P/1 – Bom dia, senhora Nadir. Nós vamos começar agora a nossa entrevista, e eu vou pedir para a senhora confirmar seu nome completo, a data e seu local de nascimento.
R – Meu nome é Nadir Lurdes Damiani. Nasci em 23 de março de 1958, no município de Colorado, no Rio Grande do Sul.
P/1 – Qual era o nome dos seus pais?
R – Meu pai se chamava Eugênio Antônio Damiani e minha mãe se chama Osmilda Limberg Damiani.
P/1 – O que seus pais faziam?
R – Meus pais trabalhavam na agricultura. Minha mãe continua na agricultura até hoje, e meu pai é falecido. Sempre foram agricultores.
P/1 – A senhora tem irmãos?
R – Tenho vários. Tenho cinco irmãos homens e uma irmã, que é a mais nova. Eu sou a mais velha dos sete filhos dos meus pais.
P/1 – Certo. E quais os nomes deles?
R – Jair, Jandir, Jaime, Jelson, Mauro e Cláudia.
P/1 – Eu gostaria de saber um pouco mais sobre os costumes da sua família, como era o dia a dia da sua família quando a senhora era criança.
R – A minha família é muito unida até hoje. A gente costuma brincar que quando qualquer pessoa da minha família está com qualquer probleminha de saúde, todo mundo está morrendo, sempre foi assim.
A nossa vida era no interior. Era uma vida simples, mas sempre com muita união, muito amor, muita dedicação dos nossos pais. Apesar dos meus pais serem agricultores, minha mãe teve pouco estudo e meu pai estudou um pouquinho mais, ele foi seminarista. Deveria ter um padre na família, mas ele desistiu depois.
A gente morava no interior. Eu comecei a trabalhar desde muito cedo, e como irmã mais velha, a cuidar dos meus irmãos menores. Sempre com algumas dificuldades no trabalho.
Meus pais moraram junto com meus avós paternos. Quando eu tinha sete anos de idade, morreu meu avô, e quando eu tinha dez anos de idade, morreu minha avó. Até então, nós morávamos juntos. Isso era normal naquela época,...
Continuar leituraP/1 – Bom dia, senhora Nadir. Nós vamos começar agora a nossa entrevista, e eu vou pedir para a senhora confirmar seu nome completo, a data e seu local de nascimento.
R – Meu nome é Nadir Lurdes Damiani. Nasci em 23 de março de 1958, no município de Colorado, no Rio Grande do Sul.
P/1 – Qual era o nome dos seus pais?
R – Meu pai se chamava Eugênio Antônio Damiani e minha mãe se chama Osmilda Limberg Damiani.
P/1 – O que seus pais faziam?
R – Meus pais trabalhavam na agricultura. Minha mãe continua na agricultura até hoje, e meu pai é falecido. Sempre foram agricultores.
P/1 – A senhora tem irmãos?
R – Tenho vários. Tenho cinco irmãos homens e uma irmã, que é a mais nova. Eu sou a mais velha dos sete filhos dos meus pais.
P/1 – Certo. E quais os nomes deles?
R – Jair, Jandir, Jaime, Jelson, Mauro e Cláudia.
P/1 – Eu gostaria de saber um pouco mais sobre os costumes da sua família, como era o dia a dia da sua família quando a senhora era criança.
R – A minha família é muito unida até hoje. A gente costuma brincar que quando qualquer pessoa da minha família está com qualquer probleminha de saúde, todo mundo está morrendo, sempre foi assim.
A nossa vida era no interior. Era uma vida simples, mas sempre com muita união, muito amor, muita dedicação dos nossos pais. Apesar dos meus pais serem agricultores, minha mãe teve pouco estudo e meu pai estudou um pouquinho mais, ele foi seminarista. Deveria ter um padre na família, mas ele desistiu depois.
A gente morava no interior. Eu comecei a trabalhar desde muito cedo, e como irmã mais velha, a cuidar dos meus irmãos menores. Sempre com algumas dificuldades no trabalho.
Meus pais moraram junto com meus avós paternos. Quando eu tinha sete anos de idade, morreu meu avô, e quando eu tinha dez anos de idade, morreu minha avó. Até então, nós morávamos juntos. Isso era normal naquela época, normalmente o filho mais novo ficava com os pais. Mas foi uma vida, que apesar de muitas dificuldades e trabalhos, foi bem tranquila.
Estudávamos em uma escolinha na área rural. Íamos a pé para essa escola, fazíamos em torno de dois quilômetros e meio. Essa escola me traz lembranças assim, de que tinha um único professor, que tinha sido colega do meu pai no seminário, mas naquele interior era uma das pessoas mais estudadas, vamos dizer assim. Naquele tempo, ele atendia o que a gente chamava de primeira série até a quinta série, todos juntos em um único espaço. A primeira série sentava bem na frente, nas primeiras classes, e depois vinham a segunda, a terceira, a quarta e a quinta.
Meu pai sempre fez questão de que todos os filhos estudassem. Ele dizia: "Não tenho muitas terras para deixar para vocês, então o estudo é uma das maiores heranças que posso deixar", mas nem todos cursaram uma faculdade. Eu tenho dois irmãos que não quiseram estudar, não houve proposta. Eles fizeram o ensino fundamental e chegaram a cursar o ensino médio.
Era bem tranquila a vida. Na infância, a gente brincava muito. Tinha as horas de trabalho, mas tinha aquele momento de brincar. A gente se juntava com os vizinhos, porque naquela época tinha muitos vizinhos no interior. Hoje, praticamente não se tem, porque os que tinham mais condições foram comprando as áreas menores e a vizinhança ficou pouca, até porque muitos iam em busca de melhores condições de vida na cidade.
Na minha família, a grande maioria estudou. Eu moro em Santo Ângelo há quarenta anos e minha irmã mora no Mato Grosso, mas os meus irmãos homens, que estudaram fora, acabaram retornando para a cidade do interior onde minha mãe vive até hoje, e muitos ainda estão na agricultura, mesmo tendo outras atividades como eixo principal da sua profissão. Eles têm sua lavoura também.
P/1 – A senhora se mudou para Santo Ângelo em qual período?
R – Eu vim para Santo Ângelo no final de 1980 para cursar uma faculdade. Eu até parei de estudar por um tempo, mas não foi pelos meus pais, porque eles queriam muito que a gente fizesse uma faculdade e tivesse uma profissão. Na época, em foi em função de um noivo que não admitia que a sua noiva saísse de casa para cursar uma faculdade e fosse morar em uma cidade maior. Eu acabei terminando o noivado para conseguir fazer uma faculdade, então vim para Santo Ângelo em busca de aprimorar meu conhecimento e cursar uma faculdade.
A primeira que cursei foi de Estudos Sociais, vim no final de 1980 me inscrever no vestibular. Eu já tinha uma prima que morava aqui, então facilitava. Nesse mesmo ano, eu fiz vestibular em Passo Fundo, em um curso muito diferente que acabei me formando depois. Eu fiz um vestibular para Medicina, porque o meu sonho era ser médica.
O meu ensino médio eu cursei na cidade de Carazinho. Nós íamos todos os dias e percorríamos sessenta quilômetros para não sairmos de casa e morar fora. Eu fiz os cursos de Análises Clínicas, onde a gente estudava muita química orgânica, inorgânica, física, matemática, justamente para nos preparar para o curso de Medicina, e acabei indo para uma área totalmente diferente, que foi História.
Eu vim para Santo Ângelo justamente para cursar uma faculdade e minha ideia inicial era depois retornar para a minha comunidade e ser professora. Depois que eu decidi pelos cursos de Estudos Sociais e História. Acabei me apaixonando por Missões, e já faz quarenta anos que estou aqui, praticamente quarenta anos.
P/1 – Qual foi o motivo da senhora ter decidido fazer Estudos Sociais no primeiro momento?
R – Na verdade, não foi nem uma escolha. Como uma das minhas primas se inscreveu no vestibular para Estudos Sociais e eu estava inscrita para Medicina em Passo Fundo, eu vim mais para acompanhar essa prima. Uma já morava aqui, e a outra estava vindo. Eu cheguei e pensei: "O que vou fazer?” O primeiro curso que olhei lá, a primeira opção, foi Estudos Sociais, a segunda foi Pedagogia, e acabei passando na primeira opção.
Quando passei no vestibular, não queria cursar e disse: "Não é o que eu quero, quero Medicina." Eu já tinha feito o primeiro vestibular e na época a concorrência para uma vaga de Medicina era muito alta; eu saí do ensino médio direto para o vestibular.
Meu pai me chamava de Negra... "Negra, tu vai cursar essa faculdade, pelo menos o primeiro semestre. Isso já vai te preparar se você quiser fazer um novo vestibular." Eu acabei ficando aqui em Santo Ângelo no primeiro semestre, muito a contragosto, contra a [minha] vontade. Como meu pai queria que eu fizesse a faculdade, eu acabei fazendo Estudos Sociais.
Nessa época, a faculdade de Estudos Sociais habilitava para ser professor de História, de Geografia, de Educação Moral e Cívica, e OSPB [Organização Social e Política Brasileira]… Porque era durante o regime militar, a gente tinha essas matérias.
P/1 – Eu também tive essas matérias.
R – E eu acabei tomando gosto pela História, vendo a História de uma forma diferente, fazendo outra releitura.
Depois que me formei em Estudos Sociais, acabei optando por fazer um curso de História, o que levava mais quatro anos. Justamente pela História que a região missioneira oferecia, eu comecei a gostar, a me apaixonar, e desisti totalmente da ideia de fazer um curso de Medicina, enfim, na área das ciências médicas.
Depois que concluí o curso, justamente por ter me apaixonado por História, eu optei também por fazer esse mestrado na Unisinos, que era justamente na linha dentro da história iberoamericana. Nesse contexto histórico, é uma das áreas com as quais mais me identifico, que gosto de trabalhar. Acabei ficando aqui.
P/1 – Enquanto a senhora fazia faculdade, as suas primeiras experiências profissionais… A senhora já começou a dar aula na época que fazia Estudos Sociais? Como foi o início na profissão?
R – Na verdade, eu só comecei a dar aulas depois que concluí o mestrado, e para adultos. Até então, eu nunca exerci a profissão de professora, por mais que tivesse duas faculdades na área.
Minha primeira experiência profissional aqui em Santo Ângelo foi como estagiária da Caixa Federal, com o que chamavam de Crédito Educativo, o que era uma espécie do FIES que temos hoje, um financiamento para estudantes. Trabalhei por seis meses na Caixa e logo em seguida prestei um concurso na faculdade. Antes da universidade se chamar URI, era uma fundação e se chamava Fundames. Abriu um processo seletivo para técnico administrativo. Eu fiz esse concurso e comecei a trabalhar já na faculdade em 1982, e estou até hoje. Claro que, inicialmente, eu trabalhava como técnica administrativa, trabalhava na biblioteca da faculdade.
Em 1984, quando veio um grupo de professores novos para o curso de História, professores com ideias muito avançadas, eles criaram o Centro de Cultura Missioneira dentro da faculdade. A partir disso eu comecei a trabalhar no Centro de Cultura Missioneira, já mais ou menos dentro da minha área, por ser formada em Estudos Sociais e depois em História. Ali tinha uma biblioteca setorial, que tem até hoje. Fazia-se palestras, atendia-se grupos escolares que vinham conhecer a faculdade, então já era mais na minha área.
Depois, com o curso técnico de guia de turismo, eu cheguei a trabalhar em agência de turismo por quinze anos. Eu trabalhava vinte horas na agência, quarenta na faculdade e ainda viajava aos fins de semana. O dono da agência tinha e tem um hotel aqui em Santo Ângelo até hoje, então eu atendia os grupos que vinham de fora para conhecer a região. Mas como professora realmente, faz vinte anos que sou professora universitária. Deixei de ser técnica administrativa na universidade e passei a exercer a profissão de professora, só que nunca larguei a profissão de guia de turismo, é uma paixão, eu gosto muito desse trabalho.
Como guia, eu trabalho com crianças, porque o maior número de turistas que temos aqui na nossa região é de crianças da educação básica, do quarto ou quinto ano, aí estudam sobre Missões na sua escola e têm uma viagem de estudo, que já faz parte do projeto pedagógico. Esse ano foi totalmente atípico, mas a gente recebe muitos estudantes. Eu me realizo trabalhando com essas crianças. Todo mundo diz que eu deveria ter sido professora dos pequenos.
P/1 – Diga quais foram as suas impressões da cidade de Santo Ângelo quando a senhora chegou para fazer o curso de Estudos Sociais. Como era a cidade e como a senhora começou a se relacionar com a cidade?
R – Bom, Santo Ângelo tem uma característica que percebi quando cheguei aqui, que é que os santo-angelenses natos são um tanto quanto bairristas, são fechados, então as minhas primeiras amizades foram com pessoas de fora. Como estava na faculdade, especialmente [com] alunos que vinham de outros municípios. Foi um tanto quanto devagar para que me integrasse realmente à cidade de Santo Ângelo.
Em 1980, o número de habitantes não era tão grande quanto hoje, mas era uma cidade que tinha mais opções. Por exemplo, tínhamos cinco cinemas. Hoje temos um que sobrevive a duras penas aqui.
A vida noturna de Santo Ângelo sempre foi muito movimentada. A gente, como jovem, tinha grupos da faculdade e saía muito. Eu comecei a fazer amizades, por exemplo, como estagiária da Caixa Federal, então tinha uma turma ali dentro com quem eu tinha um bom relacionamento. Depois disso, além de estudar, eu trabalhava na faculdade. Nós tínhamos turmas que saíam, que faziam jantares aos finais de semana… Como nós trabalhávamos quarenta horas semanais, trabalhávamos inclusive aos sábados pela manhã. No sábado à tarde, a turma da faculdade, os mais jovens, jogavam vôlei no ginásio da faculdade, tinha uma turma que puxava um samba… A gente sempre tinha alguma coisa.
Eu acabei me apaixonando por Santo Ângelo, apesar de no início ter encontrado muita dificuldade de fazer amizades e me integrar a essa sociedade santo-angelense. Eu acabei gostando e me apaixonando realmente, tanto que nunca mais pensei em sair daqui. Tive várias oportunidades de sair, fazer concursos em outras cidades e estados, mas optei por ficar aqui. Me "aquerenciei", como diz o gaúcho. (risos)
P/1 – Os seus estudos a respeito da cidade começaram no período em que a senhora estava fazendo Estudos Sociais? Ou a senhora acabou passando por esse processo por trabalhar nesse centro na faculdade de Cultura Missioneira e depois a senhora resolveu se aprofundar na faculdade de História?
R – Na verdade, o interesse pela história regional começa ainda na primeira faculdade. Eu tive uma excelente professora de Geografia Humana, que nos levou a conhecer as ruínas de São Miguel e valorizava muito isso, então já comecei a buscar mais informações. Mas o que realmente deu esse aprofundamento nas pesquisas da nossa história regional e todo seu contexto global foi a partir da fundação do Centro de Cultura Missioneira, que foi fundado em 1984. Na época, o professor Marcos e o professor Muraro conheceram um padre jesuíta espanhol que estava morando próximo aqui de Miraguaí, onde tem reservas indígenas, tanto da etnia guarani quanto da etnia kaingang. O padre fazia um trabalho nessas reservas indígenas e foi convidado pela então diretora da faculdade a desenvolver um trabalho junto com o Centro de Cultura Missioneira em uma pesquisa direcionada a cultura guarani e as missões jesuíticas. Na verdade, por esse convite, ele acabou trabalhando conosco durante dez anos. Ele foi a inspiração, porque era uma sumidade nesta área sobre a cultura guarani e as missões jesuíticas. Ele era antropólogo e viveu pelo mundo. Assim como vivia em Paris, vivia em aldeias indígenas pelo Mato Grosso e nessa comunidade indígena, no município de Miraguaí. Ele era uma referência para nós, o que me motivou muito a me aprofundar nas pesquisas sobre essa história.
Além da história missioneira e da nossa história regional, tem muitos outros fatos históricos aqui em Santo Ângelo. A fundação do CCM, como chamamos, foi com relação ao tombamento de São Miguel em 1983 como patrimônio histórico, mas logo após a sua fundação, nós trouxemos para cá - eu digo "nós" porque eu já fazia parte da equipe do CCM juntamente com os professores - Luís Carlos Prestes. Foi um convite muito ousado, contrariando a vontade de muitos santo-angelenses na época (risos), mas ele veio para cá. Isso tudo acaba motivando.
Especialmente, acho que o que também me motivou a me aprofundar nessas pesquisas foi uma professora de História que eu tive. Hoje ela é falecida, professora Iolanda Karlinski. Ela aguçava nossa curiosidade, nos incentivava a ler nas entrelinhas dos livros de História, contava detalhes que os livros da história oficial não traziam. Acho que História é isso. Ela sempre nos dizia: "Pessoal, não pensem que tudo que está escrito, nós devemos considerar como verdade única. A História é um processo dinâmico. Sempre podemos agregar novos fatos aos fatos já existentes." Isso acabou me motivando a pesquisar mais, a aprofundar esse conhecimento sobre a História.
P/1 – Certo. A gente vai começar a falar um pouquinho sobre essa questão da linha férrea. Eu gostaria que você me passasse um panorama a respeito de como isso aconteceu e do processo de desenvolvimento da linha, os impactos sociais que aconteceram…
R – Tranquilo. Eu acho que a chegada dos trens ou das ferrovias, inclusive a nível de Brasil, foi uma necessidade para a época. Os primeiros trens que chegaram ao Brasil chegaram no final do século XIX, em um momento que o país passava por uma crise, por um processo, um sistema muito complexo. Era um período, vamos dizer assim, de transição do império para a República, período de “final da escravidão”, e o Brasil necessitava de um meio de transporte que fosse mais seguro e mais barato, até em função da realidade do nosso país com relação aos tipos de estrada, enfim, tudo isso.
Inicialmente os trens chegam ao Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul. Na verdade, isso foi… Com a chegada dessas novas tecnologias ferroviárias, o padre Diogo Feijó acaba autorizando e, em um acordo feito com as administrações provinciais, inicialmente foram construídas essas estradas. Depois, foram sendo ampliadas as estradas ferroviárias, os ramais ferroviários, as estações. No Rio Grande do Sul, as primeiras linhas férreas foram em Porto Alegre, em Taquari, São Leopoldo, Novo Hamburgo, mas foram sendo ampliadas para Canela, para Gramado, chegando até Santo Ângelo. As principais linhas depois foram sendo ampliadas.
Santo Ângelo também vivia nesse contexto. Para fazer o transporte de determinadas mercadorias, muitas vezes não era seguro. Vamos dizer, um tropa de gado bovino que você levava daqui para Sorocaba ou daqui para outras regiões: imagine fazer esse transporte a cavalo para levar essas tropas. E não era só de gado bovino, imagina levar uma tropa de suínos daqui para Sorocaba. Então, se encontrava muita dificuldade e tinha muitos prejuízos durante esse trajeto.
Nesse contexto entra o processo da construção, inicialmente da malha ou estrada ferroviária, que foi construída pelo batalhão ferroviário do exército militar. Na época, o responsável por esse batalhão era o tenente Hélio Gonzales, em 1917. Daí os trens chegam até Santo Ângelo, porque as principais linhas eram Porto Alegre x Marcelino Ramos, Porto Alegre x Uruguaiana x Santa Maria, e depois Santo Ângelo.
Santo Ângelo é contemplado com a estação ferroviária a partir de 1917. A estrada ferroviária foi construída por esse batalhão, liderada pelo tenente Hélio Gonzales. A estação ferroviária de Santo Ângelo também começou a ser construída a partir de 1917, e o responsável pelo projeto foi o engenheiro Gildo Castelarim. A chegada desses trens de passageiros e de carga em Santo Ângelo impulsionou muito todo esse desenvolvimento de Santo Ângelo até 1921, quando foi inaugurada a estação ferroviária, em 16 de outubro de 1921. Ele estava… Não diria estagnado, mas sem um processo de desenvolvimento econômico, urbano etc.
Uma questão até um tanto curiosa é que até esse período o município, a área urbana de Santo Ângelo era dividida em duas partes. A linha divisória dessa cidade era a Rua 25 de Julho. Da Rua 25 de Julho para lá, que é o Sul de Santo Ângelo, essa parte era chamada de Alemanha; era a parte mais desenvolvida em relação a comércio, porque toda essa parte do comércio se desenvolveu no entorno da Praça Pinheiro Machado, que nós chamamos de Praça da Catedral, e hoje é chamada de Centro Histórico. E o segundo Santo Ângelo, que era da Rua 25 de Julho para a região Norte, era chamada de Brasil. Brasil e Alemanha, tinha essa divisão. Com a chegada dos trens e a instalação da estação ferroviária aqui nas proximidades, se deslocou… Boa parte do comércio estava concentrada na Praça da Catedral [e passou] para esse espaço. Isso começou a desenvolver não só o município de Santo Ângelo, mas toda a região.
Começaram a ser instaladas aqui nas proximidades da estação férrea o comércio, que quadruplicou a sua instalação. Começaram a ser construídos prédios, foram instaladas indústrias, fábricas, cinemas, restaurantes, hotéis… Isso fez com que [a cidade] desse um grande impulso, tanto no desenvolvimento econômico quanto no desenvolvimento urbano e também na questão social. Nós tínhamos aqui fábrica de banha, frigorífico, tínhamos uma fábrica de fumo, que era a Souza Cruz e depois foi transferida, vários hotéis aqui no entorno… Tinha uma das ruas aqui que era uma cancha de carreira, de corrida de cavalos.
Com a chegada desses trens, também passou a se desenvolver pequenos povoados ao longo dessa estrada de ferro. As famílias iam construindo suas casas à margem, dos dois lados da estrada ferroviária. Isso também começou… A instalação da estação ferroviária também fez com que muitas famílias sobrevivessem dos trabalhos das ferrovias. Tanto na construção da estrada, na restauração, então também deu emprego, deu trabalho e uma forma de sobrevivência a muitas famílias. Essas famílias ferroviárias tinham uma ligação muito grande entre si, se ajudavam, eram muito de se ajudar, tanto nas horas boas de festa, quanto nas horas ruins.
Essa chegada dos trens trouxe um grande desenvolvimento da região. Era um transporte mais barato, econômico e seguro também na época. Em 1921 chegaram os trens em Santo Ângelo, os trens de carga e trens de passageiros.
P/1 – Essa chegada, não só dos trens de carga… Existiam também os trens de passageiros. Causou algum impacto no sentido do deslocamento das pessoas na região de Santo Ângelo para outras cidades e vice-versa?
R – Sim, porque imagine só, em 1921 a maioria das pessoas não tinha nem carro, então o deslocamento, por exemplo, de Santo Ângelo para um outra cidade, era… Nossa, uma dificuldade muito grande. Então a chegada dos trens de passageiros fez com que houvesse um maior número de pessoas que viajasse. Mesmo que às vezes levasse dois dias para chegar em Porto Alegre, viajavam muito mais, faziam passeios, visitavam seus parentes, visitavam outras regiões. Isso trouxe também benefícios para a população.
Isso chegou a causar às vezes discriminação entre as pessoas que viajavam de primeira classe e as pessoas que viajavam de segunda classe, porque na primeira classe até as refeições que eram servidas eram mais elaboradas, enfim, serviam até bebidas etc. Muitos espertos da época compravam passagens para viajar na segunda classe, mas como muitas vezes quem recebia o pessoal no embarque não controlava muito, eles iam para os vagões da primeira classe e viajavam bem tranquilos, porque ninguém fiscalizava (risos). Os que eram mais espertos faziam isso também.
Isso trouxe benefícios para a população não só de Santo Ângelo, mas para todo o estado do Rio Grande do Sul e do Brasil, porque como eu disse, era uma forma segura, mais barata e também tranquila para viajar, então trouxe benefícios, independente de ir de primeira ou segunda classe.
P/1 – Nesse momento, nesse período ainda do início do século XX, já havia um estímulo turístico para visitar essa região das Missões ou isso foi depois?
R – Olha, alguns turistas, muito assim… Vamos dizer, poucos turistas tinham essa ideia de como surgiu essa região. Não se estudava tanto quanto se estuda hoje, não tinha essa clareza do que representava as ruínas de São Miguel ou os demais pontos históricos que temos aqui. Mas se tinha conhecimento e inclusive algumas fotografias desse período. Temos um arquivo fotográfico na universidade da década de 1920 que mostra turistas visitando São Miguel. Na verdade, especialmente São Miguel, que dos sítios aqui é o que está mais completo, estava em meio a enormes árvores, com gado solto pela frente, lavouras no entorno, então não se tinha essa consciência turística.
O turismo mesmo começou a ser desenvolvido aqui a partir dos anos 1960, 1970, mas teve grande impulso com o tombamento da igreja do sítio de São Miguel como patrimônio histórico da humanidade em 1983. Aí que teve maior impulso no desenvolvimento turístico da região.
P/1 – Entrando nessa questão da sua vivência com Santo Ângelo em relação à ferrovia... Quando a senhora veio para Santo Ângelo, a senhora veio de trem?
R – Não, não vim de trem. Na verdade, eu fiz pouco uso dos trens, a não ser em passeios turísticos, pela Serra Gaúcha, enfim, regiões. No ano passado houve uma viagem experimental aqui e ainda não perdemos a esperança de retornar isso e fazer com que aconteçam essas viagens turísticas de trem.
Eu tenho um grande carinho pela estação ferroviária, e é mais uma relação histórica do que afetiva. Não cheguei a fazer uso dos trens, mas é importante valorizarmos nosso patrimônio, os meios de transporte, entre tantas outras coisas.
P/1 – Na verdade, já estava no processo de desativação dos trens de passageiros nesse período, não é? O período em que a senhora chegou.
R – Sim. Na verdade, os trens de passageiros aqui em Santo Ângelo foram desativados em 1969. A partir disso, a estação ferroviária foi transferida para o bairro São Pedro, onde permaneceram só os trens de carga. A partir desse período, que a antiga estação ferroviária aqui de Santo Ângelo foi desativada como estação, ela serviu como Secretaria de Turismo, como posto da Brigada Militar e só a partir de dezembro de 1996 ela passou a abrigar o Memorial da Coluna Prestes.
A decadência ou a falência das estações férreas, das linhas férreas, não só a nível de Rio Grande do Sul mas a nível de Brasil, realmente foi no ano de 1985. Aqui em Santo Ângelo, do ano de 1969 até os anos de 1980 e poucos, os trens de carga permaneceram porque era uma forma de transportar especialmente a produção de grãos da região, porque antes se transportava bovinos, ovinos, suínos, derivados do petróleo, farelo, adubo, arroz, entre tantos outros produtos. Depois, com a produção de grãos, especialmente a produção da soja, que começa no Rio Grande do Sul nos anos de 1960, depois [foi] sendo ampliada e hoje é um dos principais produtos da região… Então, já era soja, já eram outros produtos. Foram mantidos os trens de carga, mas depois, com o desinteresse do governo federal de manter essas linhas ferroviárias, 1985 é quase uma falência geral de todas as ferrovias do Brasil e juntamente do Rio Grande do Sul.
Na verdade, no meu modesto ponto de vista, isso já se inicia lá pelos anos de 1955, com a chegada de multinacionais, as concessionárias de caminhões… Depois, nos anos de 1960, 1970, a falta de estradas, justamente para que essas concessionárias pudessem vender seus caminhões no Brasil. Esses interesses acabam fazendo realmente com que as estações ferroviárias, os meios de transporte ferroviários, acabem falindo. Começa a não ter uma manutenção das locomotivas, dos vagões; os funcionários começam a receber menos, o salário dos funcionários ferroviários acaba baixando, diminuindo o valor, muitos nem sempre recebiam em dia o seu salário… Havia um desinteresse quase geral pelo transporte ferroviário, o que realmente é uma lástima, porque hoje seria um dos meios de transporte barato, também seguro e que dava uma certa liberação ao trânsito dessas estradas, que são difíceis de andar. Tem temporadas, especialmente nessas regiões aqui, que tem carretas que acabam dificultando o trânsito de forma geral.
P/1 – A senhora avalia, no caso desse processo especificamente em Santo Ângelo de desativação dos trens de passageiros, que houve algum impacto econômico e social? O que foi alterado com isso?
R – Teve um impacto sim, porque as pessoas que estavam habituadas a viajar de trem, enfim, a viajar para Santa Maria, Uruguaiana, Porto Alegre, e tantas outras localidades, acabaram perdendo esse meio de transporte. Então houve um impacto sim. Depois, até foi substituído pelas linhas de ônibus, mas não era a mesma coisa, era diferente, até porque nesse período as linhas de ônibus eram muito raras, eram poucas e não tinha para todas as localidades.
Tinha também a questão da população, nem todos tinham condições de ter seu carro próprio, então dependiam de ônibus. Isso causou um impacto muito grande, tanto social quanto na questão econômica, porque o transporte de trem não era caro, era um transporte acessível.
P/1 – Houve fases da ferrovia do Rio Grande do Sul ou fases da estação de Santo Ângelo no sentido de modificações ao longo do tempo, enquanto funcionou a estação central?
R – Deixa eu ver se entendi a sua pergunta, fases especiais, você quer dizer?
P/1 – Eu quis dizer no sentido de fases da ferrovia no Rio Grande do Sul… Houve fases em que, por exemplo, existia somente parte e depois foi se desenvolvendo? Qual foi o período para completar essas linhas?
R – Ah, sim. As principais linhas, antes de Santo Ângelo… Inicialmente eram Porto Alegre, Marcelino Ramos, Uruguaiana. Santo Ângelo entra depois, mas tinha ligações com Santa Rosa, Giruá, Catuípe, então teve algumas fases até… Por exemplo, uma das fases que se complementa, se completa um trecho da estrada ferroviária, é depois da inauguração de Santo Ângelo, que vai até Giruá, um município vizinho aqui.
Neste período, não está comprovado cientificamente, mas se tem relatos de que esse trecho da ferrovia da central de Santo Ângelo até um distrito de Santo Ângelo que se chama Comandaí, que vai até o município de Giruá, foi coordenado pelo Luís Carlos Prestes.
Teve algumas fases diferenciadas em relação à importância. Santo Ângelo era uma referência, mas o maior centro de entroncamento ferroviário no Rio Grande do Sul foi Santa Maria. Depois de Santa Maria, um município bem pequeno, Santa Bárbara do Sul; até hoje a cidade é toda cortada pelos trilhos de estrada de ferro que ainda existem. Santo Ângelo também era uma referência.
P/1 – Em relação a essa questão do Luís Carlos Prestes, eu queria que a senhora explicasse um pouco a relação dele não só com a cidade de Santo Ângelo, mas também com a estação de Santo Ângelo.
R – Sim. Luís Carlos Prestes foi um jovem porto-alegrense que fez Engenharia na Academia Militar de Realengo no Rio de Janeiro e em 1920 se formou engenheiro. Nesse período, o Brasil passava por uma situação muito complexa, muito delicada. Recém período da primeira república, quem comandava o país eram representantes ora de São Paulo, ora de Minas Gerais. Os demais estados brasileiros não tinham chance de colocar seus representantes no poder, e Luís Carlos Prestes, um jovem gaúcho, de estatura média baixa, franzino, se formou e ficou servindo o Exército no Rio de Janeiro.
Nesse período, surge um movimento tenentista - nos quartéis do Rio especialmente, mas também nos quartéis de São Paulo. O movimento tenentista era um movimento de alguns tenentes que reivindicavam em especial, na época, a queda do então presidente Artur Bernardes, era uma das reivindicações. Outra reivindicação era de que todos os brasileiros tivessem direito ao voto, e ao voto secreto, porque na época somente votavam alguns homens com certo poder aquisitivo e não analfabetos. E o voto era de cabresto, se votava em quem os coronéis determinassem.
Luís Carlos Prestes, um gaúcho com ideias muito avançadas para sua época, eu diria, não estava contente com essa situação. Imagine que nesse período mais de 80% da população brasileira era considerada analfabeta, então também era reivindicada educação gratuita para todos os brasileiros. Prestes foi um dos líderes do movimento tenentista.
Desse movimento, teve o episódio dos Dezoito do Forte de Copacabana, que foram mortos na praia de Copacabana, mas Prestes não foi morto nesse episódio porque estava hospitalizado com febre tifóide no Rio de Janeiro. Logo após…
(PAUSA)
P/1 – Retomando, a gente estava falando sobre o Luís Carlos Prestes e sobre a questão do voto de cabresto.
R – Isso, então nesse período… Falei do episódio da praia de Copacabana, os Dezoito do Forte. Prestes não foi morto durante esse episódio, porque ele estava hospitalizado com febre tifóide.
Logo após esse episódio, o então comandante do quartel onde Prestes servia ao Exército transferiu Luís Carlos Prestes para uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. Essa cidadezinha foi Santo Ângelo, em 1921.
Prestes veio para cá como engenheiro responsável pela construção de um dos batalhões ferroviários daqui de Santo Ângelo. Ele começa o trabalho dele como engenheiro militar e, a partir disso, começa a perceber o descontentamento de alguns militares e de alguns civis em relação à situação que o Brasil estava passando. Nessa estação ferroviária recém inaugurada em 1921, Prestes começa a fazer as primeiras reuniões, e depois, em outubro de 1924, mais precisamente no dia 29, ele acabou fazendo o primeiro levante da Coluna Prestes.
A Coluna Prestes é considerada historicamente o maior movimento invicto da história mundial, pelo menos até o presente momento, que foi registrado. Luís Carlos Prestes então parte de Santo Ângelo com alguns civis e alguns militares que estavam descontentes com a situação do país e vai até São Luiz Gonzaga, usando os trens de passageiros. Lá ele permanece por uma boa temporada, estruturando esse movimento revolucionário que chamamos de Coluna Prestes hoje, mas só passou a se chamar Coluna Prestes depois do encontro da Coluna Gaúcha com o encontro da Coluna Paulista, na Foz do Iguaçu no Paraná.
A Coluna Paulista era liderada por Miguel Costa. Esse movimento revolucionário reivindicava também muitas coisas, como educação gratuita para todos os brasileiros, que o voto fosse secreto e que todos os brasileiros tivessem direito ao voto - isso já era reivindicado pelos tenentes do movimento tenentista -, a queda do então presidente Arthur Bernardes continuava também, e que os demais Estados tivessem o direito de colocar os seus representantes no poder, porque nesse período as eleições eram muito fraudulentas, justamente pelo poder das oligarquias. Como eu disse, o presidente era ora de São Paulo, ora de Minas Gerais, havia uma escala nesse sentido. Quando a situação desconfiava que a oposição pudesse obter uma vitória nas eleições, os votos eram fraudados, então as eleições eram muito fraudulentas.
Durante toda essa trajetória da Coluna Prestes, Luís até teve algumas decepções grandes em relação ao número de revolucionários que se integraram ao movimento, porque ele esperava muito mais gente, mas o movimento revolucionário nunca ultrapassou a marca de 1.500 homens. Também teve algumas mulheres que participaram do movimento revolucionário. Esse movimento, [em] que um dos levantes partiu daqui de Santo Ângelo, da estação ferroviária; em São Luiz Gonzaga se encontrou com outros levantes, um que veio de Alegrete, outro de São Borja, e a partir de São Luiz esses revolucionários seguiram viagem.
Os principais objetivos, segundo o próprio Luís Carlos Prestes, que eu tive o prazer de conhecer em 1984, quando ele estava em Santo Ângelo, nos sessenta anos da Coluna Prestes, fazendo palestras na faculdade, na comunidade de Santo Ângelo, enfim, em Santo Ângelo e região... Foi dito pelo próprio Prestes que esse movimento foi mais um movimento de conscientização da população brasileira de que a situação do país deveria mudar, mas que não teve muito sucesso. Por que Prestes achou que não teve muito sucesso? Justamente pelos meios de comunicação da época. Como essa coluna passou mais especificamente pelo interior do nosso país, as pessoas que moravam no interior não tinham consciência nem de quem era o nosso presidente na época, não tinham conhecimento dessas histórias, até porque essas pessoas do interior não se preocupavam muito com a educação. Por isso que ainda hoje temos pessoas mais antigas que são analfabetas. Eles precisavam de mão de obra para trabalhar em suas terras etc.
Essa coluna, em dois anos e três meses, percorreu em torno de 25.000 quilômetros.
Saiu aqui do Rio Grande do Sul, mais precisamente de Santo Ângelo, depois indo para Santa Catarina e Paraná. No Paraná, encontrou a Coluna Paulista liderada por Miguel Costa e seguiu até o Piauí. Em 1927, a grande maioria desses revolucionários foram exilados na Bolívia. Muitos deles trabalharam na construção das estradas ferroviárias da Bolívia, porque já tinham conhecimento de como era o trabalho, até porque Luís Carlos Prestes, vamos dizer assim, foi responsável pelo trecho da estrada ferroviária da estação Central de Santo Ângelo até o distrito de Comandaí. Eles trabalhavam para juntar dinheiro e voltar para suas famílias.
Luís Carlos Prestes é visto ainda hoje, em pleno século XXI, como um comunista daqueles bem malvados, mas eu diria que ele foi um grande idealista, talvez um pouco além da sua época. Morou na Rússia por muitos anos. A partir do momento em que foi para a Rússia, ele passou a simpatizar mais com o partido comunista, o marxismo.
Em uma das primeiras vezes que ele veio da Rússia para o Brasil, ele veio clandestinamente, com um nome falso, e veio acompanhado de uma alemã judia chamada Olga Benário Prestes. Eles entraram no Brasil pelo Uruguai. Além dessa vez, ele veio outras vezes de forma clandestina para o Brasil. Ele só voltou para o Brasil livre de qualquer processo no fim da ditadura militar, [em] 1984.
Em relação a Olga Benário Prestes, em uma das vezes em que estiveram pelo Brasil ele acabou se apaixonando por ela. Teve uma filha com ela, chamada Anita Leocádia Prestes, que nasceu em 1936, nos campos de concentração da Alemanha. Por que ela nasceu lá? Porque nesse período, Olga Benário Prestes foi entregue a Filinto Müller e [depois] a Hitler pelo então presidente Getúlio Vargas; Luís Carlos Prestes foi preso neste mesmo período e ficou nove anos na prisão. Olga teve a filha nos campos de concentração, e uma das seguranças para ela ficar viva era amamentar a sua filha, então por muito tempo ela fingia amamentar a Anita, porque era uma forma de sobreviver até os três anos de idade [da filha]. Ela foi morta nas câmaras de gás e Anita foi criada pela mãe do Luís Carlos Prestes, que foi para a Europa buscar a sua neta. Ela foi criada pela mãe do Prestes.
Anita Leocádia Prestes era professora de História Política na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e eu tive o prazer de conhecê-la também quando ela fez o doutorado e veio pesquisar sobre a Coluna aqui, na região das Missões.
Luís Carlos Prestes eu conheci em 1984, quando ele esteve aqui. Era muito engraçado, porque quando ele chegou em Santo Ângelo, no aeroporto, foi toda uma comitiva para recebê-lo: os professores, diretores, a direção da faculdade, os professores do Centro de Cultura recém criado etc.
Quando ele chegou na faculdade para proferir a sua primeira palestra, eu me dava com todo mundo lá da faculdade, com os alunos, até porque trabalhei na biblioteca por muito tempo. Tinha uma gurizada que cursava Engenharia Mecânica, que quando via um fotógrafo… Tinha sido contratado um rapaz que fez toda a filmagem, desde a chegada do Prestes. Faltava só eles se jogarem no chão, e eu perguntei para eles o porquê dessa atitude, desse medo de aparecer em uma fotografia próximos ao Luís Carlos Prestes. Um dos rapazes me respondeu: "Olha, Nadir, se meu pai ver uma fotografia minha com esse comunista, amanhã eu já não estou mais na faculdade. Ele vai me levar de volta para o interior."
Era essa ideia distorcida que muitas pessoas tinham e têm sobre esse movimento revolucionário. Na verdade, foi mais um movimento de conscientização que não alcançou o seu objetivo, mas que preparou, vamos dizer assim, toda a base da Revolução de 1930. Luís Carlos Prestes foi preso por Getúlio Vargas, que na época era presidente, a esposa dele foi enviada para as câmaras de gás, para os campos de concentração da Alemanha, mas mesmo assim, durante a sua trajetória política no Brasil, ele foi um dos senadores mais votados pelo Partido Comunista Brasileiro.
Ele se alinhou ao Getúlio Vargas. Uma das perguntas que foram feitas a ele durante as palestras que ele proferia aqui na região foi o porquê dessa aliança dele com Getúlio Vargas se Getúlio Vargas o tinha traído, entregue a Olga para Hitler, e ele foi preso. A resposta que ele deu, me lembro perfeitamente, foi no salão do Prédio Cinco da faculdade. Ele disse: "Olha, meus amigos, para defender os ideais da nossa pátria, nós devemos esquecer os nossos ideais." Essa frase dita por Luís Carlos Prestes me marcou muito.
Prestes chegou a morar aqui em Santo Ângelo. Até pouco tempo tinha aqui a casa onde ele morou, mas hoje não existe mais. As especulações imobiliárias… O memorial retrata um pouco da sua trajetória aqui em Santo Ângelo, essa ligação de Prestes com a estação ferroviária, com a região missioneira.
Uma das questões muito importantes foi como a gente conseguiu o contato do Prestes. Quando ele confirmou a sua vinda para Santo Ângelo, em 1984, nós da faculdade, os alunos de História, os ex-alunos, juntamente com os professores, fizemos uma pesquisa aqui na região - não só em Santo Ângelo, mas em toda a região - e nós encontramos onze senhores que foram soldados do Prestes durante a Coluna Prestes, em 1924 até o início de 1927, e que nunca mais tinham visto o seu comandante, porque o Prestes era um dos líderes.
A gente entrevistou todos eles e todos estavam com mais de oitenta anos na época. Dessas entrevistas, não só dos onze soldados do Prestes, mas também do próprio, se publicou um livro chamado Coluna Prestes, 60 Anos Depois. A emoção desses senhores missioneiros - todos eles eram da região missioneira - ao encontrar o seu comandante, o seu chefe no aeroporto de Santo Ângelo na chegada dele, foi uma coisa muito emocionante. Nós tivemos inclusive a preocupação de pedir uma ambulância lá no aeroporto com medo de que, pela emoção, alguém pudesse se sentir mal. Na época, o Luís Carlos Prestes ofereceu um lenço vermelho para todos os seus soldados, como um agradecimento, vamos dizer assim, pela participação deles durante essa trajetória.
A Coluna Prestes percorreu esses 25.000 quilômetros, mas… Tem muitas pessoas que dizem: "O Prestes se aproveitava das mulheres por onde ele passava, assaltava e roubava animais..." O que ele explicou nessas palestras, as quais eu assisti praticamente todas quando ele esteve aqui em Santo Ângelo, é que realmente, quando eles chegavam na fazenda, os cavalos que eles tinham… Eles fizeram esses 25.000 quilômetros praticamente inteiros a pé ou a cavalo; em alguns trechos eles usavam o trem, mas a grande maioria foi feita a pé ou a cavalo, porque era uma forma de passar pelas fazendas, pelos interiores, conscientizando a população brasileira da situação do país. Eles trocavam os animais cansados que eles tinham por animais descansados, animais mais tratados, enfim. Eles também pediam alimentos, como feijão e arroz. Como eles não tinham dinheiro, assinavam algumas promissórias de que no final da Coluna iriam pagar.
Ele não negou que às vezes os seus soldados se aproveitavam de algumas mulheres nesses lugares, mas que quando os líderes tomavam conhecimento desses acontecimentos, esses soldados eram punidos. Ele explicou: "Como é que vamos controlar 1.500 homens durante um processo revolucionário?" Eles não tinham o controle total de todos. Mas a história é bastante distorcida, então alguns dizem, "aquele bandido", "aquele comunista", "aquele não sei o que", mas como eu disse anteriormente, pelo que conheci do Luís Carlos Prestes, ele foi um grande idealista.
Essa Coluna teve um episódio também um pouco diferente. Quando ele parou ali em São Luiz Gonzaga para estruturar a Coluna, teve um grupo de mulheres de São Luís que resolveu acompanhar os revolucionários. Imagine em 1924 as mulheres acompanhando um movimento revolucionário, só que eram poucas mulheres em relação ao número de homens.
Quando Prestes chegou no Rio Uruguai, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, ele chamou alguns dos seus companheiros livres e determinou que alguns soldados voltassem, trazendo essas mulheres de volta para São Luiz Gonzaga. Mas ele se envolveu com outros problemas que tinham no grupo, e quando Prestes chegou ao outro lado do Rio Uruguai, a mulherada estava toda do outro lado; já tinham atravessado o rio, já estavam no estado de Santa Catarina, decididas a acompanhar a Coluna. Aí desistiram da ideia, "deixe que acompanhem". Mas essas mulheres foram esquecidas na nossa história oficial até bem pouco tempo atrás.
Ainda tem descendentes dessas mulheres que acabaram voltando para São Luiz Gonzaga. Elas tiveram uma importância muito grande para o processo revolucionário. Muitas delas foram para as frentes de batalha, lutando. Usavam bigodes postiços, chapéu enterrado na cabeça com o cabelo por baixo, pintavam a cara, usavam roupas masculinas, porque não era permitido que mulheres lutassem. Além dessas que foram para as frentes de batalha, algumas dessas mulheres se tornaram enfermeiras, lavadeiras, cozinheiras, acabaram casando com alguns dos líderes, outras com soldados, e eram esquecidas totalmente na nossa história. Elas eram conhecidas como “as vivandeiras”. Hoje já têm trabalhos de conclusão de curso, de mestrado, de doutorado e outras pesquisas sobre a participação dessas mulheres.
Outro episódio também de São Luiz Gonzaga foi que um grupo de mulheres fez uma promessa, com medo de que os revolucionários destruíssem a cidade de São Luiz - eles ficaram um bom tempo acampados em São Luiz. Elas fizeram a promessa de que se não houvesse a destruição da cidade de São Luiz Gonzaga, elas construiriam uma gruta em homenagem a Nossa Senhora de Lourdes, que é um ponto turístico da cidade.
Luís Carlos Prestes, como eu disse, voltou ao Brasil não clandestinamente, mas já livre de qualquer processo em 1984 e se instalou no Rio de Janeiro. Do primeiro casamento, com Olga Benário Prestes, ele teve a Anita Leocádia Prestes, mas no segundo casamento, com a dona Maria Ribeiro, ele teve nove filhos, entre biológicos e adotivos. Entre eles, Luís Carlos Prestes Filho, que também morou na Rússia por dezesseis anos.
Esse eu também conheci em 1985, quando ele trabalhava na Secretaria da Cultura do Rio de Janeiro. Ele é cineasta e fez uma pesquisa em 1995 em relação ao meio ambiente: como era 1924 pela Trilha da Coluna, como a gente chama, e como esse meio ambiente estava em 1995. Essa pesquisa foi patrocinada pela Revista Manchete, que hoje não existe mais, e pelo Boticário. A universidade, assim como assessorou a Anita Leocádia Prestes quando ela fez o seu doutorado sobre a Coluna Prestes na região das Missões, também assessoramos Luís Carlos Prestes Filho quando ele fez essa pesquisa. Ele ficou três meses aqui em Santo Ângelo e fez o QG Central dele aqui.
Ele foi um dos idealistas do Memorial da Coluna Prestes. Essa pesquisa sobre o meio ambiente saiu em seis números da Revista Manchete, de 1995 a 1996. Foi muito interessante. Eu o acompanhei em alguns lugares aqui na região, onde Prestes fez algumas paradas. A gente se reunia na minha casa, porque o fotógrafo da Revista Manchete gostava muito de tocar violão, assim como Luís Carlos Prestes. Às vezes reuníamos alguns colegas da História, a gente se juntava lá em casa e fazíamos um jantarzinho, ficávamos conversando.
Depois, Luís Carlos Prestes Filho voltou para cá na inauguração do Memorial. Também conheci a viúva do Luís Carlos Prestes, a dona Maria Ribeiro. Eu a convidei para fazer uma palestra durante um evento na Universidade. Ela tem livros publicados e foi muito interessante conversar com ela sobre todo esse processo.
Ainda hoje, em pleno século XXI, Prestes ainda é visto por parte dos brasileiros como herói, mas também é visto como um comunista malvado (risos), são as histórias distorcidas. Luís Carlos Prestes faleceu em março de 1990 no Rio de Janeiro; esteve aqui em 1984, estava com 82 anos, e com uma lucidez, uma clareza em contar, em relatar a história de vida dele, a história da revolução. Ele morreu defendendo seus ideais desde a sua juventude.
Essa é a relação de Prestes com Santo Ângelo, com a região e é por isso que hoje nós temos mantido a estação ferroviária no Memorial da Coluna Prestes, juntamente com o Museu Ferroviário, que está no mesmo espaço da antiga estação ferroviária.
P/1 – Eu gostaria de falar sobre esses dois espaços, sobre o Museu Ferroviário e sobre o Memorial. Como eles surgiram? Qual a relação deles com a cidade? Isto é, no caso do Luís Carlos Prestes, a gente sabe de toda essa história, de toda essa relação, inclusive das pessoas que voltaram para fazer pesquisa, dos filhos que voltaram para fazer pesquisa… Mas como isso é visto pela própria comunidade de Santo Ângelo a ponto de ter um memorial na estação de trem? E depois a gente conversa sobre a questão do Museu Ferroviário, também vou querer saber um pouco.
R – O Museu da Coluna Prestes na verdade foi idealizado por esse filho do Prestes, Luís Carlos Prestes Filho, juntamente com uma das secretárias de turismo de Santo Ângelo que era historiadora - ela foi minha colega de História - e alguns outros professores, que queriam fazer uma homenagem ao Luís Carlos Prestes. Inicialmente, assim como na visita de Prestes em 1984, se encontrou alguma resistência, mas ao longo do tempo nós fomos conversando e explicando que a Coluna Prestes é um fato histórico, então nós temos que trabalhar isso, temos que estudar, temos que fazer com que os nossos alunos do ensino fundamental, do ensino médio e da própria faculdade de História, enfim, estudem esse fato, por que aconteceu, as consequências. Houve uma certa resistência da população e hoje já não tem muito.
Acredito que o meu colega [Amílcar Guidolim] vá falar mais exatamente sobre a representação da Coluna Prestes em relação à população atual. Foi o trabalho dele de dissertação de mestrado e ele está dando continuidade na tese de doutorado, nessa mesma linha da representação da Coluna no imaginário das pessoas ainda hoje. Mas houve uma certa resistência.
Como a estação que até então servia de posto da Brigada Militar estava sendo desativada e seria o local mais adequado para se abrigar esse memorial, se conseguiu, foi feito o projeto. Para a inauguração, em 1996, vieram muitos políticos, muitos historiadores, mas houve resistência sim, especialmente de militares.
Um caso que aconteceu comigo foi que eu estava com uma excursão do Rio de Janeiro nesse meu trabalho de guia de turismo. Era um ônibus com vinte e poucas pessoas e nas primeiras poltronas tinha um casal. Quando cheguei aqui, próximo à estação, peguei o microfone e disse: "Agora vamos visitar um dos atrativos da região, que é o Memorial da Coluna Prestes." O pessoal já foi se levantando para descer, e desse casal que estava na primeira poltrona, o senhor me chamou e disse: "Moça, a sua região é muito bonita, você explica muito bem, mas eu tenho uma reclamação e gostaria que a senhora levasse até as autoridades competentes." (risos) Eu falei: "Pois não." Ele disse: "Como é que vocês fazem uma homenagem ao maior bandido da história brasileira, que foi Prestes?"
A esposa dele fez menção de se levantar para visitar junto com o grupo o Memorial; ele puxou ela pelo braço, fez ela se sentar e disse: "Você não vai." E ela não foi.
Eu dei esses exemplos que aconteceram comigo para se ter uma ideia do que ainda representa no imaginário das pessoas esse movimento revolucionário, em especial no imaginário santo-angelense também e missioneiros, de forma geral, essa visão distorcida. É claro que cada um tem liberdade para fazer a sua leitura e a sua interpretação, mas ainda hoje há uma resistência em relação a esse movimento. O memorial inicialmente causou uma certa estranheza, mas a partir do momento que nós fizemos muitas palestras de conscientização sobre o que representou esse movimento revolucionário, fizemos oficinas para professores, conscientizando esses professores de que devemos trabalhar mais fatos históricos e o que eles representaram na época e o que representam hoje... Então, hoje é estudada a Coluna Prestes normalmente no oitavo ano do ensino fundamental, normalmente o conteúdo está previsto, e as escolas visitam, mas como uma visita de estudos. Hoje já tem uma consciência, especialmente dos mais jovens, um pouco mais aberta, então hoje o memorial é visitado sim.
P/1 – Isso fica no mesmo espaço, não é? O Museu Ferroviário também fica na estação. Eu gostaria de saber um pouco sobre ele.
R – Sim. O Museu Ferroviário… Bom, a própria estação ferroviária mantém desde o piso original, o forro original, e também tem o telégrafo, onde se passavam as mensagens pelo código morse. Preserva-se um pouco da história da ferrovia em um espaço ainda pequeno, mas que a ideia é fazer um projeto e ampliar esse espaço do Museu Ferroviário, ou passar esse museu para dois vagões e uma casa que foi de um funcionário da ferrovia, mas que precisa de toda uma restauração, vamos dizer assim, para que ele seja exposto de forma que dê mais oportunidade de visitação.
Ele retrata, através de fotografias e de equipamentos da ferrovia da época, a história da ferrovia aqui em Santo Ângelo. Como se passavam as mensagens, como se… Enfim, qual o boné, o quepe que o maquinista usava em relação ao chefe da estação, ao chefe do trem etc, toda essa parte. Acho muito interessante.
Quando se faz a visita ao memorial, se visita o Museu Ferroviário e se trabalha a linguagem do código morse com as crianças que não conheceram, não têm ideia, mas também foi idealizado… Seu Juvenil, que era ferroviário e trabalhou até seus últimos dias nesse museu, era o telegrafista da estação ferroviária, então as crianças adoravam quando iam ao museu e o seu Juvenil estava lá. Hoje ele é falecido, mas ainda bem que fizeram uma homenagem a ele antes do falecimento, ainda em vida, porque às vezes a gente pensa nas pessoas só depois que se vão.
É um instrumento, eu diria, muito importante para se trabalhar a história das ferrovias com vários alunos, tanto do ensino fundamental, médio ou de qualquer outro nível de educação. É bem interessante conhecer o Museu Ferroviário juntamente com o Memorial da Coluna Prestes.
P/1 – Falando sobre essa questão da memória, a gente entende que atualmente existem essas duas presenças na cidade: a memória da ferrovia e a memória da Coluna Prestes. A memória da Coluna Prestes, como a senhora diz, ainda é um pouco controversa, mas isso está sendo resolvido por meio mesmo da educação no sentido de explicar para as pessoas o que foi.
R – Justamente.
P/1 – No caso da memória ferroviária, a senhora acredita que isso gera interesse nas pessoas mais jovens ou na população em geral?
R – Gera muito interesse, e a gente percebeu isso nesse passeio experimental do trem no ano passado, que fez um ano essa semana. Foi feito um trabalho lá no bairro São Pedro, onde todo o entroncamento ferroviário, onde chegavam os trens de carga e ainda chegam… Tem uma empresa que ainda faz o transporte.
As pessoas desconheciam, e a partir do momento que foi feito um trabalho que falou sobre as ferrovias, sobre os trens e o quanto eram importantes os trens na época e o quanto seriam importantes hoje, como um meio de transporte seguro, barato, começou a despertar essa consciência e essa vontade de saber mais sobre. Isso também fez com que muitos viessem visitar o Museu Ferroviário aqui na estação, porque eles não tinham nem conhecimento da existência do Museu Ferroviário, da existência do Memorial da Coluna Prestes.
Eu acredito que essa consciência nós devemos trabalhar com os pequenos, porque com o adulto é bem mais difícil você mudar essa consciência histórica. Mas quando você trabalha com as crianças, além da criança aceitar, você vai aguçar a curiosidade nessa criança e ele vai cobrar do adulto depois.
Eu acho que através da educação a gente resolveria os problemas do mundo. Pena que nem todos pensem dessa forma. Muitas pessoas dizem: "Por que eu tenho que saber História?" Gente, se nós não preservarmos a nossa memória histórica, quem nós somos? Ninguém. Eu acho muito importante que a gente preserve essa memória histórica, valorize essa história, porque ela se repete muitas vezes, um pouquinho diferente.
Eu sempre brincava com minhas alunas, e a Priscila deve lembrar disso, que se a gente não preservar a nossa história, a gente não é ninguém. Às vezes eu até dizia para os meus alunos e alunas de forma geral, quando trabalhava a História, que até em uma briga de casal de namorados você tira proveito da situação, você vai relembrar o que você não deve fazer em uma próxima situação.
Isso se repete nos fatos históricos. Por exemplo, se nós pegarmos o período da cultura do café no Brasil, da monocultura que não só para o Brasil, mas para qualquer outro país que tenha monocultura de café, de soja ou de cana-de-açúcar, isso é muito perigoso, porque se dá uma crise e outros países não compram o produto, não consigo despachar esse produto, há uma crise econômica muito grande.
Por que as pessoas começaram a repensar só o cultivo da soja? "De repente os outros países deixam de comprar soja e onde é que nós vamos colocar essa soja?" Os fatos históricos e o conhecimento da história servem para que a gente não cometa os mesmos erros, nem os mesmos equívocos, por isso acho que ela deve ser trabalhada, deve ser valorizada, e em especial a nossa história local; para entender a história global, a gente parte da história local. Nesse sentido, acho que devemos trabalhar mais e conscientizar os pequenos, para que eles cobrem os adultos.
P/1 – Eu gostaria justamente de chegar nessa questão. A senhora disse que trabalha como guia turística e geralmente com a crianças.
R – Geralmente com as crianças.
P/1 – Eu gostaria que a senhora comentasse um pouco como surgiu isso, enfim.
R – O trabalho de guia de turismo é uma coisa muito louca na minha vida. Eu já trabalhava na faculdade, quarenta horas. Uma amiga minha, colega de faculdade, ia para Salvador, e ela trabalhava em uma agência de turismo. Ela veio assim: "Nadir, pelo amor de Deus, o meu chefe só me libera para que eu possa fazer essa viagem para Salvador se eu colocar alguém no meu lugar lá na agência. Nadir, pelo amor de Deus, trabalha lá vinte horas, por favor." Era pleno dezembro. Eu disse: "Isabel, eu nunca trabalhei com turismo, não tenho nem ideia."
Resumo da ópera: eu fui substituir a Isabel na agência por trinta dias para que ela pudesse tirar suas merecidas férias. Já entrei em um fogo cruzado, fazendo viagens para Foz do Iguaçu, para as praias, porque na época essa agência tinha viagens para a praia todo fim de semana. Viajava umas doze horas, uma noite toda, ficava sábado e domingo e voltava, porque os passageiros ficavam, então levava uma turma e trazia outra.
Nesse mesmo período, o dono da agência tinha um hotel. Chegavam os grupos, porque na época vinham muitos grupos de adultos de São Paulo e do Rio, vinha mensalmente dois ou três grupos. Rio e São Paulo eram os que mais vinham para cá. Grupos da melhor idade, grupos mistos… O meu patrão me largou em um fogo cruzado: "Você vai acompanhar esse grupo em São Miguel, assim e assim", e eu quase infartei.
A partir disso, quando eu percebi que iria ficar na agência… Porque eu disse: "Não, só vim ficar trinta dias, só vim substituir a Isabel. Não precisa de contrato, não precisa de nada". No fim, a Isabel ficou em Salvador, decidiu ficar lá. Fiz um curso de guia de turismo logo em seguida, um ano depois, no meio do ano, e acabei ficando quinze anos na agência.
Nesse trabalho, começaram a vir as escolas com o turismo educativo. Uma das primeiras agências foi de Porto Alegre, que começou a trabalhar com turismo educativo; eu comecei a trabalhar com essas crianças e comecei a gostar. Foi uma experiência muito educativa e eu comecei a me preparar didaticamente para trabalhar com essas crianças.
Depois eu saí da agência, me cadastrei como guia autônoma, pago impostos, e não viajo mais; só faço o receptivo, até em função das aulas na faculdade. Mas eu trabalhava manhã, tarde, noite, sábados, domingos, feriados e não me cansava.
Na verdade, esse trabalho de guia é um relax, uma válvula de escape. É muito positivo, você não tem ideia do que é trabalhar com uma turma de cinquenta, noventa… Eu cheguei a trabalhar com duzentos alunos do quarto ano, sozinha. Eu comprei um microfone sem fio… Aí você fica na frente das meninas, explica toda a trajetória histórica, mas sempre adequando à faixa etária das crianças. Surgem umas perguntas que às vezes você fica imaginando: "Meu Deus, de onde essas crianças tiram essas perguntas?" Às vezes as pessoas dizem: "Mas o quarto ano não tem condições de entender o contexto histórico"; eles entendem muito bem e questionam muito bem.
A gente recebe aqui no ano normal, não em um ano atípico como este, cem mil turistas por ano. Desses cem mil turistas, eu diria que 85% são estudantes, ou do ensino fundamental ou do ensino médio.
Eu me realizo no trabalho de guia turística. As crianças me rodeiam, é "tia" daqui, "tia" dali, fazem desenhos… Eu usava cabelo curto e às vezes arrepiado, e eles desenhavam arrepiado. Eles imitam a forma como eu falo, brincam, me fazem bilhetinhos de agradecimentos… É muito gratificante esse trabalho, por isso que eu ainda não larguei. O pessoal me diz: "Sua louca. Para, vai viver a vida, já tem mais de sessenta anos", mas eu digo: "Viver a vida para mim é isso, trabalhar com essa criançada, trabalhar com essa juventude. Isso para mim é vida, me fortalece." Isso é muito bom.
P/1 – Agora a gente vai para o polo oposto, a sua trajetória como professora universitária, abordando também História, mas para um público completamente diferente.
R – (Risos). É, essa trajetória eu comecei trabalhando no curso de História, com várias disciplinas: História do Rio Grande do Sul, Tópicos Especiais de História, História da América I, II e III etc. Hoje é um desafio, porque o público adulto reage de uma forma bem diferente do público jovem, o público infantil, vamos dizer assim. Os questionamentos, enfim, a liberdade que nossos alunos têm em sala de aula… Alguns estão ali porque o pai e a mãe querem que façam uma faculdade, mas não é exatamente isso que eles gostariam, então a gente lida com diversas situações. Mas como a gente pega turmas que são participativas, que te questionam, isso te motiva a trabalhar e a dar uma boa aula, como a gente diz; fazer seminário, discussões. Mas é um desafio e outra realidade, bem diferente.
Em função de que os cursos de licenciatura nas faculdades, especialmente nas particulares ou comunitárias - que é o caso da universidade em que trabalho ainda hoje -, foram se extinguindo e ninguém quer mais ser professor por vários motivos, hoje eu trabalho… Como não tem mais curso de História, eu trabalho no curso de Pedagogia, mas com disciplinas direcionadas: História da Educação, Fundamentos Teóricos do Ensino de História, Fundamentos Teóricos do Ensino da Geografia - porque também tenho formação na Geografia. São disciplinas mais voltadas para o curso de Pedagogia, e hoje eu também trabalho com as metodologias em quase todos os cursos de universidade: as engenharias, Direito, Administração etc. É a metodologia científica, a metodologia da pesquisa, a qual os alunos detestam, então a gente tem que fazer malabarismos para que eles possam entender, para que eles se interessem.
Como em todos os cursos, tem situações bem diferentes. Tenho uma turma agora, que até em função de estarmos dando aula online, [às] oito horas eu entro na sala e estão todos a postos para a aula; se eu ministrar uma aula das oito da manhã até meio dia, ninguém sai da aula. Eles questionam, eles discutem, eles querem saber mais, isso é metodologia científica. Em contrapartida, eu tenho uma turma da noite que… A Priscila dá risada. Já é bem diferente: a aula começa às 19:15 horas e tem gente que entra às vinte horas, às vinte e uma horas, deixa a portinha ali na tela e desaparece… Isso porque são formandos da Pedagogia. (risos) Então são situações bem diversas, que são desafios.
A cada dia você tem um novo desafio e tem que preparar uma excelente aula para chamar atenção, tem que fazer malabarismos para que realmente a turma se interesse. Não generalizando, mas de forma geral, infelizmente… Essa questão de ministrar aulas para adultos é bem mais difícil do que para os pequenos, no meu entendimento, mas desafios a gente tem que realmente aceitar e buscar soluções para eles. Eu não sou de desistir na primeira, eu vou até o fim quando me proponho alguma coisa. Essa convivência com os jovens, mesmo que às vezes não tenham o mesmo interesse das crianças, também é positiva para nós que já estamos na terceira idade (risos), no meu caso. Isso traz motivação para que você viva. É interessante trabalhar, são situações realmente diferentes, mas a gente busca soluções para essas diferenças.
P/1 – A senhora falou sobre as aulas online. Eu gostaria justamente de fazer uma pergunta a respeito desse momento. O que alterou na sua vida nesse momento de isolamento social, de pandemia, como a senhora está conseguindo administrar isso?
R – Olha, não foi muito fácil, porque uma aula presencial acho muito mais produtiva, porque você está… Claro que na tela você também está cara a cara com o seu aluno, mas não é a mesma coisa que estar em uma sala de aula, e chegar, no caso: "O que você não entendeu, Genivaldo? O que nós podemos conversar?" E eu não sou de ficar sentada para ministrar uma aula, então foram vários desafios. O uso da tecnologia - a gente utiliza na universidade o Google Meet para realizar essas aulas -, o preparo dessas aulas, você tem que preparar muito mais do que você chegar em uma sala de aula e discorrer sobre um determinado tema. Claro que eu já fazia isso, mas exige mais do professor, você trabalha muito mais. Tirando que como os alunos estão nas suas casas, é como eu disse, às vezes eles colocam as fotinhas lá e desaparecem; vão dormir, vão lanchar, vão namorar e não voltam para a aula, só dão as caras, como a gente diz.
Foi um desafio muito grande, até pela minha idade. Claro que a gente está sempre tentando se atualizar em função das novas tecnologias, e esse isolamento social… Eu moro sozinha. Nunca me senti só, mas estava sempre na universidade, ou trabalhando com grupos, saindo com os amigos, tomando chopp, e agora a gente está somente dentro de casa, trancado em um apartamento.
No meu caso, ainda teve um agravante muito sério, de que durante essa pandemia, eu passei por uma cirurgia muito delicada. Surgiu um câncer e passei por um tratamento de quimioterapia, então eu só saía para ir na clínica fazer a quimioterapia. Foi um agravante que eu nem sei como não entrei em um processo de depressão. Como diz o meu irmão, a gente tem um lado muito forte que é da mãe, que é o de encarar os problemas de frente e não fugir deles, mas que foi um desafio e foi difícil… Hoje já está tranquilo, tanto com essas aulas online, quanto até com o isolamento. A gente vai se adaptando e se acostumando, mas foi um grande desafio.
P/1 – Bom, a gente vai se encaminhando para a parte final da entrevista, então vou fazer algumas perguntas um pouco mais pessoais e um pouco mais fora dessa questão sobre a profissão ou sobre a ferrovia. Quais são seus sonhos para o futuro?
R – Meus sonhos? O principal deles é que a situação do país mude em vários quesitos. A valorização da educação, a valorização do professor é um grande sonho. Hoje não temos mais nenhum Luís Carlos Prestes aí para fazer um levante de um movimento revolucionário. (risos) Outro sonho, até pela situação que eu passei, acho que é a melhoria na questão de atendimento à saúde, acho que também é muito importante. Hoje eu penso em viver melhor, aproveitar melhor os momentos que temos hoje, porque a nossa passagem aqui pela Terra é muito curta, muitas vezes, e às vezes a gente se preocupa muito com pequenos detalhes e esquecemos de viver. Acho que nós devemos viver da melhor forma que nós pudermos e aproveitar esses momentos, que às vezes são momentos únicos na nossa vida. Esse é um grande sonho.
Eu estou revendo muitos valores, até em função desse processo que passei agora nos últimos meses, inclusive diminuí minha carga horária na universidade para aproveitar mais. Claro que o trabalho é importante; como eu disse, essa convivência com os jovens e a convivência com as crianças te motivam a viver, te desafiam em uma série de questões, mas acho que a gente tem que repensar nossos valores.
Eu acredito que uma das coisas que também é um sonho é o lado humano das pessoas, e acredito que essa pandemia está fazendo com que muitos revejam esse lado, do respeito com os outros, já que a gente percebe que nem sempre isso acontece. Mas especialmente em viver da melhor forma possível os anos da nossa passagem aqui pela Terra.
P/1 – Quais são as coisas mais importantes para a senhora da sua vida?
R – Neste momento da minha vida, uma das coisas mais importantes é ter saúde. Eu acho que sem a saúde nós não somos ninguém. Acho que especialmente nesse momento, a saúde é a coisa mais importante. Tendo saúde, para o resto a gente sempre dá um jeito. Então, isso é o mais importante.
P/1 – A penúltima pergunta. Existe alguma coisa que a senhora gostaria de falar e que eu não abordei, não perguntei?
R – Olha, eu acredito que de forma geral, não, mas eu diria que as nossas raízes históricas são muito importantes para o nosso cotidiano, para o nosso dia a dia, para que a gente entenda o que acontece no nosso entorno ou com nós mesmos. Então, valorizar mais as nossas raízes históricas, dos nossos familiares e de forma geral.
P/1 – Agora, então, a última pergunta. Como foi a sua experiência de ser entrevistada, de não só falar sobre processos históricos, mas também sobre si mesma e sobre a sua vida?
R – Olha, foi uma experiência muito importante, porque eu já tinha falado sobre fatos históricos, mas sobre a minha vida pessoal é a primeira vez. Eu achei muito positivo e legal. Só tenho a agradecer o convite de vocês para participar dessa entrevista, foi muito positivo. Obrigada, gente, por essa oportunidade.
P/1 – Bom, eu agradeço pessoalmente, porque para mim também foi uma experiência muito boa, muito gostosa de fazer e de conversar. Também em nome do Museu eu agradeço imensamente pelo seu depoimento.
R – Muito obrigada. Eu agradeço a vocês também por essa bela oportunidade, obrigadão. Se precisar, estamos à disposição.
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