Plano Anual de Atividades
Projeto Nestlé Ouvir o Outro – Compartilhando Valores. PRONAC128976
Depoimento de Dagmar Rivieri Garroux
Entrevistada por Tereza Ruiz
São Paulo, 14 de março de 2014.
Realização Museu da Pessoa
NVC_HV06_Dagmar Rivieri Garroux
Transcrito por Cristiane Costa
MW Transcrições
R – É... Meu nome. Meu nome é Dagmar Rivieri Garroux, eu nasci em 16 de abril de 1954, nasci em Santo Amaro, São Paulo.
P/1 – Agora o nome completo e, se você se lembrar, a data de nascimento dos seus pais.
R – Ui.
P/1 – Se não, só o nome completo, sem data de nascimento.
R – Não. Vamo ver. Meu pai é Valdemar Rivieri, minha mãe era Isaura Muniz Rivieri.
P/1 – Conta um pouco pra gente o quê que seus pais faziam e como é que eles eram.
R – Meus pais eram 50 anos-luz à frente do tempo deles, sempre foram, né? Então, meu pai era engenheiro mecânico de precisão, se formou na França e minha mãe era empresária. Mas, antes disso, eles contavam a história, que quando eles casaram o meu pai precisou fugir pra casar com a minha mãe, porque ele era um engenheiro e ela era operária, era tecelã. Então, era o burguês com a proletária, sabe? Mas se apaixonaram, em porta de fábrica, tal, e no fim meu avô acabou deserdando o meu pai e o meu pai foi viver com a minha mãe e ficaram casados 50 anos, até que ela morre e, depois, o meu pai morreu assassinado aqui perto, né? E, assim, um casal extremamente forte, sempre ocupado com o outro. Quer dizer, quando ninguém registrava empregada doméstica eles já registravam, a empregada não passava mais que dois anos na nossa casa porque a primeira coisa que eles faziam era mandar alfabetizar, depois fazer curso de enfermeira, de cabelereira, seja lá o que for e depois... E minha mãe comprava, essa junção dos dois, eles construíram quase um império, né? Então, a minha mãe comprava um lote, Guaianazes, eu sempre falei que ela loteou a Zona Leste, fazia uma meia água e a pessoa ia pra lá começar a vida, entendeu? Então, em casa sempre teve esse olhar de educação pro outro e eles sempre tiveram, você vê eu sou de 54, as minhas irmãs são de 47, 40, quer dizer, eles sempre assim, mulher, filha, a minha vai estudar, que não pode depender de homem, não estavam preocupados se vai casar, se não vai, o negócio era estudar, né? E, assim, dois camaradas apaixonados até o fim da vida, impressionante, nunca vi coisa assim.
P/1 – Eles eram brasileiros? Seus pais eram nascidos em São Paulo?
R – Meu pai era neto de... Filho. Filho de calabrês com siciliano e a minha mãe era filha de dois portugueses. Aliás, meu avô por parte da minha mãe era mongol. Também se conheceram no Brasil, minha avó veio no primeiro navio de imigrantes vapor pro Brasil, assim, é gente forte, sabe? Mas sempre, assim, pessoas que se importavam com pessoas, isso era lei em casa. Então, o que eu acho que eu faço aqui nada mais é do que repetir o processo dos dois.
P/1 – Você falou que você tem irmãs, né? Qual que é o nome dessas irmãs?
R – Tem a Daisy, mais velha, a Dirce já morreu, eu sou sanduíche e tem a mais nova, caçula, que é a Deni, é tudo com D.
P/1 – E você mencionou que a sua mãe foi tecelã mas virou empresária, isso?
R – Virou, virou.
P/1 – E é empresária em que área?
R – Ela, por exemplo, fez uma escola, ela fez várias lojas, aqui em Santo Amaro, né, porque eu sempre falo que eu sou caipira de Santo Amaro, né? Na Granja. E interessante que a minha mãe criou o primeiro SPA no Brasil, isso não sei em que ano, mas ela criou, né?
P/1 – Empreendedora.
R – Ela era uma... É, empreendedora, visionária e meu pai, depois de trabalhar, meu pai trabalhou no SENAI, Engesa. Mas meu pai tem uma fábrica de autopeças, pa ra rá. Era gente...
P/1 – E o SPA, só por curiosidade, você sabe o nome ou não?
R – Quê?
P/1 – O SPA que ela criou.
R – Não me lembro.
P/1 – É por curiosidade. Eu queria saber um pouquinho...
R – Eu só sei que era na Granja Viana.
P/1 – Eu queria que você contasse pra gente como é que foi a casa onde você passou sua infância, descrevesse mesmo, como é que era a casa, como é que era o bairro, como é que era a região.
R – Ó, que eu me lembre, tá, que eu passei minha infância, foi na Granja Julieta, era uma casa grande, extremamente grande, quintal grande, tudo grande, porque a minha adotava pessoas, pessoas da família, quarto, era uma coisa muito louca. Nossa casa nunca foi cada um com seu quarto, sempre tinha gente morando com a gente, sempre foi assim, né? E, assim, era muito louco. O que eu lembro, isso é uma coisa que ficou marcado, que a gente descia a Américo Brasiliense, existe até hoje, e ia pescar no rio Pinheiros. Eu tinha dez anos. Quer dizer, Santo Amaro, as pessoas vinham morar em Santo Amaro, meu pai que não gostava muito de asfalto, essas coisas, porque era mata, nem tinha quase que... Eu peguei bonde pra ir pra escola, né? Então, parece que foi isso, puta, no século passado. Mas um lugar muito legal, uma convivência... Muito legal, andava de bicicleta na rua, nunca fui uma pessoa... Menina, né? Minha mãe tentou mas eu sempre resisti, né? Então, eu sempre tava andando de bicicleta, empinando pipa, jogando futebol, brigava pra caramba, enfim. Eu era muito diferente das minhas irmãs.
P/1 – Brincadeira favorita, assim, eu ia te perguntar, você já citou algumas, bicicleta... Tinha, assim, uma brincadeira favorita?
R – Não, eu gostava de brincar, agora não gostava de brincar com menina. Eu não suportava, assim, era muito difícil pra mim trabalhar com as meninas, sabe? Que “ai, vai sujar, aaai” e eu era muito maloqueira mesmo, até hoje eu sou, bem maloqueira.
P/1 – Muita energia.
R – Muita, muita. Quer dizer, a minha mãe sacou isso, entendeu? Porque eu fui expulsa da primeira escola eu tinha oito anos de idade, imagina isso?
P/1 – Qual que era a escola?
R – Não lembro o nome, não adianta. Eu sei que eu não gostava do uniforme, isso meu pai sempre contava e, um dia, eu fui pra escola de pijama. E, aí, chamaram o meu pai “ah, vamos chamar o pai da menina”, aquela coisa, o pai vai bater, qualquer coisa, vai surrar. E ele chegou, olhou e falou “por que que você tá assim, de pijama?” “Ué, te avisei, esse uniforme, blusa preta, saia marrom, é um horror e que eu não ia pôr. Não gostava, te avisei”. Aí, meu pai virou pro diretor e falou “quer saber, ela tem razão. Vamo embora, filha” (risos).
P/1 – Te apoiou.
R – É, ele sempre me apoiou, os dois. Sempre me apoiaram. Que eles achavam, assim, que se eles viessem com a prisão, que se eles viessem com uma coisa, assim, de surra, eles nunca bateram em filho, olha que loucura. Mas eles tinham muito essa coisa de conversar, vai pro castigo, nananã, mas sacaram que se me prendessem eu voava.
P/1 – E a escola, quais são as suas primeiras recordações, assim? Você tem?
R – Ô, um horror. Sempre detestei, assim. Sempre eu detestava escola, sempre. Eu achava um absurdo, porque era chato, sabe? Como é até hoje, uma coisa absurda, né? E no meu tempo, o cara, o professor, era o maestro, ele era a estrela mor, aquela mesa, ele que decidia se você passava ou não. Eu sempre fui muito inteligente, sempre guardei muito rápido tudo, né? Então, eu não fazia lição, aí eles vinham, faziam chamada oral, eu falei “faz!” e eu tinha que tirar o dez mas, aí, o comportamento era zero, né? Porque eu fazia cada coisa na escola, sabe? Se eu fosse a diretora da escola eu tinha me expulsado.
P/1 – Conta um caso pra gente.
R – Ah, botar, por exemplo, sapinho, sabe girino? Que eu catava lá e ia nos cafés de professor de tomar (risos). É, umas brincadeiras legais, né? Soltava, assim, ficava juntando barata e soltava na sala pras meninas gritarem, rato, que elas tinham medo. Aí, eu soltava na sala dos professores... Ueeer. Porque, assim, os dez primeiros minutos da aula, da explanação lá do professor, acabou “ah, já saquei”, pa pa pá, pa pa pá, sabe? Então, eu sempre odiei escola. Eu fiz escola, eu fui expulsa três vezes, né?
P/1 – Você se entediava?
R – Um horror, eu achava uma coisa... Pra mim não tinha sentido, até hoje não tem, tá? A escola pra mim não tem sentido. É uma coisa, assim, que ia te deixando burra, não ia te incentivando pro saber, pra pesquisa, era medo, medo, medo de não passar de ano, medo do professor, o dominante, se não fosse com a sua cara dava zero, aquela coisa, ai. Detesto opressão, odeio. Quer dizer, você quer conquistar o respeito, não é pela opressão. É porque você tem conhecimento, você tem uma autoridade, não porque você é autoritária e ser autoritário comigo sempre foi difícil.
P/1 – E você não teve nenhum professor, assim, que tenha te marcado, que tenha sido diferente?
R – Nenhum.
P/1 – Nada.
R – Eu fui para...
P/1 – Em todos os anos escolares?
R – Não. Eu não tenho, eu fui pra USP, eu tinha 17 anos quando entrei na USP, pra você vê. Eu entrei com seis anos na escola, quer dizer, toda hora expulsa mas eu tinha notas altíssimas em prova, aí eu passava a cola pra todo mundo na sala, terrível. Quer dizer, era insuportável essa pessoa, né? Mas a sorte, assim, é que minha mãe sacou, então eu ia fazer karatê, judô, natação, ginástica olímpica, eeeer, gasta essa energia, né, esse dragão interno que eu tenho, né?
P/1 – Você tinha outras atividades que te alimentavam, né?
R – Sim, sim, eu adorava isso, né? E eu era líder de sala, óbvio, líder da escola. Eu lembro que nunca escola aí eu tava fazendo acho que o Ginásio, era Ginásio naquela época e era já começando a ditadura, né, 64, se não me engano. E, assim, olha que loucura, você saía da Educação Física, tinha que lavar o pé porque o professor não aguentava o cheiro do conga, né, bamba, essas coisas. Agora, quem era rápido dava tempo de lavar o pé, quem não era não entrava na sala, levava ponto negativo e isso começou a me incomodar, que eu ia ser a primeira, porque eu já dava bordoada “sai da frente” e vuum, né? Mas eu via as outras que não. Aí, eu promovi uma greve que todo mundo da escola, quer dizer, eu virei a líder, eu era, da sala em que tava, era a mais nova. Naquela época...
P/1 – Que idade você tinha?
R –Treze no Ginásio, na sétima série, né? E, aí, eu fiz todo mundo andar de meia e os tênis, Vulcabrás, pendurado no entorno. Nossa Senhora, chamaram polícia, chamaram meu pai. Meu pai nessa época trabalhava com Engesa, né, tanque de guerra, caminhão de guerra, meu pai “pelo amor de Deus”. Eu falei: “Pai, não é justo, le le lé, le le lé, eu não vou parar na na nã, na na nã”, enfim. Aí, podia entrar de tênis na sala (risos).
P/1 – Que ótimo.
R – É. Claro que eu fui convidada “sai fora”, atividades... Não podia ser subversiva, né? Treze anos de idade, que é isso.
P/1 – Deixa eu voltar numa coisa da história familiar que eu queria ter perguntado e me passou. Você lembra como é que eram as refeições na sua casa, assim, na infância e na juventude?
R – Eram ótimas porque a minha mãe, sendo empresária, mas ela fazia comida. Ela vinha em casa, a família tinha que sentar inteira na mesa, mesmo as minhas irmãs, que é muita diferença de idade, 15 anos mais ou menos, já eram quase que casadas. Então, domingo, sabe aquele domingo na casa da mama, sabe? E a minha mãe fazia – tava até comentando agora no almoço aí – minha mãe fazia o macarrão, minha mãe fazia o molho e, assim, num prazer que ela continua até os netos e bisnetos, entendeu? Minha mãe era empresária, mas era a coisa da mãe, sabe, ela era muito galinha choca a minha mãe. E sacava, eu achava interessante isso da minha mãe, como é que ela sacava cada uma de nós, cada uma com um temperamento e como ela (estalo de dedos) percebia, assim, sabe? E como ela levava, sabe? Ela parecia um rio, minha mãe. Ela desviava, na na nã, no fim você tava fazendo o que ela queria e, aí, você...
P/1 – Sábia.
R – Muito, muito. Mas eu, assim, eu me dava melhor... Não é que eu me dava melhor, eu me dava bem com a mamãe, não queria saber de aprender a cozinhar, na na nã, eu saía sempre com o meu pai, então eu ia caçar, eu ia pescar com o meu pai, tal, acampar, entendeu? Sempre me ensinou. E não ia com barraca, nada disso, não, tinha que chegar na mata, fazer a barraca e isso eu sei até hoje, passo pras minhas netas.
P/1 – Aprenderam?
R – Ah, aprenderam, as minhas netas já sabem.
P/1 – E nessa coisa das refeições, você lembra o quê que vocês tinham de comida, assim, o que que era a base da alimentação?
R – Arroz, feijão, bife, batata frita, salada, frango, macarrão, uma coisa de família italiana, sabe? Muita fartura na comida, muito bolo...
P/1 – Você tinha algum prato favorito?
R – Não, eu não sou muito de comer, não. Sou difícil até hoje, eu adoro X-salada, pizza, (risos), tudo o que não presta, né?
P/1 – Não tinha nada, então?
R – Ah, não.
P/1 – E agora nessa fase, então, você tava me contando essa história dos 13 anos, que já a entrada, assim, da adolescência, né?
R – Sim.
P/1 – Aí, eu queria saber, fora a escola, assim, o quê que você fazia pra se divertir? Saía? Pra onde saía? Que tipo de entretenimento, de atividades, fora a escola?
R – Fora a escola?
P/1 – Fora a escola.
R – Era, assim, como eu era assim líder da turma, tal, eu gostava muito, a minha diversão, assim, nunca foi bailinho, eu nunca fui de namorar, entendeu? Sabe aquelas tias, da Mooca? Porque minhas tias é tudo da Mooca, né? “Ai – minha mãe era Isaura, né? – Ai, Isaura, essa menina, será? Ela tem problema, né? Cabelo curto, que nem homem, tá sempre parecendo homem? Será que?” não sei o quê. Aí, minha mãe acabou me pondo num balé, lembrei, num balé, Maria Helena Mazzetti, era alguém... Cara, (risos) eu fui pro balé, tinha que fazer uma pose, beijar lá a professora, eu falei “não vou fazer pose, não vou beijar” (risos). Aí, a professora de balé me punha só pra levantar as meninas, né? E a minha irmã mais nova sempre foi muito frágil, a Deni, usava óculos, chamavam ela de quatro olho, ela era estrábica e, assim, se ela chorasse porque alguém tirou sarro... E ela chorava fácil, eu tinha que entrar porque eu defendia a minha irmã. Então, apanhava a minha irmã e quem chamou, né? Entendeu? Então, era sempre muito assim, né? Aí, eu sei que eu fui expulsa do balé porque chamaram a minha irmã de vesga, a professora não punha ela lá na frente, eu comecei a perceber. Aí, eu falei “pera aí”, peguei a queridinha da professora e vuum, aí ela quebrou o pé...
P/1 – Você era impossível!
R – (Risos) Era.
P/1 – Que idade que você tinha?
R – Olha, 13 anos. Eu tive pai e mãe porque se eu não tivesse eu tava aí junto com sei lá o quê, fazendo o quê. Ou morta, não é? Porque eu não tinha medo, de nada. Então, eu preferia mais sair com o meu pai, levava amigos, assim, pra você ter uma ideia eu comecei a namorar, sei lá, eu já tinha colegial. Eu não me importava, assim. E era um namoro, sabe “ó, não me enche o saco!” Cinema eu achava um saco, ficar presa, eu gostava de coisa ao ar livre, sabe? Sempre fui por aí. Então, a minha diversão era isso aí, pra fora, acampar, saía mais com ele porque ele sacava, ele pescava legal, ele caçava, ele armava arapuca e eu achava isso sensacional, o conhecimento que ele tinha de mata, entendeu? Até hoje eu tenho, por conta dele, de pesca, tal.
P/1 – E cinema você falou que não tinha muita paciência, né?
R – Não.
P/1 – E música e leitura, assim? Você gostava de música, você gostava de ler?
R – Música eu gostava, né? Uma coisa louca, eu gostei de aprender piano. E me especializei em Bach. Mas é matemática, né, a coisa do Bach, depois que você vai sacando.
P/1 – Quando você fez piano?
R – Quatorze, 15 anos, sei lá. Mas eu fiquei um bom tempo fazendo, depois parei.
P/1 – E gostava mais de Música Erudita, então?
R – É. Mas eu gostava de Beatles pra caramba. Adorava os Beatles, os Rolling Stones. Aí, a minha irmã mais nova gostava da Jovem Guarda, eu falava “ah, são tudo alienado”. Aí, chegou a Tropicália e isso também mexeu muito comigo, eu gostava da liberdade dos caras, né?
P/1 – Tinha uma música favorita, assim, um álbum, algum cantor favorito, assim?
R – Eu gostava mais de Beatles, tá? Tinha uma paixão por esses caras, eu sei todas as músicas, a tradução, até fui aprender inglês pra aprender o que eles... Eu tinha muito isso, se eu não sei eu vou aprender, pra saber o que eles tavam cantando e, aí, que eu fiquei mais apaixonada. Mas, sabe, eu não sou muito de – até hoje – ser específica, entendeu? Eu sou muito desapegada das coisas, eu não tenho nada “ai, é o meu travesseiro”. Eu vejo isso nas pessoas e me incomoda. “Ah, o meu sapato, o meu chinelo”, eu não tenho essas coisas. Eu sempre, por exemplo, a primeira calça Lee eu fui comprar em Santa Cruz de la Sierra. Lee, era l-e-e, tá? Então, eu pego um ônibus, vai lá, pega o trem da morte, desce em Santa Cruz, isso depois, quando eu tava lá, liguei “ó, mãe, eu tô em Santa Cruz de la Sierra”, porque eu sabia que se eu avisasse ela ia encher o saco.
P/1 – Você foi sem avisar?
R – Eu fui. Mas eles tava com...
P/1 – Quantos anos cê tinha?
R – Dezessete, por aí. Aí, eu cheguei lá, botei uma calça, botei outra, botei outra, botei outra, pra pagar a viagem. Aí, usei a minha primeira calça Lee que eu adorava aquela calça Lee porque antes era rancheira, né? E aquela camiseta de português que tinha, né, branca com três... E o conga, o bamba, que era o que tinha.
P/1 – Eram os tênis da época.
R – É, mais só. E, aí, a molecada falava, os meninos “ai, põe a calça Lee da Dag de pé ela sabe vir pra faculdade, ela sabe...”, que eu só andava de calça Lee, camiseta e tênis. Aí, eu falei “aaaah, to liiivre” de vestido, de saia, essas coisas todas, que não me dá liberdade, entendeu? Tudo o que me prende, até hoje, não adianta, me incomoda e, aí, fodeu.
P/1 – Você quer se sentir livre?
R – Sempre.
P/1 – E a faculdade, então? Me conta um pouco, assim, como é que foi sua decisão? Quando veio o desejo de fazer faculdade? Como é que foi essa escolha?
R – Assim, eu sempre gostei, eu fiz Magistério, o Colegial não existia, era Magistério, Científico, Clássico, não é isso? E Secretariado, é. Então, eu fiz Magistério. Eu sempre gostei de ensinar, sempre. Mas não assim, não era “ai, a professora chata”, tal, eu sempre fui muito doida pra ensinar, né? Como me ensinaram os meus pais e, aí, eu falei “ah, vou entrar pra Pedagogia”. Mas eu queria fazer Engenharia, eu queria fazer Medicina, eu sempre queria mais e mais e mais.
P/1 – Mas você não tinha, assim, opção pelo Magistério? Ou alguma situação, assim, na adolescência, na infância? Você disse que sempre gostou de ensinar, né? Ou, assim, ensinar uma irmã, uma amiga? Tem alguma situação?
R – Ah, assim, eu lembro que todos os meus amigos, por exemplo, eu lembro que tinha aquela coisa do trabalho em grupo, eu pegava os piores da sala, fazia eu “tó, pronto”. Ou e alguém da sala ou, sei lá, de outra séria, outra coisa “pô, Dag, ensina aí” e eu ensinava. Meu apelido era Dagonça, Dagmau, Dragão, era esses nomes (risos). Mas, assim, eu gostava... Eu gosto até hoje de ensinar, adoro ensinar e aprender, sempre quis aprender. Então, às vezes eu fugia... Fugia: eu ia pra esses lugares, Vale do Ribeira, ninguém ia pro Vale do Ribeira, né? Ainda mais nos anos de chumbo, né, que tava lá. Mas eu juntava todo mundo da faculdade e ia montar... Como é que chama? Aí, roda gigante, que o Adhemar de Barros tinha deixado lá e ninguém montava, e a gente ia lá e montava. Aí, chegavam os militares “o que tá fazendo aqui?” na na nã, isso aqui já achava que era tudo terrorista “não, caramba, eu tô montando. Ó, meu pai trabalha na Engesa, tá?”, que aí já para, né?
P/1 – Mas qual que é a história da roda gigante? Me explica melhor.
R – Porque os políticos deram pra uma cidadezinha lá no Vale do Ribeira, que era uma miséria. Hoje é pobre, miserável, imagina na época?
P/1 – Você se lembra qual que é a cidade?
R – Não. Acho que nem tinha nome de cidade. Era mato.
P/1 – Eles deram?
R – Deram e não montaram. E, aí, eu indo pra lá, porque o pessoal soube, tinha alguma coisa por ali que era legal... Ah, a Caverna do Diabo. Não tinha nem luz a Caverna do Diabo, nós fomos conhecer e entramos com lanterna dentro da Caverna do Diabo, imagina como eu conheço o Brasil e a gente viu “por quê que ainda não tá montada?” “Ah, porque não sabemos montar”. Eu era muito disso, quer dizer...
P/1 – Juntou um mutirão de amigos?
R – Sempre, sempre eu monto grupos – isso eu me lembro bem – pra estar fazendo alguma coisa. Então, eu não fui envolvida com droga, sempre odiei ficar de porre, maconha, essas coisas pra mim... E era a época que tava todo mundo chegando, as minhas amigas todas, né? E falava “caramba, eu quero ter a minha vida é na minha mão, ninguém vai mandar em mim”, entendeu? Droga, nada, porque eu achava que perdia a consciência, perdia a responsa... É e eu não, eu olhava como eles ficavam e “é pra dar porrada” só assim.
P/1 – Essa viagem pro Vale do Ribeira, você já tava na faculdade?
R – Já.
P/1 – E essa roda vocês montaram onde?
R – Lá na cidade. Nó chegamos...
P/1 – Num parque?
R – Não, era uma praça, menina, não tinha nada. Aí, tinha que pegar luz do poste, coisa louca. Deixamos funcionado. Não sei se os milicos derrubaram. Mas não sei, eu voltei lá e não tinha mais nada, porque muda, né? Eu vejo São Paulo hoje – eu tenho 40 anos de favela, né, desde minha adolescência eu ia pras favelas – eu vejo como isso aqui, Santo Amaro, como destruiu, em 40 anos, vuuuh, tudo, assim. É de assustar.
P/1 – Mas o quê que você vê de transformação?
R – Ah, primeiro acabaram com todos os mananciais daqui, né? Aqui mesmo, na Estrada de Itapecerica, tinha uma cachoeira linda. Cadê a cachoeira, né? Os rios, esse Caldeira, que tá aí, era um riacho, lindo, era muita mata. O Morumbi, então, era algo que ninguém queria chegar, morros de mata, de muito manancial e detonou tudo, né? Zona Sul ficou sem manancial nenhum. Impressionante essas invasões, de favela, tal. Aqui, a Zona Sul, foi a última zona invadida, a última. E até hoje ainda é invadida, né?
P/1 – E você disse que começou a frequentar as favelas ainda adolescente?
R – Quatorze, treze anos.
P/1 – E por quê, assim? Você lembra qual era a motivação, o quê que você ia fazer?
R – Porque eu via como é que meus pais faziam com as pessoas que trabalhavam em casa e todos moravam em favelas, a maioria. E aí, eu ia lá ver como é que era, perguntar pros meus pais, o quê que eu podia fazer, como é que era. Meu primeiro trabalho voluntário – eu acho que isso eu lembro, claro que eu fui expulsa – foi num... Era um hospital que tinha de sábado e domingo dentista. E o meu trabalho era dar anestesia pra ir arrancando os dentes – 14 anos – e cada dente era dois conmel, um comprimido da época. Eu morria de dó, eu falava baixinho “esse conmel não vai dar nada”, né? E era assim, com a mesma seringa, tuc, tuc, tuc. Aí, cê ia lá, tuc, tuc, tuc, tirava, entendeu como é que era? Essa pessoa que faz e, aí, eu fui expulsa porque eu tava dando conmel a mais e, aí, mandei todo mundo pra (batido de palma)...
P/1 – Você dava as anestesias e arrancava o dente ou você dava...
R – Eu dava as anestesias e arrancava o dente.
P/1 – E quem que te ensinou a fazer isso?
R – Ah, os dentistas de lá.
P/1 – Loucura. Você se lembra qual que era o hospital?
R – (Risos) Não, nem tem mais, era lá pro lado de Interlagos, uma coisa assim (risos).
P/1 – Que loucura!
R – Não, pra mim tudo era normal, entendeu? Enquanto o povo, as pessoas, ou estavam lidando pra acabar com a ditadura, certo? O meu marido mesmo foi exilado, volta, o segundo marido, né? Porque o primeiro marido em casei, que eu queria ter filho, com 18 anos, ia ser menina, pa pa pá, pa pa pá. Tive a menina, porque, aí, quando eu tivesse 40 ela ia ter... Sabe como é que é? Pessoa que manda na vida. Aí, que eu vou descobrir que eu não mando na vida, porque ela nasceu com muita deficiência mental e morreu em quatro dias. Aí, eu falei “opa, não sou eu que mando”. Aí, que eu começo a pensar um pouco melhor com essa coisa de... Eu era ateia, como o meu pai. Minha mãe, não, ela era católica (risos). Ai.
P/1 – Isso faz você repensar a religiosidade, é isso?
R – Não, não é que eu ia rezar “pera aí, não sou eu que mando”, né? Mas assim mesmo foi um percurso enorme pra chegar num... Porque quem acredita em alguém, assim, nos anos 70, nas faculdades? Ninguém. Eu convencia – o meu poder de palavra sempre foi muito grande – eu convencia padre a tirar a batina, da não existência de Deus.
P/1 – Ótima argumentação.
R – Eu sempre tive muita argumentação porque li muito, sempre gostei de ler, enfim, sempre gostei de aprender. Impressionante. Por exemplo, o meu pai tinha fábrica eu ia lá, sabia mexer na fresa, no torno, essas coisas eu queria aprender. Carro... Eu sabia trocar pastilha, tapar junta de cabeçote. Hoje não, porque hoje é tudo computadorizado, né? Naquelas épocas eu já sabia tudo isso.
P/1 – E você disse que sempre gostou muito de ler. Você lembra, assim, de livros nessa fase de juventude, infância, de leituras que tenham sido marcantes, assim?
R – Não me lembro. Tô te falando, eu não sou específica, né? Meu negócio é sempre ir pra frente. Eu não sou mesmo, é difícil pra mim.
P/1 – Pensando um pouco na juventude, você disse que você começou a namorar tarde porque...
R – Não, eu comecei a namorar tinha... Sei lá, eu já tinha entrado na faculdade, casei, tive a filha, morreu, separei. Não, tive mais um filho, que é o meu filho hoje.
P/1 – Mas essa pessoa que você se casou foi o seu primeiro namorado?
R – Foi, é, foi.
P/1 – E como vocês se conheceram?
R – Acho que foi numa... Sei lá, numa festa, talvez. Não é?
P/1 – Na faculdade?
R – É. Mas ele não era da faculdade, ele tava fazendo outra coisa mas ele foi na festa. Coisa louca, né, porque era um alemão. Aí, nós acabamos em separar porque ele não entendia essa ação toda minha, não, porque eu pegava favelado e levava pra casa (risos). Imagina.
P/1 – E vocês namoraram quanto tempo?
R – Um ano, no máximo.
P/1 – E já casaram?
R – Comigo é tudo assim, entendeu, pra, pra, pra (risos).
P/1 – E como é foi o casamento, você lembra? Teve uma cerimônia?
R – Não, não teve nada. Não, não, no civil só.
P/1 – Nem uma festa depois?
R – Não, eu acho que teve. Teve, a minha mãe deve ter feito alguma coisa, por que mãe, né? Mas o segundo, eu lembro que eu casei num cartório, o Primeiro Cartório de São Paulo e fui comer numa pizzaria, eu e ele.
P/1 – Só os dois?
R – Só.
P/1 – Qual era a pizzaria, você se lembra?
R – Lá no Centrão, minha filha, era lá o negócio porque a gente casou bem no Centro. Que ele voltou do exílio, esse aí, o Saulo, tá, que era artista plástico, filósofo, jornalista.
P/1 – E vocês se conheceram como?
R – Também numa festa, eu já tinha terminado a faculdade, já tava com o segundo filho, ele também tinha filho e ele era algo que ninguém imaginaria que eu casasse.
P/1 – Por quê?
R – Paz e Amor, cabelão, né, que a gente escondia tudo dentro daquele cabelo, mais que Caetano, na na nã. Assim, como é que eu diria? Sem esperança, sabe, de vida, sem esperança no Brasil, no ser humano. Sabe quando a pessoa tá? E a gente se conheceu e, aí, ele começou a ver o meu trabalho nas favelas, contra pé de pato, contra grupo de extermínio, eu fazia barracos na favela e ele começou a aprender o “periferês”, porque ele conhecia São Paulo lá, né, depois da ponte, São Paulo pra lá, aquele São Paulo, que era o Centro, onde tava todo mundo, Rua Augusta, aquelas partes de lá, mas ele nunca tinha vindo pro lado de cá, pra Santo Amaro, pra essa periferia toda. E a gente acabou se conhecendo, ele quis... Mas também foi, viu? Namorar, pa ra rá, casei.
P/1 – Muito rápido?
R – Foi.
P/1 – Qual o nome completo dele?
R – Saulo Garroux. Mas é o que ele fala sempre, que eu fui a maior professora da vida dele, porque ele lutava. Essa história, ele foi embora, foi exilado, foi preso...
P/1 – Qual que é a história dele? Ele foi exilado na militância contra a ditadura, é isso?
R – Ah, sim. Lá no Rio. Então, ele...
P/1 – E pra onde ele foi exilado?
R – Pra França. Da França ele foi pros Estados Unidos, né, aí trabalhou acho que na ONU, lá ele foi pra Woodstock, pirou muito, aí foi exilado, os Estados Unidos “bleh” expatriou. Aí, é ótimo, né? Juntou a fome com a vontade de comer. Mas era muito louco porque era um cara que tava verde, macrobiótico por causa de droga, tal, tinha uma mochila nas costas só, porque não conseguia casar, ter... Porque tudo pra ele ficou confuso, os amigos morreram, enfim, ele era irmão de uma amiga minha e quando eu conheci, eu falei “nossa, o que é isso, que estrupício é esse”, eu lembro. Mas aí, sabe, de repente, foi amor mesmo, tô casada com ele há 30 anos e ele é assim até hoje (risos), caaalmo.
P/1 – Que bom!
R – Ô.
P/1 – Deixa eu voltar só um pouco, você falou do nascimento da sua primeira filha, né, que faleceu logo em seguida.
R – É.
P/1 – E depois, logo em seguida, engravidou novamente do seu primeiro marido, é isso?
R – É, foi do primeiro marido mas esse veio porque pegou a pílula.
P/1 – É. Como é que foi? Não foi uma gravidez esperada?
R – Não, eu não queria mais, eu ia...
P/1 – Não queria mais?
R – Não. O que é interessante...
P/1 – Por causa da filha menina?
R – É, porque a minha especialização, se você quiser saber, é pra excepcionais. A minha filha nasceu assim, quer dizer, eu era a pessoa pra criar, não pra ela morrer. Aí, que fodeu “como morre?”, bleh, né? Você se acha onipotente. Então, é meio difícil. Foi difícil, quer dizer, eu faço essa leitura hoje, pra abaixar a minha onipotência, a minha arrogância, eu tive que levar baques fortes mesmo, pra ver que eu não domino, né? Hoje eu sou uma pessoa que eu falo domesticada, mais civilizada, aspas, que, de repente, se tira muito do sério, ou se me provoca demais, ou se eu vejo uma injustiça aí vruu, o dragão acorda, eu sempre falo “vou acordar o dragão aí”.
P/1 – Que idade você tinha nessa primeira gravidez?
R – Dezoito.
P/1 – Dezoito?
R – Porque eu fiz calculo.
P/1 – Bem nova também, né?
R – Não, mas era o ideal, ele era novo, eu tinha 18, todo mundo bem, na na nã. Mas porque a minha sobrinha, por exemplo, a Diana, ela nasceu três meses depois que a minha filha morreu. O que aconteceu? Eu puxei a Diana pra mim, tanto que a Diana fala que tem duas mães e ela tá com 40, né? Uma coisa assim e é a filha, né?
P/1 – E essa segunda gravidez, como é que foi?
R – Terrível, terrível, terrível. Não fiz enxoval, na primeira eu só engordei uns nove quilos... Eu não queria nem saber da gravidez, eu ia tirar. Mas a minha mãe “não, não tira” “Ó, se eu achar quem tire eu vou tirar”. Aí, eu não queria saber nada, nada de nada.
P/1 – Mas teve?
R – Tive, ele tá aí até hoje, é o meu guardião.
P/1 – E como é que foi depois do nascimento?
R – Porque foi muito louco essa história de engravidar... E, aí, também um marco muito grande na minha vida, que aí eu lembro de marcos, a minha vida é muito de marcos. Bobagem infância, na na nã. Mas, assim, eu quando perdi minha filha, eu parei de trabalhar com criança, jovem; eu fui trabalhar de vendedora, balconista. Eu chegou na loja, falei que tinha só instrução primária, óbvio que em três meses eu era gerente, entendeu? Né? E, aí, tinha lá uma moça, que não engravidava, que ela foi numa mulher e engravidou. Eu falei “ah, isso é psicológico, essas mulheres”, eu fechava esses lugares, Centro Espírita, Terreiro.
P/1 – Fechava?
R – Fechava.
P/1 – O quê que você quer dizer com fechava?
R – Porque eu fechava, literalmente, porque eu achava que tava explorando os pobres, a ingenuidade, chegava o ópio do futebol, ainda mais tudo isso...
P/1 – Mas você chegava lá e fazia o quê?
R – Ah, fazia um saruê desgraçado, levava polícia... Bom, aí ela falou “vai lá, pô, você engravida”, “Que vou engravidar, você é louca”. Eu falei “eu vou lá mas eu vou fechar”. Eu entrei na sala, tinha muita gente, era no Jabaquara, parece. E eu entrei lá na sala, tinha um médico e ela que era uma coisa vidente, né, assim?
P/1 – Médium?
R – Médium, é. Ela era médium, ela falava as doenças das pessoas e ele passava a medicação e não cobrava. Eu entrei, ela falou “ah, você não acredita”. Falei: “Ela já contou que eu não acredito” – né, claro, razão total – “Ah, tá bom, volta aqui daqui a quatro meses. Você vai voltar grávida”. Falei: “Ó, minha senhora, só se pegar a pílula na mão”. Fui viajar, sei até onde ele foi feito, em Santa Catarina, tal e, aí, quando eu cheguei, eu falei “deixa dar os quatro meses que ela vai ver o que é bom pra tosse” e eu fui lá. Ela “ah, tá, você veio dizer que você não tá grávida, né?” “Não” “Vai fazer exame” e eu menstruando. Eu tava de quatro meses. Aaaaai.
P/1 – Mexeu com você?
R – Eu falei “que diabo isso aí? Deve ter telepatia, né?”, aí começa, né? A cabeça começa a estudar, esses exotéricos que a gente tinha acesso na época, tal. Aí, eu voltei lá e ela falou “olha, vai ser um menino – não tinha ultrassom na minha época – ele vai ser teu grande guardião”. Eu falei “não, vai parando com isso, tá?” “Mas ele vai nascer de cesariana, você não vai ter problema pra criar”, tal. Pumba, nasceu.
P/1 – Você se lembra, assim, do parto?
R – Não, foi cesárea, na época tomava... Ah, porque era uma tragédia mulher fazer cesárea, não era essa Medicina que tem hoje, né? Eu não lembro, não, mas eu lembro que da minha primeira filha eu não chorei quando morreu, nada, porque vinham as tias “ai, deixa batizar” “Ah, vai batizar? Tá morto mesmo”, entendeu? E eu não chorei, eu sou muito dura pra chorar e quando ele nasceu, que eu trouxe ele pra casa, blololó, chorei muito. Ele não tinha roupa, eu não deixei ninguém comprar nada, doida, né? A onipotência de novo, entendeu? Era muito arrogante nisso.
P/1 – Como é que é o nome dele?
R – Alessandro, mas a gente chama ele de Téio, nem me pergunta o porquê. E ele me ajuda aqui, na Casa de Zezinho, ele administra o bazar mas ele tem uma empresa de carro, tal, mas ele tá sempre de olho em mim. Eu acho que eu falo assim pra ele “cara, você é um saco, meu, não é possível, como você é chato”, tal. Ele nunca quebrou nada, tal, eu quebrei tudo, né? Mesmo depois de casada, com filho e tal, eu continuei com esses esportes radicais, até hoje. Então, assim, ele é um guardião mesmo “mãe! Ô mãe!” (risos).
P/1 – E como é que foi ser mãe?
R – Pra mim foi louco, sabe? Como eu trabalhava com criança, eu gostava, botava no meio, entendeu? Aí, teve um outro marco.
P/1 – Quando você volta a trabalhar com criança? Que você parou, né?
R – É, então, depois que ele nasce eu volto a trabalhar. Mas, aí vem outro marco, quando ele tinha três anos, eu já tava querendo separar do Fred – que é o primeiro, Fredão, 1,80, alemão, tal, tudo certo, né? – mas ele não aceitava essa coisa de eu ir pra favela, articular, né? Aí, eu falei “vamo parar porque por enquanto eu te respeito, daqui a pouco não vai dar. Vai dar pau, vamo parar, na na nã, a gente tem um filho”. Mas, aí, a gente tava voltando de algum lugar (batida de mão), deu uma trombada, um bêbado pegou a gente de frente, aí meu filho cortou a língua, ficou pendurada – eu não lembro do acidente, não adianta que eu não lembro – teve um hematoma no cérebro e ele ia morrer. Eu também machuquei bastante, quebrei maxilar, eu abri o braço, você tá vendo o meu braço? Ó, coisa mais estranha, né? Aqui já é outra coisa, caí de novo, ó aqui, é pra cá. Na época eles consertavam direitinho, né? E, aí, eu lembro que eu não saquei o que tinha acontecido. Eu acordei, sei lá, acho que numa sala cirúrgica, tavam costurando aqui o rosto, aqui “o quê que isso aqui? Eu morri?” “Não”. Eu falei – olha aí a minha presunção, ó a arrogância – tudo de branco, luz, eu já comecei a ler as coisas, até então eu não acreditava, tava me fortalecendo com os livros e eu falei “não, pode falar, eu tô lendo isso”, eu achei que tava no Céu. Ó: eu pro Céu (com ironia), né? Teste. “Não, você teve um acidente de carro” “Quê? Cadê meu filho?” “Ah, seu filho tá no Centro Cirúrgico, ele teve um he...”, ele não acabou de falar hematoma, eu entrei, eu pulei, entrei no Centro Cirúrgico e eu tirei ele do Centro Cirúrgico “não, ninguém vai operar o meu filho”. Já tinham costurado o rosto, a língua não podia fazer nada, tava pendurada. Eu falei “não, mas não vão fazer nada”. Ficamos Fredão, meu filho e eu no quarto e, aí, eu fugi do hospital.
P/1 – Você fugiu com a criança?
R – Com ele e fui pra uma acupuntura lá, acho que Taboão da Serra, era um chinês, que eu já conhecia, que fazia acupuntura com agulha de ouro. Falei “ninguém vai operar o meu filho” porque era uma Medicina assustadora, imagina, furar o crânio, tirar... Argh. Aí, a polícia veio atrás, eu falei “eu sou a responsável – ainda tava na ditadura – o filho é meu, não vai tirar”, assinei que se ele morresse eu ia presa, blá, blá, blá. Fui pra acupuntura, esse cara fez um puta trabalho, tanto que o filho, tal, dele, os netos... É aquele cara, ele era o cara, a agulha era a extensão da mão dele. Aí, ele falou “ó, nós vamos trazer o hematoma pro rosto, ele vai ficar seis meses roxo” – e foi o que aconteceu. A língua ele falou “ele vai voltar – porque a língua regenera, eu não sabia – só que você vai ter que ficar em casa pra ensinar ele a falar de novo” “Tá bom”. Aí, eu comecei a fazer o que: eu toda vez que eu trabalhava numa escola – eu não lembro as escolas, não adianta você perguntar – ou num órgão público, eu era mandada embora em três meses (risos), entendeu?
P/1 – Por causa dele?
R – É, porque eu não aceitava as regras, imagina, uma coordenadora pedagógica subir em cima da mesa? Brincar com os alunos, “imagina, não podia”, entendeu? Eu tinha que manter no meu... Ah, puuuh. É claro que em três meses já era. Mas, eu era uma pessoa que dava jeito nas crianças, nos jovens que tinham problema lá, desvio de comportamento, não sei o que. Como aí eu parei mesmo, falei “ah, quer saber, vou abrir na minha casa”, eu, entendeu? Aí, na minha casa, já tô casada com o Saulo... Mas antes disso, sei lá... É, antes. Vai acompanhando eu que senão você se perde. Aí, eu fiquei em casa, com o Téio e toda hora era mandada – desde os 17 anos – eu fui mandada embora, só da USP que eu não fui expulsa. E eu tinha que ficar em casa pra ensinar ele a falar, por causa da língua cortada, a soprar e voltar a fala, né? Então, a escola começou a mandar pra mim “ah, tem uma casa, tem uma pedagoga” que, realmente, eu dava soluções rápidas pra esses problemas, né?
P/1 – Começou a mandar crianças?
R – Pra minha casa, pra eu trabalhar essas crianças. Como sempre, eu não conseguia trabalhar com uma criança, né, porque na Psicopedagogia você trabalhar com uma criança por vez e eu trabalhava 60, porque eu sou muito pra uma criança e os resultados eram rápidos, né? O método de trabalhar que eu tinha criado é o método disso aqui, entendeu?
P/1 – Conta um pouco como é que é o método.
R – É uma coisa que... Primeiro que é uma diversidade enorme pra se trabalhar e também de currículos, de histórias, começaram a chegar filhos de exilados políticos, chilenos, argentinos, sabe? Começou todo mundo a se falar “dessa mulher”, o que fazia. Tinha histórias malucas, que eu pegavas as crianças, os jovens, que eram mais mesmo, não era só aquele que não aprende, que esse, em um mês, eu já fazia aprender, acabou, que era rápido. Porque você muda o discurso, você faz a criança descobrir o conhecimento, não vem você com a tabuada, isso é bobagem. Então, como chegar na multiplicação, como chegar na divisão, como chegar no Português, na História, na Geografia. Eu fazia teatro, eu subia em cima da mesa, eu vestia os cara, um era Dom João, o outro ta rã rã, loucura mesmo. Loucura, pra todo mundo naquela época.
P/1 – Você se lembra de algum caso, assim que tenha sido marcante naquela época?
R – Ah, vários... Vários casos.
P/1 – Conta uns pra gente.
R – Tinha, por exemplo, um menino que a mãe... Não, ele só saia de casa com uma galinha amarrada na coleira. Conclusão, não podia entrar na escola, imagina que a escola ia entrar. A Casa de Zezinho deixou, o moleque entrou com um cavalo aqui, eu deixo, né? Bom, “imagina”, né? Aí, mandaram ele me procurar, o pai, um alemão, tal. “Não, ele pode entrar com a galinha, não tem problema nenhum. Mas que história essa galinha tem?” “Ah, mas é que a mãe”, eles dois, o pai e a mãe, vieram de Berlim Oriental, fugidos, ainda tinha um muro de Berlim. E uma vez, na feira, comprou um pintinho, ele cresceu só que a mãe se matou, ela não aguentou a distância da família, tal, então ela se suicidou, ela era uma engenheira química e se matou. O quê que sobrou da mãe? A galinha, ele não ia se desvencilhar, era a mãe. Quando eu soube da história, tal, eu falei “tá bom, então você tem direito, aqui todo mundo é democracia. Você tem direito a entrar com a galinha” “Pera aí que eu vou buscar o meu bicho de estimação” “Também tenho o direito de pôr aqui” “Ah, tem!”. E qual era o meu bicho de estimação? Um sapo boi. Peguei, pus em cima da mesa, que alguém tinha machucado esse sapo em algum lugar aí, trouxeram pra min. Peguei, consertei, os meninos pegavam mosca pra dar pra ele, entendeu? Fazia parte da educação. E pus em cima da mesa (risos). Quem ia imaginar? Um gatinho, cachorrinho, papagaio menos sapo, enorme, daqueles, “tira o sapo!”. Eu falei “tira a galinha, deixa os dois no quintal” “Tá bom” (risos). Aí, o pai quando foi buscar falou “não é possível”.
P/1 – Que ótimo.
R – Vários casos doidos assim, porque era muito divertido, né? Eu tenho alunos dessa época que ainda vem me ver ou, então, escreve no face. E, aí, começa a chamar a tia Dag, né? E era errado, não podia ter vínculo com o aluno, hoje pode, não podia. Imagina, casa, né? Casa da tia Dag, ficou assim, eu nunca suportei esse nome, escola, né? Então, eles vinham e depois, agora, vem, e assim “ah, você lembra de mim, hein, tia Dag? Eu estudei com você lá”, na na nã, “Ah, tá, você deve ser um homem e eu vou lembrar”, né? Que eram muitos, foram muitos, muitos.
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho nessa coisa da faculdade de Pedagogia, assim.
R – Um horror, um horror.
P/1 – Por que um horror? Qual foi a sua experiência universitária?
R – Ah, assim, é que a experiência universitária pra mim foi complicada, porque tinha uma parte que estava no meio dos movimentos estudantis, a outra parte tava em droga, na na nã, e eu tava afim de acabar logo esses negócios, entendeu? Então, eu tinha poucos amigos. Tem a Corina, que tá aqui até hoje, mas ela era bicho... Não, eu era bicho grilo, acho que é isso. Eu era o bicho grilo que eu não topava nada disso, né? Ela não; ela já era da pá furada mas a gente se gostava, era legal, que tá comigo até hoje, a Corina. Ajuda muito, é o braço direito na Casa de Zezinho, eu chamo ela de ministra-chefe da Casa Civil. Ela que faz essas coisas de planilha, arruma tudo isso, porque eu não sei. Mas a gente tinha umas identificações. Mas pra mim, assim, é que era muita teoria, nananã, Piaget, Vygotsky, na na ná. Não é que eu sou contra, eu não sou a melhor. Mas eu pensava “esses caras são da Suíça, puta, o Brasil é outra coisa”. E eu já conhecia o Brasil que a própria faculdade não conhecia, esse era o problema. Então, quando eu levantava questões do Brasil que ninguém conhecia, eu fui me acertar já no fim da faculdade, quando eu tive duas... Acho que duas PO, práticas obrigatórias, com o Paulo Freire. Uma eu fui numa construção e a outra fui num canavial, mas logo ele foi exilado.
P/1 – Mas você chegou a ter contato com ele?
R – É, uma vez. Aí, ele brigava comigo com esse negócio da tia, porque eu já tava em casa, ó que loucura. Tudo ao mesmo tempo, sempre. Eu sempre tive que ter mil coisas ao mesmo tempo, até hoje eu sou assim, porque me dá tédio não ter muita coisa pra fazer.
P/1 – E a militância política? Em algum momento você participou?
R – Ah, muito pouco, sabe? Eu achava que não ia mudar nada, que só ia mudar de lugar o poder, sempre achei isso. E achava que essa coisa do Socialismo, do Capitalismo, todas coisas onde tem ismo... [interrupção]
P/1 – Então, retomando, a gente parou e você tava falando o quê que te incomoda nos ismos. Se você puder retomar isso...
R – Então, eu não gosto, porque fica uma coisa muito radical, sabe? Não é flexível, né? Então, Capitalismo, Socialismo, Comunismo mas você pode ser tudo, né? Tudo o que ficou radical a gente vê o que deu, isso eu sempre pensei. Você pode ser democrático, você pode ser social, deve ser social, deve entender onde vive, mora, mas não deve ficar preso à dogmas e cartilhas, sabe? Isso é impressionante. E a pessoa fica muito radical e não muda. Tem uma coisa que eu gosto muito, do Raul – né, Raul Seixas, esse cara sempre genial, era outro também que tava 15 mil anos à frente – a música dele [cantando] “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha...”. Eu acho isso sensacional então eu canto.
P/1 – Eu adoro.
R – O pessoal, até a molecada “mas tia Dag, você não gostava”. Agora eu acho isso daí. Pronto. Eu mudo, eu sou gente, eu não vou ficar igual, não sou árvore, tal.
P/1 – Aí, eu queria saber quando que você começou a trabalhar com Educação. Conta, assim, como que foi?
R – Não, desde os 14 anos eu trabalho com Educação, né? De dar aula pros amiguinhos. Mas em casa mesmo eu tinha 17, 18 anos. A história – quantos anos eu tinha, não lembro – do meu filho eu já trabalhava, dava aula em escola... Dava aula não, eu era coordenadora, mas não dava.
P/1 – Mas já tinha terminado a faculdade?
R – Não, já fazia os estágios que tinha que fazer, foi um problema pra mim, porque era três meses. Nossa Senhora.
P/1 – Era muita coisa pra conciliar?
R – Não. O problema era a escola me aceitar porque eu não ia entrar na regra daquilo ali. Não ia, não teve jeito nunca pra mim.
P/1 – Você lembra do seu primeiro emprego em escola?
R – O primeiro emprego, emprego? Não. É pouco tempo que eu passei, sabe? Como eu te falei, não serviu, tchau, entendeu? Eu gosto muito de lembrar o tempo que eu comecei na Casa, lá em casa, sabe? Isso eu lembro, desse momento que hoje eu encaro como uma preparação pra Casa do Zezinho. Foi grande a preparação, com essa vivência, com essa Pedagogia, que tinha que ser diferente pra cada um, como é aqui, e não ser uma massa, boiada, entendeu? E o cuidado pra cada um, o jeito de cada, que você tem que parar, tem que ouvir, na na nã, na na nã, conhecer quem é aquela pessoa. Então, ali começa muito a história da Casa de Zezinho, isso hoje eu tô vendo, né, os processos todos que eu trabalho. Por exemplo, o quê que eu fazia com esses que vinham exilados, chinelo, argentino? A América inteira tava derrubada com ditadura, Muro de Berlim, aí tinha mulçumano, tinha libanês, era uma doidera, tinha judeu. Mas era tudo junto. E eu comecei a buscar qual era a melhor maneira de trabalhar esses traumas porque isso é trauma já, né? O cara é arrancado. Mas, comecei a perceber, como eu pesquisava com eles a vida, como é que era no Chile, quando chegou como é que tá, na na nã, eu podia ver que o Chile veio, a comida era chilena, a língua que tavam falando, a religião. Aí, eu comecei, falei “pera aí”. Então, eu comecei a trabalhar assim – aí começa uma outra louca história, não lembro a data, tá? –eu comecei a levar na favela – porque eu já atuava de sábado e domingo na favela, tá? – eu levava comida, ou alfabetizava e também trazia meninos da favela pra ter aula comigo, junto com essa tropa, precisava alfabetizar e tal, ou punha na escola e precisava quebrar o pau pra ter aula. Ih, pronto, é Robin Hood, sabe? Aquele... como ele chama? Do Miguel de Cervantes?
P/1 – Dom Quixote.
R – Dom Quixote, é próprio, né? E, aí, eu comecei a trazer, tal, eu comecei a levar esses meninos pra favela. Eu falei “olha, vocês têm traumas, vou entender, tal, mas eu vou levar vocês pra conhecer gente que tá no trauma há 500 anos, os filhos dos negros, os filhos dos índios” e mostrava.
P/1 – E como é que eram esses encontros, assim? Como é que esses meninos reagiam quando chegavam?
R – Eles tomavam um choque, nunca podiam imaginar aqueles tipos de casas, aquela miséria em São Paulo. Eles moravam em outro local, comigo. Mas, você tem que entender que em toda classe média o entorno é favela, que é o que presta serviço, é a lavadeira, é o porteiro, na na nã, pra quem tá ali. E, aí, eu começo a levar e, aí, eles... Ó o trauma, porque a cultura deles não serve, porque o que eles sabem não interessa, é bobagem, né? É uma coisa muito louca.
P/1 – E você lembra de alguma dessas visitas ou um fato marcante, um momento?
R – Era tudo marcante, viu? Era muita miséria, assim. Só que – detalhe, isso eu sempre coloquei – era uma favela pobre mas era o pai, a mãe e o filho, aquele retirante que construiu São Paulo, certo? Um migrante, né? Então, o pai ainda preservava algumas coisas, o pai era o cara que sabia construir em 24 horas. Eu não sei fazer um barraco em 24 e nem você.
P/1 – Não.
R – Então, é um saber que interessa. Sabia que se a formiguinha mudou de lugar ia ter chuva, ele tinha o conhecimento da natureza, trazia as músicas e tal. Mas, chega o grande professor do século XX. Quem é o grande professor do século XX? Televisão. Igual professor, fala, fala, fala e você só fica ali, ouvindo, ouvindo, ouvindo. Então, isso é professor, ele manda o conteúdo – isso é a minha definição de professor – televisão é. E ela entrou na favela, com o milagre econômico do Médici, dos generais, todo mundo pôde comprar à prestação, até ali nos barracos, nas favelas “Ué, todo mundo tem. Também quero”. O pai não tinha dinheiro, então, aquela autoridade do pai, de conhecimento, não interessava porque não dava pra eles ter nada. Por enquanto dava porque eles entendiam aquela célula familiar. Aí, começam a roubarem no entorno, aí surge o esquadrão da morte e era um absurdo.
P/1 – Você acha que televisão incentivou o consumo de tal maneira que...
R – Muito, até hoje, você sabe, né? Enfim, aí, eles começam a roubar no entorno e esses caras do esquadrão da morte colocavam num poste o nome de quem tinha que sair da favela em sete dias ou eles matavam ou aleijavam, pra ficar paralítico, tetraplégico.
P/1 – Você chegou a ver isso de perto?
R – Cheguei. Aí, comecei a pegar os nomes, pegar as crianças e procurar lugar pra esconder e todo mundo tinha medo, porque vai chegar o esquadrão, vai entrar na casa e, aí, comecei a procurar lugar em São Paulo pra esconder e ninguém queria. Comecei a esconder na minha casa.
P/1 – Essas crianças que estavam juradas de morte, isso que você diz?
R – Aí, eu comecei a esconder dentro da minha casa, eu não tinha medo, não.
P/1 – Quais eram essas favelas que você costuma frequentar?
R – Olha, eu comecei com a favela – tanto que outro dia eu comecei a falar nessas favelas, os manos aí “pô, tia, você é...” (risos) – a primeira foi a do Buraco Quente, Tomba Homem, Levanta Saia – ó os nomes, né? -, do Fedor, eram umas favelas...
P/1 – E essa atividade que você começou a fazer nas favelas primeiro eram visitas e depois eram ações?
R – Não, sempre foram ações.
P/1 – De que natureza? Que tipo de ações?
R – Todas. Eram desde de ver a questão de saúde, óculos, porque tem essa história do Miguilim, né, a criança não aprende porque ninguém parou pra ver que ela precisa de um óculos, a questão humanitária da coisa. E ver se a escola tava, na época não tinha escola pública, não era todo mundo que ia pra escola, né? Eram ações e, aí, começo a puxar a turma da faculdade “ah, é, vocês querem mudar o Brasil? Então vamo, vamo lá”. Mudar o Brasil em reuniões, pa ra rá, nã nã nã, é uma coisa; mudar o Brasil lá – e eu não tô lá, no Nordeste, eu tô lá em São Paulo – então as coisas do medo, com esses esquadrões... Que hoje é a milícia, a mesma coisa. Hoje a população tá do lado da milícia, mas na época do esquadrão não. Então, caramba, eu pegava gente, sempre tive esse poder de convencimento, sabe? Por isso que eu falo “ainda bem que eu dei pro bem”, porque se eu dou pro mal ia dar um problema aí.
P/1 – Mas você tava vinculada à organizações?
R – Nenhuma.
P/1 – Você ia sozinha?
R – Eu não consigo.
P/1 – Você ia na cara e coragem?
R – Eu ia na cara e coragem, como eu já ia com os meus pais naquela época e sempre achei que a favela, pra mim, eram só seres humanos com menos grana, que poderiam ascender, sabe? Era tão natural tudo pra mim, é ainda, tá?
P/1 – E como você abordava essas famílias?
R – Ah, eu entrava, batia palma e falava “ah, então, como é que tá a sua vida”, toma um café, na na nã. E essa coisa minha carismática, de bater um papo, logo a pessoa entrava e aí você conhece um pronto, você tem o passaporte pra favela inteira. Não é que eu ia lá uma vez por ano dar uma cesta básica, porque é isso que fazem até hoje e querem ser recebidos ainda. Eu acho ótimo quando chegam com a cesta básica e o pessoal recebe à bala, não é? Ah, tá, no Natal, quando a sua consciência tá ruim, você leva a cesta básica. Se cata, meu, vai pensar! A periferia não quer mais caridade, não, desde que os Racionais, aí, o rap levantou a periferia, acabou essa história, né? E eles não são a minoria, são maioria, tem mais gente, quem é minoria é “nóis”. Então, abre o olho aí.
P/1 – E, aí, vocês chegavam nas famílias, então, e faziam esse acompanhamento?
R – Sim. E, aí, eu levava o meu filho também, levava a minha sobrinha, levava o meu amigo, levava o outro. É impressionante essa minha liderança, sabe? Muito grande e o poder de convencimento e a seriedade com que eu fazia, isso foi o mais importante, desde que eu me conheço por gente, “ah, não, se a tinha Dag falou” é lei, porque eu não ia furar, entendeu? Então, eu vivi muitos anos da minha vida – vivo, né, quase – pensando nisso, como resolver o problema da moradia, da saúde, da escola, eu sempre me envolvi com isso. Mas, eu não me envolvia com grupos, eu não conseguia, porque aí começa os dogmas e você é obrigada a respeitar e eu não sei. Sabe o condicional, o verbo condicional, o tempo? “Se você”, cara, não tem “se” comigo, você me convence, eu me considero uma pessoa inteligente e se você vier com os argumentos inteligentes, ok. Senão...
P/1 – E a Casa de Zezinho, hoje em dia, olhando pra trás, você vê que nasceu então dessa experiência?
R – Da experiência, claro, claro. Olhando pra trás eu vejo que nasce. Por que o que aconteceu? A casa começou a ficar cheia de criança morando (risos).
P/1 – As crianças da favela também?
R – É morando. E meu filho era filho único, ele nunca conseguiu ser o cara do quarto, sozinho, né? Interessante que foi chegando, tal, e eu falei “Saulo, a gente precisa de um lugar maior, né?” (risos). Aí, a gente veio pra cá. Isso aqui, o Campo de Fora, onde nós estamos, era rua de terra, eram pequenas chácaras, não tinha a favela lá embaixo. E, aí, a gente começou a vir pra cá, era uma casa pra morar, né, eu não morei...
P/1 – Vocês compraram essa casa?
R – Comprei essa casa aqui do lado era térrea e eu não morei. Falei “quer saber de uma coisa, eu vou começar o meu trabalho de Educação”. Peguei minhas amigas do tempo da USP, pessoas de movimento – só não tá uma até hoje, que morreu – mas estão todas elas aí, mulheres, pra variar, fortes, começaram a vir. Todas elas eram de movimentos, umas tavam exiladas, outras chegaram, umas perderam os irmãos na tortura, enfim, né? Mulher forte. Falei “vamos mudar o Brasil?” “Vamos”. E cada dia uma faltava no emprego para estar aqui e a gente já começa com sei lá quantos Zezinhos. E o nome, que é agora Zezinho, vem da poesia de Carlos Drummond de Andrade “E agora, José?”, não é? Que aquele José que é sem nome, né, a noite esfriou, essa coisa toda do Carlos Drummond e eu falei “não, chega de pergunta, é uma exclamação: é agora José!”. Comecei aqui, isso aqui era um terreno baldio, lá na esquina, onde matavam as pessoas e jogavam aí. E “você não tem medo?” – não tinha casa nessa rua – “Puta, você não tem medo?” Se eu tiver medo eu não vivo, né? E a propaganda boca a boca começou a espalhar, a favela começou a crescer e pumba, começa a vir gente pra caramba, até hoje.
P/1 – Conta um pouco como é que vocês estruturaram o trabalho. Qual que é o trabalho que vocês se propunham e se propõem a fazer?
R – A primeira coisa que a gente fez – e até hoje é assim – foi mapear os entornos aqui pra saber o que tinha de bom, sempre foi assim. Porque, geralmente, as pessoas vão mapear pra ver o que tem de ruim e eu sei o que tem de ruim, eu não preciso mapear. Eu preciso saber o que – é muito louco isso aí – o que ainda tem. Então, por exemplo, como é que a gente decidiu o que ia ter a Casa de Zezinho, começando, né? Por exemplo, muitas mães pediam alfabetização porque percebiam que os filhos delas não conseguiam aprender nada. Eu percebi que muitas avós que tavam cuidando das crianças ainda pegavam barro dos riozinhos limpos que tinha aqui e faziam bonequinho de argila. Eu falei “opa” aí tem a cerâmica, isso é legal, isso é pedagógico, imagina dar cerâmica numa escola particular? Eu já via que isso dava certo, fazer papel e o mosaico que era uma coisa que eu sabia que dava certo, pegar os cacos, né? E é interessante que eu fui procurar em São Paulo um lugar pra ensinar cerâmica brasileira... Nenhum. Só tinha japonês, até hoje não tem, acho que não, só o japonês, cerâmica japonesa. Eu fui aprender pra poder dar aula e nunca esqueço isso, eram poucos ainda, isso marcou também, eu tava fazendo cerâmica com as ferramentas, torno... E era louco, no fim todo mundo foi mandado embora do emprego. Eu já não dava aula mesmo, dava aula em casa, então tudo bem, mas foi todo mundo mandado embora – minhas amigas, duras até não poder mais, né, porque era sem dinheiro – e eu tô dando aula de cerâmica e, aí, um menino fala assim pra mim “ah, minha vó faz isso com casca de coco”. Falei: “Vai buscar a sua vó porque eu não sei”. Trouxe a vó, mandei comprar um coco, a véinha pegou o coco, quebrou o coco, raspou, tinha várias ferramentas de coco – ó meu torno, ó fiu – ela tirou, pegou uma panela, uma tampa e tic, tic, tic. Falei “aaai, que vergonha”, né? Aí, eu falei “olha, a senhora vai ser a minha primeira educadora que eu vou contratar, eu pago a senhora.” “Não, eu não posso.” Falei: “Por quê?” “Eu sou analfabeta.” “Eu sou analfabeta em casca de coco; a senhora é em letras. A gente troca conhecimento”, né? E ela ficou aí um ano. Aí, eu ensinei técnicas japonesas, tintura, putz, em cinco anos voltaram lá pro Crato, não sei pra onde, até hoje vivem de cerâmica. Que, até então, o Brasil fiu “ah, isso é bobagem, isso não serve”. Entendeu?
P/1 – Você lembra o nome dela?
R – Não. Eu sei que o menino era Saruê mas isso é apelido, né? Porque era um esquilo, subia em todas as árvores. Imagina esse menino preso em São Paulo? Então, ele voltou lá, porque ela tinha uma terra lá, mas veio por causa de seca, não sei o quê, enfim. Então, o Brasil tem essa mania do projeto começar de cima pra baixo, pô. Ouve, vê o que quer, quem são, dá certo. Senão eu não tava aqui há 20 anos. Isso o oficial porque eu tô aqui há 30, que é a casa que a gente comprou, começa, na na nã, até que você oficializa, né?
P/1 – E, aí, como é que vocês fizeram pra se manter por um tempo? Porque você disse que as pessoas perderam o emprego. Enfim, como é que foi?
R – Ah, a gente foi se virando, né? A gente fazia rifa, ninguém podia olhar mais na minha cara, né? E o que era legal porque a gente ganhava todas as rifas “ah, você tem alguma conexão”. “Eu não tenho nada, cara.” Rifava de novo, na terceira vez o cara falava “ô, você não compra a rifa senão a gente não vai comprar”. “Tudo bem.” Rifa, bingo, enfim. Até que, assim, outro fato do começo da Casa de Zezinho – aí eu já acho que é anos 90, por aí...
P/1 – Vocês começam mais ou menos em que época, que ano, assim? Mais 80 e pouco?
R – Deve ser 80 e tanto quando a gente compra a casa, por aí. Isso aqui era rua de terra, presta atenção, né? E, aí, uma coisa louca, isso foi um marco também, no meu dia uma criança quebrou a mão e eu levei pro ortopedista, deixei com uma moça que tava me ajudando e ele voltou com o braço engessado mas eu passei no McDonald’s e ele veio com o lanche feliz. Isso é verdade: no dia seguinte eu tinha quatro, cinco crianças com o dedo quebrado. Falei “pera aí”, juntei todo mundo nessa sala, “vocês estão quebrando o dedo pra ir no McDonald’s?” “Claro!” “Mas por quê que vocês não vieram falar comigo?” “Pode?”. Aí, eu saquei que eu tava fazendo uma coisa errada, eu não tinha ensinado como eles poderiam reivindicar, formar comissão – que isso tem até hoje na Casa do Zezinho – formar comissões, aprender a reivindicar. Eu falei “caraca, meu, tô fazendo igual”, aí, ficava assim “pedagoga burra”, tal, não sei quê. E, aí, a gente foi pro McDonald’s. Chega no McDonald’s – não tinha pra cá, imagina, quem que vinha pro Capão? Ninguém, só eu.
P/1 – Pra onde que vocês foram? Pra que lugar vocês foram?
R – Lá pra frente, lá pra... Nem sei onde era, acho que frente do Borba Gato, lá, né? Que Santo Amaro eu sempre conheci bem. Aí, chegando lá, os caras não queriam que a gente entrasse na fila, tudo pretinho, né, essas coisas. Eu falei: “Então, nós vamos dar encrenca aqui. Vai ter uma senhora encrenca, eu vou chamar televisão – blá, blá, blá – todos eles têm dinheiro no bolso e vão comprar, vai ter troco, eles vão sentar aonde querem na na nã, na na nã. E um empresário tava vendo eu fazer isso, eram 60. Arrumei voluntário pra por no carro, voluntário pra dar dinheiro porque ser meu amigo é problema, se você é meu amigo você vai ter problema, você vai ter que desembolsar. Bom, e, aí, esse empresário veio conversar comigo, falou “bom, mas quê que é?”, contei a história da Casa de Zezinho, o porquê. Ele falou: “Posso ajudar na volta?” – ele tava com os filhos dele. Falei: “Pode”. E foi a primeira vez que eu entrei num Audi, maluca. E, assim, quando ele viu o terreno aí, nesse quarteirão aí, da esquina, ele falou: “Tia Dag, qual é o teu sonho?” “Cara, sonho, sonho mesmo, é que toda criança tenha alguns direitos do mundo. A estudar, saúde, moradia, carinho”, né? Ele falou: “Não, não, não. Aqui, nessa esquina”. “Eu ponho duas mil aí” “Você tem um projeto na cabeça?” “Tenho.” “Tá bom.” Não dei bola, ele me deu o cartão, eu sou, né, pumba, passei pra Corina, depois ela me chamou: “Você viu quem é?” “Não, vou ver quem é?” “Puta, o cara é dono do moinho Santo André”. No dia seguinte parou um caminhão aí de arroz, feijão, macarrão, eu falei: “Cáspita, não tem lugar pra pôr o arroz, feijão”. Liguei pra ele e falei: “Meu, você é exagerado, não tem aonde pôr. A gente come aqui sentado no quintal, la la lá”. “Não, vocês vão longe.” Aí, eu fiz o desenho, como eu queria, tudo aqui é como eu imaginei e, enfim, construiu lá os dois andares. E, aí, começa a Casa do Zezinho a ser conhecida e a gente começa a fazer trabalhos de captação, da gestão, a coisa mais burocrata, a gente tem que crescer direito, né? E tamo aí.
P/1 – E você pode falar o nome dele, não?
R – Ele é o meu vice-presidente, coitado.
P/1 – Ele é?
R – É, até hoje. Chama João Batista Cardoso. Até hoje, ninguém merece, né?
P/1 – Ele ficou?
R – Ninguém merece ouvir isso da tia Dag. Mas é interessante como ele arrecadou grana pra construção. Interessante, o cara se envolveu mesmo, não era só... Quando ele vem aqui, a molecada: “Aí, Batistinha, tudo bem?”, tal, não sei quê. Ele é envolvido com a Casa de Zezinho e participou de várias... Porque s vezes eu ligava pra ele falava: “Olha, eu compro cimento, ou compro arroz, feijão...” Ou carne, né, porque arroz e feijão vinha. “Claro que vai comprar carne.” “Então, tá bom, não vou comprar cimento”. Ele fala que a obra mais cara da vida dele foi essa (risos).
P/1 – Você servem alimentação pra crianças desde o começo?
R – Hã?
P/1 – Alimentação pras crianças.
R – Não pra todas, né? Porque eu tive grandes angústias aqui, porque eu tinha que escolher 300 pra dar comida. Nossa, isso pra mim era... Aí, eu consegui um convênio com a prefeitura de comida. Hoje eu sirvo pra todos e o ano passado, assim, eu tive, puta, a maior notícia, né? A gente zerou o nível de subnutrição aqui. Nenhum, nenhum.
P/1 – Incrível.
R – Nenhum e nem os familiares, nenhum é subnutrido. Vinte anos depois, a gente conseguiu.
P/1 – Quero te perguntar, então, a gente aproveitar pra entrar um pouco na questão do nutrir.
R – Sim.
P/1 – Que tem a ver com isso também. Eu queria saber como você conheceu o programa.
R – A gente fez parceria com a Nestlé, né? Começa com a parceria na gastronomia e também nas aulas pras mães aprenderem o reuso. Aí, começa um trabalho muito legal de observar a nutrição das crianças porque era muito difícil fazer essas crianças comer maçã. Maçã, verdura, legumes, foi tudo um processo. Será que tem dez anos? Tem que ver com a Corina. Foi todo um processo pra ensinar porque era incrível, eles catavam a maça aqui e pá pum, jogavam fora. Aí, a turma: “Tá vendo, essas crianças são tudo mal criadas”. “Caramba, são séculos que não se come maçã. Não é assim, né? Vamo aprender, vamos mudar a maçã, vou pôr o açúcar, tira o açúcar”, enfim. Sabe, educar é sedução, tem que seduzir os caras. E, ai, a gente foi, o projeto ensinou muito como fazer isso, como seduzir, né? Que a gente explicava as nossas dificuldades, quais eram, tal e a gastronomia também ajudava no sentido, assim, de pegar aquela bendita carne seca e fazer escondidinho, fazer uma coisa mais chique, tal. É legal, por isso que eu sempre falo: “Atravessa a ponte, caramba, e ensina e aprende”, entendeu? Não julga, pelo amor de Deus, não vai julgando. E, aí, a Nestlé topou esse desafio.
P/1 – Quando vocês começaram a servir refeição aqui era o que, um almoço?
R – A gente começou um café da manhã e um almoço. Hoje é café da manhã – junto também com o Nutrir – almoço, lanche à tarde, lanche à noite pra turma da noite e mais um lanche quando sai. E a Nestlé manda muito essas coisas que eles têm, né, Danoninho e vem de buuum, dá pra dar pra todo mundo, ah, isso é sensacional.
P/1 – E desses produtos que a Nestlé manda, o quê que vocês mais consomem aqui? Que produtos são esses?
R – O Danoninho é um, né? Um suquinho, um desses sucos de fruta também é um sucesso. O que mais? O leite eu comecei a pedir um pouco de leite em pó, já era pra família de Zezinho, de criança que tavam sem leite, tal. Eu acho que eles gostam mesmo é o Danoninho e aquele negócio que vem com Sucrilhos, sabe? É um iogurte que vem com Sucrilhos e, aí, já dá um barato, coisa assim. Não, e apresentar, isso é importante. Falar: “Você também pode chegar aí”. Vamos buscar, vamos batalhar, educa essa família.
P/1 – Para as famílias vocês servem suprimentos também?
R – Ah, se veio muito e tá com prazo rápido, a gente manda já. A gente sabe quantos... Que aqui, a Casa do Zezinho trabalha individualmente, né? Cada um sabe na casa quantos filhos tem, é muito legal. Legal as festas também que vem com tudo e, aí, a gente serve cachorro quente, hambúrguer, o que não presta também, algodão doce, pizza, que é uma delícia, né? Mas...
P/1 – Essa construção com a Nestlé, então, você lembra como é que se deu?
R – Não, não lembro.
P/1 – Vocês procuraram a Nestlé? A Nestlé encontrou vocês?
R – A gente que procurou, provavelmente, né? E, aí, ficou. Faz tempo, que a Nestlé passou por vários projetos da Casa de Zezinho, agora é o Nutrir. O ano passado ela fez o projeto da obesidade. Eu tinha algumas crianças – algumas – obesas. E como trabalhar essas crianças, né? Por quê? O açúcar é energia rápida, certo? E é barato, né? Salgadinho, o doce, então, claro todo mundo comprava. Pra isso tem todo um trabalho de sedução, de educação, pra mudar a alimentação e o controle com psicólogas, com nutricionistas dessa criança que... E tem dado certo, né? Continua ainda o projeto.
P/1 – E essa aproximação da Nestlé com a Casa do Zezinho? Você se lembra quais funcionários vieram até aqui ou treinamento? Ou pro treinamento de equipe?
R – Sempre há. Sempre há porque tem que conhecer mas eu não chamo treinamento. Treinamento você dá pra bicho, né?
P/1 – Como você chamaria? Capacitação?
R – Também não. Você não capacita ninguém, todo mundo nasce capaz. Formação.
P/1 – Formação. Tem que ter?
R – Aí sim.
P/1 – Tem que ter uma formação?
R – Tem porque tem tanto a formação da Casa de Zezinho com o parceiro quanto do parceiro com a casa do Zezinho. Isso é parceria, eu não aceito outro tipo, não vem impor. Por exemplo, tem empresas que chegam aqui: “Ah, a gente vai dar emprego pra 500 Zezinhos”. “Qual é a profissão?” “Ah, call center.” Falei: “Sem chance, vão arrumar em outro lugar”, entendeu? Ou, então, chegou coisas assim aqui: “Ah, eles vão botar prego em dobradiças”. Eu falei: “Cara, vai procurar a sua mãe pra fazer isso”, né? Subemprego. Aí, eu sou mal educada, “a tia Dag não nasce com trava”, pô, o cara se enxerga, meu! Sabe? Vai continuar o subemprego? Por que não mudar essa história? Se não mudar, vai continuar, _________(1h19min) já falava há mais de dez anos “a periferia tá armada”, e aí? Ó o rolezinho como assustou. E ó: isso é o começo.
P/1 – E esse contato, assim, de formação você acompanhou um pouco? Eu queria saber, assim, como é que foi a troca mesmo, de quem veio da Nestlé, quem já tava trabalhando aqui?
R – Foi aquela troca mesmo, assim, do ouvir, a primeira coisa. Ouve o que a Nestlé fala, ouve o que a Casa do Zezinho fala e como a gente pode conciliar as ideias e quais são as ferramentas pedagógicas que cada um precisa, certo? É legal chamar as mães pra aprender a comer um resto de cenoura se ela não come cenoura? Então, primeiro vamos chamar a mãe pra aprender a comer cenoura e porquê. Vamos deixar essa cenoura saborosa e, aí, depois, você pode introduzir essa coisa, né, o reaproveitamento de alimentos pra não jogar fora. Isso sim. Então, isso que eu te falo, a troca é assim, porque toda a parceria aqui tem isso, não tem jeito, porque as pessoas não são preparadas pra lidar com periferia. Não são. A linguagem é outra, o dialeto é outro. Eu conheço todo o dialeto mas você vai conversar com os manos você dança, né? Então, é interessante conhecer a linguagem, o comportamento, que muitas vezes você acha “não, mas eles falam alto” – e no começo falam alto. Agora, vai morar na favela e fica lá um final de semana, rádio, cada um escutando alguma coisa, parede grudada, berrando. Então, você tem que falar alto pra você ser ouvido. Muitas vezes eu levo Zezinho pra minha casa, uns aí que a gente precisa tirar, blé, né? Então, eles falam assim: "Tia Dag, sua casa é muito silenciosa". Eu já sei, ligo a televisão e acendo a luz, senão não dorme. Então, isso é exatamente o reflexo de como é em casa. Se o educador não sacar isso, que ele vai falar alto, então a gente tem que preparar essa pessoa: "Ó, vamos fazer uma formação de Zezinho?". Ele vai falar alto, ele vai falar palavrão, ele vai ter uma linguagem, ele vai te, sabe, desafiar. Aceita. Ouve. Perde uma semana ouvindo "Quem é você? O que você quer? O que você pretende? O que você gosta?". Ouve, depois você coloca a sua vontade e, aí, há uma troca. Quando há essa troca acabou, você vai tranquila, entendeu? Vai muito...
P/1 – E você falou dessa aproximação das mães, né? Depois pra aprender a reaproveitar os alimentos...
R – Sim. Aprender, primeiro, a cozinhar uma cenoura, né? (risos)
P/1 – E eram oficinas? O quê que foram?
R – É, eu não gosto dessa coisa de oficina, né? Você vê como é que eu sou. Eu gosto muito de espaço de aprendizado, né? Então, elas chegavam, o pessoal usava lá a gastronomia ou o próprio refeitório, né, com as minhas cozinheiras, que tem uma equipe grande aí, né? Imagina, cozinhar pra mais de mil, né? Mas é uma comida muito gostosa. Mas, também, essa troca, porque é difícil, vem uma turma e tem os funcionários, né? Chegou gente nova, quer mandar. Então, com isso, elas contando as histórias e experiências de comida e a outra turma também e como é que a gente pode conciliar. Por isso que eu falei, não adianta querer que ela coma a folha da cenoura se ela não come cenoura. Pera aí. Então, vai ser pelo doce? Vai fazer um bolo de cenoura sem açúcar, com alguma coisa assim? É muito interessante essa troca, eu acho que pros dois lados enriquece. Acho não, tenho certeza, né? Então, aí, começam as aulas e todo mundo participa, não fica, assim, um bando de gente sentada. Não dá, isso já acabou, né? Século XXI, iPad, iPhone, hã? Esses Y todos. Então, cê pega essa gente e é outro papo, não os pais mas os jovens, né? Eu tenho criança de 12 anos aí que faz aplicativo. Faz e vende, que tem oficina de aplicativo aqui, tem espaço pra aprender a fazer aplicativo. Não tem universidade disso mas eu tenho, entendeu? Os moleques aqui, eu lembro que outro dia veio o... Marcelo Tas tava conversando comigo, que ele é superamigo, desde 2001 e, aí, ele falou: "Pois é, tia Dag, eu tô mandando ver, quantas palestras eu dei e tal...” E o moleque ouvindo, 12 anos. Acabou a conversa, ele falou: "Tó, Tas”, o aplicativo pronto. A vida do Marcelo Tas num aplicativo.
P/1 – Muito rápido, né?
R – Ô. Então, você imagina se ficar, né? Nossa, eu me assustei, há um ano, por aí “Tia Dag, cê ainda passa e-mail?”. Falei: “Passa o quê agora? Só pra eu saber, né?” “Ah, tia Dag, face, o Messenger”, na na nã, você usa as palavras compridas, né, que eles sabem de tudo. Então, eu sempre fiz assim, duas conversas, né: “Olha, isso aqui é conversa da tia Dag, isso é dos manos”. Então, fui mostrando. E, também: “Pera aí, vamo trocar. Eu ouço a sua música, você vai ouvir a minha”, tem orquestra. Ela toca clássicos, toca MPB mas toca o rap, entendeu? Óbvio, se você não misturar, você não faz bolo nenhum, entendeu?
P/1 – E esses encontros das famílias com a sua esquipe de cozinha, a equipe que vinha da Nestlé com nutricionistas...
R – Tinha tudo. E o ano passado tinha psicóloga. Acho que foi até o começo desse ano. Esse ano eu não sei qual o projeto, sinceramente, mas tinha psicóloga, a nutricionista, que era pra tratar o caso dos obesos, porque o caso de subnutrição clac. Ainda deu uma entrevista. Acabou. Tá vendo? É boa vontade.
P/1 – E teve a participação do programa, do Nutrir, nessa melhora, de acabar com a subnutrição?
R – Teve, claro. Era a nossa meta, uma das primeiras metas. Uma das primeiras foi gastronomia, tanto que eles vieram, vieram os diretores aqui, fizeram formatura, é muito legal isso. Diretor dá palestra, isso eu sempre falo pros parceiros. Quando vem um presidente de uma empresa aqui dar palestra e contar, algumas empresas falam: “Eu vendia panela de pressão e consertava na feira”. “Opa, também posso!” E aí, começam as perguntas: “Puta, como é que você fez?”, ta na nã, na na nã, diretor de RH, sabe? Quando começa, eu falo: “Gente, atravessa a ponte, por favor, vem falar. Ouve, troca”. E é muito... À noite a gente tem muito disso aqui.
P/1 – E isso aconteceu?
R – Aconteceu com a Nestlé.
P/1 – Eles vieram?
R – Aconteceu. Eles vieram na formatura, experimentaram prato, acharam se tava bom, se não tava. É legal pra caramba isso, é ser respeitado. Por que não?
P/1 – O quê que é esse projeto da gastronomia?
R – Era mesmo dois chefes de cozinha que davam aula pra a formação de Zezinhos, com gastrônomo, muito chique. Sabe, jovens, que a criança é cozinha educacional, tá, muda o foco, não vai formar ninguém. Mas, é mais à tarde, os jovens um pouco mais velhos e à noite, quem quer mudar de profissão, um ano, duas vezes por semana. Não é, blé, não é três meses que aí é bobagem, isso aí não é um fim de semana. Aprendizado, teoria, prática, tal, precisa ver os pratos que esses caras fazem, você não tem noção. E chique, né? Eu experimento todos (risos).
P/1 – E teve uma formatura?
R – Teve, toda vez tem, sempre no fim do ano tem a formatura. E é interessante que vem os diretores, sabe, homenagear. É interessante isso. Teve uma outra empresa, que eu achei também sensacional, Schneider, de eletricidade, deu o curso aqui só que ele fez a formatura lá na empresa, que eles tinham auditório e eu fui – óbvio, que eu sou galinha choca. O buffet que foi, foi da gastronomia e foi pago, né, porque é uma experiência nova. Pegou dois ônibus, levou a turma mais a família, todo mundo vestidinho bonito, sabe, arrumado e o diploma foi entregue, como qualquer diploma, em qualquer lugar. Você precisava ver o orgulho deles, da família, vendo lá o pai, ou vendo o tio, ou vendo o irmão, clap clap, sabe? Dá dignidade, é isso que esse povo quer. Só. Não é: “Ah, não, vai. Tó o certificado”, sabe? Aqui não, aqui é muito legal porque todos os parceiros, realmente, compram a ideia da Casa do Zezinho, de respeito.
P/1 – Esse projeto da Nestlé tem uma constância? É todos anos?
R – Todos os anos. Isso aí...
P/1 – Todos os anos. E quantos jovens, mais ou menos?
R – Ah, sei lá eu. Aqui já passaram mais de dez mil. Já te falei que eu não sou de planilha, tá? Sou de contagem nenhuma. O que é interessante pra mim, porque, assim, às vezes você quer fazer um resultado quantitativo, mas eu não gosto disso comigo, né? Como é que você vai avaliar a felicidade de alguém? A dignidade? Sabe, aprendizado, entendeu? Já brigaram com a escola com esse negócio de prova, né? Bobagem, né? Faz uma boa cola que você passa, pronto. Mas é interessante esse outro olhar, de um diagnóstico mais subjetivo em que o próprio jovem se autoavalia.
P/1 – E você lembra, assim, dessas situações de degustação do prato?
R – Nossa! Eu só não gostava de experimentar peixe, que eu não gosto de peixe. Então, os outros experimentavam os peixes. Adoravam quando vinha peixe. Tem, assim, as baladas aqui, que a turma que é dos 14 pra frente, eles têm um curso que a gente chama Educação e Comunicação pro Século XXI, que isso que eu te falei, aplicativo, website, web design, foto e vídeo, estúdio de som. É toda essa área, né, iPhone, iPad, né, tal. E, aí, são tiradas fotos, vem a turma da Fotografia pra ver se faz direito, diz que não é fácil, né, tirar foto de comida, tem que ter uma luz, aí derrete, sei lá. Aí, que coisa boa, menina. Experimentei tudo. Aí, quando vem amigos, parceiros, eu falo: “Ó, pessoal, vem um cara almoçar aí. Deixa aí”. Eles têm um bistrô, né? Tinha uma sala que desocupou e eu ia ocupar com sei lá o quê. Aí, vieram e olha isso, é a comissão, veio toda a turma da gastronomia pra que deixasse aquela sala para fazer um bistrô, pra quando viessem parceiros, pra ensinar como é que põe uma mesa, na na nã, né? Isso tudo dentro dos projetos, tá vendo?
P/1 – Quem que formava essa comissão?
R – Eles. Eles votam e escolhem seis, tá? Ou então...
P/1 – Os jovens mesmo?
R – Os jovens. Cada um no seu espaço e ou também, o impeachment, né? Que quando eles fazem coisa errada eles... Acho genial. E, aí, fazia, né? Então, aqui tem uma coisa, que a cada dois meses a gente faz uma balada, à noite. Balada do século, dentro desse curso, né? E a balada como é que é? Drink sem álcool e todos os coquetéis a gastronomia faz, o pessoal faz e até os que rodeiam a gastronomia, que passam por lá, também fazem e, assim, mó coisa, porque provar que você se diverte sem álcool, sem droga e sem discurso moral. É fato. Então, eles fazem cada coquetel, menina, é uma delícia. Mistura... Eu adoro, né? Então eu sou a mais entusiasmada.
P/1 – Esse que você tá chamando de gastronomia é uma área aqui mesmo, do curso? É uma área...
R – É, uma área.
P/1 – E, aí, quem são as pessoas que estão envolvidas com esse curso?
R – Tem várias empresas parceiras, não é só a Nestlé, tem os chefes e outra coisa que é legal nesse curso é que muitos chefes pegam Zezinhos e levam – isso é sensacional – e vão trabalhar, ou então, vem também dar aula. Nossa, é... Por isso que eu falo, ponte. Ponte foi feita pra atravessar, entendeu? Então não pode ficar lado de cá e lado de lá. Tem ponte então atravessa (risos).
P/1 – E a partir dessa, pensando um pouco na ação do Nutrir mesmo, que tem esse foco, uma série de missões, erradicar a desnutrição, tal. Tem uma mudança, você acha, de prática? Por exemplo, aqui dentro, da equipe de cozinha?
R – Teve.
P/1 – A partir do contato com o programa?
R – Sim, teve, claro, começa a aprender. Mas, aí, o programa respeitou também, porque era, assim, por exemplo, era muita fritura, porque a gente não tinha forno. Nutrir entrou com o forno, entendeu? E ensinou a fazer coisas no forno, práticas, rápidas, porque é comida pra mil pessoas, mais de mil. Então, ensinou, entendeu? É ver o que precisa e fazer. Não é chegar e vrum, entendeu? Isso foi muito bom. Aí, você tendo um forno, você não frita mais as coisas. Era muita fritura e era mesmo, porque era mais rápido, mais prático, né? Então, usa o forno. Claro que no começo tem a resistência do pessoal da cozinha, óbvio, né? Mas vai do educador que perceba a resistência e seduza, certo? E convença e mostra e aprende, ta na ná. Não tive muito problema, não.
P/1 – Teve alguma mudança além dessa do forno, que é uma grande mudança na realidade, né?
R – Poxa... Ah, mudança no cardápio. Hoje tem várias opções de verduras, legumes, frutas, que antes era... Mais ainda tem bala (risos).
P/1 – Diversificou.
R – Diversificou, isso. Mas, ainda, todo dia tem bala. Hoje tinha... Como é que chama? Um amigo meu que tem aquela máquina de algodão doce ele aparece aí de vez em quando, nossa. Aí, a médica aqui já falou: “Nossa, mas algodão doce?” Eu falei: “Deixa. Ensina eles a fechar a boca, deixa algodão doce de graça, deixa”. Ah, também não é assim, né? Não vamos exagerar nas coisas.
P/1 – E nos jovens e nas famílias? Vocês têm algum retorno dessa coisa dos programas voltados pra nutrição?
R – Eu tenho retornos, assim, de Zezinhos que já passaram pela gastronomia, fazendo coisas e vendendo. Isso é legal.
P/1 – Gerando renda?
R – Gerando renda, já pensando, sabe: “Eu vou montar, já vou pensar num fogão maior”, sabe? Já, claro, que em primeiro lugar eles vêm vender na Casa do Zezinho e eu mesma peço, pra gente ver como é que tá a embalagem, pra ver como é que tá o produto, se foi feito com... Né? Pa ra rá e falo: “Ó, gente, tá legal, pô”, né? O preço, isso é importante também, como é que eles abordam essa questão, tem vários já fazendo isso. E tem aqueles que, pum, foram pra faculdade de Gastronomia. É caro essa faculdade, não é barata, não.
P/1 – Mas já aconteceu?
R – Já, porque gostou. Tem uma que tá no Rio de Janeiro. Como é que chama aquele cara? Sei lá um chefe aí, famoso, e ela tá lá. Foi num concurso aqui, passou, porque que o que diferenciou os Zezinhos de outros cursos de nível médio foi a ética, a limpeza e o conteúdo, porque não é só dar aula de comida. Aí, envolve uma série de matérias, Matemática; Português; História, da onde veio pra onde veio; Geografia de onde que é; Física; Química; porcentagem; Saúde; Nutrição. É uma série de coisas, né, não é só a receita, isso é interessante.
P/1 – E tudo isso tá incluído [inaudível]...
R – Tá, tá, tá.
P/1 – Nessa formação que eles têm?
R – Sim. É um curso bem forte.
P/1 – E pra você, assim, teve alguma coisa desse contato que mudou na sua alimentação, na sua casa? Pode ser sincera.
R – (risos) Ó, eu sempre sou sincera. Não, eu sou uma porcaria pra comer. Ninguém come massa crua, por exemplo, né? Hoje estavam lá fazendo, preparando pra fazer, como é que chama? Folhado, né? E a mulher tava esticando lá a massa eu passei e vup, peguei a massa. Ela falou: “Vai comer isso?!” “Como o que eu quiser, a boca é minha, não faz mal”, tal. Não, mas eu não sou exemplo nenhum pra comer mas eu como aqui, isso é legal, eu pelo menos almoço na Casa do Zezinho. Então, salada, arroz, feijão – que eu gosto muito de arroz e feijão, né? Pena que o brasileiro parou com isso mas aqui é todo dia.
P/1 – Mas na sua casa você não tem essa preocupação...
R – Não...
P/1 – Comprar o alimento, de fazer...
R – Não tem ninguém, to eu e o Saulo em casa, né? Então... Tem lá umas frutas, tal, a gente sai muito pra comer, mas só nós dois. Já teve épocas que era um batalhão, mas agora é só nós dois. É claro, quando tá o batalhão, muda-se o cardápio. Só estou eu e ele, ele traz besteira mas ele é muito... Como é que fala? Orgânico, essas coisas, chocolate sem açúcar. Eu falo: “Aaaí, credo”, aí eu vou e compro, ponho, tal. Eu sou muito ruim nisso. Sou mesmo.
P/1 – Gosta de porcaria?
R – Adoro. Um big mac, um x-salada (risos).
P/1 – Aí, eu quero te perguntar também, vinculado ao programa você contou coisas interessantes já, a gente conversando. Mas, tem alguma história que tenha sido mais marcante, alguma coisa que você sempre lembre?
R – Aonde?
P/1 – Dentro desse...
R – Gastronomia, o programa?
P/1 – É, de todas essa ação de nutrição mesmo, do Programa Nutrir, alguma história, um fato.
R – Eu não sei, tem muita coisa aqui, né? Mas acho que mais, assim, era um menino que vinha vestido de mulher, na gastronomia, ele queria fazer gastronomia. E ele chegou, o menino, de 18 anos. Aí ele chegou, o pessoal da secretaria: “E agora, nunca aconteceu na Casa do Zezinho um caso desse”. Aí, mandaram “tia Dag?”. Aí, eu falei: “Qual o problema? Qual o problema? Matricula”. Óbvio, foi na primeira turma de gastronomia, que quando ele entrou na gastronomia os meninos e a turma da casa inteira, que você sabe, né, que na favela, se o cara é gay, eles matam; se o cara tem AIDS, eles matam; se é homossexual eles matam, não é brincadeira, precisa ser muito macho pra ser gay na favela e ele vestido de mulher. Aí, eu desci, começou uma encrencaida, eu falei: “Tá legal, vou fechar a Casa de Zezinho”. “Por quê?” Falei: “A Casa de Zezinho trabalha com as sete cores – que são muito mais do que isso – por causa da diversidade, pro causa do diferente. A Casa de Zezinho não impõe nada, ela respeita tudo, mas a gente trabalha com ética – eu tenho Filosofia aqui dentro, imagina? As crianças têm Filosofia desde os seis anos de idade na educação. “Ou vocês aceitam e compreendem ou eu fecho.” Pra quê que eu tô aqui? Bobagem. Eu sempre detestei preconceito, sempre detestei qualquer separação, é um ser humano igual a gente, até agora não demonstrou, né? Passado um tempo, ele começou a não vir mais vestido de mulher, menino mesmo. Sabe o que aconteceu com esse cara? Ele abriu uma agência de publicidade só pra tirar foto de comida e continuou gay, mas já vestido normal, tal sem afetação. E ele diz que quem salvou a vida dele foi o curso de gastronomia e a Casa de Zezinho. Tá vendo?
P/1 – Muito bacana.
R – Não é legal um negócio assim? Você pensar. Agora, você vem com gastronomia que só você sabe, você não escuta, só você é o bom, aí não vai dar certo nunca.
P/1 – Não vai funcionar.
R – É óbvio pra mim, não. Já basta ver as faculdades de hoje, ó que maravilha, aaai, dá vontade de chorar (risos).
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa, a Nestlé teve alguma participação na implementação desse curso ou ela só também participa disso mas vocês...
R – Não, não, já tinha curso. Talvez até por isso, quando a gente mandou o curso já com conhecimento, com o quê que a gente fazia. É um curso muito legal.
P/1 – Aí, eles vem pra colaborar?
R – Vem, vem. Porque a gastronomia era assim, antes era a padaria. Aí, uma turma subiu pra falar comigo: “Tia Dag, a gente não quer mais padaria”. “Tá. Vocês querem o quê?” “Gastronomia” “Por quê?”. Aí, tiveram que fazer pesquisa, pá, mostrar pra mim, o quê que vai – isso aí é sacanagem minha mas é pra, né, “opa”. Maquinário, educador, tal, aí, a gente começou a batalhar pra trazer parceiros pra gastronomia. Era padaria. Tá vendo, a Casa de Zezinho ela vai, uma coisa legal aqui é isso, ouve. De que adianta fazer uma coisa aqui que ninguém quer? Eles não vêm. Grandes ONGs aqui fecharam, tiveram grandes dificuldades, porque não tinha... Inclusive vinham fazer propaganda aqui, na porta. Eu falei: “Não precisa ficar escondido, pode fazer, que eu tenho fila de espera”, né? (pausa)
P/1 – Então, vamos retomar. Me conta um pouco isso, qual foi o trabalho do Nutrir no ano passado?
R – Então, no ano passado o Nutrir fez toda a medição, quem é que tava abaixo em altura, quem tava certo, quem tava obeso, quem tava subnutrido, enfim. Eram metas pra serem atingidas pelo projeto, a meta ótimo, 10, a subnutrição zerou, acabou. Axé, né? As famílias, sendo também aquilo que... Agora, teve uma educadora lá que falou: “Ai, tia Dag, você não sabe o bolo que faz com casca de cenoura”, pa ra rá, essa coisa que envolve também os educadores, óbvio, senão você não consegue fazer. E esse ano ele vai direto pro Projeto Saúde, que a gente tem também, e lá no Porjeto Saúde é onde vamos buscar as famílias dessas crianças obesas e reensinar, entendeu, uma educação alimentar, pra chegar no fim do ano com as metas dessas crianças não estarem tão obesas assim, com a ajuda da Nestlé, e também da própria família. No ano passado foi todo um vrum, uma medição, uma avaliação, o que eles puderam e continuaram, isso que eu acho legal. Fizeram, na na ná e depois, né? Não, continuaram e vão continuar com essas preparações de formação de aprendizado, de como fazer uma boa alimentação, sem esquecer da alimentação que eles usam. Ah, inclusive tem lá um escondidinho pra eu experimentar agora, que é com... Ai, mandioca. Não, abobrinha. Não. Ai, como é que chama aquilo?
P/1 – Não é mandioca e nem abobrinha?
R – Não, é uma outra, branquinha, mandioquinha. Pra eu experimentar.
P/1 – Que delícia. Deixa eu te perguntar, esse processo de medição e essa ação que vai entrar nesse ano pra tentar combater a obesidade infantil com as famílias, quem que tá envolvido? Eu queria entender quem são os funcionários que estão envolvidos.
R – Ué, nutricionista, psicólogos, os educadores, porque eles mesmos... Passam pro educador como é que mede, que vê peso, enfermeiras que eu tenho aqui, o pessoal da Saúde. Que eu tenho aqui uma mediadora – que eu não tenho coordenadora aqui – que ela faz exatamente isso, identificar nessa população aqui, quem são e como estão essas crianças que eles chamam de população de risco, tá? Tem muita gente envolvida, se você não envolve todo o corpo docente nisso aqui, não vai, não faz, entendeu? Não faz. O interessante é isso, é trabalhar todo mundo junto e, aí, sim, acabou a subnutrição, meu, isso aí pra mim... Vai acabar a obesidade, tenho certeza.
P/1 – E essa que você falou é equipe de vocês, que está envolvida, aqui da Casa de Zezinho?
R – Também.
P/1 – E a equipe da Nestlé?
R – Vêm psicólogos também, vem nutricionista, vem um pessoal todo capacitado pra poder ensinar e mostrar e vem também um pessoal... Eu gosto muito quando vêm as psicólogas porque isso é muito interessante pras famílias, alguém que escuta, sabe? Como é que é a história porque, também, a gente conta as histórias daqui, entendeu? Outra vez, a ponte, não pode chegar: “Olha, eu sei, vocês não sabem”.
P/1 – E as psicólogas lidam diretamente com as famílias?
R – Sim, o que não é fácil, não, viu? Que a família é desconfiada: “O quê que essa mulher quer saber da minha vida? Pra fazer fofoca?” uma coisa assim, né? Então, tem um trabalho nosso, também com as psicólogas nossas, junto com o psicólogo do Nutrir pra... É assim, é um trabalho que parece de formiguinha, mas é grande no fim. Fica boom, imagina acabar com a subnutrição? Eu nunca pensei acabar com a subnutrição aqui.
P/1 – E essa abordagem, os psicólogos de vocês, do Nutrir, com a família, é esse espaço que vocês usam pra...
R – É aqui. Eles vêm pra cá, é muito legal aqui, tá? Precisa estar vivendo aqui, precisa estar vivendo as dificuldades que a gente tem, principalmente do contato. As famílias são extremamente... Não tanto, vai, mas se você põe alguém novo, sabe, tem que saber introduzir. Pra você ter uma ideia, acupuntura. Eu me espetei inteira numa reunião de pais pra mostrar que eu não ia virar chuveiro (risos), e que aquela agulhinha...
P/1 – Vocês têm acupuntura aqui?
R – Temos. Acupuntura, tem fisioterapia, tem massagem, tem alopatia, tem homeopatia... Tem, tem, isso aqui é um universo, um universo do Zezinho.
P/1 – E esses atendimentos psicológicos são individuais ou são coletivos?
R – Tem coletivos e tem individual, dependendo do caso. Tem caso que tem que ser individual, né? Mas o coletivo é pra ver a dinâmica. Por exemplo, no Projeto Saúde, quando a família vem... Família não, aí vem a favela, são 180, num sábado, tá? Aí, enquanto eles esperam, tem fruta, tem pão integral, começa a apresentar, sabe? E é de graça. Aí, vão percebendo, que ali é, né, tudo é ensinar, tudo é sedução.
P/1 – [Inaudível]
R – É óbvio, você fala pão integral pra eles “argh”, quando ele experimenta, com um queijinho, na na nã. Aí, explica: “Olha, a melancia, quem é diabético, não é legal comer fruta”, entendeu? Assim, uva. Isso é legal. Agora também, muitas vezes, vem da onde, informação que as nutricionistas trazem, né? Os médicos da Casa de Zezinho, é uma conversa grande, é muita gente envolvida pra um projeto só, não pode ser um, tá?
P/1 – Uma última coisa da Casa de Zezinho, depois a gente encaminha para as perguntas finais. Eu queria entender, assim, hoje quais são as atividades que são desenvolvidas.
R – Ah, tá.
P/1 – Eu vi que são muitas, mas se dá pra gente um panorama, pra gente entender um pouco.
R – Ah, vamos falar assim, a Casa do Zezinho é dividida em quatro grandes blocos: Aprender Brincando, que é de seis a quase 14 anos; Educação e Comunicação no século XXI, que é de 14 – isso de dia, né? – até 18; à noite Projeto Vagalume que é cursinho, formação profissional em várias áreas, tá? Muito bem. Aí, tem o esporte, que envolve tanto o Aprender Brincando quanto Educomunição, envolve todo mundo. Orquestra, todo mundo é envolvido na orquestra e Saúde, que pega toda a casa. Agora, projetos aqui dentro são 40... Mais de 50 projetos, que os Zezinhos vão andando nesse projeto, eles têm que experimentar tudo. “Ah, não gosto.” “Não, pera aí, vamo ver como é que é, depois você pode dar o ‘não gosto’, né?” Então, é interessante isso, a passagem em todos esses espaços que eles percorrem, é muito legal. E tem o PRZ, que é o Projeto Reutiliza Zezinho – se eu falar reciclado eles vão brigar comigo – então é muito legal também, que eles fazem uma reutilização, fazem cada coisa legal. Aí, leva no sábado, lá pro Se Cuida e as mães falam: “Puxa, com um cabo de vassoura eu posso fazer essa coisa tão linda!”. É sensacional, é muito projeto, só vindo aqui. Tem quatro mil metros, é muita coisa.
P/1 – Então, vamos, finalmente, pras perguntas...
R – Então vai.
P/1 – De encerramento. Então, primeiro, antes de eu ir pro encerramento, tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado que você queira dizer?
R – Não.
P/1 – Qualquer coisa?
R – Tá tudo bem, você que tem que descobrir (risos).
P/1 – E depois, bom, não tem mais nada que você queira?
R – Não.
P/1 – Quais são as coisas mais importantes pra você hoje?
R – Casa de Zezinho, como sempre (risos). É isso, eu só tenho Casa de Zezinho.
P/1 – E quais são seus sonhos?
R – Puh... Eu quero abrir um... Na Casa, que vai ter o velho, que é abandonado, com a criança, o jovem, que é drogado. O velho tem pra ensinar, o jovem também tem, e cruzar essas informações. E, nisso, vai ter pet, sabe, cachorro, gatos, terapia, a gente tá formando aí uma coisa bem grande de reintrodução de animais silvestres pra mata, que é lá em São Francisco Xavier e a gente... Eu tô indo, eu tenho na Ilha Bela também Casa de Zezinho, que é um projeto com as famílias, são 200 famílias na Ilha Bela. Casa de Zezinho é o mundo.
P/1 – Extensão da ação da Casa de Zezinho?
R – Sim, sim. Eu tenho Zezinho em Canadá, Chile, na Alemanha, a gente acompanha muito tudo isso, estão crescendo pelo mundo e multiplicando.
P/1 – E, por fim, como é que foi contar essa história, como é que foi dar esse depoimento?
R – Ah, eu acho legal, eu acho que é uma história legal, eu acho que a gente tem muito ainda a contar, né, esse percurso é grande. Esse ano eu faço 60 anos, então, da pessoa mais irascível, né, que meu pai me chamava de puro sangue (risos), até chegar a essa pessoa mais tranquila, menos onipotente, quer dizer, isso tudo foi aprendizado durante a vida aqui. Tá?
P/1 – Tá certo. Muito obrigada, foi ótima a entrevista.
R – Que bom.
P/1 – Espero que você tenha gostado.
R – Gostei. Se eu não gostasse você logo ia saber (risos). Sou uma pessoa que não disfarça.
FINAL DA ENTREVISTA
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