P/1 – Geraldo, bom dia. Eu, primeiro, gostaria de agradecer da você ter aceitado o convite para essa entrevista. E pra gente começar, eu queria que a você falasse pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Bom dia. Meu nome é Geraldo Gomes Pinna. Nasci na Ilhabel...Continuar leitura
P/1 – Geraldo, bom dia. Eu, primeiro, gostaria de agradecer da você ter aceitado o convite para essa entrevista. E pra gente começar, eu queria que a você falasse pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Bom dia. Meu nome é Geraldo Gomes Pinna. Nasci na Ilhabela (SP), 31 de maio de 1956, exatamente na vila, no centro da cidade.
P/1 – E fala pra gente o nome dos seus pais.
R – Meu pai era Gil da Cunha Pinna e minha mãe, Maria Gomes Pinna.
P/1 – E os seus avôs?
R – Eram Manuel Pinna e Benedito Bernardo Pinna.
P/1 – E as avós?
R – Manuel da Costa Pinna e Maria Isabel Pinna.
P/1 – Bom, fala pra gente um pouquinho da origem da sua família, o que você sabe da história deles, assim, dos seus avós?
R – Bom, minha família de um lado, minha mãe era do lado africano, ascendência africana, como tem muitos na Ilhabela, né? Morou na Armação, família morou muito tempo lá na Armação, na Praia do Pinto, lá no norte da Ilhabela, mas meus pais já moravam no centro da cidade, meu pai é de família de espanhóis e habitavam muitos anos na Ilhabela, meu pai tradicionalmente é espanhol.
P/1 – E qual que era a atividade dos seus pais? O que eles faziam?
R – Meu pai, ele foi aposentado na Companhia Mogiana de Estrada de Ferro de Campinas, morou muito tempo em Campinas e veio pra cá. Meu pai, aqui, trabalhou muito tempo na prefeitura, foi secretário do prefeito e foi juiz de paz, também, na cidade muitos anos, foi o famoso casamenteiro aqui da Ilhabela, mais conhecido como seu Gico. Minha mãe era atividade do lar.
P/1 – E o que ele fazia na Companhia de Estrada de Ferro?
R – Papai trabalhava na seção de administração da Companhia Mogiana, setor administrativo, né? Aí de lá, ele veio pra cá, conheceu a minha mãe, se casaram, foram felizes até morrerem, tiveram oito filhos, dois já faleceram e continuamos aqui nossas atividades na Ilha.
P/1 – E conta pra gente assim, você sabe como seus pais se conheceram aqui? Eles contavam?
R – Papai e mamãe não contavam muito, não, mas papai se encantou com a mulata. Minha mãe era mulata, né, papai era meio branquelão e se encantou com a mulata. Mas não contavam muito assim… Antigamente, não falavam muito das paqueras, essas coisas, eles não falavam como hoje que é mais fácil falar, né, para os filhos, mas essa parte eles guardavam bem. Então, não falavam muito, não sei, pode ser que os outros irmãos devam saber, mas eu, particularmente, não… A gente nunca comentou sobre isso.
P/1 – E você participou de algum casamento que o seu pai tenha feito?
R – Sempre. Sempre porque era bem divertido, o pai fazia um casamento muito divertido, era bem tranquilo. Ele nasceu com aquele negócio, lá, ele era famoso na Ilhabela, ele até contava que quando o casamento não dava certo, o pessoal xingava: “Tá vendo? Foi aquele cabelo branco que me casou. Ele que é o culpado”, ele era bem divertido, o papai. Então era bacana assistir os casamentos dele. Fora isso, ele foi agente correspondente do instinto Diário Associados, né, que era o Diário de São Paulo, ele que fazia as reportagens da Ilhabela e mandava para São Paulo.
P/1 – Teve alguma história que ele escreveu que você se lembra? Que foi marcante, assim?
R – Foi uma moça que se suicidou no Hotel São Paulo e ela rasgou as fotos, não quis deixar pista nenhuma, né? E papai foi lá com a polícia e fez uma reportagem para o Diário de São Paulo, saiu, eles reconstituíram a foto e publicaram e ela foi achada a família dela após suicídio, foi achada a família em São Paulo através da reportagem dele. Esse foi um dos furos de reportagem do papai, que ele tem orgulho de contar, né, foi muito legal pra ele, a família ficou muito agradecida, né, foi bom pra ele.
P/1 – Tá certo. E você falou que você teve oito irmãos, né, em que lugar que você tá nessa escadinha?
R – Eu sou o de baixo pra cima, eu sou o terceiro.
P/1 – Conta pra gente como era essa casa de infância. O que você se lembra da casa?
R – Era uma bagunça, né, são seis homens e duas mulheres, né? Então, era uma farra como um todo, era um lugar muito gostoso de se morar, muita gente e sempre rodeado de amigos, porque a vila mesmo, todo mundo ia na casa de todo mundo e lá em casa, sempre, mamãe fez muita coisa pros amigos da gente, a gente tinha time de futebol, nadava e pescava, tudo foi muito bom a juventude na vila.
P/1 – A casa, então, ficava na vila mesmo?
R – Na vila. No centro da cidade.
P/1 –E como que ela era, descreve pra gente.
R – Era uma casa pequena. Não era uma casa grande pros oito, quer dizer, não era grande. Você tinha três quartos, sala, cozinha, banheiro e era uma casa praticamente pequena para a família que era grande, né? Mas aqui na Ilhabela, a nossa família era pequena, porque tinha família com mais gente, né? E era na vila. A
vantagem que você tinha antigamente de morar na vila era que você não dependia de carro, não dependia de nada, as atividades eram todas na cidade, né, então tudo que tinha na Ilhabela era na vila, era fácil você morar na vila, você tinha mais atividades, a gente levava vantagem sobre os outros porque morava na vila. Hoje não, hoje, Ilhabela tem condução para todos os lados, hospital era na vila, pronto-socorro era na vila, posto de saúde só tinha na vila, né? Hoje não, hoje os bairros são todos munidos de todas as coisas, então hoje não tem problema mais, mas a vila virou uma área de passeio. Hoje não tem mais residência na vila, tem pouca residência, mas antigamente, era uma área de residência, hoje é uma área praticamente comercial, a vila. Não tem mais residência igual a minha época.
P/1 – Você falou em três quartos, como é que fazia a divisão, assim, dos quartos, porque seis meninos…
R – Não tinha divisão, né, não tinha divisão igual hoje. Dormia homem, mulher, aí vai… Não tinha problema, não, normal, se respeitavam muito, né, não tinha problema. Começou crescer, foi cada um procurando o seu rumo e já estavam adultos, aí não convivemos mais juntos na mesma casa, né, mas a convivência com as irmãs foi fácil. Então, foi tranquilo.
P/1 – E quais eram as suas brincadeiras favoritas?
R – Nadar. Lá em casa, natação, futebol e a gente, os quatro irmãos, lá, os cinco irmãos, a gente jogou futebol bem jogado, jogava bem e nadava bem, porque a praia em frente, até hoje eu nado, faço competição, meu irmão também, foi campeão. E a gente continua nadando, mas a parte forte da família Pinna foi futebol e natação.
P/1 – Conta então do futebol. Você falou que tinha o time, que time que era esse?
R – A seleção da Ilhabela, na nossa época, eram quatro irmãos, eram nós quatro e só tinha um goleiro, que infelizmente, ele morreu, chamava João Molinário, que era um irmão nosso, também. Jogava no gol da seleção e [era] futebol de campo eram nós quatro mais o pessoal da Ilhabela. A gente representava a cidade jogando futebol também, fora a natação.
P/1 – E como é que era o uniforme? Onde que tinham os jogos?
R – Tinha um time chamado esporte Clube Ilhabela, eles pegavam os melhores da Ilha e levavam pra jogar lá, só tinha um time. Hoje tem 200, né? Na época, só tinha o que eu te falei, da Ilhabela, era tudo no centro da cidade, então, esse time da Ilhabela. Depois, começaram surgir o Perequê, Barreiro, Cruz de Malta que era na Armação, Portinho, Barra Velha, que era o Vasquinho, alguns outros times, mas no começo, era só o Esporte Clube Ilhabela e a gente jogava lá no Esporte Clube Ilhabela, primeiro quadro. Meu irmão, inclusive, foi para o Corinthians, tinha que ir para o Corinthians e jogou muito futebol, foi um dos melhores jogadores do litoral, foi o meu irmão que chamado Burga.
P/1 – E quando tinha jogo fora, como fazia pra ir?
R – Aí, ia de ônibus. Alugava ônibus, mas quando eram jogos aqui pelo litoral, você ia no caminhão que recolhia lixo na Ilhabela. O prefeito reservava o caminhão pra levar o time aí pra Boiçucanga (SP), São Sebastião (SP), Caraguá [Caraguatatuba] (SP), você ia de caminhão. Era divertido. Naquela época, podia andar em cima de caminhão, né, agora não. Agora, a prefeitura tem uma estrutura para levar os atletas para todos os lados, mudou, mas na época era difícil.
P/1 – E qual que era uma atividade do cotidiano familiar que tenha marcado? Vocês se encontravam, ou almoçavam… comiam junto… ou…
R – Aqui na Ilhabela, onde você encontra o pessoal que foi jovem, que foi
moleque junto de brincadeira é numa festa tradicional que é a Congada, né? É em maio, segundo ou terceiro domingo de maio, você encontra todo ano esse pessoal caiçara mesmo puro, que faz essa festa de São Benedito. Chama Congada na festa de São Benedito… Eu encontro uma vez por ano nessa Congada, então você tá lá, tenho um irmão, por exemplo, que mora no Ceará, ele vem pra essa festa. Tem um pessoal que mora em Santos (SP), eles vêm para essa festa, então todo mundo se encontra, é muito emocionante esse encontro da cidade, do norte ao sul de Ilhabela. Mas, familiarmente, a gente se encontrava quase todos os dias, né, dia das mães, dia dos pais, Natal, Réveillon, isso todo mundo se encontrava e a casa voltava a ficar cheia, agora com netos e bisnetos, e assim vai, né? Sempre foi assim.
P/1 – Conta um pouco mais então dessa Congada pra gente que é de fora, pra quem nunca viu… o quê que acontece nesses dias de festa?
R – A Congada é o seguinte, é a festa de São Benedito, né, realizada em maio na cidade.
PAUSA
R – A Congada
é uma festa tradicional da Ilhabela, só que os devotos de São Benedito são os dançarinos da Congada e eles, por exemplo, a mãe faz promessa para o filho para ser um vassalo de São Benedito, então o quê que significa isso? Ele vai fazer uma cirurgia, por exemplo, ou nasceu com um problema, a mãe faz uma promessa, se ele sarar, ele vai ser congueiro de São Benedito, esses chamam os devotos de São Benedito. Agora, atualmente, tem muita gente que não tem mais promessa, mas vai porque gosta da festa, né? Mas a maioria dos congueiros hoje, lá, inclusive de casa, tal, eles foram porque a mãe fez promessa e o filho que paga, porque recebeu a intervenção de São Benedito. Então, a Congada é tradicional n Ilhabela, no Brasil, né? Tem uma marimba que é feita aqui na Ilhabela, né, então é falado, é um teatro aquilo. É a única Congada falada do país, na história, no enredo, então é muito bonita. É uma história bonita da Ilhabela, culturalmente, é bonito demais.
P/1 – Você participa ou dança?
R – Participo desde que eu lembro, desde os sete anos, né? Participo desde os sete anos. A minha família inteira participava, papai, mamãe, todos os meus irmãos, meu sobrinho, todos participam. Todos participam, a Congada vai durar bastante.
P/1 – E foi alguma promessa que fez com que você…?
R – Lá em casa, foram promessas. Promessas de algumas cirurgias que foram feitas e a mamãe era devota do São Benedito, então, ela pegava na mão do São Benedito e o filho continua pegando, eu também sou apegado a São Benedito, todos nós que participamos, o nosso santo é São Benedito, né?
P/1 – E qual que é a emoção de participar de uma festa como essa?
R – Ah, é uma coisa que não dá nem pra falar, sabe? Porque é muito emocionante você ficar numa festa onde você encontra todos os seus amigos de infância, né, hoje de 60 a 80… Tem gente de 80 anos e você encontra uma vez por ano e parece que Ilhabela não tem comando mais de prefeito, de vereadores, comando vira a Congada de São Benedito, né, é onde tem inclusive uma frase que diz – deixa eu ver se eu lembro – que a Congada é uma guerra, uma guerra do povo não deixando morrer a Congada, não morrer a tradição, né? Então, é muito bacana, é emocionante, porque você é devoto de um santo. Devoto de um santo e você fica emocionado. Eu falando agora, eu tô emocionado. É muito legal.
P/1 – E qual que é a sua participação? O quê que você faz no grupo?
R – Eu
e os meus irmãos, a gente toca. Nós somos tocadores da Congada, então tenho um irmão que toca marimba, que é o Gilmar, eu toco atabaque, tenho um sobrinho chamado Luiz que já tá tocando atabaque e os outros que já estão gostando, a gente vai ensinando pra não deixar morrer, porque tocar é meio complicado, né, então você tem que ir ensinando os mais novos, como eu aprendi com o seu Dadico, que era um dos maiores atabaquistas aqui da Ilhabela, ele que me ensinou a tocar, ensinou eu e o meu irmão que já faleceu, que era o Burga e a gente tocou se espelhando nele, né, ele tinha orgulho de ver a gente tocar. Ele é falecido também, mas a família, inclusive, hoje vai lá participam da Congada, família lá do norte, eles vão lá pra ver a gente tocar, porque eles lembram do pai deles, né? Ainda existe coisa assim, então, eles vão ver a gente tocar.
P/1 – E onde que vocês aprendiam? Como é que era estar do lado do seu Dadico aprendendo a batida, o ritmo?
R – Antigamente, a Congada tinha ensaio, né, os ensaios eram feitos no Portinho, no Saco da Capela, na vila, no Saco do Indaiá, então você participava daquilo e você ficava olhando os mais velhos chamavam: “Olha, vem aqui pra você aprender, porque eu vou morrer e vai ter que alguém ficar no lugar”. E assim é feita a Congada, né, cada um tem a sua… por exemplo, tem o embaixador, o rei, o cacique, o príncipe. Então, hoje se morrer o embaixador… O embaixador, hoje, é meu sobrinho, então morreu o rei, o embaixador passou para rei. Então, vai passando. Todos aprendem as atividades lá e o tocador também tem que aprender, porque é meio complicado tocar, porque são toques afro, né, chama bantu, então tem uns toques diferentes, não é nada do que você já viu. Aqueles toques você só vai ver lá na marimba e atabaque, né? Então, fala marimba e você acha que é aquela marimba de fanfarra, não, é uma marimba de cabaça de madeira que só existe na Ilhabela, entendeu? Então são coisas difíceis e você tem que aprender desde moleque, aí você fica afinado.
P/1 – E qual que é a batida assim?
R – A batida é bantu, é uma batida africana.
P/1 – Mas você não consegue fazer assim um pouquinho só para eu…?
R – É difícil, na mesa é difícil [batida na mesa], essa é um princípio dela, né, mas tem outros toques que você dá, mas tem que ter o acompanhamento da marimba, né?
P/1 – Claro. Todos juntos.
R – Fica tudo casado, direitinho, mas é um toque africano, né? Inclusive, tem algumas palavras em africano. Isso foram os portugueses que trouxeram para o Brasil, muitos anos atrás, então tá aí. Até hoje, a nossa família… Tem várias famílias que tomam conta da Congada, né? Eu, por exemplo, tem uma associação de congueiros, eu faço parte, meu sobrinho faz parte. Nosso rei é o Dino faz parte, Marcos Cardeal é outro amigo da gente, meu irmão Gilmar. Meu irmão Gilmar é embaixador da cultura na Ilhabela. A gente tá sempre por cima da Congada, aí. Nós temos um grupo que hoje dá pra falar que nós temos um grupo no whatsapp hoje, né, Congada no whatsapp, hoje tem. Então, tá mais moderno, tem que modernizar, né, não tem saída. A gente se comunica bem, hoje tá mais fácil, tudo é mais fácil, mas antigamente era bem difícil, né? Mas hoje tem a participação, tem Congada mirim, então pessoal não vai deixar morrer, não, é uma tradição que pra mim, é uma das melhores coisas que existem na Ilhabela, é a Congada.
P/1 – E qual que é a roupa dos músicos? Vai todo mundo igual?
R – Quem toca tem uma camisa que é feita pela Congada, você vai com uma camisa branca escrito Associação dos Congueiros da Ilhabela, mas o congueiro em si, ele tem o uniforme dele, a farda dele, tem uma farda, né? Eles são guerreiros, tem uma farda do embaixador, vermelha e branca e no rei, branca e azul. Então, para você distinguir, é uma guerra entre cristãos e mouros, né? É a revolta do filho querendo tomar o trono, como existe hoje, aí. Todo mundo tá vendo. É mouros contra cristãos. Esse é o lema da Congada.
P/1 – Aí, eu queria voltar para a sua infância que era onde a gente tava antes de falar dessa festa tradicional. Eu queria que você falasse como é que eram as ruas da vila da sua infância, como é que era a relação da ilha com o continente, né, o meio de transporte, como que fazia…
R – A
vila era tudo chão batido que a gente chamava, né? Não tinha calçamento, não tinha nada, era poeira no verão e lama no inverno. Era bonito e tal, mas era ruim pras crianças porque fazia mal pra saúde, né, poeira e lama nunca fazem bem pra ninguém. E no centro da cidade, você brincava de pique, tinha muito… A maioria… Tinha um ou dois comércios, o resto era residência. Hoje não, hoje não tem mais residência na vila, muito pouca que tem. Agora é uma área estritamente comercial, né? Na vila, a rua do meio não existia, hoje é fechada a rua, é um calçadão, na época não existia, era a rua do barbeiro, né? Outra rua lá, a rua da padaria, tinha uns comércios lá, o calçado hoje que tá cheio de comércio, o outro lado já tem shopping, lado de cá tem outro shopping, ali era tudo residência, não tinha shopping, no tinha nada, era um hotel lá na época, um hotel pequeno, Hotel São Paulo, e na rua do meio só tinha um comércio que era o barbeiro, depois tinha uma sorveteria, agora não, agora tudo é comércio, o barbeiro morava ali, o dono da padaria morava do lado, seu Julião morava do outro que era o corretor da cidade. A vila se resumia nisso, residências. Hoje não, você vai na vila hoje, você não encontra residências, mais.
P/1 – E para ir para Santos (SP), como que fazia?
R – Antigamente , tinha um barco chamado Valência, tinham outros barcos, mas você ia para Santos nesse barco. Eles vinham pra cá buscar banana pra levar para Santos. Para ir para Santos, para ir para São Paulo, né, você fazia baldeação, você ia para Santos nesse barco, demorava seis, sete horas de viagem, criançada passando mal pra burro, mar, moleque e você tinha que ir para Santos. De Santos, você ia para São Paulo. Meu pai, normalmente, levava a gente uma vez por ano para São Paulo, para dar uma poluída e voltar, né? A gente ficava lá um pouco, a gente gostava muito de São Paulo, papai tinha as coisas dele e a gente uma vez por ano ia para São Paulo. Nas férias de julho, papai levava a gente, a gente ia de barco, aí no batelão que vinha trazer banana pra cá. Era complicado, né, não tinha estrada na época, né? Agora, não, agora em duas horas você tá em São Paulo.
P/1 – E pra atravessar para São Sebastião?
R – Não tinha balsa. Era
de canoa, de baleeira, né, que chamava ou canoa de voga, com um remo atrás, você rema. Só assim. Depois que veio a balsa, balsa de oito carros e você ia muito pouco para São Sebastião, a dependência de São Sebastião com Ilhabela era muito pouco. Não tinha muito comércio, você hoje que tem, mas Ilhabela já tinha banana, feijão, arroz, tinha tudo aqui, plantação de tudo. Antigamente, na Ilhabela, você entrava numa casa, você tinha um pilão pra fazer a sua pamonha, fazer o seu café. Hoje, pilão virou um objeto de decoração, né, não tem mais pilão, você pode entrar em qualquer casa na Ilhabela, você vai entrar nas mansões, aí, tem quatro, cinco pilões lá, mas é de decoração. Ilhabela tinha um pilão, o cara tava lá fazendo o café, Ilhabela se autossustentava, antigamente, em matéria de comida. Então não dependia muito do continente, não. Tinha as barganhas que eles faziam do litoral, que era Ubatuba (SP), São Sebastião e Ilhabela, se encontravam com os tropeiros onde é Caraguá. Se encontravam lá naquela cidade, não tinha cidade, aí trocavam carne seca com peixe seco e aí, fazia farinha, comprava-se essas coisas lá a base de troca, as coisas que tinham aqui na Ilhabela. Aí que foi fundada a cidade de Caraguá. Caraguá é uma cidade nova, não tem tradição nenhuma, não tem passado, quiçá futuro, não sei, né? Foi assim que foi fundada Caraguá, por causa da troca que se faziam de Ubatuba, São Sebastião e Ilhabela. Aí fundaram Caraguá, foram os tropeiros que fundaram lá.
P/1 – E conta da sua infância, da escola, né, como é que era essa escola na meninice?
R – A escola pra gente foi muito fácil fazer porque você acordava, entrava às sete, você acordava cinco para às sete, já tava com o pé na escola, era do lado da minha casa, né? Então, foi fácil fazer escola aqui. Ginásio já foi complicado, porque, na época, era grupo escolar, se formava no grupo, depois você ia para o ginásio, se formava no ginásio, depois você ia para admissão, antes da escola, você fazia um ano de admissão, aí depois você ia para o ginásio, né, depois do ginásio, colegial. Antigamente, era o colegial, normal, você fazia o científico, né, mas na época, não tinha ginásio na Ilhabela, a gente se formava na vila, colégio era na vila. Tinham alguns colégios aí, mas Perequê tinha poucas salas de aula, até segundo ano, depois tinham que ir lá para a vila estudar e se formava lá, depois tinha que atravessar de lanchinha. Tinha uma lancha pra você ir para o outro lado para você ir estudar lá o ginásio. Depois que veio o ginásio. Eu e a minha família, a gente fez ginásio em São Sebastião. Teve irmãos meus que se formaram lá, depois eu comecei a estudar lá, depois fiz primeiro e segundo ginasial lá, depois completei aqui. Aí, no começo, você tinha que ir para são Sebastião que não tinha ginásio aqui na Ilhabela, na minha infância, não tinha. Era só grupo escolar. Agora não, agora tem todos os cursos, mas na época, não tinha. Era só grupo escolar.
P/1 – E o quê que você se lembra dessa escola, assim, como é que era estudar aqui do lado de casa? O quê que ficou marcante, assim, desse tempo?
R – Atividade programada que você tinha, né? Não tinha nada programado na infância sua aqui na Ilhabela, não tinha nada para fazer, não tinha atividade extraescolar, você não tinha. Tua atividade programada era escola, acordar cedo, ir para escola, depois, chegar, almoçar e ir para a ponte, lá para o píer para tomar banho de mar, brincar de pique, o pique nosso era no mar, você nadava um atrás do outro, peguei. É o pique no mar, não era na terra.
Você fala em pique hoje, as pessoas não sabem o que é, é difícil até falar, mas brincadeira de pique. E é isso que tinha as atividades, na escola, tinham algumas atividades, futebol, educação física que tinha antigamente, mas eram poucos alunos também, não tinha muito aluno na vila na minha época, né? E eram poucos habitantes, né, não tinha muitos habitantes, Ilhabela… Quer dizer, Ilhabela chegou a ter 45, 50 mil habitantes na época da pesca, na época da agricultura, né? Depois foi todo mundo pra Santos, montaram um bairro em Santos chamado Santa Rosa, que eles falam que é Guarujá (SP), né, mas é Santa Rosa, é um bairro de periferia, lá, se você for lá hoje, por exemplo, aí tinha que jogar futebol lá, Ilhabela contra o time de Santa Rosa, 80% da torcida era nossa, porque era todo mundo aqui que estava morando lá. E depois, Ilhabela diminuiu por isso, né, acabou a atividade de pesca… Acabou, não, diminuiu, né? Aí, os pescadores mudaram pra lá porque tava melhor, o progresso estava melhor lá na época, né? Então, Ilhabela diminuiu o número de habitantes. Então, eram poucas pessoas na minha época de juventude, eram seis mil habitantes, muito pouco pra Ilhabela inteira, né? Hoje, nós temos uma base de 30 mil, quase, habitantes. Na época, tinham seis mil. Vila, vila, mas eram poucas atividades, não tinha… Ilhabela dependia muito culturalmente, dependia muito de shows, essas coisas eram do outro lado de São Sebastião e existia uma rixa São Sebastião, Ilhabela, como existe até hoje, né, é meio enrustido, mas ainda existe, né? Hoje é ao contrário, né, São Sebastião que vem pra cá, né? Porque o prefeito modernizou Ilhabela, [Antonio] Colucci foi um excelente prefeito e modernizou, adiantou Ilhabela 100 anos, o prefeito. Hoje, o orgulho nosso é ver o povo de São Sebastião atravessando a balsa pra cá, que era o que a gente fazia antigamente que era ir para lá e eles não gostavam disso. Hoje não, a gente recebe de braços abertos e tudo bem, não tem problema. Então, é assim.
P/1 – E o quê que aconteceu com o senhor quando acabou a escola, né, então se formou e aí?
R – É, meus irmãos, alguns foram para São Paulo, porque a atividade aqui era pouca, ou você trabalhava na prefeitura, ou tinha que fazer outra coisa, né? Então, teve alguns irmãos que foram para São Paulo, eu fui fazer curso em São Paulo, minhas irmãs, teve duas que foram para Espanha, moraram na Espanha e assim foi. Cada um procurou seu rumo, aí foram casando, né, e estamos aí. A família, agora, estamos todos na Ilhabela de volta, todos estão aqui, só tem um que trabalha em São Paulo, porque a atividade dele é escultura e ele tem que ficar lá em São Paulo. Tem um que tá no Ceará, que é o mais velho de todos, foi pra lá porque cismou, casou com uma cearense e foi para o Ceará, né? E os outros estão todos aqui, nós estamos todos aqui… Nossas atividades são aqui.
P/1 – Eu queria que você falasse, então, do seu primeiro emprego, como foi entrar no mundo do trabalho…
R – Eu comecei aos oito anos, eu comecei a trabalhar na Santa Casa de Ilhabela, era o único hospital da cidade, né? E trabalhei lá muitos anos, quase 30 anos, quase me aposentei lá e foi uma época boa, eu vi a saúde do município crescer, né? Quando eu entrei, nem médico tinha, você que tinha que resolver tudo. Eu que tinha que resolver tudo, era o único enfermeiro da cidade. Então, eu tinha que resolver tudo que acontecia, né, não só socorrendo um aqui, ou ali. Na temporada, as pessoas se cortavam, você tinha que suturar as pessoas, era eu que fazia toda essa parte que era o médico que tinha que ter na cidade, não tinha. Na época, em [19]73 não tinha médico na cidade e aí, fazia o ambulatório e ia embora, entendeu? Aí, sobrava pra gente que era daqui, eu morava aqui, do lado do hospital, então alguém se cortava, já me chamava, eu ia lá, suturava, eu passei uns 15 anos fazendo isso, a minha vida inteira foi dentro do hospital, hospital da Ilha, por isso que os mais novos que, às vezes: “Você me costurou”, e a minha atividade foi essa, em hospital. E hoje eu tô aposentado, mas eu desenvolvo a atividade de eletroencefalograma, mas uma vez por semana, só. Eu trabalho uma vez por semana, mas não porque eu não quero trabalhar, é porque a minha atividade, hoje, você em um dia, você faz o que tem que fazer em cinco e você fica livre, no resto da semana para dar entrevista… (risos)
P/1 – Mas antes disso, então, eu queria saber assim, o que te levou para essa profissão, né, para estudar isso, para começar a trabalhar com pessoas na saúde, como enfermeiro?
R – O que me levou a isso foi que eu fiz o curso de enfermagem, aí quando montou o hospital, me chamaram para trabalhar lá e aí, eu comecei a trabalhar com um cirurgião plástico de São Paulo que era meu amigo, ficou amigo porque trabalhava na SUDELP [Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista], chamava-se doutor Batuíra, aí ele me ensinou, ele como cirurgião plástico, me ensinou a costurar, me ensinou a fazer uma série de pequenas cirurgias
e foi me ensinando no dia a dia: “Assim, assim, assim…”, me ensinou ali um ano. Aí foi onde eu peguei a minha habilidade, né, um cirurgião plástico te ensinando, você vai aprender, quer dizer, nunca fiz curo de Medicina, mas o curso que eu fiz com ele valeu por muitos anos… Aí, eu desenvolvi, com outros médicos que foram vindo depois e fui trabalhando no hospital e fui gostando da coisa. Ele gostou de mim e eu gostei do que ele fazia e fui me apaixonando por aquilo e até hoje… Agora não, não faço mais, mas se for no pronto-socorro, eu desenvolvo ainda.
P/1 – Mas por que enfermagem, né?
R – Porque no colégio, antigamente, na vila, fazia vários cursos: guia turístico, garçom, barmen, Marinha e enfermagem. Eu fiz quase todos, né, depois enfermagem era mais demorado e fora esses outros cursos de Marinha, todos eu fiz, porque quem tava no ginásio fazia, você só não fazia se você não quisesse, né? Mas eu fiz todos os cursos e fui fazer enfermagem. Aí, comecei a gostar quando fui fazer o curso. Como gostei dos outros também, mas nunca me aprofundei nos outros, na enfermagem me aprofundei e me aposentei como enfermeiro.
P/1 – E fala pra gente, você falou das suas brincadeiras de criança e tal, conta quais eram os passeios ou o que você gostava de fazer já na juventude, mais moço…
R – Aqui, você ia passear muito. Como
eu falei pra você, a gente saía muito para ir para São Sebastião, Caraguá, porque atividade para ir para fora era meio complicado, né, meio difícil você ir para São Paulo, ir passar o dia nos outros lugares, então São Sebastião era o lugar mais perto que você podia ir lá, passar o dia e voltar pra Ilhabela, né? Então atividade maior era São Sebastião que você ia, né? Futebol, natação, tudo São Sebastião. São Sebastião era como se fosse uma capital da Ilhabela antigamente, tudo era lá. Você precisava do INPS [Instituto Nacional de Previdência Social], era São Sebastião, Banco do Brasil era São Sebastião, Caixa Econômica Estadual era só em São Sebastião. Supermercado, São Sebastião, tudo era São Sebastião na Ilhabela e passear, e namorar, você ia pra lá, porque cinema era só lá que tinha. Ilhabela teve um cinema, depois fechou não sei porque fechou o cinema, depois fez um clube, aí você tinha as atividades de clube aqui, aí tinha futebol, tinha baile todo final de semana, aí começou a melhorar, já. Na minha juventude, já teve mais atividades, né, mas na minha infância, não tinha nada, não tinha nada. Meus antepassados devem ter sofrido, não tinha nem luz, né? Não tinha luz na rua, era difícil para as meninas saírem, porque as ruas eram escuras, não tinha luz. Tinha luz nas casas e, às vezes, apagava, né? Era uma usina que tinha ali na vila e os postes da vila, uma certa hora da noite, o cara chegava lá e apagava o poste depois de um tempo, quando veio a luz pra cidade, só tinha na vila. Mas era meio complicado sair de casa, fazer festa, não que iam agarrar ou roubar, é que andar no escuro, ninguém gosta, né? Ilhabela era escura, não tinha luz, Ilhabela tem alguns bairros do município que foi ter luz em [19]73, pouco tempo, né? Se você for ver, lá no sul da Ilhabela, no norte... A vila sempre foi a privilegiada, que as primeiras coisas eram lá, calçamento, iluminação, água encanada, mas nos outros bairros era complicado, era bem complicado. Aí veio calçamento, embora muitas organizações – entre aspas – que vêm para a Ilhabela não querem o progresso, como continuam não querendo hoje, não queriam o calçamento porque achavam que ia tirar a beleza da cidade, mas vinham aqui, passavam três dias por ano e não cheiravam poeira o ano todo, não andavam na lama o ano todo, então é fácil você vim para uma cidade, ficar três dias e fazer crítica ao progresso, né? Porque o progresso, não adianta, vem. O cara monta uma ONG [Organização não Governamental] aqui na Ilhabela, ele não quer que você vá pescar porque vai acabar com o peixe, não quer que tire uma árvore para fazer uma canoa do pescador artesanal, isso são as ONGs que vêm pra cá, ONG que eles falam que são protetores do meio ambiente. Nós, na Ilhabela, chamamos diferente, protetor do “meu” ambiente eles são, eles falam meio ambiente. não é. Eles falam meu ambiente, então eles querem ficar comendo lagosta lá na Avenida Paulista e vim aqui falar que não pode caçar lagosta, esses são os turistas que vêm para a Ilhabela, esse é o turismo que eles querem ter na Ilhabela, é criticar as ONGs. Hoje mesmo tem uma ONG aqui na Ilhabela que tá atravancando tudo que o prefeito tá fazendo aqui, entendeu? É terrível. Tem vereador na cidade que não quer que faça isso, não quer que faça aquilo, então, quer dizer, é difícil você ter um progresso desse jeito, sabe? Eu fui vereador da cidade, então, uma série de coisas que não dá pra fazer porque o cara vai pra justiça, o outro vai não sei pra onde e fica enterrando a máquina administrativa, né? Lógico que o turista que vem pra cá, 98% do turismo é excelente, mas o turista que acha que comprou uma casa e já vira dono da cidade, porque nem sabe a atividade do caiçara, esse é o turismo que eu sou completamente contrário, entendeu, é o turismo que prejudica o cidadão que nasceu aqui. Você já pensou se não tivesse água, luz na Ilhabela hoje? Como é que seria? Não tivesse balsa? É isso que eles queriam. Então é difícil. Lógico que eu acho que tem que ter um turismo sustentável, tem que ter, em Ilhabela não pode ter devastação; nisso, o caiçara é um ecologista por natureza, ele não polui, ele não devasta, tanto é que Ilhabela tem 89 [%] de mata atlântica preservada, um dos maiores do país. Então, o turista devia respeitar mais. Turista, não, o protetor do meu ambiente, não é meio, é “meu”. Ele devia olhar mais as atividades do caiçara, e eu me incluo, e ver, respeitar as atividades. Por exemplo, quando o Governo Federal faz uma lei de meio ambiente, ele devia fazer e deixar um adendo na lei para os municípios fazerem o seu plano diretor e ali, a lei menor não inferir a maior, que não pode, não posso fazer uma lei para proteger o meio ambiente aqui se tem uma lei federal, né? Quando é feita uma lei sobre devastação da Amazônia atinge Ilhabela. Aqui ninguém anda derrubando árvores como derrubam na Amazônia, então a lei devia ser específica para cada Estado, como tem o defeso do camarão. Às vezes, o defeso do camarão em Santa Catarina devia ser num tempo, da Ilhabela ser num outro e assim, vai, né? Mas o governo enxerga no bojo total e, aí, é meio complicado para os lugares pequenos, como a nossa Ilhabela, né? É isso que eu vejo, meu ponto de vista.
P/1 – O que te levou então para o cargo político? O quê que te motivou a ser vereador?
R – Na época, eu fui vereador em [19]89, né? O caiçara em si, ele quer proteger a sua terra, eu vejo, por exemplo, se me convidarem para ser vereador em São Paulo, nunca, porque o povo lá vai me chamar a atenção, porque eu não tenho afinidade com São Paulo, minha afinidade é com Ilhabela. Então, pra mim, foi muito orgulho ser candidato quando me chamaram para ser candidato. Eu fui o segundo do meu partido e foi um orgulho ser vereador da cidade, participar das atividades, na época, a gente era oposição, mas era uma oposição sadia, tudo que era bom para Ilhabela foi feito, nunca prejudicamos a cidade em nada, graças a Deus, foi um orgulho. Eu acho que o maior orgulho de um cidadão é representar o seu povo na câmara, eu acho que eu, por exemplo, sou homem do legislativo, eu não gosto do Executivo, o Executivo é um só, Legislativo lá você tem nove pessoas. Hoje são nove, na minha época eram 13 e você representa a sua comunidade, você discute sobre a sua comunidade, sobre as leis que vão ser boas para a cidade. O vereador, em lugar pequeno, ele não legisla muito, ele é mais um assistente social e isso você tem que desempenhar bem, ele socorre um aqui, socorre um ali, que não é o certo. O vereador tem que legislar, tem que fazer leis, tem que fiscalizar o Executivo. Mas hoje, os munícipios pequenos, eles são assim, o vereador é presente na sociedade porque a primeira pessoa que o município procura é o vereador, ele não vai no prefeito, ele vai no vereador. Então, é bacana isso, você proteger o seu munícipe, é um orgulho, eu fiquei muito feliz. Pra mim, foi um orgulho representar a minha cidade como vereador.
P/1 – E Geraldo, eu queria que você contasse alguma história do hospital, assim, qual foi um atendimento que foi marcante ou de repente, um parto, não sei, alguma história assim.
R – Teve vários, eu fiz muito parto, isso é muito difícil até de citar alguns, mas o mais marcante da Ilhabela, na minha época, foi a morte do Fleury, o Sérgio Paranhos Fleury, lá, aquele delegado do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna] que era um torturador, ele morreu aqui na Ilhabela. Nesse dia, eu não tava de plantão, mas a enfermeira que tinha começado no plantão noturno, ela pediu socorro pra mim. ela não sabia onde tinha nada lá no hospital e eu fui lá esperar mas ele já chegou morto lá na Santa Casa e foi um “rebu” [rebuliço] na cidade danado, era véspera de feriado, primeiro de maio, né, parou a [Rodovia dos] Tamoios ficou parada, foi um “auê” no país inteiro, porque ele era conhecidíssimo, ele ia pra cadeia. O cidadão ia ser preso, ele só saiu por causa da Lei Fleury [Lei 1.941], ele esteve na cadeia e ele era do DOI-Codi, então… Marcou muito a cidade de Ilhabela, isso aí marcou muito. Reportagem na época, a revista do momento chamava “O Cruzeiro” e saiu no “O Cruzeiro” e na televisão, foi tudo ao vivo, né, entrevista nossa na cidade, foi um “quipropó” danado. Na época, era meio complicado você falar as coisas, né, que ele era um torturador, você não podia falar na época, né? Eu falei lá, me escutaram? Mas na época era complicado você até dar entrevista, você tinha que estar medindo as palavras, porque dependendo do que você falasse, você sumia. Então, foi meio complicado. Essa foi uma passagem que eu lembro até hoje e nunca mais esqueci, as pessoas que estavam comigo não esqueceram, porque pra gente que trabalhava na área de saúde, foi complicado… Chegavam com o pé no seu pescoço, mesmo, e quem passou por aquilo sabe o que eu estou falando, entendeu? Mas passou, passou… Aí, o resto foi só coisa boa, só socorro à população, mesmo, muito adulto hoje com 20, 30 anos me cumprimenta, a mãe fala: “Ele que fez seu parto”, isso daí é uma felicidade para qualquer cidadão, né? Muitos que eu encontro na rua, o pai fala, o menino não sabe, né, mas o pai e a mãe falam, pra gente é um orgulho siso, né, você morar num lugar pequeno e ser reconhecido por uma coisa boa que você fez, né? É bom.
P/1 – E Geraldo, fala pra gente da sua esposa, né, como é que você a conheceu, qual que é essa sua história pessoal?
R – Minha esposa, eu a conheci no samba. Eu sou sambista, também, na época, eu tocava num conjunto aqui na Ilhabela, tinha uma barraca chamada Recanto do Samba e a gente se reunia ali, tinha um outro bar chamado Veleiro e eu a conheci aqui, ela era de São Sebastião, morava em São Sebastião e fazia faculdade em Taubaté. Ela fazia faculdade lá e eu trabalhava na Santa Casa. A gente se conheceu, ficamos namorando bastante tempo, depois casamos, tivemos quatro filhos maravilhosos, mas ela faleceu agora em setembro do ano passado, deixou aí… Me deixou com quatro filhos maravilhosos e tá bem. Ela foi maravilhosa, uma mulher excelente.
P/1 – Qual o nome dela?
R – Vera Rita Monteiro Pinna, era uma família tradicional de São Sebastião, também, família Monteiro, né, mas é assim a vida… me deixou quatro filhos maravilhosos, netos e estamos aí sobrevivendo.
P/1 – Fala então agora dos sus filhos, quem são…
R – Meus filhos são todos formados… Meu filho mais velho é dentista, inclusive, aqui na ilha, é dentista das comunidades isoladas, atende no Bonete. A minha filha dá aula em São José dos Campos, meus filhos têm atividade em São José dos Campos, tenho um que tem atividade no México, ele trabalha na Odebrecht. Agora, tá meio parado, né, porque esse problema aí da [operação] Lava Jato deu uma parada nas obras da Odebrecht, né? Mas estão todos bem, todos casados, formados. Minha filha tá aqui em casa hoje, vieram me socorrer aí por causa da cirurgia, né, então a gente vive assim, eles vêm sempre pra cá, adoram a Ilhabela e a gente vai caminhando, né?
PAUSA
P/1 – Eu queria, então agora, que você falasse pra gente da sua relação com a Ilhabela, né, você conhece a Ilha toda?
R – Conheço
a Ilhabela de norte a sul, entrei pelo norte, sai pelo sul, né, porque na época, eu dei sorte, eu fiz um curso de Marinha, né, e você fazia essas viagens em volta da Ilha, eu conheci inteira e fazia atividade de levar médicos e dentistas para trás da Ilha, que a gente chama, né, as comunidades isoladas que era Búzios, Vitoria, Bonete, Castelhanos, Sombrio, todos os lugares a gente ia uma vez por mês e eu acompanhava os médicos nesse sentido, porque todos lá atrás da Ilha me conheciam bem, então eles não tinham problema… Lá, atrás da ilha, eles não gostavam muito de médicos, não gostavam de dentista, então eu ia lá e conversava com eles, aí eles vinham, ficavam mais amigados com os médicos e eu dava alguma orientação para os médicos em matéria de como dar o remédio para eles, né, porque normalmente para tratar uma verminose, antigamente, tinha um remédio só chamado Piperacina, era um tubo assim, teve um médico que foi lá e levou os remédios todos e deu para todo mundo e veio embora e tal. Aí quando eu volteio lá, eles falaram: “Geraldo, não traz mais esse médico pra cá” “Por quê?” “Porque ele não presta, ele deu remédio igual pra todo mundo”, eu falei: “Não, o remédio é…”, aí eu tive que mudar a forma… chegar no hospital, tirar todos os vidros de remédio, mudar todos os vidros e colocar sem rotulo e falei para o médico: “Dá assim, senão eles não vão tomar, remédio igual pra todo mundo não serve”, e era assim, antigamente, uma comunidade isolada, lá. Então, eu orientava os médicos nesse sentido e falava pra eles: “Vai acontecer isso, a dentista vai examinar vocês, não dói, não tem…”, tinha que falar, porque não tinha esse alcance de médico e dentista atrás da Ilha, né? E eu fazia… os médicos da SUDELP, SUDELP antigamente era Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista, eles faziam estrada, traziam médicos, traziam dentista, a SUDELP que fazia essa sustentação, né, porque os municípios, o orçamento era muito pouco, não tinha nada, não dava… Pra saúde era o mínimo, saúde não tinha hospital na Ilhabela, quando eu entrei pra trabalhar na saúde aqui na Ilhabela não tinha hospital, tinha só o posto de saúde que o governo do estado que dava, né? Aí depois, veio a municipalização da saúde, aí que começou e tal. Aí, Ilhabela fez um hospital, mas o hospital tem dez anos. Tinha uma Santa Casa, funcionava bem, tal, mas não era aquele negócio para uma Ilha de cinco mil habitantes, né, era uma coisa para poucas pessoas, tinha dez leitos, nem isso. Então, parto cesárea não era nem feito aqui na Ilhabela, antigamente, né? Agora , o hospital foi crescendo, a Santa Casa cresceu, aí as pessoas voltaram a nascer aqui, antigamente, nascia em São Sebastião, registrava-se aqui, mas, normalmente, nascia em São Sebastião ou parteira, né? Eu, por exemplo, nasci de parteira. A maioria da minha época nasceu de parteira. Hoje é mais cômodo você ir para o hospital, mas antigamente, eu escutei minha mãe gemer lá quando estava tendo a minha irmã, né, dento da minha casa, nasceu tudo na minha casa, meus irmãos. Você sabia que a sua mãe tava dando a luz, quer dizer, sabia entre aspas, você era moleque, também, lá em casa é escadinha, né? Depois, você tem que ter um hospital, porque se uma parteira complica um parto dentro de uma casa, o quê que ela vai fazer? Vai chamar… correr para o pai de santo, não tem saída. Mas hoje, não. Hoje, nasce cesárea, quer dizer, já na Santa Casa, já começou a desenvolver bem à época, aí já começou a ter cesárea, algumas cirurgias eram feitas, na minha época. Mas no começo, não, no começo era um ambulatório, a Santa Casa funcionava como um ambulatório, de segunda a sexta, até às cinco horas da tarde, fechava a porta e acabou, não tinha mais nada. Não tinha hospital na Ilhabela. Se você quebrasse o braço, você tinha que ir para o outro lado; qualquer coisa mais grave, você tinha que ir para o outro lado, hoje não, hoje vai para o outo lado, mínimo. Mínimo. Hoje, tudo se trata aqui, hospital lindo, maravilhoso, um dos melhores da região. Eu conheço a região inteira, né, trabalho na saúde e, hoje, nós temos um hospital aí, hospital que podia até ser um hospital escola, pelo atendimento perfeito, estrutura perfeita, um hospital novo, tem dez anos, foi construído para ser um hospital. Tem uma Santa Casa que virou referência em matéria de exames, tomografia, todos os ouros exames, eletrocardiograma, esses outros exames complementares. A Santa casa ficou com isso, centro de especialidade, né? E o hospital funciona normalmente lá e muito bem, por sinal, eu operei agora aqui, conhecia já o hospital, um hospital excelente, da região, é o melhor.
P/1 – E como é o outro lado da ilha? O lado de fora?
R – O lado de fora é complicado lá, né? A vida é complicada lá. Não tem luz. Hoje, Bonete tem luz, mas as outras comunidades não têm, então você viver sem luz já é complicado, né, então eles dão um jeito, uma bateria, um geradorzinho e tal. Mas é uma vida que não tem trabalho, não tem carteira assinada, isolado, mesmo, tem lugar que só vai de barco. Bonete dá pra ir a pé, mas a pé, aquele jeito, como ele falou, a pé até pra Paraíba, dá, né? Depende da sua disposição. Mas tem lugar lá atrás da Ilha que não dá para você ir a pé, você tem que ir só de barco. Então, aí começa a complicação, então…
P/1 – Eu queria que você contasse pra gente, então agora seu Geraldo, o que é ser caiçara.
R – É uma pergunta difícil de ser respondida, né, porque caiçara ilhabelense é muito bom você ter nascido aqui, porque você é um privilegiado, né, quem nasceu na Ilhabela, quem mora na Ilhabela, [com] essa natureza exuberante que nós temos aqui, você pra todo lado que olha, você vê paz, tranquilidade, Ilhabela é muito bonita, meu acho do país, quiçá do mundo, é uma das ilhas mais bonitas, né? Do Brasil, é uma ilha… umas das maiores ilhas marítimas, né? Mas é um privilégio ter nascido na Ilhabela, porque você tem tudo aqui hoje, você tem um progresso, daqui dois anos, nós teremos até faculdade, inclusive, né, na Ilhabela, vai ser… O desenvolvimento tá vindo rápido e é um orgulho pra gente que nasceu aqui, ver Ilhabela crescer do jeito que cresceu, a juventude tá em estudo hoje, tem saúde e ser caiçara é complicado você falar o quê que é ser caiçara, igual você perguntar o que é ser brasileiro, né? Mas eu, por exemplo, eu tenho muito orgulho de ter nascido na Ilhabela, ter vindo de uma família tradicional igual a minha e de uma família que tudo que se tem na Ilhabela hoje, carnaval, Natal, Folia de Reis, Congada, futebol, natação, tudo minha família tá incluída nisso, tudo minha família tá presente nisso, então é um orgulho para os Pinna ser chamado: “Estão montando uma escola de samba aqui, dá pra dar uma orientação?”, a gente vai lá, orienta, porque a gente já foi dono de duas escolas de samba, fundamos escolas de samba, hoje nós somos incluídos em Folia de Reis, que é o folclore da Ilhabela, natação que eu faço natação, defendo a minha ilha hoje em competições. Então tudo que tem atividade que levanta o nome da Ilhabela, a minha família tá sempre presente. É orgulho pra nós… Quer dizer, tem um pouco de… Nem sempre você contenta todo mundo, né, porque como meu falo para o meu irmão Gilmar, já disse o Olacyr Moraes lá, nem sempre a admiração é maior do que a inveja, né, então às vezes, supera, né? Mas eu
tenho orgulho de ter nascido, eu e a minha família, né, temos orgulho, todos são orgulhosos de carregar o nome de Ilhabela onde a gente vai, né? Tem vários lugares que eu vou, inclusive, eu tenho atividade em Ubatuba, trabalho um dia por semana lá, e lá eles me chamam de Ilhabela, porque falam: “Da onde você é?” “Da Ilhabela”, então eles falam: “Ilhabela…”, de tanto eu falar o meu nome, eles me chama de Ilhabela, Geraldo de Ilhabela. Outro irmão, o Giba que é pintor, ele é conhecido como Giba Ilhabela, então o Gilmar que expõe pelo mundo todo as esculturas dele, é Gilmar da Ilhabela, escultor da Ilhabela. A gente, onde vai, a gente carrega o nome da Ilhabela, né? É um orgulho muito grande pra nós ser ilhabelense. Caiçara é quem nasce na beira da praia, né? Mas o ilhabelense, ele carrega essa bandeira dele e isso é fundamental para uma pessoa ter orgulho da sua terra, né, porque um povo sem cultura não é um povo, né, é um amontoado de gente. Então, a gente tem esse lema na nossa família Pinna, que a gente vai estar sempre envolvido com cultura, com as tradições da nossa terra, né, não vai deixar morrer nunca, se Deus quiser. Então, a gente sempre pensou isso, um povo sem cultura não é um povo, é um amontoado de gente. Então, a gente vai sempre batalhar por isso em todos os sentidos. Futebol, carnaval, natação, tudo que a gente participa e outras coisas, politica, sei lá, em tudo que a gente faz, a gente tem orgulho, né? Orgulho e as pessoas sabem disso na Ilhabela, as pessoas admiram muito a gente, graças a Deus e sabem que a gente tá sempre à frente, porque a gente não quer deixar morrer as coisas.
P/1 – Fala pra gente, então, das escolas de samba rapidinho, quais foram e…
R – Nós montamos uma escola de samba… A primeira escola de samba da Ilhabela, chamava-se Padre José de Anchieta, a escola hoje mais tradicional da Ilhabela, né, a Padre Anchieta, ela tá até hoje. Depois, nós montamos uma outra, chamava-se Lírio do Brejo no Perequê. Fomos campeões com a Lírio do Brejo no Perequê. Depois, o meu irmão montou uma outra escola na vila, chamava-se Meninos da Vila, foi campeã de carnaval também. Aí, essa Meninos da Vila virou uma sociedade cultural, que ele hoje, inclusive, tem gente estudando em Portugal, porque Gilmar leva para lá… Gilmar faz um trabalho de ajuda as pessoas, os caiçaras aí em matéria de estudos. Esse menino tá se formando lá em Gastronomia em Portugal. Hoje tá lá, tem dois em São Paulo, estudando, jogando futebol na Vila Maria, escola de samba lá, eles também têm um trabalho parecido com o que a gente faz aqui, grande, eles têm centro de estudos, a Vila Maria, escola de samba, eles têm centro de estudos, tem uma série de coisas lá que menino vai lá, estuda e vai jogar futebol; se der certo, vai para o Corinthians. Hoje, nós temos dois atletas lá, que o Gilmar leva. O Gilmar tem esse trabalho que ele faz de formiguinha, né, pra ajudar o povo da Ilhabela. As escolas de samba… no fim, antigamente, era meio complicado você falar que era sambista, né, hoje não, hoje todo mundo toca o seu pandeiro, toca o seu cavaco, aí, hoje já não tem mais problema, mas antigamente, você era bandido, né? Na minga época, já era meio complicado, era: “Aquele cara toca, deve ser um drogado e tal”, não era bem visto, né? Não era nada disso aqui na Ilhabela e fora daqui, mas tinha uma coisa que não era bem visto. Hoje não, hoje o samba ajuda na cultura, hoje ajuda nos estudos do pessoal, mas a gente sempre teve envolvido com escola de samba, porque a gente sempre tocou, sempre e uma das atividades que a gente faz é carnaval, carnaval todo mundo gosta. Lá em casa, todo mundo gosta de carnaval, graças a Deus, e a gente gosta e fomos montando escolas e fomos fazendo. Hoje, ainda a gente mexe um pouco com isso, mas não tomar a frente mais, mas tem outras jovens aí que continuam mexendo, hoje nós temos as escolas de samba aqui do bairro, aqui, que é o Garrafão, temos escola no sul, temos escola na vila e aí, vai indo. Mas tudo começou com a minha família, né? Minha família se envolveu, montamos a escola de samba, e hoje tem, foram crescendo aí, todos os bairros, praticamente, tem escola de samba, Itaquanduba, tem uma juventude que tá aí se formando bem nas coisas e vai tocando. Orgulho pra gente ter participado também.
P/1 – E a Folia de Reis, como é que é?
R – A Folia de Reis é feita no fim do ano, praticamente, dia de Reis é dia seis de janeiro, né, mas você começa a cantar o rei em dezembro, novembro, dezembro. Você vai na casa das pessoas, canta a Folia de Reis e você é recebido lá, você toma um vinho, toma uma cerveja, come um bolo, faz uma festa. Você entra, você acaba fazendo um samba lá, todo mundo que toca rei, toca samba, porque tem pandeiro, surdo, timba, cavaco, violão, viola e você acaba… O pessoal: “Toca um samba”, já me vê, já sabe que vai ter um samba. E a gente faz samba meia-hora na casa de um, meia-hora na casa do outro, uma coisa que não é programada, você chega lá no portão, a pessoa sabe que é a hora de abri a porta certa, é tudo… É bem tradicional da Ilhabela, o Reis é bem tradicional. Isso, eu desde moleque acompanho, né? Eu gosto muito. Todo ano eu faço, eu, meu irmão, meus irmãos todos, minhas irmãs, a Gilmara gosta também, canta e a gente vai… todo ano a gente faz, é muito bom.
P/1 – E eu queria que você falasse pra gente qual que é a definição, porque um jeito de chamar o caiçara pode ser pé rachado.
R – (risos) O pé
rachado é porque antigamente o caiçara não tinha o sapato, chinelo, né? Nem precisava usar isso. Hoje você tem que usar, porque você anda numa pedra aí, num paralelepípedo, no asfalto, é quente, mas antigamente, andava na praia, não precisava ter sapato, chinelo, besteira, né? Também no Brasil não existia moda de sapato, você comprava um Vulcabrás em 60, só ia trocar o Vulcabrás em 70, dez anos com o mesmo sapato. Hoje não, você compra um sapato de manhã, de tarde, tá fora de moda, né? Mas o caiçara em si, ele não usava sapato… Quem anda muito descalço, acaba rachando o pé atrás, calcanhar, né? A gente fala que tem o “carcanha” rachado, né? Porque ele racha o pé, né? Porque você fica andando em cima de pedra, anda em cima de… forçando a parte traseira do pé, né, o calcanhar e ele acaba rachando e normalmente, a gente fala: “Esse cara aí é pé rachado”, pé rachado é o cidadão que nasceu na Ilhabela é pé rachado. Normalmente, fala isso, tem gente que não gosta, mas a gente fala. Eu, por exemplo, tenho mania de falar que o caiçara é pé rachado. Então, a gente sempre falou: “Sai daí pé rachado”, brincando, né, tem muita brincadeira sobre isso. Mas no é conhecido como pé rachado, mas tem algumas… Lá na vila, a gente tinha essa mania de chamar os outros de pé rachado, porque na vila, você andava mais de sapato, chinelo e tal, né, porque ali era mais calçada, foi o primeiro bairro calçado, a vila, né, então você tinha que andar com o sapato, ou Vulcabrás, aí ou chinelo, né, que era Alpargatas, antigamente, era uma Alpargatas, amarrado na traseira do seu pé. Mas o pessoal de trás da ilha, pessoal das comunidades isoladas e tal, ninguém tinha sapato, ninguém, era tudo pé rachado (risos).
P/1 – E pra gente ir encerrando, eu queria que você comentasse assim, como que é o sentimento assim, de ter um irmão, o Gilmar, conhecido com o título de embaixador da cultura, né, o quê que ele fez que mais orgulha vocês, de levar também o nome da família?
R – Gilmar
é um menino que tá envolvido com arte desde moleque, ele sempre foi campeão aí de escultura em areia, na época, tinha aquele concurso de escultura em areia, né, meu pai levava Gilmar para todos os lados, Santos, Guarujá, Ubatuba, Caraguá, onde tinha concurso de areia, papai tinha orgulho de levar o Gilmar para todos os lados. E Gilmar foi indo, foi crescendo nessa atividade de escultura em areia, fazia qualquer coisa na areia, impressionante a habilidade dele na areia. E de repente, ele começou a fazer em cobre e daqui a pouco, ele começou a fazer as esculturas, hoje ele faz esculturas em 40, 50 toneladas, né? Então hoje, ele é um escultor conhecido mundialmente, com obras em Portugal, obra nos Estados Unidos, obra na Europa, Ásia, ele tem obras em todo esse mundo, né, e pra nós é um orgulho, porque Gilmar é conhecidíssimo no mundo. Ele é mais reconhecido, hoje, fora do Brasil do que propriamente no Brasil, porque você vê o pessoal de Portugal, o jeito que trata Gilmar. Eles têm orgulho de receber o Gilmar lá em Portugal e Gilmar tem várias esculturas lá em Portugal, então pessoal vem pra cá,
Lousada em Portugal, então, Gilmar levou o nome da Ilhabela até onde um monte de caiçara pé rachado não pode imaginar, porque o mundo inteiro conhece o Gilmar hoje. Tem livros, o filho escreveu um livro sobre ele e, pra família, é um orgulho muito grande, né, você ter um escultor igual o Gilmar. Hoje ele é o embaixador da cultura de Ilhabela, que não é pouca coisa, com lei aprovada no Legislativo aí há pouco tempo atrás, aprovaram uma lei, ele é o embaixador da cultura da Ilhabela. Ele é muito reconhecido no mundo inteiro, né, e para a família Pinna é um orgulho muito grande ter um cidadão igual o Gilmar. Meus outros irmãos também são artistas plásticos, tudo, mas o mais conhecido mundialmente é Gilmar. Ano que vem, ele vai fazer uma… Já teve várias, já fez exposições no Memorial da América Latina, tem várias obras nesse país todo espalhado por aí, na Imigrantes, no aeroporto de Guarulhos. Agora ele vai fazer uma exposição grande em São Paulo, até outro dia, o cara perguntou: “Gilmar não tem vindo aí por quê?”, eu falei: “Ele vai fazer uma exposição no ano que vem” ‘Pô, mas é só o ano que vem”, falei: “É, mas ele faz esculturas de 40, 50 toneladas, tem que começar um ano antes”, então ele trabalha bastante. O ateliê dele é em Guarulhos, né, mas ele vem sempre aqui, fim de semana, tá sempre envolvido com as atividades de Ilhabela e levando as crianças, alguém que precisa pra estudar. Ele sempre ajuda a comunidades deles, tem orgulho também, igual eu tenho de ser um pé rachado, igual nós somos.
P/1 – E qual que é uma obra dele aqui na cidade? Tem alguma?
R – São várias, né? Uma que eu
acho uma das mais fotografadas que eu acho na Ilhabela, hoje, é o Cristo que ele tem lá na frente da igreja, né? Aquele Cristo lá é um marco da vida do Gilmar, foi uma obra que ele fez, fez muito tempo lá aquela obra e foi difícil de colocar na cruz, porque só tinha a cruz lá, não tinha obra nenhuma. Na época, tinha que passar por cima de política e tal para pôr uma obra ali, é complicado com padre, complica com freira, complica com prefeito… Foi complicado para ele e aí, ele começou a fazer a obra e ele tem uma história, inclusive, disso. Ele não conseguia fazer o rosto do Cristo, dar identidade, que é o rosto, né? E ele falava pra mim: “Não adianta, cara, eu não vou conseguir fazer esse Cristo, não vou conseguir, eu já acabei o Cristo, mas o rosto eu não consigo dar a expressão do rosto do Cristo”, ele não conseguia. Até que um dia, eu passei na porta da casa dele, a Rosangela falou: “Gilmar saiu correndo aqui para acabar o Cristo dele”, falei: “O que aconteceu?” “Ele recebeu um negócio, uma mensagem aí, ele saiu correndo daqui, foi lá e tá lá fazendo”, aí eu fui lá falar com ele no ateliê dele, ele falou: “Geraldo, veio na minha mente a imagem do Cristo e eu tô terminando aqui”. Ele terminou o Cristo e tá lá até hoje. Pra mim, foi uma coisa muito marcante aquele Cristo. Que dizer, hoje tem aquela obra no portal da cidade, que é o mapa da cidade que pra nós é especial, Ilhabela que tá ali, e é uma obra enorme, também e tem outras obras aí na cidade, tem várias obras, ele é chamado sempre pra fazer e aquele Cristo lá… A maioria das obras dele foi doação para o município, inclusive o Cristo, foi doação do Gilmar Pinna para o município, então, ele é um moleque especial. Gilmar é especial. É moleque ainda, modo de falar, né, porque ele é mais novo que eu, dois anos, só. Mas é moleque, vai ser… ele é uma eterna criança e ele é feliz por isso.
P/1 – E pra gente ir encerrando, eu queria que você falasse pra gente quais são os seus sonhos, Geraldo.
R – Tem muito, né? (risos) Quero ficar aqui na Ilhabela, continuar morando aqui, ver meus filhos crescerem mais do que estão, desenvolverem. A família é tudo na vida sua, né, você tá bem com a sua família, você tá bem com o resto em volta, né? Então, eu tenho orgulho dos meus filhos e são caiçara pé rachado igual eu, também, né? Moram fora porque as atividades deles hoje são mais fáceis fora, mas eles estão aqui sempre, eles me acompanham e eu tenho orgulho daqui. Fiquei morando um pouco fora, tive que morar porque a minha atividade na Ilhabela não tava bem desenvolvida ainda e eu fiquei um pouco fora, mas não fora muito, perto, Ubatuba, morava, trabalhava em Ubatuba, mas nunca deixei de frequentar minha cidade, meus problemas do meu dia a dia com a comunidade, nunca esqueci os problemas da minha infância, que hoje continuam tendo os problemas na cidade, ainda tem vários problemas, logico, mas melhorou 1000% e a gente tá aqui lutando para que Ilhabela nunca pare, né? Continue no rumo certo e é bom. Ilhabela, hoje, é uma cidade planejada, tá direitinho, tá funcionando bem tudo. É
orgulho, você vê Ilhabela funcionando tudo direitinho, né, para quem passou a infância igual eu passei, não foi nada sofrido, porque nada é sofrido, você tem orgulho da onde você nasce, era mais difíceis as coisas, né, hoje não, hoje é tudo mais fácil, né? Esse é o progresso que a gente tem que olhar com carinho. O progresso é o progresso, ninguém vai… Você pode brigar hoje, mas daqui dez anos, ele vai estar aí, você vai brigar que não quer balsa, daqui dez anos, a balsa tá aí, vai ter balsa para mil carros. “Não pode”, mas vai ter, não tem como você brigar, né? Lógico que eu queria Ilhabela só pra mim, eu queria, mas não tem, tem que dividir Ilhabela com todo mundo, essa beleza não pode só para quem nasceu aqui, tem que ser para todo mundo. Isso é um orgulho pra mim.
P/1 – Tá certo. Então com isso, a gente em nome do Museu da Pessoa e também da prefeitura de Ilhabela, agradece a sua entrevista. Muito obrigada.
R – Obrigado vocês.Recolher