, naquele tempo quase não tinha carro, um jipe parece, o dono era prefeito de Paracatu, Otávio Guimarães, nos levou em um hotel lá em Patos. De lá nós fomos em Araxá. Passamos a lua de mel lá em Araxá, ficamos lá uns oito, dez dias, voltei.
P/1 – E conta dos filhos. Quando começaram a chegar os filhos?
R – Os filhos... Denise e Martinho nasceram em Vazante. Não, Valéria é a mais velha, Valéria, Martinho e Denise. Martinho nasceu em Patos mas porque foi dado luz em Patos, os outros nasceram em Vazante. Daniela e Adriana nasceram aqui em Paracatu. Mas aí começamos estudo lá, logo saímos de lá e viemos pra Paracatu, começaram a estudar aí na escola Afonso Arinos, quase todo mundo estudou aí. Depois começaram a fazer ginásio aí e depois levei eles pra Brasília, estudar lá. Eu tive quase mudando com eles pra Uberlândia, ia até pra Uberlândia, cheguei a arrumar farmácia pra comprar lá, cheguei a arrumar um cômodo lá. Um irmão de Dalene me tirou isso da cabeça. O irmão dela trabalhava num banco, tinha um apartamento lá, ele comprou um outro, tinha um apartamento disponível: “Ó, tenho um apartamento aí, você fica lá em Paracatu e você vem aqui de vez em quando, eles vão lá”. Acabou que eu fiz isso, levei eles pra Brasília, eles começaram os estudos deles lá. E com esse tempo que nós ficamos lá, resolvemos mudar pra Belo Horizonte. Eu comprei um apartamento lá em Belo Horizonte e levei eles pra lá porque a família nossa é mais de Belo Horizonte, meus tios, nós temos uma família muito grande em Belo Horizonte, a família Campos é grande. Eu já tinha três irmãs lá em Belo Horizonte e acabei levando eles pra Belo Horizonte e estudaram lá. Valéria voltou pra cá, casou aqui. Daniela voltou e os outros ficaram lá. São cinco filhos, graças a Deus todos são trabalhadores de bem, cabeça boa, não tem ninguém cabeça ruim, não. Todo mundo é trabalhador. E lá em casa é proibido cometer qualquer erro, erro assim de não ser honesto, é obrigado a ser honesto. E honesto, graças a Deus, todo mundo é. Cumpriram os deveres em cima. E nós, graças a Deus procuramos, e o mesmo pensamento que eu tenho eles têm, nunca passaram ninguém pra trás, nunca.
P/1 – Como é ver que sua filha quis seguir seus passos, foi...
R – Daniela até começou a fazer Engenharia. Depois resolveu deixar, trancou a matrícula, tentou vestibular pra Farmácia. Passou, resolveu fazer Farmácia. Ela estudou em Patos. Ela estava fazendo em Belo Horizonte, começou lá fazendo Engenharia. Trancou, depois veio fazer, se não desse voltava a fazer Engenharia, mas depois ela resolveu fazer Farmácia mesmo e fez Farmácia, está aí. Veio para aqui e veio trabalhar comigo. Casou, está trabalhando comigo até hoje.
P/1 – Como é ter a filha trabalhando junto?
R – Eu acho natural, não tem diferença nenhuma, nunca teve. E eu acredito que nunca vai ter. Nunca que eu tive desavença com meus filhos, nada, nunca tive um atrito com eles, todo mundo é obediente. Todos são trabalhadores, todo mundo tem uma profissão, todo mundo trabalha.
P/1 – E quando o senhor não está na farmácia, o que o senhor gosta de fazer?
R – Eu não saio da farmácia, eu fico na farmácia, eu entro de manhã e saio quando fecha. No domingo, eu levanto, vou à missa, almoço e vou pra fazenda. Tenho uma fazendinha aí, vou pra lá e volto à noite, escurecendo assim. De vez em quando, tem uns jogos que eu quero ver, eu venho mais cedo. Vou lá, fico lá pouco tempo e volto. Gosto de futebol, de ver, sou torcedor de um time.
P/1 – Pra que time o senhor torce?
R – Eu sou torcedor do Atlético, atleticano (risos). E quando tem uns campeonatos aí, umas decisões, a gente deixa tudo pra ver o jogo, nas quartas, nos domingos. De primeiro, a gente tinha plantão, hoje não tem mais, fica aberto se quiser. Não compensa você ficar no domingo, domingo eu não trabalho mais. Eu levanto, vou à missa, almoço e vou pra fazenda, não fico à toa. Lá eu ando a cavalo, me movimento, em fazenda eu sei fazer de tudo.
P/1 – E pra gente entrar numa parte final mais de avaliação, conta pra gente qual você considera que é a importância do farmacêutico para uma cidade menor, que acaba virando referência...
R – Eu acho que farmacêutico dentro de uma cidade presta um serviço excelente se ele for dedicado, tudo, tiver conhecimento, atender o pessoal, que as pessoas confiam, você faz um excelente trabalho. Porque infelizmente as pessoas não têm muitos recursos, os hospitais andam tudo muito cheio, não é que os médicos não queiram atender, eles não dão conta. Tem vez que vai pros hospitais e está aquela fila lá, não é culpa deles, não, é porque a população aumenta muito, tem muitos problemas, eles não dão conta. E tem pessoas que não ficam desesperadas e procuram um recurso na farmácia, uma pessoa que eles confiam, tudo. Muitas vezes você atende, você ajuda. Muitas crianças às vezes está aí vomitando, umas coisas simples aí, passando mal, fica lá muito tempo pra ser atendido, vem aqui e você resolve. Prático, dá um soro ali, dá um remedinho pra vômito, dá uma orientação à mãe e as pessoas melhoram, né? Porque é melhor do que ficar muitas horas ali desidratando, se presta um serviço à comunidade, serviço social, se você souber honestamente você presta serviço, muito bom.
P/1 – E qual é o truque pra dar injeção nas pessoas?
R – Hoje a gente não aplica injeção sem receita, tem que ter receita. Antes aplicava porque quase não tinha médico, aonde eu tinha farmácia não tinha médico, você fazia de tudo. Hoje não, principalmente criança, injeção comum, às vezes que não tem risco nenhum, chega uma pessoa que já está tomando, tem a receita, vem aqui: “Olha, você pode fazer assim?”. Eu aplico, mas é só eu, farmacêutica ou enfermeira, não é qualquer pessoa que a gente deixa pegar injeção, mesmo com receita e tudo. Porque hoje 90% das aplicações são receitas. Não aplicamos nenhuma sem receita, se a pessoa não estiver com a receita em mãos a gente não aplica porque a gente já fez isso muitas e muitas vezes porque onde você tinha farmácia que não tinha... E também você poderia fazer porque você era o ambulatório, era o pronto-socorro, você fazia. Farmácia que tinha nesses lugares você registrava como pronto-socorro. Não tinha médico, você tinha que fazer de tudo. Se tivesse alguma coisa que você não tivesse consciência que você poderia resolver aquilo a gente mandava, encaminhava pra lugar de recurso, pra Patos. Lá em Vazante, Patos era perto, não era distante, era fácil. Você tinha Coromandel, ou às vezes até Paracatu, mas lá mais era pra Patos, porque era mais fácil. Agora quando eu estava lá no Brejinho, aí não tinha recurso de transporte nenhum, lá era cavalo ou carro de boi ou a pé, mais era cavalo. Aí quando era um caso muito assim a gente levava pro ponto, você levava na maca, fazia um negócio assim pra levar porque tinha caso que você não podia pôr a mão, não, que era caso de cirurgia às vezes. Muitas vezes, a gente ajudava o pessoal, a gente acompanhava as pessoas. Naquele tempo, o recurso era pequeno, mas a gente tinha conhecimento, tinha uns anos aí de farmácia. E toda vida eu mexi com farmácia, aprendi trabalhando com pessoas, mestre, doutor Antero, o Gregório que era um farmacêutico, também ele indicava muito, era irmão do doutor Antero. Tinha muita amizade com esses médicos aí, como o doutor Joaquim. Eu ia muito na casa do doutor Joaquim conversar com ele, ele me chamava pra ir lá.
P/1 – E quando tinha caso de acidente ofídico?
R – A gente aplicava o soro, eu já apliquei. Você pegava o soro antiofídico e aplicava. Nunca perdi um paciente picado de cobra, nunca. A gente tinha soro antitetânico, tinha vacina antitetânica, a gente já tinha. Aplicava quando via um caso assim. Já apliquei soro antitetânico, começo de tétano e a pessoa salvava, nunca perdi cliente. Crupe, aplicava vacina contra crupe. Quando essa pessoa que não tinha condições de medicar mas você encaminha rápido e salva a pessoa. As decisões minhas são rápidas, eu crio decisão rápida, não fico pensando, não. Tenho que tomar uma medida imediata, tomar a decisão é rápido. Tem muita coisa que o povo é calmo, o povo é lento e eu não sou lento, não. Quando tinha um caso assim por isso que eu sempre chegava a tempo porque quando eu via, apressava as pessoas, falava: “Não fica parado, não, vamos agir com isso porque está passando de hora”, saía. Toda vez eu fiz isso. Até hoje eu faço, eu sou inquieto, sou preocupado e tenho decisão rápida.
P/1 – E a gente vê aqui que a farmácia está toda arrumada com móveis de madeira, tem toda essa preocupação em manter um estilo diferente, né? Lembrar um pouco...
R – Do antigo. Quando eu comecei, a farmácia era antiga, naquele tempo a farmácia era muito bonita, que se tivesse ela hoje era farmácia de chamar a atenção. Aí eu, como não tinha mais como fazer, adquirir os mesmos móveis naquele modelo e tudo, a gente partiu pra fazer mais ou menos. Não é uma coisa boa, mas é uma coisa mais ou menos parecida, né?
P/1 – E eu queria perguntar é qual essa importância de você manter essa consciência histórica ou alguma característica dessa drogaria?
R – Eu acho que um ambiente desse aqui mais arejado, você se sente melhor, não sente? Você pensa bem, você fica num lugar fechado, um lugar só fechado com ar condicionado ligado o dia todo. Aqui é amplo, você desce ali o cortinado, só bate sol de manhã e pouco, depois na volta do dia você está com isso tudo aqui aberto e você não sente calor, não. É arejado, ventila muito, você sente um lugar amplo. Nós moramos numa casa, as janelas dela são quase da largura dessa porta aqui ó, eu gosto... Eu tenho uma casa na fazenda, as janelas lá tudo bem grande, muitas janelas, portas grandes, bem amplo. Não gosto de nada fechado. Nem animal eu gosto, animal eu gosto solto, não gosto de animal fechado.
P/2 – Quando o senhor comprou essa farmácia, esse prédio onde nós estamos hoje, a rua era asfaltada ou ainda era uma rua de pedra?
R – Não, era rua de pedra, depois um prefeito arrancou as pedras e enfincou umas pedrazinhas numa terra assim que foi muito ruim, não foi bom, não. Era umas terras, pegou aquelas pedrinhas, não era paralelepípedo, nem nada, era umas pedras mesmo que piorou muito porque aquelas pedras você tinha dificuldade em andar, mas elas eram limpas, tudo arrumado, era tipo antigo mesmo, era pedra naquele tempo. Você anda muito, deve ser Ouro Preto, outros lugares aí com aquelas pedras antigas feita pela escravidão ainda, aquele calçamento. Depois passou o asfalto por cima do outro, dessas pedrinhas que tinha porque dava muita poeira. Não foi um serviço bom, foi ruim.
P/2 – Aqui no cruzamento da... tinha uma (inaudível), ali...
R – Era fechado ali, a rua estreitinha, só passava um carro. Aí um prefeito aí, Arquimedes, desapropriou aquilo ali e abriu ali. Aí melhorou, o trânsito melhorou, ficou bom, porque era fechado, então era difícil. Com o movimento que tem hoje de carro, um lugar que você passa só um carro, não tinha nem como, né?
P/1 – Era aqui nessa rua também o comércio...
R – Aqui o comércio era forte, no meu tempo que a farmácia era ali. Tinha umas lojas, lojas fortes. Ali era Pinduca, esqueci o nome dele, era um comerciante forte, o nome não sei porque todo mundo naquele tempo era apelido. Ali era o Santiago, Joaquim de Moura Santiago, Soqui, ali era a loja deles. Ali tinha Floriano Costa, que hoje é ligado aqui com a farmácia. Floriano Costa tinha uma loja ali muito boa. E no outro lado era os Rocha, tudo Rocha, também antigo, comerciante antigo, mas o comércio era forte, tinha umas lojas muito forte, muita mercadoria e tinha de tudo. Tanto, os que tinha aqui eram fortes. Tinha ali o Paulo Vilela, tinha ali Zenon que tinha um armazém muito forte e tinha o _1:34:24_ Cordeiro, João _1:34:26_ Cordeiro, que era de frente ao Hotel Walsa. Mas o comércio era bem forte.
P/2 – O senhor se lembra de imigrantes? Sírio-libaneses ou pessoas de fora que vieram pra Paracatu?
R – Eu não lembro muito, não. Porque esse pessoal entrou muito em Patos, os libaneses, esse pessoal foi muito em Patos. Quando eu fui pra Patos, trabalhava com Benedito Miguel, lá em Passos virou enxame desses libaneses. E Benedito era até professor e ele era poliglota, ele falava todas as línguas. Falava alemão, falava tudo. E esses gringos iam pra lá pra ele traduzir as coisas pra eles. Lá de manhã, era assim de gringo, ó... E Benedito achava aquilo bom, fazia com toda a boa vontade, traduzia pra eles. Ficou amigo desse povo. Todo domingo, ele tinha que almoçar com um daqueles gringos lá. Patos ficou cheio e aqui não, já veio pouca gente depois. Depois que eu voltei pra Paracatu que eu vi alguns aqui. Aqui tinha um antigo que era João Turco, na minha época aqui era João Turco. Esse era turco. Ele veio praqui devia ser muito novo porque ele ficou velho aqui e morreu aqui, João Turco, o único que eu conheço, imigrante. Tinha um outro aqui, um jornalista também antigo que veio de fora aí. Jornalista, esse também não era paracatuense, não. Esqueci o nome dele, eu vou lembrar depois. Mas Patos eu lembro, muito gringo lá, muito. Esses libaneses, turco, muito mesmo lá. E Benedito ajudou esse pessoal muito, era onde eu trabalhava, com Benedito, Benedito Miguel.
P/1 – Pra gente ir encerrando eu queria que o senhor falasse quais são os seus sonhos, o que o senhor ainda quer?
R – Hoje, eu vou trabalhar até enquanto eu estiver com saúde, não tenho intenções de parar, por enquanto não porque eu estou com saúde, bem. Enquanto eu estiver com saúde eu vou continuar na farmácia, eu vou continuar mesmo porque eu ir pra casa, ficar lá em casa, quieto, eu não vou ficar, ou senão eu vou pra fazenda. Eu tenho vontade de ir morar na fazenda, tenho. Eu gosto de fazenda. Se for pra não ficar na farmácia, eu vou pra fazenda. Ficar dentro de casa numa cidade eu não fico, não. Dentro de apartamento, eu não fico. Eu fui criado na liberdade, livre, praticamente, toda vida eu fui assim livre, não tem de ficar preso, toda vida eu não fui bem de vida, mas toda vida eu fui independente. E toda vida eu fiz o que eu quis. Meu pai nunca nos proibiu nada e nós tínhamos um respeito por ele muito grande. Mas se a gente quisesse fazer alguma coisa, trabalhar, fazer qualquer coisa ele incentivava. Eu, por exemplo, era rapazinho e fazia negócio da fazenda, comprava alguma coisa, vendia. E se eu quisesse virar um comerciante em gado ele não punha contra, se eu quisesse ir pra qualquer lugar ele deixava. Por exemplo, se quisesse fazer um estágio em qualquer lugar ele deixava. Eu mesmo já fiz um estágio lá em Juiz de Fora [MG], Escola Cândido Tostes, de laticínios, quatro meses lá eu fiquei. Serviu muito. Quando eu fiquei uns meses sem fazer nada, uns quatro meses ali, seis meses, eu fui fazer um curso lá em Juiz de Fora. Depois eu voltei e vim mexer com farmácia de novo. Mas só quatro meses que eu fiquei lá, só esse tempo que eu fiquei fora da farmácia.
P/1 – E a falou da farmácia um tempão, o senhor contou um pouco aqui da sua história com ela, tal. Descreve pra gente qual é o símbolo da loja, da farmácia, qual o desenho?
R – O desenho é uma cobra. Ali, não sei se ainda tem ali, mas tinha o símbolo. O símbolo da farmácia mesmo. Aí tinha uma placa que era que tinha a cobra. Ah, eu estou com o negócio aqui, eu acho que tem um símbolo ali.
P/1 – Tá joia. Então a última pergunta, o que o senhor achou de sentar aí e contar um pouco da sua história pra gente nessa tarde de sábado?
R – Eu achei agradável, achei uma coisa bem aproveitada. Você nota que eu sou impaciente (risos). Mas eu achei agradável, estou acostumado a ficar às vezes em alguma reunião aí, ficar muitas horas. Mas é agradável. Se eu puder útil em alguma coisa, eu falei com você, se eu puder ser útil, responder a você alguma coisa eu estava pronto em fazer isso. Você podendo ser útil, qualquer coisa que puder, a gente procura ser, né?
P/1 – Tem alguma coisa mais que o senhor gostaria de contar que a gente não tenha comentado?
R – Acredito que não, coisa que eu tinha conhecimento, que a gente tem na memória acho que a gente abordou quase tudo, né?
P/2 – Quer deixar alguma mensagem?
R – Foi uma tarde agradável, pelo menos pra mim foi muito proveitosa.
P/1 – Pra gente também. E com isso em nome do Museu da Pessoa e da Kinross a gente agradece a sua entrevista, muito obrigada,
R – Obrigado, estamos aí.
FINAL DA ENTREVISTA
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