Durante muito tempo eu pensei que a rua chamava-se Santa Rita Durão em homenagem a alguma santa do calendário, talvez a mesma para a qual minha mãe fazia umas novenas quando a coisa andava feia, a Santa Rita dos Impossíveis. Mas, em algum momento desfez-se essa santa ignorância, e eu entendi qu...Continuar leitura
Durante muito tempo eu pensei que a rua chamava-se Santa Rita Durão em homenagem a alguma santa do calendário, talvez a mesma para a qual minha mãe fazia umas novenas quando a coisa andava feia, a Santa Rita dos Impossíveis. Mas, em algum momento desfez-se essa santa ignorância, e eu entendi que o nome devia-se a frei José de Santa Rita Durão, autor do famoso poema épico “Caramuru”. Os projetistas de Belo Horizonte seguiram critérios bem definidos para nomear as ruas. Ali na nossa vizinhança encontramos, por exemplo, Claudio Manoel, Gonçalves Dias, Bernardo Guimarães, em determinado sentido, e Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, em outro sentido.
Aquilo que chamávamos de nossa rua, era apenas o trecho do quarteirão compreendido entre a avenida Contorno e a rua Maranhão. Mas nós conhecíamos todo mundo que morava nos arredores: Ribeirinho, Hilton, Kleber, Euler, Antônio Eugênio, Marcos Bolão, Dudu, Gaguinho, Glenan, Galinho, Haroldinho, Nísio, Júlio, Alfredo, Ronald Preto, Silas, Saulo, Paulo, Jefferson, Augustinho, Ronald Marçolla, Toffolo, Bebeca, Nadinho, Fernando... Uma lista interminável de nomes. E ainda hoje encontro conhecidos: Quando recentemente, numa longa fila de “check-in” no aeroporto do Rio de Janeiro, uma pessoa na minha frente se identificou como um antigo morador da Santa Rita com Afonso Pena, eu levei apenas alguns segundos para repassar mentalmente quem havia morado por ali, e perguntei: “você não seria parente do Jarbas?” O meu interlocutor fez uma cara de espanto e respondeu: “Eu sou o Jarbas...”.
Naquela época, todo mundo morava em casas, e os moradores eram quase sempre os mesmos. Não havia esta coisa de se pedir licença para entrar.
A nossa rua começava logo em frente ao Grupinho, assim mesmo no diminutivo, como era conhecido o Grupo Escolar Augusto de Lima. A avenida do Contorno, naquelas imediações, também fazia parte dos nossos domínios. Foi ali mesmo naqueles Ficus frondosos que nós aprendemos a subir em árvore, e debaixo deles passávamos horas falando de coisa nenhuma. Era também em frente ao Grupinho que a gente, de vez em quando, apanhava um lotação para ir à cidade, como se ali fosse uma terra distante.
Na esquina com Contorno, de um lado da rua morava um escritor famoso, Agripa Vasconcelos. Seus livros são históricos e constituem uma fonte de pesquisa fundamental para se conhecer a formação das Minas Gerais. Destaco os que já li e tenho aqui em casa: Gongo Sôco (um romance que conta a história do Barão de Catas Altas), Sinhá Braba (D. Joaquina do Pompéu) e Chico Rei (o romance da escravidão em Minas). Ele também escreveu Chica que manda (romance do ciclo dos diamantes nas Gerais),Vida em flor de Dona Beja (sobre as terras de Araxá) e Fome em Canaã (romance do ciclo dos latifúndios), pai do Caxambu, Leonato e Belkis.
Do outro lado moravam doutor Omar e Dona Ione, um casal sem filhos e com um coração gigantesco. Eles eram o que se poderia considerar uma família de posses, e a casa em que moravam tinha um estilo moderno, lembrando aquelas casas americanas de filme. Uma vez por semana, se tanto, doutor Omar tirava da garagem um Chevrolet Impala vermelho, lindo, e dava uma volta no quarteirão. A gente babava. Durante algum tempo eles alugaram a casa para famílias americanas, e nós tivemos a chance de tentar falar o inglês com as crianças. Que eu saiba, ninguém nunca entendeu o que a gente dizia. Devia soar algo como “me Tarzan, you Jane”. A casa era térrea, toda envidraçada, com jardins gramados em volta. O Túlio, de vez em quando, pulava o muro para uma visita furtiva ao estoque de refrigerantes.
Bem, lá vou eu entortar este texto. Mas, tenho que incluir aqui a casa imediatamente após à do doutor Omar, na avenida do Contorno. Era a do seu Murilo, um representante da Philips em Belo Horizonte, que promovia uma festa de Natal para os funcionários, daquelas para ninguém botar defeito. A gente ficava só de longe esperando chegar o Papai Noel. Estávamos firmemente convencidos de que sempre poderia sobrar alguma coisa dentro daquele sacão vermelho.
Logo abaixo da casa do Agripa Vasconcelos, vinha a casa de Jorge Cury e Dona Marieta, com seus filhos Edil e Euda. Toda vez que ouço tocar um saxofone, lembro-me imediatamente do som triste do seu Cury tocando naquele quarto da frente. O mesmo que servia de posto de escuta ao infernal equipamento de rádio amador por ele tripulado, que fazia calar os rádios comuns da vizinhança. Na hora de escutar o “Direito de Nascer” pela Rádio Nacional, só dava seu Cury com o PY4LP. Ele, numa certa época, também foi possuidor de uma tremenda Harley-Davidson, que rugia naquela rua de paralelepípedos.
Do outro lado, exatamente antes da casa do Túlio, ficava uma espécie de town house anexa à do Dr. Omar. Durante um certo tempo foi ocupada por um casal muito simpático, seu Luís e Dona Nida, ele irmão do professor Aristeu Fonseca, nosso professor de inglês no Colégio Anchieta. Abaixo da casa da Euda, ficava a casa do Dr. Raymundo Milagres e Dona Maria Cândida, esta que nos deixou tão precocemente, ocasionando a mudança da família para uma casa ao lado do Abrãozinho, na avenida do Contorno. Abaixo da casa do Túlio, que dada a sua importância para essas histórias merece um capítulo à parte, ficavam as duas casas do seu Leão. A primeira ele alugava, e morava na seguinte, pintada de verde.
Depois do doutor Milagres, ficava a casa de Dona Adolfina, que vem a ser a avó de Magda e Miriam. Logo abaixo, ficava a casa da Aurora e do Zézinho, pais de nossos amigos Augusto José, Roberto e Ricardo (e também da Eliane, Vera Lúcia, Marco Antônio e Zé Gomes). Em seguida, vinha à casa do doutor Cattoni, em frente à qual existia uma árvore, a mesmíssima que lá está hoje, e que foi ressuscitada por meu avô. Ele, inconformado de assistir à morte prematura de uma muda recém plantada, descia as escadas lá de casa todos as tardes, de pijamas, com um regador na mão, e ficava pacientemente molhando aquele toco seco. Eu morria de vergonha. O Túlio dizia “Vóbis (Houve uma fase em que só nos chamávamos uns aos outros assim. O meu primo Glenan me chamava sempre de “Gentilis”. Eu dizia “Tulis Buenis”, o Flávio Vilhena é até hoje o “Baixépis”, o Alfredo é “Bernardinis” e o Sérgio Murta, “Bidis”. O meu avô, que se mudou para a minha casa lá por volta de 1957, foi imediatamente incorporado à turma e passou a ser “Vóbis”.Vai entender.), a árvore já morreu...”. Ele insistiu até vê-la brotar. Cresceu e frutificou.
Quando foi vendido o terreno ao lado da casa dos Cattoni, e ali se construiu o primeiro edifício de apartamentos de nossa rua, então conhecemos Suzane Marie, uma lourinha que despertava longos suspiros da nossa parte, nas poucas vezes em que vinha de Uberaba e ficava saltitando pela rua.
Logo após a casa do seu Leão, vinha à entrada para o “Barracão”, como era conhecida a vila de casas; em seguida a casa do seu Álvaro e Dona Áurea, pais do Sérgio e Eliana; e logo a seguir a minha casa (eu e o Serginho nascemos ali mesmo, de parteira); em seguida vinha a do Lênio. Na esquina ficava a casa dos Gomes Freire. Eram dois irmãos casados com duas irmãs, com raízes em Mariana, e um sobrenome de grande tradição em Minas - Gomes Freire de Andrade. Um deles, Dr. Augusto, foi meu primeiro médico - ainda não havia este negócio de pediatra. Foi casado com Dona Júlia e daí vieram os filhos Mário, Carminha, Maibi, Míriam, Murilo e Lulinha. O outro irmão era magistrado, doutor Henrique, casado com Dona Iá (Maria Celeste). Seus filhos são o Silvestre, Marisa, Marília, Maria Carmem, Maria Celeste, Gomesinho, Dodora e Amaury. Ufa, para lembrar de tanta gente tive que pedir ajuda à minha irmã Verinha, que ainda teve que confirmar com o Silvestre.
Logo abaixo dos Cattoni, vinha a casa de Dona Cassinha e Doutor Hércules, na esquina com Maranhão. Seus filhos eram o Aluísio, Livinha e Alza Maria. Vou fazer mais uma variante, para incluir a casa do Dr. Frazão, pai do Raul, um ativo membro da nossa turma do banco. Na outra esquina de Santa Rita com Maranhão, moraram seu Israel e D. Edith, pais do Rony e Wallace, este último o maior amigo do Lucílio naquela época, morto tragicamente em desastre de aviação, quando era cadete da Aeronáutica em Barbacena. Nesta mesma casa também morou a família do Lênio uma certa época, e parentes do Hilton Peixoto, em outra época. Na casa exatamente ao lado moraram, antes do meu tempo, tio Homero e tia Olavina.
Logo em frente, na outra esquina de Maranhão com Santa Rita, ficava a casa da Olga, nossa amiga do início da adolescência, filha de seu Edgar e Dona Zizina Barbosa. Eu ainda me lembro de quando tudo aquilo era um grande terreno baldio e nós apanhávamos mamona para brincar.
A nossa rua era adepta daqueles ensinamentos do Eclesiastes, que procuro seguir até hoje. Havia um tempo para tudo na vida. Tempo de soltar papagaio, tempo de bolinha de gude, tempo de carrinho de rolimã, tempo de bentialtas, tempo de jogo de botão, tempo de figurinha, tempo de jogo de finca. E quando chegou o tempo de Copa do Mundo, nós descobrimos que era o tempo de fazer bolo esportivo - tudo registrado numa folha de papel almaço. Como me lembrou o Túlio, além disso era um bom negócio. Rendia aos organizadores do bolão vinte por cento do movimento, e se ninguém acertava na cabeça o montante ficava com a banca. Uma vez aconteceu e nós ficamos rindo sem parar quase uma semana.
Se essa rua fosse minha, eu não deixava ninguém se mudar, nenhuma casa ser derrubada, nenhuma árvore ser cortada. Acho que até aqueles postes no meio da rua, que serviram de trave tantas vezes, eu deixaria ficar.
De propósito, o relato que acabei de fazer não segue uma mesma linha do tempo, mas é mais ou menos fiel até 1959, o último ano em que ali morei. Não importa. Sei que a nossa rua não é mais a mesma, casas foram deixando de existir, pessoas foram sumindo, outras pessoas se mudaram para lá, até edifício comercial existe agora. Mas, a minha rua continua intacta. Eu consigo visualizá-la exatamente como era na década de 50, quando fecho os olhos e sonho.Recolher