Sou Roberta Alves Borges Pacheco, professora de Serra do Salitre (MG) e vou contar uma história capaz de despertar vocações e desenvolver capacidades
Dona Maria Helena Alves Borges é uma pessoa especial. Os anos dedicados à educação de jovens e crianças em Serra do Salitre, Minas Gerais, ...Continuar leitura
Sou Roberta Alves Borges Pacheco, professora de Serra do Salitre (MG) e vou contar uma história capaz de despertar vocações e desenvolver capacidades
Dona Maria Helena Alves Borges é uma pessoa especial. Os anos dedicados à educação de jovens e crianças em Serra do Salitre, Minas Gerais, seriam suficientes para preencher os quesitos de uma vida plena de realizações. Mas decidiu ir além. Já aposentada como professora, iniciou um novo legado. Foi um desses casos nos quais o destino nos coloca frente a dois caminhos, o cômodo e o desafiante. Ela optou pelo mais tortuoso, quando a família de um vizinho com deficiência intelectual a procurou buscando auxílio. Não teve dúvida: reuniu suas coisas e foi bater à porta da assistência social da cidade. Ouviu do atendente a frase que mudou o rumo dessa história: "Seria muito mais fácil ajudá-lo com um atendimento especializado se tivesse uma APAE aqui no município". O desafio foi aceito. Em 1997, Dona Maria Helena dava partida à criação da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais em Serra do Salitre.
Mais de duas décadas depois, eu conto a saga de minha mãe sentada no escritório da direção da nova sede da instituição, um edifício com salas caprichosamente preparadas para receber os alunos especiais. Eu acompanhei de perto a trajetória desde o início. Também professora, vi minha mãe tocada por aquela história e abracei a causa com ela. Juntas, enfrentamos a descrença pública inicial e o trabalhoso processo de regularizar e montar uma APAE do zero. Fomos de casa em casa fazer o levantamento das pessoas com deficiência no município, pesquisamos a documentação, tratamos do edital.
A burocracia era apenas uma das pedras no caminho, mas nem de perto a maior. Faltava a sede da instituição e exatamente tudo dentro dela, de panelas a mesas e cadeiras. Alugamos uma casa, iniciamos as reformas e corremos a cidade atrás de doações, para criarmos um ambiente para receber os jovens. Paralelamente, eu e minha cunhada, Silvana, iniciamos uma série de cursos e treinamentos para aprender a lidar com um cenário educacional diferente do qual estávamos habituadas. Era uma realidade nova para nós, com peculiaridades que iam desde o ensino em si a questões de saúde e alimentação especiais. Finalmente, em 12 de dezembro de 1997, a APAE de Serra do Salitre abre suas portas.
Nessa época, eu ainda não imaginava que minha vida também se transformaria a partir da Associação. Era formada em magistério, mas jurava que nunca exerceria a profissão. A vocação floresceu no contato com os alunos e na assistência às suas famílias. Eu me descobri professora com a APAE. Era uma rotina que ia além do ensinar e aprender das salas de aula. Perdi a conta de quantas vezes subi numa Kombi rumo a Uberlândia para acompanhar um tratamento médico ou pedi auxílio à irmã para acomodar uma família em Belo Horizonte, durante a estadia para exames dos "meninos", como costumo chamá-los.
Em 20 anos de APAE, acompanhei in loco as mudanças que ocorreram no setor. A expectativa de vida das pessoas com deficiência aumentou e a importância de sua integração à sociedade ganhou mais força. Hoje, elas são treinadas desde pequenas a tomar decisões, fazer escolhas e ter opiniões. A ideia é que tenham uma vida que ultrapasse os muros de casa ou da APAE.
O caminho para a autonomia dos deficientes passa pelo desenvolvimento de vocações e habilidades. A arte é um dos veículos mais estimulantes para eles e o artesanato se mostrou uma importante ferramenta nesse processo. A APAE vinha trabalhando a técnica com os alunos, mas faltavam recursos para expandir a atividade. Como resolver? O estalo veio quando eu participava dos encontros promovidos pelo Instituto Lina Galvani para elaborar uma Agenda de Futuro para o município. Nas rodas de conversa, debatia com outros moradores as necessidades locais e projetos para desenvolver a região. Em uma das reuniões, a novidade: um edital apoiaria iniciativas que melhorassem a qualidade de vida em Serra do Salitre. Era a oportunidade que esperávamos para levar adiante as aulas de artesanato.
A informação logo chegou até a professora Simone Maria da Silva Quitéria, que desenvolveu o projeto chamado A Arte em Forma de Expressão. Além do trabalho com artesanato, ele envolvia a conscientização ecológica dos alunos, com o reaproveitamento de vidro como base para as peças.
Foram semanas com os dedos cruzados até receber a notícia de que a iniciativa foi uma das selecionadas. A verba garantiu uma revolução nas aulas de artesanato na APAE. As professoras fizeram cursos de novas técnicas, compraram materiais de primeira linha e estruturaram a atividade. Nas classes, os alunos desenvolveram não apenas a criatividade, mas também a iniciativa própria. Eles eram incentivados a escolher que tipo de vidro ou garrafa seria a base de seu projeto e participar de todas as etapas, da limpeza à pintura dos objetos de decoração.
Essa conquista foi a realização de um sonho, mas o gran finale da história ainda estava por vir. Na tradicional cavalgada para angariar fundos para a instituição, os alunos montaram uma barraquinha para expor e vender suas obras de arte. Ao fundo, eu e os outros educadores apenas observávamos, emocionados, a desenvoltura dos seus pupilos, orgulhosos em contar todo o processo da pintura em vidro. Foi uma festa para os meninos e uma felicidade imensa para nós ver como isso aumentou sua autoestima e independência.
Hoje, a sala de artesanato ocupa lugar de destaque no Centro Dia, da APAE, inaugurado em 2017. Ali, os jovens e adultos com deficiência têm as aulas de artes e dança e treinam tarefas diárias em ambientes que simulam cômodos de uma casa, como o quarto e a cozinha. Dessa forma, concretizam o que eu
e minha mãe sonhamos desde o início dessa empreitada: prepará-los para o mundo. O nome dado à nova sede coroa essa trajetória: Maria Helena Alves Borges.Recolher