Programa Conte Sua História - Memória dos Brasileiros
Depoimento de Laerte Coutinho
Entrevistado por Rosana Miziara e Sônia London
São Paulo, 14/06/2012
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV346
Transcrito por Karina Medici Barrella / MW Transcrições (Mariana Wolff)
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – Vamos começar do lado clássico, seu nome, local e data de nascimento.
R – Eu chamo Laerte Coutinho, nasci em São Paulo no dia 10 de junho de 1951.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – São. Acho que minha família já está há algumas gerações em São Paulo. Ambos os ramos, tanto da minha mãe, quanto meu pai, é tudo paulistano.
P/1 – Seus avós também?
R – Pois é. É uma coisa meio rara isso, mas são todos de São Paulo.
P/1 – Você não sabe de nenhum ramo de alguma ascendência fora?
R – Por parte do meu pai vieram de Portugal, de uma cidade chamada Ponte de Lima, que fica um pouco ao norte de Portugal. Sabe-se que veio de lá um certo Miguel, migrou e fundou esse ramo dos Coutinho. A família Coutinho não é uma família muito específica, tem muitos ramos e nem todos relacionados, né? E da parte da minha mãe que é um pouco mais obscura. A minha avó chamava-se Maria de Freitas e eu não sei bem de onde veio a turma dela, e nem o meu avô, que chamava-se Antonio. Enfim, para falar a verdade, acho que nem o sobrenome do meu avô eu lembro (risos).
P/1 – E o nome dos seus pais, como que é?
R – Meu pai chama-se José Moacir, e a minha mãe Maria de Lourdes.
P/1 – Qual é a atividade do seu pai?
R – Meu pai é professor aposentado na Geociências, na USP. Minha mãe se formou em Biologia, mas abandonou qualquer veleidade de profissão para cuidar da gente, porque ela logo engravidou, logo que casou engravidou e passou a cuidar da gente, da casa e do marido.
P/1 – E em quantos irmãos vocês são?
R – Somos quatro filhos, dois meninos e duas meninas. Meu irmão mais velho tem dois...
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Depoimento de Laerte Coutinho
Entrevistado por Rosana Miziara e Sônia London
São Paulo, 14/06/2012
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV346
Transcrito por Karina Medici Barrella / MW Transcrições (Mariana Wolff)
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – Vamos começar do lado clássico, seu nome, local e data de nascimento.
R – Eu chamo Laerte Coutinho, nasci em São Paulo no dia 10 de junho de 1951.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – São. Acho que minha família já está há algumas gerações em São Paulo. Ambos os ramos, tanto da minha mãe, quanto meu pai, é tudo paulistano.
P/1 – Seus avós também?
R – Pois é. É uma coisa meio rara isso, mas são todos de São Paulo.
P/1 – Você não sabe de nenhum ramo de alguma ascendência fora?
R – Por parte do meu pai vieram de Portugal, de uma cidade chamada Ponte de Lima, que fica um pouco ao norte de Portugal. Sabe-se que veio de lá um certo Miguel, migrou e fundou esse ramo dos Coutinho. A família Coutinho não é uma família muito específica, tem muitos ramos e nem todos relacionados, né? E da parte da minha mãe que é um pouco mais obscura. A minha avó chamava-se Maria de Freitas e eu não sei bem de onde veio a turma dela, e nem o meu avô, que chamava-se Antonio. Enfim, para falar a verdade, acho que nem o sobrenome do meu avô eu lembro (risos).
P/1 – E o nome dos seus pais, como que é?
R – Meu pai chama-se José Moacir, e a minha mãe Maria de Lourdes.
P/1 – Qual é a atividade do seu pai?
R – Meu pai é professor aposentado na Geociências, na USP. Minha mãe se formou em Biologia, mas abandonou qualquer veleidade de profissão para cuidar da gente, porque ela logo engravidou, logo que casou engravidou e passou a cuidar da gente, da casa e do marido.
P/1 – E em quantos irmãos vocês são?
R – Somos quatro filhos, dois meninos e duas meninas. Meu irmão mais velho tem dois anos a mais que eu, a minha irmã imediatamente mais nova tem dois anos a menos e tem uma quarta filha que nasceu doze anos depois de mim, minha irmã Marília, que era a temporã (risos).
P/1 – E vocês moravam onde? Onde era a sua casa de infância?
R – Pois é. A minha memória de casa de infância é a de Alto de Pinheiros mesmo, para onde a gente foi em 1957, se não me engano. Mas eu mal me lembro da casa anterior a essa, que era na Rua Pamplona. Na Rua Pamplona a gente morou alguns anos, acho eu, e antes da Rua Pamplona não lembro mesmo. Quando eu nasci a minha família morava no Paraíso, numa casa que fica numa vilazinha, eu já passei na frente dessa casa mas não tenho memória nenhuma daquilo ali. Em seguida, meu pai descolou uma bolsa e passou um ano nos Estados Unidos, levou eu e meu irmão que já éramos nascidos e minha irmã Lena nasceu lá, em 1953. Passamos um ano nos Estados Unidos, também não lembro coisíssima nenhuma de lá, daí voltamos para cá. Aí sim, me lembro da casa onde a gente foi morar, que era na Pamplona. Acho que ficamos uns dois, três anos lá e daí viemos pro Alto de Pinheiros. Meu pai tinha comprado um terreno e o pai da minha mãe construiu a casa, acho que ele era o mestre de obras, empreiteiro e construiu e lá moramos nós. E a minha memória de casa de infância e adolescência é aquela.
P/1 – Como é que era a casa?
R – É um sobrado, quer dizer, não era um sobrado, ele virou um sobrado porque construiu-se um sótão lá depois (risos), um quarto de estudos lá em cima. Mas é uma casa grande, todas as casas ali têm o mesmo desenho, são terrenos muito grandes assim, ajardinados, então, o perfil desse loteamento fez com que todas as casas ficassem com uma cara meio subúrbio americano assim. Era cerquinha baixa na frente, jardim e a casa. A rua era de terra. E eu me lembro de ter brincado muito na rua e nas imediações porque demorou-se muito a ativar o loteamento. Durante muitos anos ficou só aquele quarteirão construído. Durante muitos anos, o único vizinho na quadra de frente era uma casa só. Aquela quadra enorme de frente, que hoje é perto do Ceasa, Antonio Gouveia de Giudice, ele faz essa quadra entre a Gouveia de Giudice e a Pedroso, que não chama Pedroso naquele pedaço. Era um grande campo e a gente usava como campo mesmo, de brincadeiras, jogos, de tudo. Ficou isso durante muito tempo. Eu lembro de ter jogado bola, corrido, brincado e pulado por ali durante toda a infância e pré-adolescência. Só quando já tava adolescente velho (risos) mudou-se mais gente, aí começou a povoar aquela quadra e o bairro todo mesmo.
P/1 – E como que era na sua casa? Seu pai, sua mãe, o convívio familiar.
R – Bom, eu lembro mais do convívio com a minha mãe, a minha mãe que era a criatura presente ali, mais presente o tempo todo, e era meio ela que gerenciava e determinava as coisas da casa. A presença do meu pai é um pouco mais remota. Ele tem um perfil mais introvertido. Claro que ele viajava com a gente, saía com a gente, passeava com a gente, mas a presença da minha mãe é muito mais viva na minha memória. Ela sempre organizou muito bem a casa, tudo sempre funcionou legal. Ela cozinhava e costurava, chegou a fazer roupas para gente também. Até onde eu me lembro a gente teve uma vida bastante folgada, assim, do ponto de vista de necessidades. Eu não lembro de passar necessidades em nenhum momento, às vezes não dava para ter uma coisa, mas a minha casa sempre foi bem abastecida, foi principalmente abastecida culturalmente, sempre teve muito livro, muita revista em casa. Acho que essa é a coisa que mais me chama atenção assim, na minha e na nossa formação, dos irmãos também.Tinha muita fonte de conhecimento, cultura e pesquisa, livros de arte, enciclopédia, tinha de tudo.
P/1 – Por parte do seu pai ou da sua mãe?
R – Por parte deles dois. Às vezes eu cutuco eles para saber quem que era o Sesc daquela época (risos) dos dois ali, e ela diz que era meio dividido, algumas coisas que ela apontava e tinha iniciativa de ir atrás e outras coisas ele trazia.
P/1 – E com quantos anos você foi para escola?
R – Eu comecei a ir para escola quando a gente morava na Pamplona ainda, era uma escola que ficava ali perto e chamava-se Externato Teixeira Branco, onde o Luiz Gê também fez, o Luiz Gê também esteve. Incrível, a gente só veio a descobrir isso quando adulto, que ele fez o mesmo primário que eu, ele fez o mesmo curso livre de pintura e desenho que eu na adolescência. Bom, enfim, tiveram várias coisas assim que a gente devia ter se conhecido. Nasceu no mesmo ano que eu também! Mas enfim, foi isso. O Teixeira Branco, que ficava na Rua Guarará, se não me engano, não existe mais. E era muito perto de casa. Quando a gente mudou pro Alto de Pinheiros continuamos um tempo ainda no Teixeira Branco, a gente ia de ônibus para lá, tomava o 61 (risos), descia na Avenida Nove de Julho e ia para escola...
P/1 – Você lembra de algumas professoras?
R – Depois...
P/1 – Desculpa.
R – Não... Depois eu fiz Fernão, o Fernão Dias Paes, em Pinheiros. Se eu lembro de professoras? Lembro, lembro da dona Ruth. Dona Ruth era a diretora da escola, uma mulher agitada, ativa, autoritária também, falava rápido assim, tinha um jeitinho de falar rápido, de uma pessoa que organiza e dá ordens e tudo (risos). Tinha um trio de mulheres que geriam aquela escola que eram a dona Ruth, dona Marietinha e dona Eleuza. Elas não davam aula, a dona Marietinha dava aula de canto porque ela tocava piano também. Então, aula de canto era com ela, numa sala, onde tinha o piano e a gente aprendia (risos). Eu lembro de algumas coisas, A Marselhesa (risos) a gente aprendeu em francês!
P/1 – Você sabe cantar ainda? (risos)
R – Sei cantar A Marselhesa em francês (risos), pelo menos uma quadra. Hinos também de todo tipo, era uma beleza aquilo, eu adorava a aula de canto (risos). E dona Eleuza acho que também ficava na parte mais administrativa, assim como a dona Ruth, e o resto eram professoras. A primeira professora foi a dona Vera, não, dona Rosa, do Jardim da Infância, nós chamávamos de Jardim da Infância. Não sei se ainda chama Jardim da Infância em algum lugar, atualmente é quintal, essas coisas, né? (risos).
P/2 – Não sei se é nome de escola Quintal, mas é Infantil, Infantil 1, Infantil 2.
R – Bom, era Jardim da Infância, que nem Kindergarten mesmo, né? Depois da dona Rosa teve a dona Terezinha, acho que deu o pré-primário. Daí tem uma sequência meio confusa de dona Vera, dona Ivone, de tal que não lembro bem o primeiro, segundo e terceiro ano. E no quarto ano teve a, claro, agora eu não vou lembrar. Melhor professora da minha vida e eu não vou lembrar. Ô meu Deus, por que eu não to lembrando do nome dela? Sério, a professora que eu mais gostei na vida e neste momento não está vindo o nome.
P/1 – Por que foi a que você mais gostou?
R – Porque ela era absurdamente genial, ela era inovadora em relação ao sistema de ensinar, ela não tinha muita papa na língua. Mas ela tinha um jeito de ser carinhosa e dura ao mesmo tempo que diferenciava de qualquer uma. Ela era cínica em relação à escola (risos), ao sistema de ensino. Ela contava histórias escabrosas para gente da época que ela fazia paraquedismo. Meu Deus, por que eu não lembro o nome dela? O noivo dela também fazia paraquedismo. Morreu. Ela contava para gente que o noivo dela tinha caído e o paraquedas não abriu (risos). Ela falou que as pernas dela entraram no (risos), que coisa, uma professora... Bom, não adianta, se eu ficar encanando com isso é que nem esmalte quebrado, né (risos), a conversa não anda. Daqui a pouco vem o nome dela. Que horror.
P/1 – E educação religiosa? Você teve algum tipo de formação?
R – Ah tinha. O Teixeira Branco dava aulas de religião sim. Que era também a dona Marietinha que dava. Olha só, a dona Marietinha dava canto e religião (risos). A dona Eleuza também dava religião. E ali era uma coisa de seguir o catecismo. Tinha um livrinho que era O Catecismo, com perguntas e respostas: ‘O que é Deus?’ ‘Deus é um espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra blablabla’. ‘Por que devemos nãnãnã nãnãnã’ (risos). Era bem legal isso. Eu também gostava muito das aulas de religião. E foi o meu primeiro contato também com judeus e protestantes. Acho que basicamente judeus, que não faziam aula de religião. E eu achava estranho que eles saíam justamente nessa hora, ou não entravam, porque era numa outra sala. Eu ficava achando muito esquisito, por que eles não estão tendo aula de religião? (risos).
P/1 – Mas na sua casa tinha essa formação religiosa, eles seguiam alguma coisa?
R – Não, a minha família era muitíssimo pouco religiosa. A gente só ia à missa porque a minha avó, mãe de minha mãe, marcava em cima. Ela vinha no domingo para levar a gente à missa. Meu pai não ia. Não que ele fosse ateu, é que ele realmente não gostava de ligar para essas coisas (risos). Mas ele também não defendia nenhuma ideia agnóstica ou ateísta, entendeu? Meu pai teve uma criação religiosa, fez Colégio São Luiz e tudo, mas ele não é religioso. Ele tem uma certa mágoa, ou ressentimento, dessa criação religiosa toda. Até hoje ele manifesta umas opiniões meio agressivas em relação à religião. Mas naquela época ele nunca manifestou coisas desse tipo, ele só não ia. Mas minha mãe ia com a minha vó, então ia minha mãe, minha vó e nós crianças para a igreja, a gente assistia a missa ali no Santa Cruz. O Colégio Santa Cruz dos padres canadenses que davam missa também, eles tinham a capela e faziam esse serviço de educar a bugrada lá (risos). Catequizar a bugrada (risos). Mas eu achei muito legal, porque mais tarde eu vim a saber que os jesuítas eram gente muito interessante, era uma linha religiosa bastante progressista em relação a outras, então, de alguma forma a gente teve sorte disso. Eu gostava muito das missas e de religião de um modo geral. Eu era bem mergulhado nesse assunto de religião, acreditava em Deus, curtia rituais e tinha toda uma existência assim, religiosa. Eu cheguei a querer ser padre quando eu era criança, mas isso é uma coisa mais remota, minha mãe conta mais que quando eu tava no Teixeira Branco, não sei bem em que ano, algumas freiras visitaram a escola em busca de vocações mesmo. Distribuíram folhetos e contaram dos seminários e coisas assim em busca de crianças como eu (risos) que tivessem vocação, ou coisa parecida, com isso. Eu adorei uma imagem que eu vi naquele folheto, que eu lembro até hoje, que é um momento da formação do sacerdote em que ele passa por um ritual, e ele tava deitado no chão, com a cara no chão e os braços abertos em cruz, assim, e eu achei aquilo maravilhoso (risos). Falei “Poxa, eu acho que eu quero isso”. Eu achei muito legal, eu achei que era um ritual, uma coisa assim. E é, né, claro, e é. E eu preenchi lá, assinei, não sei bem como é que foi a forma de adesão que as crianças manifestavam, mas eu sei que essas freiras vieram na minha casa falar com a minha mãe, continuar as conversas, né? E a minha mãe falou: “Eu acho que ele não tá com a ideia muito clara do que é” (risos) “Onde é que ele tá?” “Ele tá ali, no campinho”. Elas olharam pela janela e eu tava pulando que nem um gambá para cima e para baixo, assim. Eu não sei, as freiras não voltaram a insistir. Eu teria insistido, acho. Eu gostaria de um padre assim, como eu seria (risos). O fato é que eu não fui padre, mas eu continuei sendo religiosa por muito tempo ainda. A ideia da religião só foi enfraquecer para mim, acho que na adolescência, crises de fé, assim.
P/1 – E política? Na sua casa se discutia, como que era em relação à política?
R – Muito pouco também, religião e política tinham presença muito discreta na minha casa. Eu lembro das eleições, lembro de alguns episódios da gente colecionando santinho dos candidatos. Naquela época tinha um negócio que se usava muito que era o alfinete de lapela. E eu lembro especialmente de uma eleição que tinha Ademar, tinha o Jânio. O Jânio era uma vassourinha, o Ademar era o galo, não sei bem porquê. O Carvalho Pinto era um pinto, pintinho filho da galinha. O que é estranho também, deixa o galo com uma relação de comando (risos). Mas o Carvalho Pinto achou que a melhor coisa para memorizar era um pintinho. E sei lá, ele ganhou alguma eleição, não deve ter sido tão ruim a ideia do marqueteiro da época (risos). Tinha muito santinho, era muito legal isso. Em dia de eleição a gente saía catando isso, ‘você já tem esse, tem aquele?’, fazia coleção e tudo. Agora, conversa sobre política mesmo não tinha muito. Meu pai tinha alguns amigos que mais tarde eu vim a saber que eram comunistas e tudo, mas não tinha presença e não lembro de conversas sobre eles, com eles. Quando teve o Golpe de 1964 eu lembro da minha mãe tentando explicar para a gente o que era o negócio de Comunismo, e ela tinha uma visão de Comunismo bastante moldada na contra-propaganda. A ideia de que o Comunismo é uma violência, o pessoal vai chegar e querer dividir tudo o que a gente tem, vocês têm dois carros, então um é nosso. Tinha umas coisas assim que acho que minha mãe, meio apressadamente, botou na mesa para a gente assim. Eu não sei, eu comprei aquilo, porque também não entendia nada do que podia ser. 1964 para mim eu tinha doze, treze anos. Eu tava preocupado com outras coisas, tava preocupado em, sei lá, escrever poesia (risos), coisas desse estilo. Estava querendo construir. Eu tive uma fase de grande conservadorismo moral, e possivelmente político também. Que deve ter coincidido com os primeiros anos do golpe, 1964, 1965, 1966. Eu estudava piano. Nessa época eu me lembro dessa formação conservadora. Minha avó, mãe de minha mãe, dava aula de piano. Eu aprendi um pouco, não toco brilhantemente nem nada, mas aprendi um pouco. Era música clássica e eu curtia muito música clássica, os discos que eu tinha nessa época era tudo música erudita. E eu não admitia outra música, qualquer outra proposta para mim era meio sacrílega. E ao mesmo tempo eu só entendia a criação literária nos termos mais acadêmicos possíveis. E também criação pictórica. Tudo o que vinha do século XX, já para mim era um sinal da decadência, eu ia bem até o século XIX (risos). Em termos morais também, eu era um conservador. Eu achava que a juventude exagerava, não gostava da ideia de playboys andando de lambreta por aí. Eu achava que era uma coisa, eu não sei, eu acho que eu era terreno fértil para Tradição, Família e Propriedade (TFP), sabe? (risos). A chance que eu tive para entrar pros jesuítas (risos). Mais tarde eu acabei tendo uma porta aberta para TFP, eu era esse tipo de jovem, eu tive esse perfil de jovem, que mais tarde eu soube que a TFP buscava também jovens com o fogo da criação dentro de si, mas o perfil super conservador, talvez vinculado a uma timidez de expressão, não sei bem. Quando eu conheci a linha da TFP eu fiquei pensando, eu me reconheci ali em vários momentos e falei: “Nossa, podia ter caído nessa, né?”. Não caí, no ginásio uma professora especialmente, que é a dona Latife, essa eu lembrei, quase veio o nome da outra. A dona Latife também foi uma grande professora, maior memória boa dela assim, ela só perde para essa que eu não lembro o nome (risos). Era professora de História, muito reacionária, muito reacionária. Ela trouxe, em 1964, um tenente do exército para explicar para gente o que era o golpe, que eles chamavam de revolução. E nós ali. Ela mandou a gente assistir Doutor Jivago, para ver o horror da Revolução Soviética (risos).
P/1 – Isso no ginásio?
R – Isso no ginásio (risos). Pois é. Mas ao mesmo tempo ela era uma professora apaixonante, eu simplesmente adorava as aulas de História por causa dela.
P/1 – E você já desenhava? Quando que você começou a desenhar?
R – Sempre desenhei, desde sempre, três, quatro, cinco anos. Quer dizer, naquela época eu não lembro do que eu desenhava, minha mãe me mostra os desenhos e eu falo: “Ah tá”, mas eu não me lembro fazendo aquilo. Eu me lembro fazendo de coisas assim mais tarde, eu tinha uns nove, dez anos. E eu me lembro da sensação que eu tinha em relação a isso, de desenhar, como algo muito prazeroso e vinculado a uma conquista de um certo poder sobre a narrativa. Porque eu gostava muito de narrativa, gostava de livro, de filme, de quadrinhos, de qualquer coisa que fosse narrativa eu gostava muito. E ter na minha mão o poder de continuar essa delícia, esse prazer da ficção, era extraordinário. Quando eu descobri que não era todo mundo que tinha isso, então, me deu um... Eu comecei a valorizar essa coisa de desenhar. Fora que as pessoas também chegavam: “Ah, como você desenha bem!”, então, tem a opinião dos terceiros também que colaborou, mas principalmente eu me convencer do poder que isso representa, que você pode criar esse prazer, você pode gozar também sem precisar ir ao cinema, comprar um livro, adquirir uma peça exterior, isso está dentro de você e é extraordinário. Isso eu tenho uma noção meio clara desse negócio assim. E eu criava personagens e histórias, repetindo ou simulando ou emulando as histórias que eu lia, os filmes que eu via, tal e tudo. Sempre vi muito quadrinhos, isso é uma outra coisa legal também da minha família, não se bloqueava nada, né? Podia tudo.
P/2 – Com os outros irmãos também, ou não?
R – Meus outros irmãos não desenhavam, mas curtiam as mesmas coisas que eu. Meu irmão é engenheiro hoje, engenheiro civil, formado em engenharia civil, mas ele trabalhou com engenharia sanitária, se não me engano, tem uma firma disso. Minha irmã mora nos Estados Unidos, é fotógrafa, e a minha irmã caçula tem uma formação bem eclética, ela é bióloga formada em biologia e sociologia e é uma atleta, uma atleta de força. Hoje, a principal atividade dela é ser uma atleta e produzir, teoricamente, em torno desses esportes, esportes de força, principalmente.
P/1 – E na adolescência? Você falou que você poderia ser um jovem recrutado pela TFP.
R – Um jovem fascista (risos).
P/1 – Mas como você se divertia? Você tinha turma, não tinha, o que você frequentava? O que você fazia na adolescência?
R – Pois é, no bairro, no pedaço, sempre foi um paraíso para crianças e jovens por causa do espaço absurdamente grande e livre, e relativamente seguro que a gente tinha. Podíamos jogar, brincar até tarde. Eu lembro de ficar brincando até quase noite. As mães chamando (risos), a gente ouvia a voz das mães chamando: “Joãozinhooo, Máriooo, Márciooo” (risos). E íamos pras nossas casas. Brincamos muito também em torno de determinados ciclos ficcionais assim. Isso era na nossa casa, eu e o meu irmão que organizávamos esses ciclos. Por exemplo, então teve o ciclo de faroeste que a gente organizou lá em casa, na garagem um saloon, coisas assim. E a brincadeira acabava gerando papéis, ali tinha xerife, tinha um justiceiro, tinham uns bandidos, umas coisas assim. Eu lembro que meu irmão, por exemplo, era mestre em criar coisas, engenhocas. Por exemplo, ele inventou nessa época do faroeste uma máquina que é um rolo assim, com umas tiras de borracha, onde a gente imprimia notas de um dólar (risos). Era muito linda. Infelizmente essas notas e esse aparelho se perderam (risos). Mas era genial isso. Depois teve um ciclo que era de cavaleira, a gente brincava de rei, de tudo assim, e meu irmão também inventou coisas do arco da velha, assim, métodos de construir, a partir de uma lata de sorvete, um capacete, um elmo de combate (risos). Tinha muita colaboração dos adultos. A minha avó, mãe da minha mãe, costurava, de crochê, umas cotas de malha para gente, sabe? Sabe o que é cota de malha? Na Idade Média isso servia para defender de golpes mesmo, golpes de lâmina. Então, eram pequenos elos de metal costurados assim. Ela fazia de crochê (risos), mas o importante era o aspecto da coisa assim, a gente usava aquilo debaixo do elmo.
P/1 – Ela fazia para vocês brincarem, para brincadeira mesmo.
R – É. A gente usava por baixo do elmo, ah, construíamos um monte de coisa. Escudos, espadas, a gente pintava aqui, fazíamos símbolos. Eu gostava dessa parte, de pintar e fazer símbolos (risos). O meu irmão gostava de construir as coisas. Outros meninos da turma também, colaboravam de outras formas assim. Como uma turma razoavelmente grande, tinha sempre sete ou oito crianças brincando de alguma coisa. Era muito divertido, muito legal mesmo.
P/2 – De que idade você tá falando?
R – Essa fase, dos ciclos assim? Eu não sei, acho que era uns nove, dez anos... Era em torno dos nove aos doze. Porque depois disso as pessoas começaram a virar adolescentes, tinham meninas, as meninas que a gente usava para bater (risos), ou perseguir, ou atormentar, passaram a ser alvo de interesse, né? Para mim isso foi um trauma assim porque eu encarei como uma perda. Passei um tempo de luto como perda da alegria estúpida da infância (risos). Eu não me dei bem com esse início da adolescência nesse sentido assim. Não sei direito. Eu hoje, à luz do que se passou na minha vida, na minha história sexual de orientação e sexualidade toda assim, sabendo o que eu sei hoje, eu fico tentando entender nessa época algum tipo de orientação mesmo, de percepção ainda meio difusa e distorcida do que podia ser a minha orientação, né? Então, depois desse momento, eu lembro de ter experimentado um momento de libertação também, mas na área estética. E eu me lembro de uma conversa que foi marcante para mim com o irmão de uma vizinha da frente, que era o tio Roberto. Era um homem que tocava violão, era professor de violão e tudo, e tocava muito bem, solista, violão solo e tudo. Esse Roberto estava um dia tocando e tocou uma peça de Bach. Eu era alucinado por música clássica, tal e tudo, conhecia. E eu via que ele tocava também coisas da época, bossa nova, uns negócios assim, e eu falava: “Por que você toca essas porcarias se você toca tão bem? (risos) Por que você desperdiça o seu talento com música de baixa qualidade?”. E ele teve uma conversa comigo muito elucidativa, ele foi de uma delicadeza e de uma precisão raríssimas em uma pessoa. E ele me mostrou que a música é uma linguagem muito ampla. Linguagens que se usa de construção melódica e harmônica na Bossa Nova, em qualquer gênero, na música popular, em qualquer setor, são as mesmas que se usa na música erudita, e que isso tem uma variação histórica que precisa ser entendida e não precisa ser recusada. Eu sei que a partir dessa conversa eu meio que ouvi, foi meio que minha estrada de Damasco assim (risos). Póim! Voltei para casa sob impacto disso, e eu lembro que eu comecei a experimentar tocar no piano, assim como quem faz um pecado, como quem faz uma coisa proibida. E era um prazer muito grande descobrir que eu também podia produzir harmonias, que eu também podia compor coisas, que eu podia gostar de qualquer coisa. Essa época era iêiêiê, tinha um tipo de produção musical que era relativamente fácil de ser absorvida e usada. Então, eu comecei por aí, pelo iê-iê-iê (risos).
TROCA DE FITA
R – Não, que é uma coisa que eu tô pensando agora mesmo. Que a mesma maravilha que me fez curtir o desenho, a maravilha que me fez curtir o desenho como forma de expressão foi descobrir que eu podia fazer aquilo que me maravilhava nos outros, em trabalhos alheios. Eu só vim a transar isso com música nessa época. Porque antes eu tocava pela partitura, eu tocava coisas que estavam prontas. Eu entendia harmonicamente aquilo, mas eu não entendia como também matriz de uma ação minha, uma ação criativa minha. E ao descobrir que isso é possível através da música popular também foi uma libertação. Não me levou para expressão musical da mesma forma que para expressão gráfica, mas foi bem legal também porque altera a sua relação de fruição com as coisas. Eu passei a ouvir música de um modo diferente, incluindo música erudita.
P/1 – E nessa adolescência você tinha turma, você saía?
R – Aí era mais a turma da escola. A turma da rua foi aos poucos sendo substituída pelas turmas, outras turmas, turmas da escola, que era o ginásio e científico, especialmente nos anos de colegial a turma da Faap, que foi um curso que também foi marcante para mim. Em 1966, 1967, 1968, eu fiz um negócio que se chamava Curso Livre de Pintura e Desenho para Adolescentes, esse que o Luiz Gê também fez, sem que eu soubesse, ele estava em outro horário (risos). Bárbaro! Dava aula para gente a Sonia Maria Paula e Silva e a Vânia também, que eu não lembro o resto do nome dela. Foi também um processo de revelação porque eu também entrei lá em 1966, tinha quinze anos, com uma visão absolutamente acadêmica de produção gráfica, eu tentava pintar como os meus modelos acadêmicos pintavam, como os pintores do século XIX pintavam, eu queria isso. E ela me introduziu ao século XX (risos) e mostrou como Matisse era legal (risos). Assim, quarenta anos depois dele ter morrido. Não, não, desculpa, eu não sei quando ele morreu. Mas esse curso da Faap foi legal principalmente porque tinha teatro. Teatro foi outra revolução para mim. Era dado pelo Naum Alves de Souza, e a gente teve com ele um exercício de criação muito, muito legal. Fizemos algumas peças, fizemos musicais, o que eu lembro é de uma experiência de liberdade criativa também, a gente podia fazer coisas, a ideia era pegar uma história, uma linha de trabalho assim e ir elaborando em torno disso o roteiro, criação de personagens, figurinos, coisas gráficas assim, e música também. E eu participei como músico, eu compus música para dois musicais, um que era O Evangelho Segundo São Mateus (risos) e outro que era a história do Fausto. Muito legal, trabalhos que mudaram minha vida também.
P/1 – Você criou a partir desse curso?
R – É. O Naum é até hoje um apaixonado e um conhecedor da linguagem dos musicais. Os musicais clássicos da Broadway, mas também linguagem de teatro musical, né? E ele transmitiu essa paixão para a gente também. Fizemos trabalhos de teatro normal (risos), mas também fizemos esses teatros musicais, foi uma experiência muito legal, bem legal. Tenho memórias, eu tenho a memória que isso foi a origem de grandes descobertas minhas, gráficas também, mais tarde. Tem a ver com as histórias em quadrinhos que eu fiz ou passei a fazer, tudo então.
P/1 – E nesse período você tinha namorada, namoradas? Como era essa questão?
R – Pois é, eu tive paixões por amigos e amigas e acabei iniciando minha vida sexual com um cara, com um amigo meu mais velho, e durante um tempo eu tentei desenvolver a minha homossexualidade, mas eu acho que eu tive muito medo. A ideia de que aquilo era uma transgressão, um pecado, uma coisa vexaminosa assim, ficou muito forte, eu não consegui ultrapassar isso. Então, eu desenvolvi a minha heterossexualidade (risos), me apaixonei por uma menina que de início eu achei que era um menino. Depois quando eu vi que era menina, beleza (risos).
P/1 – Você achava, sentia...
R – Foi uma criatura que eu vi numa festa que me pareceu que era um menino, um menino lindo. Eu me aproximei e tudo e vi que não era, era uma menina (risos). Mas eu continuei apaixonado por ela, a gente teve um namoro e tudo.
P/1 – Sua primeira namorada?
R – É. Foi minha primeira relação sexual.
P/1 – Como é o nome dela?
R – Lúcia.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Minha primeira relação hétero, né? Eu tinha dezoito. Depois eu tive mais encontros homossexuais e namoradas heterossexuais, isso foi mais ou menos um padrão pela minha vida afora com intervalos grandes, inclusive de relações tipo casamento, de relacionamentos tipo casamento com filhos e tudo. To fazendo um grande resumo, não sei se...
P/1 – Nós vamos voltar (risos).
P/2 – Resumo aqui não vale, não.
R – Aí, etc (risos).
P/1 – Estamos lá na adolescência ainda (risos).
R – Então foi isso, aí já estava com dezoito anos, tinha entrado na faculdade.
P/1 – Como é que se deu a sua escolha para faculdade, tinha alguma expectativa dos seus pais?
R – Mais ou menos. Tinha uma candidatura de Arquitetura, assim, como direção. As pessoas me aconselhavam: “Faça Arquitetura, já que você gosta de Artes, tal, faz Arquitetura que pelo menos você vai ter um diploma” (risos). Mas nessa época a Escola de Comunicações era uma certa novidade. Ela foi fundada em 1960 e, não me lembro, mas quando eu tava na idade de vestibular, 1969, 1968, ela não era muito conhecida, ela era uma opção mais ou menos clandestina. Quando eu soube e vi que lá dentro tinha Cinema, Teatro, tinha Artes Plásticas, eu falei: “Ah, é essa que eu quero”. E meus pais deram toda a força. Eles nunca me vieram com nenhum papo do tipo: “Não, esse papo de Arte é bom para hobby, mas tenha uma profissão séria”, como alguns tios meus deixavam claro. Meus pais não, meus pais não tinham, ‘quer ir, vai’. E eu fui, eu fui para Comunicações, o vestibular foi facílimo, era uma besteira o vestibular, perguntava coisas do tipo: A moela da galinha serve para quê? A: Moer. B: Triturar. C: Cortar em fatias (risos). Moela, moer. E foi assim, eu entrei em comunicações sem fazer cursinho porque as pessoas já faziam naquela época e tudo, e comecei a fazer Comunicações. Daí, entrar na faculdade foi entrar num mundo de possibilidades e acontecimentos muito estranhos, muito legais, festas, drogas, bebedeiras, homossexualidade, tudo mais ou menos possível, mas também com a carga de “tabuzinhos” que eu tinha. O fato é que eu repeti o primeiro ano nesse ano de 1969 de tanto que eu delirei (risos). Foi quando eu conheci a Lúcia também, comecei a namorar, e isso foi outro fator de dispersão. Dispersão é uma palavra forte, porque eu realmente nunca estudei, eu nunca estive concentrado em estudos. A minha aproximação com teorias e estudos sempre foi de orelhada, foi de momentos, eu nunca tive métodos de estudos e coisas assim. Então, falar que eu estudei (risos) é um pouco força de expressão. O fato é que eu repeti. Naquela época Comunicações tinha um ano básico, onde você não precisava se especializar, não precisava dizer o que você queria fazer na vida. E quando eu repeti teve mais um ano básico, que eu fiz de novo, aliás esse ano básico foi tão legal que eu acho que foi bom eu ter feito de novo. Tinha uma cadeira lá que era do Dino Preti, eu não me lembro o nome da cadeira, onde as pessoas faziam um trabalho prático. Eu sei que para muitos alunos foi o único trabalho prático que os caras fizeram, pegava-se um conto, uma crônica, um texto, uma coisa assim, e transformava-se de literatura, de texto escrito, para cinema, ou para teatro, ou para rádio. Então, os grupos já trabalhavam com linguagem de forma prática, foi bem legal. Isso eu fiz duas vezes (risos). Mas no segundo ano que eu fiz o Básico entrou a cadeira de Música e eu cismei que eu queria ser música, achei que beleza. Naquela época, por ser um curso que estava sendo implantado, não havia exigência nenhuma de preparo e de preparo teórico, as pessoas podiam entrar sabendo nada. E eu entrei e fiz três anos de Música, até que meu professor Vili (risos), falou assim.
P/1 – Mas você parou a Comunicação e foi para Música?
R – Não, Música era dentro de Comunicação, era uma cadeira de Música. Ele perguntou: “Você já leu Hilten, Casper van Hilten?” “Não, não li” “Então, vou te contar uma coisa que tem no livro” (risos). Então, ele perguntou assim: “Você morreria se não fizesse Música?” “Não, acho que é difícil” “Você morreria se não desenhasse?”. Ele sabia que eu desenhava e passava o tempo inteiro das aulas desenhando. Eu falei: “Acho que sim”. Ele falou: “Então sai! Larga esse curso! Você não é ruim, não é que você seja ruim, mas você está claramente no lugar errado” (risos) “Hum, é verdade”. Daí eu tranquei, porque eu já estava começando a colaborar com a Revista Banas, eu já tinha um pé na profissão e eu resolvi ir por aí, foi isso. Mais tarde eu voltei para Comunicações, fiz outro vestibular porque eu fui jubilado e tudo, para fazer Jornalismo. Aí, eu tinha assim uma vontade vaidosa de ter um diploma e de alguma forma contribuir para o universo acadêmico (risos), com a inserção de estudo sobre ilustração, sobre ilustração, mas isso nunca se realizou. Também não concluí o curso de Jornalismo, fiquei no terceiro ano.
P/1 – Mas você voltou e passou outra vez no vestibular?
R – Entrei, passei de novo. Era ridículo também.
P/1 – Quando você entrou, como é que tava a Faculdade de Comunicação? Como era a universidade em geral, esse clima?
R – Bom, especificamente em Comunicação, a razia de caça às bruxas tinha passado e levado Jean-Claude Bernardet, que era um grande professor dali. Levou mais alguns professores também que eu não lembro, mas principalmente o Jean-Claude Bernardet. Tinha levado da faculdade, isso em 1969, o Ato AI-5 recém-publicado, tinha tido essas aposentadorias precoces, a caça às bruxas, muitos alunos caíram fora e foram para grupos que estavam organizando ações clandestinas, tal e não sei o quê. O clima de medo total, a UNE absolutamente posta na clandestinidade, ninguém tocava no assunto. Esses foram anos de reconstrução das entidades estudantis. Quando eu entrei no Partidão em 1973, foi por convite e cooptação (risos), não, não se falava cooptação ainda. Aliciamento, a polícia falava aliciamento, eu fui aliciada pelo meu amigo, querido amigo, Sérgio Gomes.
P/1 – Recrutamento, né?
R – É, recrutamento. Na linguagem do Partido era recrutar (risos). Mas eu nunca gostei muito de recrutar, parecia uma coisa militar assim. O fato é que eu entrei no Partidão e fiz parte de uma política de “reesquentamento” das atividades culturais e políticas dentro da universidade. Desenhei cartazes, participei de eventos, fiz um monte de coisa assim.
P/1 – Mas assim, 1968, 1969, você não tinha ligação com algum grupo.
R – Não, não tinha. Em 1969, principalmente, eu estava ainda nas águas da criação, da visão libertária que aquela criação toda, no grupo de teatro e na escola, pintura, desenho, teatro. Tinha acabado de acontecer o Tropicalismo também. A gente se identificou muito com o Tropicalismo na época do teatro por uma série de pontos estéticos assim, até. Porque a gente praticava uma linguagem ampla, uma falta de fronteiras e uma liberdade criativa assim que também a Tropicália curtia, então, a gente se sentia meio primos com o que tava acontecendo na área da Música.
P/1 – E você experimentou drogas, alguma coisa, nesse período?
R – Droga, não. Ali era mais álcool mesmo, foi quando eu comecei a tomar, uma das primeiras experiência com álcool foram dessa época, 1967, 1966 assim. Droga, a primeira vez que eu fumei maconha foi acho que em 1969. Achei que não tinha batido, mas quem tava junto disse que bateu (risos). “Como não bateu? A gente tá aqui, todo mundo pelado na cama?” (risos). Três pessoas. Como não bateu?” “Você tá legal?” “Tá, tá legal” “Então tá bom”. (risos) Depois eu me familiarizei um pouco mais com maconha e aprendi a ver se batia ou não (risos). Achei que tinha tomado ácido, mas não era ácido, era uma anfetamina. Isso eu aprendi logo também. As pessoas chegavam, chegou um cara ali e falou: “Vocês querem um ácido?” “Queremos” (risos). Eu e um amigo meu, que era um amigo querido, o Toninho Falcão. E a gente pegou. Mas era do tamanho de um AS, não tinha ácido desse tamanho, devia ter desconfiado, né? (risos). Quebramos em dois, cada um tomou metade. Era uma anfetamina. Saíram os dois, não paravam de falar, achando que tinha tomado ácido. E quando não começaram as visões? “A minha não começou até agora, a sua não começou?” “Não, não começou” (risos). Mas depois disso eu acabei não tomando ácido, não. A única droga mais alucinógena dessa natureza foi a Ayahuasca com o Glauco em 2000 e... Foi agora, 2002, não, 2003. Cocaína eu cheirei no final dos anos 1990 assim. A minha mulher na época, Miriam, já tinha tido uns contatos com cocaína, falou: “Vai, é legal” (risos). Tinha gente oferecendo também. Acho que era uma época de grande produção de cocaína, talvez uma introdução grande. Chegou até a mim, pelo menos. E eu cheirei durante uns meses assim, não achei grande coisa. Era bom para trabalhar, assim, para ter ideias. Você tem energia para trabalhar e tudo, mas não é uma grande droga, não. E eu via acontecer cada [porcaria] com amigo meu assim, dos caras entrarem em fissuras e grandes problemas, em crises mesmo, por causa da cocaína, que eu deixei de lado como projeto (risos).
P/1 – Voltando lá para 1973.
R – 1973?
P/1 – É, 1973 quando você entra no Partidão. Como é que você entrou, como é que se deu essa aproximação?
R – O Serjão me convidou porque a gente ficou muito amigo. Eu gosto muito dele, o que eu gosto nele hoje eu já gostava naquela época. Esse jeito animadão, organizador, interessado em coisas, sincero. Eu fiquei encantado com ele, e ele ficou encantado comigo e me contou o que ele fazia. Depois de uma certa intimidade que a gente alcançou ele me contou: “Eu tenho contato com os comunistas, eu sou do Partidão. Você está interessado em conhecer?” “Tô, tô, legal!”. E entrei. Eu acho que, na minha história, no meu relacionamento com o Partidão funcionou também muito um certo, uma coisa dúplice minha, de ser ao mesmo tempo um cultivador de uma transgressão, da ideia de estar fazendo uma coisa que é boa porque combate o status quo com o qual eu não concordo. Que dizer, a ideia do Comunismo e de construção do Socialismo até hoje é uma ideia interessante para mim, eu gosto disso. Mas o Partidão também atendia ao meu lado cagão, o meu lado conformista, o meu lado de querer me enquadrar em determinados batalhões. Quer dizer, eu precisava também de códigos, códigos de podes e não podes, coisas permitidas e coisas inviáveis assim. E o Partidão era pródigo nisso, tanto tinha o método científico de alcançar o socialismo (risos), como tinha também a lista de coisas condenáveis. Então não pode desbundar, não podem drogas, não pode dar a bunda. Então, toda a minha homossexualidade encontrou, no código muitas vezes tácito, porque raramente essas coisas eram formuladas claramente, mas encontrou uma desculpa para adiar todo e qualquer conflito que poderia se avizinhar e estava se avizinhando. Eu nunca deixei de ter desejos assim. Mas nessa época, por exemplo, foi tudo pro armário, não pensei no assunto durante anos (risos).
P/1 – Nem pensou?
R – (risos) Pensava, claro que pensava (risos). Mas não desenvolvia porque sabia que aquilo era uma coisa... As discussões sobre homossexualidade, especialmente no Partidão, não eram proibidas exatamente, mas eram vistas como algo secundário. Quer dizer, era uma espécie de detalhe, uma coisa a seu devido tempo a gente vai ver isso. “Mas o que a gente faz com os homossexuais?O Maiakóvski era gay” (risos) “Não, imagina, o Maiakóvski não era gay” “O Garcia Lorca era gay” “Não, o Garcia Lorca? Não existem provas” (risos).
P/1 – Mas essas discussões, tanto essa quanto outras, eram feitas no âmbito do partido, nos grupos, células? O que era, como é que acontecia isso?
R – Essas discussões especificamente eram mais assim pelos cantos, não tinha espaço para isso nos encontros formais do Partidão, que eram os congressos, conferências, conferências setoriais do Partidão e tudo. Eu nunca estive numa célula muito organizada até o tempo do Oboré, que a gente fundou uma empresa para atender os jornais sindicais e tal e tudo. E nessa época, quase todo mundo da Oboré era comunista, era do PCB, então, a gente tinha uma célula lá que era naturalmente a própria empresa (risos). Então, quando a gente ia para uma conferência estadual, uma coisa assim, era quase como uma continuação do trabalho. Essas discussões sobre drogas, homossexualidade, projetos da intimidade assim, não tinha muito lugar para isso mesmo, a gente estava, colocava na frente dessa discussão outras questões, questão operária, questão da política, questão da não sei o quê, todas importantes também, né? Mas não tinha. Eu sei que lá pelos anos 1980 apareceu um livro chamado Porcos com Asas, de uma dupla de italianos, se não me engano do PCI, se não me engano eram comunistas também. Mas o PCI estava anos à frente da gente (risos), anos à frente de qualquer partido no mundo. E foi um livro muito revelador principalmente por isso, pelo fato de discutir essas coisas de forma não dogmática, não entrava já condenando.
P/1 – E politicamente, você se colocava como? Você pensava em moldar um projeto de país, qual era a sua ambição dentro do Partido?
R – Eu tento lembrar direito porque eu sempre tive uma grande dificuldade de elaborar teoricamente teses de grupos, como o Partidão. Eu nunca li O Capital, nunca consegui ler o Capital, sequer naquela versão condensada (risos). Eu li Leo Huberman, por exemplo, a História da Riqueza do Homem, eu lembro de algumas leituras que eram a base, tinha o Leo Huberman que era um professor. Ele tinha um texto absolutamente encantador, humorístico até. Ele escreveu a História da Riqueza do Homem e escreveu uma espécie de história da riqueza dos Estados Unidos que chama “Nós, o povo”, mas foi editado como a história da riqueza americana, se não me engano. E lia memórias, memórias do Gregório Bezerra, memórias da Domitila Chungara, memórias do Prestes, do Mário Lago. Algumas legais, outras menos legais, mas era isso a minha formação teórica, minhas leituras eram basicamente isso. Nunca consegui ler Castells, que tinha um livro dele que também era o must assim da gente, algo da filosofia, Manuel Castells. Nunca li os teóricos da estética, Lukács e coisas assim ligadas ao Comunismo. Eu pegava para ler, até tive vários desses livros (risos), eu olhava aquilo assim, mas não engrenava, sabe? Até hoje não engreno. Eu leio com bastante dificuldade essas formulações. Gosto, mas leio com alguma dificuldade. Eu gosto mesmo é de orelhada (risos).
P/1 – E quando que você começou a trabalhar? Qual foi o seu primeiro trabalho?
R – Foi na Revista Banas. Teve umas tentativas de trabalho antes que foi fazer ilustrações para um caderno de colorir para crianças, mas não deu certo. Eu fiz um estágio, eu tinha feito uma curso de desenho animado na Panamericana. Esse curso de um ano só me levou a um estágio com o Walbercy Camargo, uma agência que ele tinha que se chamava Start nessa época. Fiquei também alguns meses lá só. Já estava namorando a Lúcia nessa época, deve ter sido... Ah não, foi a segunda vez que eu comecei. Porque eu terminei com a Lúcia em 1970 e retomei o namoro com ela em 1973, nos casamos. Moramos juntos um tempo, casamos, ficamos juntos acho que uns três meses casados e separamos (risos). Foi meu primeiro divórcio (risos). O fato é que essa experiência de estágio com o Walbercy deve ter sido em 1970 e pouquinhos, 1973 talvez. Eu faço muita confusão com esses anos iniciais da década de 1970. Toda a década de 1970 é meio confusa para mim, eu tenho alguns marcos, por exemplo, que são as prisões do Partidão, a morte do Vladimir Herzog foi 1975. Então, tem certas coisas que eu sei que foram antes e certas coisas que foram depois. Então tem uns acontecimentos que funcionam como estaca assim, para eu me referenciar. Agora, o estágio também não era remunerado, nem tinha proposta de virar profissão. O Walbercy em nenhum momento falou: “Daqui não sei quantos meses te contrato”. Não, ele meio que me deixou fazer estágio, pintar uns acetatos assim, sabe? (risos). Nem cheguei a me apaixonar mesmo pela coisa. O trabalho mesmo foi fazer ilustrações para Revista Banas, que era uma revista de economia. Quem falou de mim para esse pessoal da Revista Banas foram os meus colegas na época, o Markun e a Diléa, que estavam fazendo estágio lá, como jornalista. E eles falaram, “Ah, tem um cara que desenha”.
P/1 – Diléa é a Frate?
R – Diléa Frate. Diléa Frate e Paulo Markun, que eram namorados nessa época. Aí, o editor falou: “Ah, precisamos de um ilustrador”. E eles falaram: “Ah, tem um cara lá na escola que desenha, que é o Laerte, tal”. Eu desenhava no jornal do centro acadêmico, chamava Prensa. Então, eu fui desenhar, eu comecei a desenhar lá. O meu primeiro chefe foi o Quartim Barbosa, me perguntou: “Quanto você quer ganhar?”. Eu chutei um número que eu achei altíssimo assim, e ele falou assim: “Nunca diga que você pediu isso (risos). Eu vou te pagar por ilustração”, e disse o dobro (risos). “Tudo bem?”. Eu falei: “Nossa!” (risos). E de fato, nessa época eu comecei a trabalhar na Revista Banas, e eu tento entender o que era o padrão de remuneração daquela época em termos da grana hoje, porque a grana paga na profissão de ilustrador decaiu muito, né? O padrão de pagamento caiu barbaridades assim. E naquela época eu tinha esse emprego e o da Placar, acabei usando a ponte do Partidão também para arrumar emprego na Placar. E com isso eu alugava, pagava um aluguel, tinha comprado um Fusca 66 (risos), e comecei a morar com a Lúcia, a gente começou a exercer um casamento de fato, se não de direito. Morávamos na Heitor Penteado, num apartamento. Foi também a minha primeira experiência de apartamento, foi onde que eu conheci o síndico (risos), seu Mário, que usei a figura dele. Acho que foi a primeira vez que eu usei uma pessoa real para criar um personagem assim, o síndico que eu criei era claramente inspirado nele. Ele usava óculos escuros em qualquer ocasião, dentro do prédio, dentro de casa, na rua, em qualquer lugar, estava sempre com óculos escuros. E ele tinha uma mala suplicy, ele era investigador particular também, sigilo absoluto (risos), sabe? Era uma figura, uma figura.
P/1 – Muito bom isso (risos). Era investigador é ótimo. Não podia ser mais perfeito.
R – É. E nessa época também eu estava interessado em publicar, e tal e tudo, e me aproximei do Zélio, não sei bem qual foi a conexão que me levou, não só a mim, como o Angeli, o Alcy, o Paulo Caruso, que estavam começando nessa época, frequentávamos a casa do Zélio, que foi uma mãe para gente. Ele abriu a biblioteca, mostrava coisas, ensinava. E ele tentou estimular a gente a criar tiras porque ele tinha uma conexão também com o Jornal da Tarde e queria vender um projeto de tiras nacionais no Jornal da Tarde, então, todo mundo veio com ideias de tiras. E foi nessa época que eu criei essa possibilidade do Condomínio, que era um zelador, um síndico e um universo flutuante de personagens em um edifício. Mas não deu certo o plano com o Jornal da Tarde e eu deixei essa ideia guardada até 1980 e tantos, quando o irmão do Zélio, que é o Ziraldo (risos), chefiando a Funarte, já no Governo Sarney, ele criou a Pacatatu, que era a concretização da ideia de distribuir tiras nacionais. E aí, eu ressuscitei a história do condomínio e passei a publicar, 1985, 1986, não sei.
P/1 – O Condomínio começou...
R – O primeiro jornal que comprou foi o Correio Braziliense. Depois acho que o JB, não sei. Teve um tempo que o Estadão publicou no Caderno 2. Quando fundou o Caderno 2 eu vendia tiras para eles. Ficamos durante um tempo publicando lá até que eu me desentendi, eles quiseram propor mudanças em texto, em tiras, assim, e eu achei que aquilo era um abuso. Devia estar com mau humor também, uma fase de mau humor e falei que não queria mais, e eu saí do Estadão. Antes de ir para a Folha eu tentei o Jornal da Tarde, o Zé Eduardo Mendonça estava editando o Jornal da Tarde e me chamou para fazer a tira. Aí, eu fui, mostrei a tira, ele se agradou da ideia, a gente conversou, ‘então vamos começar’, acertamos tudo. Fizeram uma matéria com foto, com uma tirinha ilustrando, ‘amanhã vai começar a tira do Laerte aqui’. Quando isso foi para, eu já tinha mandado trinta tiras. Quando isso saiu publicado um dos donos do Estadão mandou bloquear, mandou vetar. Por quê? Porque ele não tinha sido consultado. E o Zé Eduardo falou: “Mas a gente já falou com o artista”. Ele falou: “Não, vocês precisam entender que só falando comigo. Por não ter falado comigo não importa, não vai sair essa tira”.
P/1 – Mas foi só por conta de autoridade ou porque ele tinha...
R – Autoridade.
P/1 – Não é que ele vetou o conteúdo.
R – Ele falou: “Não importa, pode ser a melhor tira do mundo, eu não quero que publique porque vocês passaram por cima de mim”. Bom, isso foi o que me contaram (risos). O fato é que ficou aquela coisa surrealista, saiu uma matéria, isso pode ser verificado (risos), matéria com foto, vamos começar a publicar. E não publicaram porque foi vetada pela direção da casa. Que foi vetado é fato, a razão porque foi vetada essa foi a que me contaram, se teve outra aí no meio eu não sei.
P/2 – E aí você foi para Folha?
R – Depois de um tempo eu fui para Folha. Eles pediram que fosse outra tira porque O Condomínio já tinha saído no Estadão, no Caderno 2, aí eu criei uma tira chamada Piratas do Tietê, específica para Folha, mas eu já estava publicando O Condomínio em outros jornais, já, a tira era distribuída.
P/1 – Que outros jornais?
R – Nunca passou de oito (risos).
P/1 – Mas quais são? Você sabe, lembra?
R – Ahhh, não lembro, não. Teve A Tribuna de Vitória, teve o Dia no Rio, acho que era o Dia já, ou não era o Dia, não sei. Tinha Zero Hora, tinha O Povo, de Fortaleza. Tinha um outro em Minas, acho que tinha alguém em Minas, ou em Campinas, não consigo lembrar. Eu sei que o esquema de distribuição nunca pegou muito bem com as tiras, com as nossas tiras. Pegou maravilhosamente bem com o Maurício de Souza, que foi o esquema, o mecanismo que ele usou para colocar a tira dele no Brasil inteiro. Como ele tem também as revistas, funcionam como uma coisa vai esquentando a outra. E tem filme, produtos, revistas e tira, é um ciclo virtuoso de produção que um alimenta o outro. Mas para nós isso nunca funcionou, a gente nunca conseguiu distribuir tira, nem o Angeli que é um campeão de vendas passa hoje de dez, doze jornais. Esse sistema de distribuição a preços baixos e dividindo a grana entre a agência e o artista é o esquema americano, mas funciona de cem jornais para cima, cem, duzentos, que é como os americanos funcionam. Eles começam a contar o mínimo abastecido a partir de cinquenta ou sessenta jornais. A gente jamais chegou nisso, jamais. Por vários motivos, não sei se merece a gente entrar nesse debate agora, mas...
TROCA DE FITA
R – Almeida Júnior que é aquela família. E o quadro se chama Família de Adolpho Augusto Pinto. E o quadro é tão lindo que eu fiquei pensando, quem que será esse Adolpho Augusto Pinto? E era um engenheiro, eu fui no google, tal. Mas até aparecer quem era Augusto Pinto são três páginas de google só falando do quadro. Ele ficou famoso por ter posado pro quadro (risos). Mas ele era um cara interessante, era um engenheiro ambientalista, ele tinha posições bastante interessantes para época.
P/2 – Ambientalista?
R – Defendia a presença de árvores na cidade assim, com uma precisão profética em relação ao que tá acontecendo hoje, bem legal. Não era ambientalista, ele era uma pessoa preocupada com o meio ambiente.
P/1 – A gente tava nessa distribuição de tiras no momento em que vai para Folha.
R – Ah tá.
P/1 – Que ano que a gente tá falando?
R – Pois é, já misturou um pouco. Ainda estamos no início dos anos 1970.
P/1 – Na Folha?
R – Você perguntou de profissão e tal... Eu comecei a falar do meu início profissional.
P/1 – É que depois a gente andou...
P/2 – Dá impressão que você andou bastante.
P/3 – Você foi até a Folha, você falou de todos os jornais que você tinha passado e logo chegou na Folha.
P/1 – Você estava fazendo esse balanço que nos Estados Unidos a distribuição começa a...
R – É, mas para falar de profissão eu preciso voltar lá para 1974...
P/1 – Então vamos voltar.
R – Então, em 1974 foi a primeira vez que eu misturei profissão e ideologia num projeto que era o projeto para os sindicatos. A gente começou isso em 1974, com o sindicato dos têxteis. A ideia era fazer um núcleo de produção de material de campanha e jornalismo para sindicatos e trabalhadores mesmo, mas partindo de uma experiência piloto assim. E eu fiz o material de campanha porque os sindicatos só funcionam com todo mundo junto, fizemos umas ilustrações, uns negócios assim. Fiz uma história em quadrinhos sobre um chefe que comete assédio moral numa funcionária, fica lá gritando com ela, ela desmaia e tudo. Bom, enfim, isso foi em 1974. Em seguida, um pouco depois, essa diretoria que era tudo gente ligada ao partido foi presa. Então, o sindicato sofreu intervenção e tudo, e a gente ficou meio assim. Eram tempos em que a linha dura do governo, aquele pessoal que tentou dar o golpe em 1975 já estava se articulando e cercando alguns grupos, entre os quais o PCB. Em 1975, foi a vez do PCB e vieram com tudo, prenderam todo mundo, foram torturas inimagináveis e que culminaram, do ponto de vista do processo político, na morte do Vladimir Herzog. Quando o Vladimir Herzog morreu foi um escândalo, até pros padrões de uma ditadura. O Geisel aproveitou para contra-atacar, demitiu o Frota, foi aquele movimento, e inaugurou uma fase nova da ditadura, inspirada na ideia de que é preciso mudar as coisas para que elas continuem como estão (risos). Então, ele propôs a tal da distensão lenta e gradual, que era o mote, e realmente passou-se a viver um período em que, se por um lado havia intervenção no congresso, cassações e tudo o mais, tudo isso se dava dentro da égide de uma coisa política mais... Apesar do governo deter a força e praticar essa força com bastante brutalidade, a linguagem da negociação política avançou muito em relação ao governo anterior, que era do Médici. Foi nessa época, inclusive, que sucede o grande acontecimento eleitoral que foi a eleição de 1974, quando o MDB arrebatou todos os governos do Brasil, deixou o Arena circunscrito aos currais, aos currais mais do atraso e tudo. Eu acho que foi isso o motivador da extrema direita dentro do governo, se tentar recuperar o controle que o grupo do Médici tinha. Bom, perderam a briga, a queda de braço com o Golbery e o Geisel e instaurou-se essa nova fase assim. Para nós foi muito bom, a gente retomou projetos de existência institucional, projetos culturais como o Clube do Choro também, a gente fundou. Eu tive na fundação do Clube do Choro em São Paulo. Existia o Clube do Choro no Rio, a gente começou, a partir de interesses mesmo. Eu lembro que o Serjão, mais uma vez o Serjão, quando saiu da cadeia, a gente tava muito afim de grupos de choro, a gente gostava muito de frequentar rodas de choro e tudo. E começamos a pensar nisso, então, vamos reunir esse pessoal, vamos fazer um Clube do Choro, e foi quando se fundou o Clube do Choro em São Paulo. Foi na minha casa, inclusive (risos).
P/1 – É mesmo?
R – Foi. Eu morava na Previdência, tinha piano em casa, teve uma festa lá e foi todo mundo. Foi o grupo Atlântico que era o pessoal aqui em São Paulo. Tinha um grupo no Rio, que é o grupo base do Clube do Choro do Rio, era o Época de Ouro, do qual participava o pai do Paulinho da Viola. O Paulinho da Viola sempre foi uma criatura muito afim da gente, sempre foi muito amigo e a gente sempre trocou muita ideia. Então, nessa época do Clube do Choro foi a delícia das delícias. Acho que foi a primeira vez que eu viajei de avião também. Eu tenho em casa uma das fotos, que eu não trouxe, foi uma foto de máquina, tanto a máquina era uma novidade, eu e o Serjão, os dois com a cara assim, e ele escreveu no verso assim: “Lembranças da sua primeira viagem de avião”. E foi a primeira vez que eu andei de avião para ir ao Rio negociar uma vinda do Paulinho, uma coisa assim, tinha um projeto desses assim. Não me lembro se foi em 1976 ou um pouco antes, foi nessa fase. Então, nessa época, estar no Partido para mim era também muito bom por causa dessa dinâmica de atividade e criação intensa. Um pouco mais tarde, no final da década de 1970 abriu-se uma outra porta, que era trabalhar com os sindicatos, que estavam fervendo, as greves de 1978, 1979, colocaram um outro jogador na arena política, colocaram de volta o movimento operário como protagonista e a gente criou a Oboré. Eu já tinha começado a trabalhar com sindicatos através de um jornalista chamado Nunes, Antonio Carlos Felix Nunes, que fazia jornais para aquela região do ABC lá, fazia vários jornais para vários sindicatos. E eu comecei a ilustrar esses jornais todos. Naquela época, a partir de uma sugestão do Lula, que era racionalizar essa prestação de serviço. Como o Nunes fazia jornais para muitos sindicatos e era um cara sozinho, acabavam todos ficando muito parecidos. E o Lula disse que as categorias diziam isso claramente, que as categorias são diferentes, um borracheiro de São Paulo é diferente do metalúrgico em São Bernardo, que é diferente de um trabalhador de plásticos em Diadema. Então, seria legal que tivesse uma equipe que pudesse fazer um atendimento personalizado para os sindicatos. E a gente fundou a Oboré dentro dessa perspectiva. A ideia era prestar um tipo de serviço que seria bom para gente como exercício profissional também, e também seria importante para fazer os sindicatos compreenderem que esse serviço de campanha, atendimento de campanha, atendimento jornalístico, tal e tudo, é um serviço vital para um sindicato, tão vital quanto ter advogados, médicos e dentistas no seu plantel. Ainda que os sindicatos sempre tiveram essa parte de assistência muito desenvolvida, muito mais desenvolvida que as outras, que eram as atividades para as quais o sindicato, teoricamente, tinha sido criado (risos), que é defender os trabalhadores. Como os movimentos do final da década de 1970 recuperaram essa memória (risos), o que estamos fazendo aqui? Naturalmente cresceu a participação de jornalistas, políticos e planejadores de campanha, entre os quais a gente, a Oboré.
P/1 – Quem fazia parte da Oboré?
R – O Sérgio Gomes, eu, Galé, José Vidal Pola Galé, Lu Fernandes, Ione Cirilo, eu vou esquecer de gente... Luciano de Leon, a mulher dele que chama Ana, que eu esqueci o sobrenome. Miriam Libanês.
P/1 – Era uma turma.
R – Era uma turma. Flávia de Castro. Porque essa turma também variou com o tempo. Tinha uma equipe fundadora que foi mudando no decorrer. Ricardo Carvalho, Jaime Prades, Ricardinho, fotógrafo. O Laércio, diagramador. Reinaldinho. Eu vou esquecer de gente.
P/1 – Mas era bastante gente? Passou muita gente.
R – Era bastante gente. Era uma célula do Partido inteiro (risos). Eu to inconformado de não estar lembrando o nome da minha professora.
P/1 – Eu sabia que você ia falar disso agora... E quanto tempo durou?
R – O quê?
P/1 – A Oboré durou quanto tempo?
R – A Oboré dura até hoje.
P/1 – Tem até hoje, tem a rádio também, não é a mesma coisa?
R – É a mesma. Na verdade, na década de 1980 e 1990 houve uma divisão de Oborés, as duas continuaram chamando Oboré, uma dava atendimento, tipo consultoria de campanhas, e a outra era o Sérgio Gomes, basicamente, que construiu uma outra equipe em torno da ideia de continuar fazendo atendimento, principalmente em rádio também, né? Eles se especializaram com radiodifusão e tudo. Mas tá até hoje. Hoje ele me ligou (risos).
P/1 – E você conseguia sobreviver desse dinheiro?
R – Male male, por isso que eu trabalhava na Gazeta Mercantil também. Eu atendia a classe operária (risos), à noite era a Gazeta Mercantil, de dia era a Oboré (risos). Eu vivia do que eu ganhava na Gazeta Mercantil. Gazeta Mercantil E outros freelancers, assim como revista Placar, ilustração para aqui, ilustração para ali.
P/2 – Você chegou a ser visado...
R – Perseguição política?
P/2 – É.
R – Olha, como prisão eu fugi na hora em que era a minha vez de ser preso. Eu morava com o Galé em 1975, a gente dividia a casa e quando ele foi preso eu vi que eu era o próximo, né, porque eles estavam pegando todo mundo mesmo e levando lá pro DOI-CODI lá para apanhar, todo mundo foi torturado. Foi uma coisa estranha porque algumas pessoas do partido se apresentaram ao DOI-CODI, eu nunca vi isso, eu nunca vi. Assim, na suposição de que era melhor resolver logo a coisa, ir lá, prestar depoimento, e que era capaz que não rolasse tortura porque isso evidenciaria uma boa vontade da parte do perseguido (risos). Eu não sei, era uma ideia estranha, fez com que esse fato inédito acontecesse, as pessoas se apresentavam lá. Aconteceu com uns três ou quatro que eu conheço. Eu fugi. Na Gazeta Mercantil todo mundo sabia, eu era da Gazeta já, em 1975. Tinha muita gente do Partidão lá, antigos comunistas, então, não era segredo. Eu falei: “Eu preciso de uns dias de licença, eu vou sumir. Galé foi preso”. Eles falaram: “Sim, some. Raspa. E a gente fala que você tá de licença, alguma coisa qualquer”. Eu namorava já uma menina de Vitória, que era a Merli, nessa época, e eu disse que ia pro Rio, fui pro Rio, liguei para Vitória e disse que eu ia pro Rio, que tinha não sei o quê para despistar (risos), super despiste (risos). Eu fui pro Rio com uns amigos e daí eu tomei um ônibus e fui para Vitória. Daí, eu abri o jogo com a Merli, que não sabia que eu era do Partidão, ela ficou empolgadíssima, quis entrar na mesma hora: “Eu também quero!” (risos). E eu fiquei em Vitória uma semana, não sei quanto tempo, até quando soubemos que o Vladimir Herzog tinha morrido e que imediatamente a sociedade estava reagindo de forma clara, OAB, ABI, Igreja, estavam todos se movimentando, e eu achei: “Agora acabou, agora eu vou voltar. Se me prenderem agora provavelmente vão me matar antes de eu chegar no DOI-CODI” (risos). Mas eu tinha fé que isso não ia acontecer, que existia um jogo ali que tinha sido perdido por uma ala do governo. E de fato eu voltei. Nessa época todos os que estavam no DOI-CODI já tinham ido para o Barro Branco, ou Hipódromo, não sei, uma outra cadeia onde já não estava acontecendo tortura, depois eles foram pro Dops, então, a coisa toda entrou em nível institucional, com atendimento de advogado, instalou-se processos, enfim, ficou aquilo que eu falei, um jogo que a política tinha mais vez assim. Era um mais vez relativo porque os julgamentos foram todos absolutamente parciais e viciados, que eram tribunais militares. Eu lembro que eu fui assistir ao julgamento do Galé, e assisti o Galé sendo insultado de forma grosseira, por um juiz, um juiz militar, chamando ele de idiota, de tolo, ‘Porque você é um tolo que entra na conversa de revolução, papapa. Você é que nem um sapo que engole tudo’. Assim. E o Galé, com os outros que foram julgados também, não tinham como reagir, não tinha como reagir, uma coisa assim, estúpida, truculenta. Não lembro quem era esse milico, mas ele é uma das imagens de milico que ficou para mim compondo um panorama de truculência e bestialidade. A outra imagem é uma cena que aconteceu em 1969, eu lembro que eu tava com a Lúcia, minha primeira namorada mulher na Praça da República olhando uns pombos, ou uns patos, umas coisas assim, e tinha uma equipe de milico ali, sargento, soldado, não sei o quê. E eu estava agachado, olhando assim, e me chega um sujeito por trás e fala: (berrando) “Documento!”, e eu “Quê?” (berrando) “Que não! É senhor!”. E eu: “Senhor!”, completamente chapado com aquele ataque violento. Eu tinha uma cara de hippie, assim, cabeludo, calça jeans, aquela coisa de hippie dessa época. (berrando) “Cadê o documento?”, eu mostrei o meu documento de identidade. Ele falou: “Isso aqui não serve, não adianta! Você tem que ter documento de trabalho, senão você é vagabundo, vai em cana!”. Eu comecei a (sujar) as calças. “Mas não, não sei o quê” “Não senhor” e ele não deixava um milímetro, ele estava se divertindo claramente pros outros lá, isso eu penso hoje. A Lúcia falou: “Não, não, pera aí, pera aí”. Ele falou: “Eu vou deixar você ir por causa dela, tá vendo que vergonha? Por causa da sua mulher. Pode ir, vai embora!”. E eu fui, morrendo de ódio daquele gorila estúpida. Falar gorila é ofender os gorilas, que são animais incrivelmente gentis, né? Daquele monstro. E foi isso, a imagem que eu fiquei de militar foi esse sargento, foi os militares do serviço militar quando eu me alistei também, que era um bando de idiotas, um bando de boçais assim, foi esse juiz que julgou o Galé e foram os incontáveis exemplos de imbecilidade que a gente assistiu nesse país. Bom, 1975 foi basicamente isso, em 1976 começou, a gente começou a trabalhar com sindicatos de novo, com atividades culturais, com Clube do Choro, mais tarde com os sindicatos de novo, construímos a Oboré em 1980. Nesse tempo todo eu trabalhava na Gazeta Mercantil, onde eu tinha entrado pela mão do Zélio que nos chamou, a mim e ao Chico Caruso, ficamos ali fazendo charges, o que a gente chamava de charges. O Chico logo saiu porque o talento dele é de uma precisão e uma personalidade que o meu não tinha, então ele foi logo fazer trabalhos para movimentos, para opinião, para revistas e tudo e eu fiquei ali na Gazeta Mercantil. Não gostei nem um pouco de ficar os dez anos que eu fiquei na Gazeta Mercantil. Dez anos. Horrível, né? Pra quem não tá gostando é muito tempo (risos).
P/1 – Ainda bem que você não tava gostando (risos).
R – Pois é, eu sempre fui de permanências meio longas, casamentos que claramente estavam já patinando e eu ficava dez anos. Relacionamentos, trabalhos. A ideia de romper sempre foi meio difícil para mim. O rompimento, seja com profissão, amigos ou com relacionamentos, sempre foi um momento difícil e árduo. E eu sempre protelei o mais que eu pude. Em geral dá dez anos (riso), são ciclos de dez anos assim. Em 1985, quando eu saí da Gazeta, eu também saí do Partidão e da Oboré, e também tava saindo do casamento também. Do casamento tava demorando um pouquinho mais, mas eu tava liquidando também o processo de casamento.
P/1 – Mas daí você tava casado depois com essa de...
R – Com a Merli.
P/1 – De Vitória?
R – É.
P/1 – Aí, ela veio para cá.
R – Veio, veio. Ela viria de qualquer jeito porque ela se formou em Medicina lá e queria fazer residência aqui, né? Então, a gente casou e viemos viver em São Paulo. Quando nasceu o meu filho, meu primeiro filho, o Rafael, em 1980. E em 1982 nasceu meu filho Diogo, meu segundo filho. Então, eu tive esses dois com a Merli. Em que ramo que a gente tá? Profissional, “relacionamental” (risos)?
P/1 – Pode abrir a janela que você quiser. Você estava falando de trabalho e entrou nessa vida afetiva.
R – É, pois é, ciclos, papapa.
P/1 – Como foram esses filhos, foram planejados? Vocês falaram, vamos ter filho?
R – O primeiro foi, o Rafael, ‘vamos ter, vamos ter’. O segundo filho já foi um pouco mais acidental, mas foi bastante querido. O primeiro foi acidentado, foi querido, mas foi acidentado. Foi uma gravidez difícil porque a gente não sabia, mas a Merli teve uma hepatite B no final dessa gravidez e não foi detectada pela obstetra, só foi detectada depois da criança nascida, ou quase para nascer. Eu lembro que eu olhei: “Você está estranhamente amarela, você é assim mesmo?”. Porque a Merli é descendente de índios e negros, ela é naturalmente amarela, a pele dela é mais escura e ela tava amarelada, ela não é assim (risos). Isso já tava para nascer eu tinha acabado de nascer. Eu sei que o nascimento do Rafael foi bem acidentado, ele nasceu com sete meses, inclusive, pesando dois quilos e pouquinho só, um ratinho. Ficou naquela piscininha, naquele aquário, e eu ficava olhando naquele coisinho (barulho de respirador). Respirando assim. Daí a Merli não podia amamentar, então, o início da vida do Rafael também envolveu busca de peitos de amigas. Tinha uma pequena coleção de moças que tinham parido naquela época, então, eu levava o Rafael assim, em ronda (risos). Ele mamou em amigas e pessoas que eu acabei conhecendo através dessa atividade láctea (risos).
P/2 – E como foi ser pai?
R – Foi muito legal, muito legal. O Rafael foi assim tudo de legal, eu cuidei, quer dizer, numas né, porque eu trabalhava à noite. E a Merli também retomou a residência médica, então a gente sempre dependeu muito da existência de empregadas ou pessoas que tivessem tomando conta. Com um ano ele já foi para escola, ele ficava ali meio período. A gente dividia assim o tempo de um tempo de outro, e a gente dividiu a atenção do Rafael, mas os tempos que eu convivi com ele foram muito legais em todas as idades, de neném pequeno até menino, foi bem legal, gostei muito assim. O Diogo um pouco menos, eu não sei, acho que é época de trabalho também, era diferente, tinha uma exigência diferente também. Então, a gente praticava com o Diogo um regime parecido com aquele do Rafael, mas o Diogo era diferente também, era uma criança diferente. Ele tinha um modo de pedir, ou de se relacionar, que era um pouco mais tenso, sabe? Ele entrava nuns momentos de surto assim, de choro, difíceis, uma criança que eu achei bem mais difícil do que o Rafael. Mas também virou um guri muito legal, uma coisa muito gostosa. Aí, aconteceu a separação. Foi em 1987, vai. Eles estavam pequenos, o Rafael tinha sete anos, o Diogo tinha cinco. E aí, cuidar deles e estar com eles tinha sempre essa carga tensa, da separação, a nostalgia da família como ela era, e as minhas dificuldades também de compreender uma nova situação. Porque para mim a separação também representou, quer dizer, o casamento, o relacionamento com a Merli também representou uma coisa parecida com a ligação com o Partidão. Quer dizer, o casamento especialmente com a Merli, que é uma criatura meio autoritária representou para mim um ordenamento que veio de fora, então, eu tinha uma orientação assim (risos), ser casado com ela representou para mim estar dentro de uma orientação, que já era traçada. Eu posso estar sendo injusto nessa avaliação, mas é como eu sinto ela hoje. Romper com isso também teve toda a carga de insegurança e dor quando eu parti com o Partidão, quando eu rompi com todas as coisas que eram definidoras de códigos para mim. Eu passei a fazer terapia de forma mais sistemática nessa época, assim de fim de casamento. Em meados dos anos 1980 eu fui procurar uma terapia com o Maroni, eu fiquei dez anos fazendo terapia também (risos), outros dez anos (risos).
P/1 – De dez em dez...
R – É.
P/1 – Foi a primeira vez que você foi fazer terapia?
R – Não, eu já tinha feito outras, mas eram experiências mais esporádicas, mais efêmeras, coisas rápidas de três, quatro sessões, alguns meses. Como o Maroni eu fiz uma coisa sistemática, era uma vez por semana, mas durou muito tempo. Foi uma relação profissional de bastante tempo assim. E foi nessa época de desfazimento deste segundo casamento que eu retomei o contato com a homossexualidade também, já como uma coisa menos proibida. Foi um choque para mim ter buscado isso, que eu nem consigo me lembrar direito que tipo de motivação e ações que eu tive para esse encontro, mas foi meio chocante para mim, eu fiquei com a sensação de ter feito uma grande besteira, ‘que horror, que horror’. E já se falava de Aids nessa época, então, qualquer tossinha que eu tinha: “Ah meu Deus, peguei Aids!”. Manchinhas na pele: “Ah, peguei Aids”. Pânico, era uma época de pânico mesmo, e eu introjetei esse pânico com muita virulência, com muita força. Demorei para entender, Maroni me ajudou muito nessa época, entender o que tá se passando no meu ser, né? Mas ficou nessa experiência isolada também, eu só fui retomar a ideia da homossexualidade no final do meu terceiro casamento, dali a mais de anos (risos).
P/1 – É mesmo?
R – Mais ou menos (risos). Eu to forçando um pouco a barra...
P/1 – Ficou boa a ideia de dez anos.
R – É, porque olha, eu me separei em 1987 e imediatamente já entrei num outro casamento que foi com a Miriam, principalmente porque ela engravidou da Laila, foi uma gravidez acidental, mas para mim funcionou como um definidor de águas, disse, vamos fazer. Esse casamento foi legal durante um tempo e depois começou também a patinar, como quase todos os meus relacionamentos. E quanto tempo depois? Dez anos, um ciclo redondo assim? Mais ou menos, porque foi em 1999 que eu me separei, né? Mais ou menos isso. Mas aí, eu já tava com uma noção muito mais clara de que eu era pelo menos bissexual, tinha uma coisa em um aspecto da minha vida que eu tinha negligenciado até ali e tinha que, de alguma forma, encarar isso, resolver. Eu me separei da Miriam, principalmente por esse motivo assim. Só que não comecei nenhum relacionamento homossexual, tive encontros, mas acabei tendo mais um relacionamento hetero.
P/1 – Depois dela.
R – É, namoros e tal e tudo.
P/1 – Vamos voltar?
R – Não sei. Pra onde, para que época? Do que a gente tava falando?
P/1 – A gente tava na sua separação e tava falando junto do lado profissional. Seus filhos estavam com sete e cinco anos, você estava...
R – Tá. Eu saí também da Oboré e da Gazeta Mercantil. Porque aí também eu senti que havia um ciclo profissional que estava mais do que terminado, que eu tava fazendo coisas que eu detestava, que odiava e não correspondiam mais em nada ao que eu queria, a ideia de participação ideológica minha num projeto político já tava completamente esfarrapada. A Gazeta Mercantil estava um emprego odioso, eu tava odiando cada minuto que eu passava lá, e eu tava louco para voltar a desenhar quadrinhos, essa que é a verdade. O Angeli, ele tava publicando a Chiclete com Banana, o Toninho Mendes, com o Angeli, fundaram a Editora Circo, o Toninho fundou a editora Circo basicamente por causa do Chiclete com Banana. E ele me esticou a mão nessa época e isso foi decisivo. Ele falou: “Venha, que eu pago para você uma espécie de adiantamento fixo pro que você for fazer, para Chiclete com Banana, Geraldão, ou para qualquer projeto da Circo. Quer?”. Eu falei: “Quero”, e larguei tudo. Peguei o fundo de garantia da Gazeta para fazer a reforma da casa (risos), terminar a reforma da casa, e comecei a fazer quadrinhos. Usei o fundo de garantia para terminar de saldar a dívida com o Itaú que tinha financiado a reforma da casa, pronto.
P/1 – Pagou.
R – É. Eles não queriam me demitir, porque eu achava que eu só poderia pegar o fundo de garantia se fosse demitido, e eu fui pedir para eles me demitiram. Eles falaram: “Não, não vou demitir”. Foi a última putice que eu fiquei com eles assim, daí eu descobri que podia retirar para coisa de reforma de imóveis e tal, tirei e mandei o emprego passear. Bom, daí eu me desliguei de Oboré, mais uns anos me desliguei do casamento também, e tinha começado a trabalhar em quadrinhos, à princípio com Chiclete com Banana, depois umas histórias para Geraldão, fui fazendo coisas assim e vendo que dava para viver disso, né? Um pouco mais apertado mas dava. Fundamos a Revista Circo, quer dizer, foi o projeto seguinte, com o Toninho Mendes. Chamamos o Luiz Gê e fizemos uma co-editoria, eu e o Luiz Gê. Na prática era o Luiz Gê que editava, a revista foi toda construída basicamente como projeto dele. A Circo durou acho que uns oito ou nove números, daí o Luiz Gê viajou para Inglaterra e ela caiu, não consegui segurar a onda. Daí fundei a Piratas do Tietê. Eu tinha começado a fazer histórias dos Piratas do Tietê para a Chiclete e eu achei que era uma possibilidade de marca e fundei uma revista chamada Piratas do Tietê. E essa revista durou acho que uns treze números, não mensais, né? De vez em quando assim, ela foi lançada no início do Governo Collor, foi logo após do assalto à poupança, do grande confisco. Foi uma coisa bem temerária assim, mas mais um motivo para admirar o Toninho Mendes, ou ele é um irresponsável total (risos) ou ele é um cara muito corajoso, ou as duas coisas (risos). O fato é que a gente lançou a revista Piratas do Tietê no início do Governo Collor, que foi em 1990, né? A Laila tinha acabado de nascer. Não sei, foi uma época boa, uma época de euforia. Eu estava feliz de estar casado, de estar com uma filha, e de ter uma revista e estar trabalhando no que eu gostava. A minha existência com a ex estava tumultuada e a minha relação com os meus filhos estava muito insatisfatória. Ela ora levava eles pro Rio de Janeiro, ora para Vitória, ora pros Estados Unidos, tava um tumulto isso, mas enfim, eu lembro dessa época como uma época de grande produtividade, profissionalmente muito satisfatória, eu tava gostando do que eu fazia.E... E?
P/1 – A Folha de São Paulo?
R – A Folha, eu comecei a publicar na Folha...
TROCA DE FITA
R – Onde a gente parou?
P/1 - A gente tá quando nasceu sua filha, a gente chegou profissionalmente aí, que você tinha encerrado um ciclo. E como é que foi ser pai de uma menina?
R – É, pois é. Eu acho que eu fui muito ruim como pai com a Laila. Eu fui um pai distante, eu acho que eu repeti certos patrões de que eu me queixo em relação ao meu pai, eu acho que eu me repeti com a Laila. De distância, de estranhamento. Porque não era uma gravidez que eu quisesse, e eu fazendo a minha autocrítica, eu acho que eu não fui um bom, nem marido nem pai assim, eu não quis assumir. Eu acabei assumindo, mas daquele jeito truncado, aos trambolhões viemos assim. Não faltei, exatamente, mas é como se minha alminha tivesse querendo faltar, sabe? O fato é que eu acho que eu fui um pai faltante assim. A Laila já expressou isso algumas vezes, já mais crescida. Hoje a gente se entende muito bem, gosto muito dela. Sempre gostei muito dela, mas não é disso que se trata, né? Um filho não quer saber só se ele é gostado, ele quer saber se ele é aceito, se faz parte. E eu não sei, é como se na minha vida tivesse se desenhando também a ideia de uma, não sei se uma ilusão, ou a ilusão de uma possibilidade totalmente autônoma, totalmente solitária. A busca de viver sozinho começa a ficar mais clara a partir do final desse terceiro relacionamento. Tanto é que eu não voltei a me casar, a ter relacionamento de convívio assim. Eu tenho uma namorada já há alguns anos, mas desde o início eu deixei claro que não era o que eu queria, eu queria continuar morando sozinho. Ela também, ela também passou por três casamentos, então a gente tem esse entendimento. Mas eu acho que sim, que a Laila se ressente disso, sim. Não é uma performance de que eu me orgulhe, não. Esse meu papel de pai pela terceira vez assim.
P/1 – E você se separou e nesse meio tempo, depois, como é que ficou esse seu lado homossexual, de ter encontro com outros homens?
R – Do que a gente tá falando? De que ano?
P/1 – De quando você se separou da Laila, da Laila não...
R – Da Miriam.
P/1 – A Laila tinha quantos anos?
R – Nove.
P/1 – Quase dez, para corroborar com os dez...
R – É, já foi uma separação que teoricamente já foi mais bem construída. Primeiro porque a Miriam, eu tinha com ela uma relação de muito mais acessibilidade, o nosso entendimento sempre foi bem horizontal nesse sentido de autoritarismo e submissão. Com ela eu tive um relacionamento muito mais partilhado, acho eu. No entanto, essa questão estava falando alto mesmo. O fato é que a gente discutiu, discutiu claramente, fizemos terapia de casal, fizemos um monte de coisa. Tava tudo difícil, tanto o nosso relacionamento conjugal quanto a existência de um grupo familiar, porque o Diogo e o Rafael estavam em casa agora, mas num clima de atritos crescentes assim. A raiz desses atritos eu acho que era a própria crise que eu estava vivendo ali, então, aquilo era um núcleo que tava todo crítico em todas as suas pontas. Eu fico vendo esse tripé, eu penso em estruturas que se apóiam em três coisas assim, uma trindade. Não vou conseguir formular nada de muito interessante agora, não (risos), mas o fato é que tinha uma perna cambaia, tinha uma outra perna que precisava disso, e outra mais curta. Era tudo irregular e não tava parando em pé mesmo. A gente fez uma terapia de casal que foi uma terapia de vínculo, envolveu os filhos também, fizemos algumas sessões com todo mundo. Mas era claramente um preparatório para a separação. E eu deixei claro para a Miriam que eu tinha uma inquietação de ordem de orientação sexual que não tinha como evitar mais. E quando a gente se separou, eu de fato tive algumas incursões de encontros homossexuais, mas eu não comecei nenhum relacionamento, ao contrário, eu retomei relacionamentos com mulheres, eu tive uma namorada. Eu não sei, a leitura que eu faço disso hoje é que eu tenho uma dificuldade de aceitar a homossexualidade ainda, por mais que eu tenha, assim como muitos homossexuais aceitam e compreendem a existência do desejo, mas não conseguem se desvencilhar do grande grau de proibição e culpabilidade que sempre cerca isso. A carga toda que a gente aprende a suportar, e aprende a ter como norma social, leva para esse lado, leva para a negação. Então pode, mas de vez em quando, ok? Tem muita gente que vive isso, vive essa homossexualidade de forma furtiva. Furtiva é uma palavra legal, porque inclui furto, né? Como se estivesse roubando algo, você está sendo roubado na verdade, todo você que está sendo roubado daquilo (risos). O fato é que eu tenho hoje uma relação com essa questão toda de orientação sexual, mais consciente por um lado, mas tão difícil de organizar em termos de atitudes e práticas sociais assim como sempre foi, não melhora com o tempo. A gente não consegue destruir essa pedra de culpa como uma pedra de rim, assim, você não consegue moer a pedra da culpa como um cálculo renal, ele fica lá. Pelo menos no meu caso (risos). E bom, essa questão toda de sexualidade ainda veio ser enriquecida já nos anos 2000 com a coisa da transgeneridade, a descoberta do meu desejo transgênero mesmo. Eu não tenho só uma orientação sexual, o desejo não é apenas o desejo que é diferente, eu também tenho uma questão com gênero. E isso eu vim a descobrir que tenho de forma também gradual, foi usando o meu trabalho, a minha expressão, que eu comecei a perceber que cada vez mais eu cercava essa hipótese, a hipótese de frequentar o gênero feminino. Até que uma hora uma pessoa que hoje é minha amiga, que é a Maria Paula, que é transexual, ela me escreveu um e-mail, e aí a importância da internet também (risos) para contato de pessoas que mal se conhecem, né? Ela escreveu um e-mail perguntando: “Será que você não quer fazer que nem o seu personagem, se vestir também, se maquiar, se construir como uma mulher?”. Eu falei: “Ué, não sei” (risos). E ela falou: “Temos um grupo de pessoas que faz isso, nos encontramos tal tal tal. Se você quiser, portas abertas”. Eu fiquei excitadíssimo, coração batendo, pulando e não sei o quê, mas demorei muito para ir. Eu já tinha começado a esquentar as baterias, eu já tinha comprado a minha primeira calcinha no Extra (risos), santo Extra (risos). Foi lá que eu comprei minha primeira sandália de salto, no Extra. Experimentei no pé (risos), com medo das pessoas me descobrirem e comprei aquilo assim. Fiquei rubro na hora do caixa. E a menina do caixa ali, como qualquer menina do caixa (risos). Yessss! Aí, cheguei em casa, vesti, e fiquei naquela excitação no espelho, tudo. Mas aí, foi quando morreu o Diogo. Aconteceu um acidente que levou a vida do meu filho Diogo. 2005. Carnaval de 2005. E isso mudou o mundo para mim, uma coisa que eu não tenho nem com o que comprar porque é incomparável, é um acontecimento que não tem como você ficar descrevendo, ah como isso, como aquilo. A imagem mais adequada que eu vejo é de um momento em que certos véus se rompem, tem uma forma de ver que vai embora, quer dizer, uma forma de misturar canais e obnubilar, como chama? Que você passa a perceber que você não está sendo justo com a realidade, que você não tá enxergando com clareza, isso é quase uma coisa dos sentidos mesmo. Então, a morte do Diogo me deixou numa situação onde eu passei a pensar e refletir sobre algumas coisas de uma forma que eu acho que eu nunca tinha pensado. Realmente, é um outro mundo, né? E não é um mundo legal exatamente, mas não deixa de ser real também. Não é uma conquista, não é um progresso, é uma compreensão das coisas que não envolve exatamente a ideia evolutiva com que a gente costuma pintar as transformações, né? Eu estava assim, passei a estar assim, evoluí. Nesse momento eu fiz uma passagem que não sei se é uma evolução, mas é uma coisa inegável. Para começar é uma coisa que não aconteceu comigo, entender isso como algo que aconteceu comigo é quase injusto porque foi a vida de um menino de vinte e dois anos que foi cortada de forma absolutamente mortal. Mas isso não impede que isso aconteça também para todo mundo que está em volta. Para mim aconteceu assim, eu passei a olhar o meu trabalho de uma forma diferente. Para começar, pensei em parar de trabalhar, uma das coisas que eu pensei foi isso, não vou mais trabalhar, não tem sentido eu continuar fazendo isso que eu faço, fazendo piadinhas. Daí eu pensei, mas eu posso parar de trabalhar sem parar de trabalhar (risos). Eu posso parar de fazer o que eu faço e continuar fazendo o que eu faço. E aí, não começou aí, começou já em 2003, 2004. 2003 foi um ano de muita transformação, 2004 foi um ano de muita reflexão, foi quando eu comecei a fazer tiras diferenciadas e abandonar um pouco o esquema de construção humorística que eu tinha como clichê de trabalho, que era personagem, piada, começo, meio e fim, risos. Isso tudo tava virando uma espécie de modo viciado de produzir. Quando eu sentava para fazer uma piada é como se ela já estivesse pronta. Eu escalava um personagem. Gatinhos hoje? Como são os gatinhos? Um casal, gata preta, gato branco, ele é meio assim, ela é meio assado. Então, eles estão no carnaval, ou eles estão na véspera de Natal, ou precisam resolver um problema com parente. Uma situação, os personagens e era só deixar. Eles faziam a piada sozinho (risos), eu só tinha que entrar isso, desenhando, né? É meio isso. Então, em 2003 e 2004. Nossa... Nossa, aconteceu uma coisa no meu ouvido, eu to ouvindo iiiiiiiii assim.
P/1 – Você tá contando ou tá acontecendo?
R – Tá acontecendo.
P/1 – De verdade?
R – É... Eu to sintonizando uma nave...
P/1 – Será que é uma labirintite que deu?
R – Não, fez piiiii.
P/1 – Ai, se acontecer de novo fala que a gente vai entrevistar (risos).
R – Não, parou. Aí o cara começa a falar em russo, assim, né? (risos).
P/1 – Que coisa! Grava, grava! Não para.
R – O fato é que eu tinha começado isso em 2003, 2004, a explorar. Explorar o quê exatamente? Um modo de expressão que fosse diferente. E eu fui buscar como abastecimento dessa diferença procedimentos que eu tinha antes de me tornar profissional, lá pelos dezenove, vinte anos, no tempo da Faap, do teatro, no tempo da criação desenfreada sem a necessidade de publicar e ser aceito para receber dinheiro, etc etc. Sem essa coisa profissional que tem esse aspecto viciante do profissionalismo para um criador é uma coisa inegável, é uma prisão também. Pode ser uma prisão. No meu caso estava sendo, então eu comecei em 2003 a demolir essa coisa. A morte do Diogo veio como uma espécie de atestado de que isso realmente precisava acontecer. Então, naquele momento, quando eu voltei a desenhar, porque eu fiquei um mês sem desenhar, a Folha me deu um apoio absurdamente grande, total. Take your time, faça o tempo que você precisar. E eu tive mesmo esse tempo para pensar, para sentir, tudo. E quando eu voltei, eu voltei com uma linha que eu queria trabalhar, que era uma linha ficcional que usava humor também, mas usava de uma forma livre, não convencional. Não estava construindo piadas mais, eu estava cortejando a linguagem humorística possível, em leitores possíveis. Então, muita gente se queixou: “Você parou de desenhar piada, ah, saudades dos seus personagens”. Mas isso não me sensibilizou para voltar, assim de qualquer jeito, não. Eu fui em frente com essa construção assim, e eu acho que foi legal. Eu acho que era o que eu precisava ter feito mesmo. Mantive essa linguagem tradicional no caso do Hugo porque ele é um personagem que me ajuda na reflexão e na prospecção de coisas dentro da transgeneridade, nesse caminho da transgeneridade que é um caminho também, é um caminho cheio de áreas escuras e descobertas. Não é nada iluminado assim, não é um negócio seguro, cada passo que eu dou de salto alto é um passo meio refletido assim, né, eu não sou uma mulher natural, isso é a primeira coisa que eu aprendo, que eu percebo quando olho no espelho de manhã é isso. Eu não sou uma mulher natural, então deixa eu fazer a barba (risos).
P/2 – Mas uma vez eu não sei se eu vi ou se eu li uma entrevista sua, que você falava do gesto, interessava o gesto da mulher...
R – É, boa parte desses gestos eu partilho. Quer dizer, na minha adolescência e juventude frequentemente me chamaram a atenção: “Ah, tá desmunhecando!”. Eu tenho isso, mas eu tenho isso de forma natural também. Então, meu gesto hoje não é catalogável como masculino, nem como feminino, é uma coisa meio pessoal.
P/1 – Como foi o primeiro dia que você saiu vestido? Você lembra?
R – (risos) Ô se lembro!
P/1 – Como é que foi?
R – Bom, eu nem saí, eu fiquei dentro do estúdio da Duda. A minha primeira montagem foi dentro do estúdio da Duda, Duda Fernandes. Que justamente atende pessoas como eu, que querem exercer a transgeneridade. Então, eu fui lá, me vesti. Ela me deu peruca, porque ela tem roupas, e maquiagem, e peruca, tudo para a gente... E eu fiquei muito emocionado. Ver o meu corpo sem pelos, porque ela me depilou também, né? Foi assim, uma coisa reveladora. Olhar pro meu corpo nu de pelos, é como se eu tivesse tirado aquela roupa de ser, de ser macho (risos), de ser masculino, e me visto de uma forma que eu nunca tinha me visto, né? Porque eu sempre vi o meu corpo, não sou peludo, excessivamente peludo, mas tenho pelos, minhas pernas são peludas. O fato é que ver isso, mais do que vestir as roupas, foi me despir dessa coisa de pelo, foi muito revelador. Daí, eu vesti roupa, fui maquiada, e botei peruca, me vi daquele jeito e fiquei emocionado. Eu queria imediatamente sair para rua e que o mundo me visse também.
P/1 – E você saiu?
R – Não, a Duda falou: “Não faça essa loucura. Você não sabe ainda, você não tem a segurança para sair vestida. Podem acontecer coisas cruéis e chatas, então, não faz. Só faça isso em outro momento, quando você estiver mais firme nas pernas”. E de fato, foi um bom conselho, foi um bom conselho. Eu continuei frequentando a Duda e me vestindo lá. A gente fazia com outras pessoas também, encontros mensais, ou bimestrais e tal, até que eu saí pela primeira vez junto com a Márcia Rocha, foi super emocionante. Márcia Rocha é outra travesti que frequentava lá a Duda e tudo, e ela animava as pessoas a sair, sair para rua, né? Então, a gente foi pro Arouche, que é um lugar manjado assim, um lugar GLS, tal e tudo. Mas fomos, é a rua. Eu fui dirigindo de vestido (risos), a primeira vez foi emocionante, bem legal mesmo. E a partir daí eu passei a sair em fins de semanas, ou com as amigas, e só nesses lugares mais do gueto assim, né? Até que eu comecei a ter uma presença normal, cotidiana, com brincos, ou com unhas pintadas que motivavam perguntas, e aí eu dei uma entrevista para Bravo que foi o ponto de virada seguinte porque eu resolvi admitir o que eu fazia, e aquilo teve uma repercussão enorme, muito maior do que eu pensava. Fiquei realmente chocado (risos) o quanto as pessoas acham bizarro, ou estranho, ou ficam assustadas com isso. Susto, né? A reação era mais de susto: “Mas o quê? Você?”. E aí, eu descobri que era completamente normal, que fora o susto das pessoas, o céu não cai, a terra não se abre, tudo continua. Daí eu comecei a fazer as incursões ali, já que a coisa tá aberta mesmo [dane-se], comecei a usar, sair vestido como eu gosto mesmo, para ir à padaria, à mercearia, ao supermercado, para ser vista pelos vizinhos.
P/1 – E seus amigos, os filhos?
R – Ah, foi tranquilo também. Eu já tinha aberto pro Rafael, pro Diogo e para Laila que eu era bissexual, isso eu tinha feito em 2003. Foi uma época de assunção geral, eu resolvi abrir o jogo da bissexualidade porque eu sabia que eu era mesmo, eu tinha me conscientizado disso e achei que não fazia sentido meus filhos não saberem. E abri isso numa entrevista também para “Caros Amigos” e tornei pública essa parte. A transgeneridade foi um pouco mais complicado. Primeiro eu abri para Tuca, minha namorada, e depois de um certo choque inicial, beleza também, tudo caminhou normalmente. E com os meninos também. Aí o Diogo já tinha morrido. A primeira vez que eu me vesti, montei mesmo, inteirinha, foi em 2009. Então, falei com o Rafael e a Laila. Quando saiu a entrevista na Bravo, que foi no final de 2010, eu vi que ia ficar público e liguei pros meus pais. Meu pai ficou meio perdidão, até hoje acho que ele não gosta muito da ideia, mas a minha mãe é muito mais próxima, a gente sempre troca ideia. Não é que seja uma coisa de total aprovação dela, mas ela aceita, compreende e a gente troca ideia sempre sobre isso, e sobre outros assuntos também. Eu tenho uma relação de convívio e conversa permanente com a minha mãe. Os irmãos, a Marília, minha irmã, de certa forma ela frequenta a área da transgeneridade, porque ela questiona os tais padrões femininos, os modelos femininos. Ela constrói o corpo dela de uma forma absolutamente original, segundo o desejo dela. Não é homossexual, pelo menos não que eu saiba, né? Ela tem relacionamentos heterossexuais, o que prova que a questão do gênero é uma questão à parte mesmo, né? É uma questão que se sustenta em si, é uma questão à parte. Enfim, essa parte teórica toda eu elaboro muito mal assim, eu elaboro mais de orelhada, como sempre. Mas eu compreendo que sexo biológico, orientação sexual e identidade de gênero são três coisas diferentes, e que se articulam e se combinam também de formas inumeráveis. É isso, acabou (risos). É que agora a gente começou a dar saltos, né?
P/1 – Profissionalmente você foi para Folha, e quando você entrou na Folha você tava fazendo mais o quê?
R – Eu entrei na Folha lá em...
P/1 – Em 1990?
R – Não, antes... Quando eu entrei na Folha? Acho que foi em 1990 e pouco...
P/1 – 1990 já...
R – Eu comecei a frequentar a Folha em 1982, eu lembro porque era a Copa do Mundo, e o Tarso de Castro inventou uma seção chamada Gol. Acho que eu já tinha publicado de free lancer numa seção que o Angeli tinha no Folheteen chamado Vira-Lata. Mas quando houve essa seção Gol, foi como se o caderno, que era um caderno fora do jornal assim, um caderno tabloide, tal, o Folheteen, a Seção Gol foi uma seção dentro da Folha. Então, ao frequentar essa seção, eu meio que botei o pé dentro da Folha, de maneira informal, como é informal até hoje. Eu não tenho contrato de trabalho dentro da Folha. O fato é que essa seção evoluiu para uma seção de quadrinhos que chamava Quadrão, era uma página inteira. Nessa época a gente fazia Los 3 amigos de forma semanal também. De diferentes formas eu fui caminhando para dentro da Folha. Eu passei a fazer uma tira mesmo na Ilustrada só em... Em 1990 e tantos, depois da revista Piratas do Tietê, ou foi um pouco antes. Eu não sei, foi nessa passagem talvez da década de 1980 para 1990, que eu comecei a publicar uma tira na Folha, na Ilustrada.
P/2 – E você viveu sempre desse trabalho?
R – Na corda bamba (risos).
P/2 – O que mais você faz? Você faz mais alguma coisa?
R – Não, só do trabalho. É que esse trabalho é bastante variado. Eu fiz, por exemplo, roteiros para a televisão, essa é uma parte que eu não falei. Eu comecei a trabalhar com a TV Pirata, na época da TV Pirata o Cláudio Paiva nos chamou, a nós de São Paulo que trabalhávamos com quadrinhos para que a gente produzisse roteiros, esquetes e coisas pra TV Pirata. Nessa fase eu mais aprendi do que forneci. Eu lembro que eu mandei algumas coisas de forma esporádica, mas aprendia com o Cláudio Paiva. “Não, isso não ficou muito bom, faz mais por aqui, tarari, tarará. Por que você não pega aquela sua história e transforma, sabe?” Ele foi mestre nessa aproximação com a linguagem da TV. Em seguida veio TV Colosso, que foi uma criação do Ferré. O Ferré que é um cartunista e diretor de tv e de cinema do Rio Grande do Sul, ele vinha de um grupo de teatro chamado Cem Modos. Cem Modos com ‘c’, que era um teatro de bonecos. E ele vendeu para Globo a ideia de um programa com bonecos que iria substituir a Xuxa, o horário da Xuxa. Terminou sendo uma ideia com cachorros, até formatar numa televisão dirigida por cachorros demorou um pouco, a gente meio que já colaborou com isso porque o Ferré veio nos chamar, nós autores de quadrinhos, para também fornecer tiras e fazer roteiros para TV Colosso, que ia funcionar mais ou menos como a Xuxa funcionava, quer dizer, com cenas, uma dramaturgia mais ou menos rápida intercalada por desenhos. Ou com desenhos intercalados por uma dramaturgia rápida (risos). O fato é que a gente participou da criação de alguns personagens, nomes e de situações e passamos alguns anos fazendo roteiros para TV Colosso. Durante o início eu fui não só autor como redator final, o que foi quase enlouquecedor para mim. Isso acho que já era quase 1994, 1995, não sei. Eu ficava maluco, era uma coisa acima das minhas forças. E tava eu pirando e o programa sofrendo com isso, então, a solução de chamar o Mauro Wilson que fez a redação final a partir daí foi mágica, resolveu esse problema de fluxo de roteiros (risos) para o Rio de Janeiro. Mas o programa sempre foi muito feito da mão para a boca, assim, mesmo em termos de uma grande empresa como é a Globo. Eles nunca tiveram uma atitude de construir um estoque de programas, armazenar, sempre foi da mão para a boca assim, programa que ia ao ar tinha acabado de ser feito, sempre. E isso era muito angustiante, muito angustiante. O fato é que foi uma relação meio esquisita, um pouco tensa, porque não havia uma harmonia total entre a gente que fazia roteiro e a direção que era o Boninho. Então, foi acontecendo. O resultado final agradou a muita gente, a TV Colosso deixou saudades, muitas pessoas falam: “Ah, você fazia TV Colosso?” (risos). Eu vou dizer uma coisa, eu nunca assisti TV Colosso, eu vi uma ceninha ou outra. Nem TV Pirata. Nem Sai de Baixo (risos). Depois eu passei pro Sai de Baixo, escrevi roteiro pro Sai de Baixo, durante uma época eu ia pro Rio de Janeiro e participava lá da feitura, depois eu passei a fazer a minha parte em São Paulo mesmo, que era em geral construção de coisas que já estavam construídas no Rio de Janeiro. O núcleo do Rio de Janeiro construía o argumento básico, tudo, e depois distribuía os blocos pras pessoas, que eles chamavam de ‘baixar o bloco’, que era pegar aquele bloco, esqueleto de ação, assim: “Caco entra, Caco fala não sei o quê” e construir os diálogos mesmo, as piadas e tal e tudo. Então, eu passei alguns anos fazendo isso, baixando bloco. Até que eu pedi para sair, eu achei também que o ciclo tinha se cumprido. Não foram dez anos (risos).
P/1 – Você já foi diminuindo o ciclo.
R – Bom, e aí eu fiz mais algumas colaborações para o Vida ao Vivo, foi um programa que teve com o Pedro Cardoso e o... Zelinda!!!! Eu lembrei o nome da professora!!!
P/1 – Eu sabia que até o final ia conseguir!
R – Dona Zelinda!!! Agora eu to com o nome do... (risos). Luís Fernando Guimarães. Pronto. Vocês devem passar por essa experiência de velhinhos tentando lembrar aqui, né?
P/2 – Muito! (risos).
R – Como chamava isso? Dona Zelinda. Nossa, que alívio! Ela foi realmente a professora que eu mais gostei na vida. Então, Viva ao Vivo foi uma experiência meio freelancer, porque já tava acabando meu contrato com a Globo, aí acabou o contrato com a Globo, a Globo não renovou, eu também já tava em outra e tal, acabei não fazendo mais coisa para a televisão. Mas foi legal, foi um período que eu aprendi bastante assim. São linguagens diferentes, eu não sei, eu sintetizei isso na minha cabeça, que quadrinho é, formalmente, espaço e virtualmente, tempo. Quer dizer, o tempo é uma coisa virtual no quadrinho, não existe ali, é algo imaginário. Na televisão é o contrário, o que existe é o tempo, e o espaço é imaginário, porque basicamente você tá olhando uma superfície ali, e o espaço é todo criado na sua cabeça, então é uma inversão, e coloca também desafios pro roteirista do ponto de vista da dinâmica do humor, putz, humor, onde o tempo é tudo, o tempo é primordial, é completamente diferente dessa construção no papel onde você constrói o tempo abstratamente, que na televisão onde o tempo é a coisa real, é o elemento real, a ferramenta que você usa. E um pequeno erro já brrrr, vai tudo pro espaço. Depois em televisão entram outras variáveis também, que são performances pessoais. É um trabalho de equipe, que o quadrinho em geral não é, pelo menos não no Brasil. Eu sempre acabei encarando, eu e outros autores também... Quer que pare?
TROCA DE FITA
R – Eu tava falando de quadrinho e televisão, que quadrinho, essa é outra diferença básica, né? Quadrinho tem sido para mim e para um bom número de autores um trabalho solitário, uma coisa que você faz. Aliás essa era a raiz do encanto meu na infância era isso, que você podia fazer um filme sozinho (risos), escalar o ator, fazer o roteiro, tudo sozinho. Isso é encantador. E a tv não, a tv é necessariamente de equipe, você não consegue fazer tv sozinha, é um trabalho de equipe sempre, né? Então esses acertos todos... Trabalhar em equipe não é uma coisa fácil, fazer Los Três Amigos era ótimo e muito excitante também por causa de nós três, por causa da especificidade dos três ali, né? Tinha o Angeli que era assim, o Glauco que era assado e eu que sou assim. E a gente combinava mesmo, por isso que foi legal durante um tempo, pelo menos. Depois de um tempo o Glauco se afastou para cuidar lá do assunto da comunidade, da igreja que ele estava fundando, e também porque ele é bem disperso, a natureza dele é essa. E a gente ficou arrastando a produção de Los 3 Amigos basicamente eu e o Angeli, até que veio o Adão e deu uma reavivada no negócio, o Glauco voltou a participar, então, foi isso. Durou uns dez anos (risos). Não sei quanto tempo foi, talvez tenha sido dez anos (risos).
P/1 – E hoje, quais são seus projetos? Você continua lá na Folha?
R – Bom, um dos projetos, como todo cara que publica, assim, sueltos, em jornal e revista e não sei o quê, tem um projeto óbvio que é a coletânea, então eu tenho algumas coletâneas em vista, algumas ficaram prejudicadas por conta do roubo do computador, muito arquivo meu que tava prontinho para virar livro e que foi pro espaço, né? E agora eu preciso correr atrás e pegar cópia, quem tem cópia, será que tá numa definição boa? Então, tenho que me reorganizar nesse ponto. Mas dá para recuperar, boa parte dá para recuperar, sim. Agora, outro projeto tem a ver com isso, com essa conversa aqui, que é um projeto memorialista também. Desde do Laertevisão eu to numa senda memorialista. O Laertevisão foi legal porque eu descobri que eu e a televisão no Brasil somos mais ou menos parelhos. Eu tenho memória de ter televisão em casa desde que eu era bem pequeno mesmo, desde lá da Pamplona. Televisão foi uma coisa que meus pais sempre fizeram questão de ter em casa, e eu sempre adorei televisão (risos). Até hoje eu curto, de uma forma diferente porque a tv é diferente, mas entre muito da minha memória se articula com a memória da televisão. E eu fiz esse livro aos pouquinhos também, publicando aos sábados na Folha, e acabou tendo uma homogeneidade, um sentido editorial que eu aproveitei para fazer esse livro Laertevisão que acabou sendo editado pelo meu filho, Rafael, de forma brilhante também, com fotos. Então, foi uma coisa muito boa, que não é uma mera reunião de material, tem um sentido editorial ali. E o que eu to querendo construir agora é também uma coisa memorialista, mas que existe um pouco disto que eu fiz aqui nesse depoimento em torno de dois eixos que eu acho fundamentais na vida de qualquer pessoa, que é sexo e política. Ideias e fluidos. Eu tenho esse título provisório na cabeça (risos), que eu deixo aqui registrado (risos), é um apanhado da história de uma vida em torno dessas duas coisas que são formas de se relacionar com o outro, e os outros também, de um ponto de vista com o seu corpo, seu organismo, e também com suas ideias. E frequentemente essas duas áreas se visitam e se combinam também, né? Sexo e política, como eu to meio acostumado a constatar assim na minha vida e na de outras pessoas também. Enfim, esse é o projeto mais longo assim (risos), e eu tenho tido muita preguiça de pensar em trabalhos longos também. Como eu sempre fiz tiras e histórias pequenas assim, é um trabalho meio árduo para eu me meter a histórias que duram cinco, seis, sete páginas. Então, eu to indo aos poucos. Eu to terminando uma história para o meu filho, por exemplo, uma coleção que ele está fazendo, que tem vinte e quatro páginas. Passado essa história eu vou me dedicar a pensar num projeto maior que é essa historiona de Ideias e Fluidos.
P/2 – Seu filho trabalha com você então?
R – Meu filho é um grande quadrinista, o Rafael. Desenha muito bem, lançou um livro chamado Cachalote, acho que tá... E é um artista plástico também, então ele combina essas coisas de formas que eu acho muito produtivo para ele, uma coisa alimenta a outra. Ser artista plástico não significou abandonar os quadrinhos e nem vice-versa. E ele é um cara de iniciativa também, tá procurando criar uma empresa que se chama Narval, que tá me beneficiando também porque vende as minhas coisas (risos).
P/1 – Você tem um grande sonho? Seu maior sonho hoje, algum tipo, sonho pequeno, grande, algum sonho?
R – Não, não mais. O que é sonho?
P/1 – Um desejo, uma utopia...
R – Não. Não. Eu tenho uns planos assim, mas algo como isso que você tá falando, é uma ideia estranha, é uma ideia estranha para mim. Eu nem sei se eu já tive isso. Eu não posso dizer que uma sociedade justa e socialista tenha sido um sonho, era um princípio organizador teórico na minha cabeça, claro que eu gostaria (risos), mas não era algo concreto assim, nem visível. No tempo que eu tava no Partidão para mim era uma coisa para netos e bisnetos: “Eu vou fazer minha parte agora participando dessa geração e tal”. Botaremos a nossa pedrinha, o nosso ovinho nessa omelete. Mas em termos de sonho eu acho que eu nunca tive, não. Eu sempre fui meio navegante. Viagens que eu fiz, por exemplo, elas aconteceram meio que porque aconteceram, não foi assim: “Ah, eu tenho o sonho de conhecer a Europa”. Nunca tive. De fato acabei indo para Europa e achando muito legal a viagem, as duas ou três viagens que eu fiz, duas, mas não era um projetão. Nem nada (risos), nem ter filho, nem casar, nem nada. Acho que eu sou meio navegante (risos). Botar peito (risos). Não, eu gostaria que nascesse sozinho, a fada me acudisse assim (risos). Só se for sonho sonho, mesmo, literal, né? É uma coisa engraçada, eu nunca sonhei que eu era mulher, por exemplo. Mulher para valer, com genitália feminina. Ultimamente eu tenho sonhado com mais regularidade que eu estou vestida como tenho andado mesmo, dificilmente eu sonho que estou com roupa masculina, por exemplo. Algumas vezes isto é o motivo do sonho, quer dizer, existe alguma situação tensa ou não que se dá em torno de eu estar com vestido, saia, com não sei o quê. Mas dificilmente, eu acho que eu nunca sonhei que eu tinha virado mulher assim, por exemplo. Nem sei se eu quero (risos). Nesse sentido eu não me sinto transsexual porque a ideia que a gente fala de transsexual e conversa por aí é alguém que tá tão inconformado, em conflito tão profundo e basilar em relação ao sexo genital que precisa se ver livre disso, precisa transformar seu corpo. Eu conheço homens e mulheres transsexuais que fizeram esse caminho, com uma coragem absurda assim, mas não é o que eu sinto em mim, não. Eu acho que a minha condição é de transgênero mesmo, uma coisa de identidade de gênero. O que eu sinto vontade é de questionar a existência desses modelos assim. Como eu acho que eu posso descobrir uma forma de me expressar dentro do que é tido como repertório feminino, eu também acho que é possível o contrário, como é possível mesmo. As mulheres, desde o século XIX estão usando equipamento masculino à vontade, sem serem questionadas. Se no início elas foram chamadas de vagabunda, de sapatão e não sei o quê, hoje em dia é muito raro disso acontecer no cotidiano. Uma mulher pode sair por aí no estilo que ela quiser e não ter a sua feminilidade questionada. Um homem, se vestir uma saia, imediatamente é posto em dúvida. É [fogo] ser homem, nesse sentido a tal da revolução masculina que precisa acontecer, é se ver livre dessa coisa, não é passar a vestir roupa feminina só, é se ver livre dessa carga horrível, dessa prisão que acabou sendo ser homem. A feminilidade não precisa se provar a si mesma, ela se caracteriza mais pela liberdade do que pela necessidade de se provar, de se comprovar. Homens estão o tempo inteiro, desde meninos, ‘prova que é homem, prova que é homem’. Essa talvez seja o que caracteriza a tensão em cima da homossexualidade masculina, né? Porque o cara é questionado na masculinidade, você dar, tanto é que o homossexual que come, que penetra o outro, é muito menos tido como gay que o outro (risos). Essa confusão, confusão que as pessoas fazem porque estão atrapalhadas com essa questão de gênero. Para mim, a descoberta da questão de gênero tem sido uma coisa também muito reveladora das minhas relações com o mundo, de como as pessoas vêem as coisas. Por que esse choque? Por que o aparente estupor com determinadas coisas? E o que eu tenho descoberto é porque essa questão é muito mal explorada, é o tabu, é o tabu que falta vir abaixo talvez. Além de outros.
P/1 – O que você achou da experiência de dar esse depoimento aqui hoje, pro Museu da Pessoa?
R – Acabou, é? (risos).
P/1 – Não, podemos continuar. Tem mais, depois disso...
R – (risos) Eu sinto que acabou, eu sinto que fechou uma sessão, pode ser sessão única.
P/1 – Não precisa ser só uma.
R – Eu achei ótimo, como eu te disse, eu estou numa fase memorialista assim. E esse depoimento aqui combina, orna com o projeto de construir uma narrativa memorial também em torno de Ideias e Fluidos. Porque a memória, memória mesmo, assim, vocês devem ter tido essa experiência aqui também, uma pessoa que conta a história da sua vida não está contando a sua vida, tá contando a história da sua vida segundo ele, ele lembra, entende, vê e tudo isso, todo um filtro que a pessoa atual põe entre o seu passado. Porque o passado também só pode ser contado de forma múltipla, né? Teria que ter, para cada vida, um inferno de testemunhas assim (risos). Qual é o filme do Clouzot, é o Manon? Que conta um crime, pois é, até os mortos têm que vir dar o depoimento (risos). É mentira tudo isso que ele falou (risos). E é verdade que as vidas se submetem também a apreciações que são conflitantes. Eu não sei como meu pai se vê enquanto pai, mas o que os filhos vêem num pai não precisa necessariamente bater com isso. O fato é que eu me vejo como pai também dessa mesma forma. Às vezes eu fico pensando como eu sou visto, quer dizer, eu avalio assim. A primeira pessoa que eu vi avaliando em público, de forma crítica assim, o papel de pai foi o Mano Brown, o Mano Brown dos...
P/3 – Racionais.
R – Racionais. Esse cara, eu acho de uma verdade assim, de uma coragem...
P/1 – Cortante.
R – Putz, eu não me lembro nem qual programa era. E ele falou isso, a primeira pessoa que eu ouvi falar assim: “Eu não tenho sido um pai muito legal, muito ausente”. E nem tentou consertar, nem falar: “Não, mas seu gosto muito dos meus filhos” (risos). Não, ele foi assim limpo, uma coisa, putz, eu queria ser filho desse cara (risos). Enfim... Foi legal, foi um depoimento legal. Eu acho que eu tava com a guarda baixa, isso dá um bom resultado, dá um resultado melhor. E tem muita entrevista ou depoimento que a gente dá, cheio de questões assim, ‘não posso falar isso, não posso falar aquilo’. Bom, isso aí vai ser editado, espero (risos).
P/1 – É isso. Acho que surgem várias questões. Os estúdios ficam aqui abertos para gente olhar o material e aprofundar em algumas questões.
R – Por exemplo, essa conversa toda me fez lembrar de várias coisas de fotografia que eu tenho e gostaria de mostrar para vocês.
P/1 – Vamos marcar, a gente pode marcar uma tarde, se você puder vir aqui, quando você quiser, a gente deixa até agendado...
R – Eu não sei como que vocês editam esses depoimentos. É na forma de...
P/1 – Na verdade ele é guardado, para a internet...
R – Foto é uma coisa, depoimento é outra...
P/1 – Ele vai assim, quando vai para internet vai o depoimento integral, transcrito, e da sua entrevista é um trecho de um a três minutos. A gente vai editar um trecho. A Sônia decupou a entrevista...
R – Ah, ele vai transcrito o texto.
P/1 – Vai transcrito na íntegra. Esse depoimento agora vai para transcrição, e daí ela é revista, tem um editor que revisa, dá uma limpada no depoimento...
FINAL DA ENTREVISTA
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