Projeto Mulheres no Mercado de Ciências, Inovação e Tecnologia
Depoimento de Mariel Reyes Milk
São Paulo/Montevidéu, 14/09/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV1025
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho e Grazielle Pellicel
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Genivald...Continuar leitura
Projeto Mulheres no Mercado de Ciências, Inovação e Tecnologia
Depoimento de Mariel Reyes Milk
São Paulo/Montevidéu, 14/09/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV1025
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho e Grazielle Pellicel
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Olá, Mariel, tudo bem?
R - Tudo bem e você?
P/1 - Tudo ótimo. Vamos começar com a pergunta mais básica: o seu nome completo, a sua data de nascimento e onde você nasceu.
R - Meu nome completo é Mariel Lorena Reyes Milk. Eu sou peruana, nasci em Lima, no ano de 1980, dia doze de abril.
P/1 - Qual é o nome dos seus pais?
R - Meu pai é Pedro Reyes Vasquez e minha mãe é a Carol Dinmel de Reyes.
P/1 - Você tem irmãos, Mariel?
R - Eu tenho três irmãos: o mais velho é o Pedro, depois uma irmã, a Caroline e uma gêmea, a Michele.
P/1 - Certo. Seus pais eram peruanos mesmo, ou eles tinham vindo de algum outro local, para o Peru?
R - Minha mãe é americana, ela nasceu em Cuba. Meus avós maternos eram missionários de uma Igreja Metodista, então eles viajavam pelo mundo. Meu avô era economista rural, a minha vovó trabalhava com nutrição. Eles sempre trabalharam com comunidades de refugiados, comunidades vulneráveis e foram pra Jamaica, Vietnã, Cuba… Quando estavam em Cuba a minha mãe nasceu. Moraram alguns poucos anos [lá], aí entrou Fidel Castro e tiveram que sair. Ela nasceu em Cuba, mas não tem nenhum documento de lá, considera-se americana.
Meu pai é peruano, ele nasceu em Lima também, como eu.
P/1 - Então, vamos conversar um pouco sobre a sua infância, Mariel. Você se lembra da casa onde você morava, do que você gostava de brincar?
R - Lembranças de quando eu era criança? Bom, eu nasci em Lima, mas com dois anos, a minha família, todos nós, fomos morar no Uruguai. Eu cresci no Uruguai, morei lá treze anos.
Eu lembro muito [do] apartamento onde a gente cresceu, ficava na frente de um parque e a gente brincava muito, muito. O Uruguai é um país pequeno, até hoje, um país com muita... É seguro, [tinha] muita liberdade nesse sentido com crianças, então foi uma... São lembranças muito bonitas, muito felizes.
O que eu adorava fazer criança era pintar, eu pintava o dia todo. Até hoje lembro: a minha irmã gêmea, sempre muito estudiosa, decorando mapa, países, capitais e eu, do lado, pintando, (risos) criando coisas. Era muito criativa, eu adorava inovar e criar coisas do nada. Gosto muito de usar as mãos, amo cozinhar.
Uma lembrança que tenho é [de] como eu criava brinquedos do nada. Lembro perfeitamente [de] uma caixa do mercado vazia que eu fiz dois buraquinhos, peguei uma bolinha, colei dois paninhos de cada lado e a gente brincava quem fazia gol primeiro. [Tenho] muitas lembranças nesse sentido, dos primeiros anos da minha vida, brincando muito com os meus irmãos.
P/1 - Você tinha algum sonho de infância: “Quando eu crescer, eu quero ser tal coisa”, algo assim?
R - Quando eu era criança, o meu sonho inicial era ser veterinária. (risos) Eu sou apaixonada por animais, até que alguém me falou que, se eu fosse veterinária, teria que abri-los e ver sangue, (risos) aí eu falei: "Não, não é pra mim".
Eu nunca soube muito bem exatamente o que eu queria fazer, só sabia que queria trabalhar em alguma coisa que me deixasse ajudar os outros. Realmente, sempre tive essa vocação, meus irmãos também; [isso] foi passado muito pelos nossos pais, pelos meus avós maternos, essa missão de vida, de fazer desse mundo um mundo melhor. Eu passei por diferentes tipos de ideias: "Vou ser médica, daí posso curar as pessoas” e finalmente eu decidi [por] Economia. Meu pai é economista, meu avô é economista e eu acho que foi uma decisão incrível, muito sábia, muito inteligente, porque realmente me permitiu entender um pouquinho de tudo e, bom, depois acho que foi a porta de entrada para muitos empregos, Banco Mundial etc, que me ajudaram a chegar onde hoje cheguei.
P/1 - Alguém contava histórias pra você, Mariel, quando você era criança?
R - Sim, meus pais sempre contavam histórias pra nós, especialmente na hora de dormir. Meu pai contava sempre essa história de um coelhinho que tinha uma mamãe que adorava uma flor amarela, que só existia em um país onde tudo era amarelo, aí ele tinha que ir lá; era uma aventura enorme, tudo o que ele fazia para conseguir essa flor amarela para dar para sua mãe. O aprendizado pra mim foi: "Uau, alguém pode lutar muito por uma causa que você acredita, para dar amor para os outros", para mim acho que ficou isso comigo.
Minha mãe sempre contava a história pra gente dessa menina que morava numa casa pequena, pequena e chorava, chorava, porque ela era muito pequena. Um dia apareceu a fada madrinha dela e ela pediu pra morar numa casa maior, grandona; um dia depois ela acordou nessa casa grandona e demorava dias pra chegar até o banheiro, dias pra chegar até a cozinha. (risos) E, poxa, ela percebeu que não era o que ela queria, que demorava muito e que não era realmente feliz. Chorou novamente. Depois a fada madrinha apareceu novamente e o aprendizado é: nem sempre a gente sabe o que a gente quer e muitas vezes há coisas maiores, mais "uau" no mundo, [que] não são o que realmente queremos. Simplicidade é tudo, né? (risos)
P/1 - Passando pra sua vida escolar, Mariel, você se lembra dos seus primeiros anos de escola? Quais lembranças você tem desse período?
R - Primeiros anos de escola? Boas memórias.
Bom, eu tenho uma gêmea, Michele e a gente é muito diferente. Ela é mais introvertida, eu sou mais extrovertida, mas a gente sempre se acompanhou. A primeira experiência escolar foi no Uruguai; a gente foi pra uma escola escocesa, St. Andrew’s, muito pequena, muito pequena mesmo; era bilíngue e a minha mãe sempre fez um jeito de separar a gente de turmas, de salas, porque ela achava que mesmo sendo irmãs, especialmente gêmeas, que para ela era muito importante que as pessoas nos tratassem como indivíduos, como pessoas individuais, então a gente fazia algumas atividades juntas, mas sempre Mariel, Mariel; Michele, Michele. [Tenho] muitas lembranças de brincar, da gente... era uma escola bem pequena, com muita atividade fora, muito esporte e tenho muitas lembranças de correr, de fazer, de jogar muito hóquei sobre a grama, que é um esporte muito comum no Uruguai. Tenho muitas lembranças desses primeiros anos no clube, na escola, brincando, aprendendo.
Novamente, sempre gostava muito de pintar, de cantar. As artes sempre me apaixonaram e é isso, são boas lembranças.
P/1 - E tinha alguma matéria que você gostasse mais? Ou algum professor ou professora que te marcou, por algum motivo?
R - Matérias que gostasse, eu acho que... (risos) Eu ia falar Matemática, mas sempre foi Artes e acho que Matemática eu sempre gostei. Fora de brincadeira, eu sempre gostei dos números. Eu acho que muito do que me inspirou hoje a fazer o que faço, o Reprograma, é mostrar para as meninas que sim, [podem] ser boas de Matemática e Exatas, porque sei lá, acho que na minha experiência, mesmo usando números, eu nunca achei que realmente era uma área pra mim, [uma] menina. Gostava de Matemática, mas finalmente acabava em outras áreas mais...
Gostava muito de Geografia, eu tive uma muito boa professora, já um pouquinho mais velha. O professor de Geografia, que era maravilhoso. Sempre gostei muito de conhecer outras culturas, outros países. Fui crescendo e essa paixão por conhecer como outros vivem em outros países, as comidas, as culturas, o jeito de ver o mundo, foi também o que me levou a viajar. Eu sempre falo que sou peruana, americana, mas sou cidadã do mundo, porque viajei a vida toda.
P/1 - E essa escola era perto de onde você morava? Você ia a pé ou você ia de algum outro meio?
R - A escola onde a gente estudava, quando era mais criança, ficava perto sim. É que no Uruguai tudo fica perto, tudo fica próximo a Montevidéu. E a gente ia sempre... Pegava carona com amigos, um dia a minha mãe levava todos, outro dia outro pai, para facilitar a vida dos pais.
Quando ficamos um pouquinho mais velhas, a minha gêmea e eu voltamos de ônibus público, sempre. No Uruguai tinha uma plaquinha que você bota aqui [na roupa, escrito] “escolar” e você não paga ônibus, é um sistema público.
Eu lembro desse crescer tão saudável, tão seguro. As duas voltando de ônibus com oito, nove anos, pra casa. É uma boa lembrança.
P/1 - E, chegando na adolescência, vocês mudaram de escola?
R - Chegando na adolescência a gente mudou de escola, porque a escola inicial, a escola inicial, St. Andrew’s, que eu falei, era só até sexta. No Uruguai, na América Latina você tem primária e secundária, diferente do Brasil. Os primeiros seis anos foram nessa escola, depois a gente passa para secundária, que é o ensino médio, aí a gente foi para uma escola inglesa, que era onde meus irmãos mais velhos já estavam. Ficava longe, realmente ficava longe para o standard Uruguai, uns vinte minutos de casa; também a gente fazia carona com amigos e os pais dos amigos, sempre pra facilitar a vida dos pais e mães que trabalhavam.
/1 - E, nesse período, além de outra escola, o que mudou, pra você? Os seus gostos, a sua... Nos seus momentos de lazer o que você gostava mais de fazer, nesse período de adolescência?
R - Na época de adolescência eu gostava muito de música. Eu passava horas escutando música no final de semana. Eu era boa estudante, gostava de estudar mesmo, especialmente com minha mãe. Minha mãe sempre foi muito… Mesmo trabalhando, fazia um jeito de acompanhar nossas tarefas de casa, sentar com a gente. E eu sou muito social, de estar com pessoas, então sempre... Acho que na adolescência você começa já a mostrar essa parte da sua personalidade um pouco mais marcante. Sempre gostei muito de estar perto de pessoas, conversar, de conhecê-las; era uma pessoa muito amigável, que fala em espanhol, com muitas amizades e é isso. Eu continuava muito ativa, [praticando] muito esporte, [gostava] muito [de] estar fora. O Uruguai é um país muito… Muito cavalo, muito [de] estar lá fora, [na] praia, muita natureza, então acho que a paixão que hoje tenho por estar em ambientes abertos, em lugares cheios de luz, de natureza e verde, vem muito dessa infância e de ter tido esse acesso a animais, fazenda e praia e tudo isso. Muita simplicidade, era uma infância e uma adolescência simples, nesse sentido.
P/1 - Nessa época você já pensava em cursar Economia?
R - Na adolescência eu não fazia ideia do que ia estudar, sinceramente. Eu pensava um pouco: "Bom, talvez Medicina, porque consigo ajudar as pessoas, né?"
Com quinze anos a gente foi morar no Peru. Não tinha morado no Peru [por] treze anos, em grande parte foi porque nos anos oitenta… Foi por causa de terrorismo no Peru e não era muito seguro, meu pai não queria voltar. A gente voltou, acho que foi no ano de 1995, para finalizar a secundária, o ensino médio em português e aí nós entramos em uma escola que tinha sido só de homens, uma escola britânica, e tinha virado misto, mas realmente não era misto. A gente entrou lá porque era uma escola muito boa no Peru e a gente queria fazer… Eu queria continuar fazendo, me preparando para um exame chamado Bacharelado Internacional, ou IB, em inglês.
Bom, quando a gente entrou na escola, eram oitocentos homens e treze mulheres, então tinha muitas salas; muitas das minhas aulas eram [com] trinta homens e eu e a minha irmã [éramos] as únicas mulheres. Hoje eu penso muito nisso, em como
isso me marcou e também me levou a lutar hoje para mostrar… Primeiramente para que as mulheres tenham oportunidade totalmente igual aos homens, acesso a recursos financeiros, acesso à educação, acesso à saúde etc, mas também para mostrar ao mundo que nós mulheres temos capacidades, sim. Somos diferentes dos homens, mas temos muitas capacidades que, talvez, por sermos mulheres, nós não acreditamos nisso, ou a sociedade não acredita nisso. Acho que isso vem muito dessa época, de fazer educação física com eles; a gente jogava hóquei com eles, corria com eles, estudava com eles e era muito de demonstrar: “Poxa, eu também consigo, né? Tanto aqui, como fisicamente, eu consigo também." Isso me marcou muito.
P/1 - Então, nesse período vocês retornaram para o Peru, certo? E como foi a sua adaptação, você estranhou bastante? Foi rápida?
R - A mudança do Uruguai para o Peru foi bem difícil. Foi na faixa etária de quinze anos; é uma idade onde você começa a encontrar, de certa forma, vínculos com amigas. Amigas que até hoje eu tenho, são muito boas amigas; a gente falou outro dia [de] como a gente chorou, tanto elas, como a gente. Compartilhamos pelo WhatsApp cartas, nessa época - muitas pessoas esquecem, mas a gente ainda escreve cartas. As cartas mostram o nível da saudade que a gente tinha e eu lembro que falava para os meus pais: "Eu não quero ir morar no Peru. Não conheço, não quero." Conhecia, né, mas conhecia de visita.
Foi bom, eu acho que meus pais foram bem espertos, porque a gente foi e fez um gap entre Uruguai e Peru. A gente foi para os Estados Unidos, para o Texas, para ficar com a minha vovó. Foi assim um respiro dentro de uma situação, de um momento difícil de mudança, de adaptação, então foi bom ficar perto de família, primos, tios. Aí a gente chegou no Peru e foi difícil sim. Eu lembro de umas duas semanas depois de começar a escola masculina - porque eram só homens, né? - fui com um professor pegar uns livros e eu comecei a chorar, chorar e chorar. A reação dele foi: "Por favor" - em inglês - "... não chore, que eu não sei o que fazer." Até o professor não sabia como reagir a uma menina chorando. (risos) Não estava acostumado a ser professor de meninas.
Acho que, aos poucos, a gente aprendeu e a escola aprendeu também a lidar com essa mudança. Os meninos aprenderam a lidar com essa mudança, de aceitar que a escola já não era só de meninos - um pouco por obrigação, [porque] tinha algumas salas que os professores obrigavam os meninos a trabalhar com a gente, a fazer trabalho em time. Aos poucos, a gente fez muitos amigos, bons amigos, que até hoje são melhores amigos. A gente lembra essa época e dá risada.
P/1 - Depois dessa mudança você, chegando no último ano… Como foi esse processo? Você já pensou em fazer vestibular ou alguma outra forma de admissão em uma universidade? Ou parou um pouco mais, pra pensar?
R - Chegando no último ano da escola no Peru, eu já sabia que iria estudar nos Estados Unidos, na Califórnia, porque minha mãe foi à Califórnia e conheceu meu pai. Meu pai foi com uma bolsa pra estudar na Califórnia; ele não falava inglês, ele lavava pratos na cozinha da universidade e minha mãe também foi com uma bolsa, se conheceram lá. Depois meu irmão mais velho foi pra Califórnia, depois a minha irmã foi pra Califórnia e eles ficaram: “Tá, a Mariel e a Michele têm que ir pra Califórnia também”. Talvez, até a maturidade, eu nunca realmente pensei... Estava com dezessete, dezoito anos e assumi, não sabia muito bem… Fiz um teste na escola, um teste de avaliar as skills e o que motivava a gente, qual seria a carreira ou a área profissional que seria bom pra nós; saiu tipo uma carreira onde você ajude as pessoas. "Beleza, obrigada". Ou médica ou economista. [Pensei:] "Tá, beleza. Eu sempre, mais ou menos, soube isso mas tudo bem, obrigada por não me ajudar.”
Pelo tipo de exame que a gente fez, esse bacharelado internacional, IB, a gente tinha entrada para qualquer universidade do Peru, sem ter que fazer exame. A minha irmã e eu fizemos muito bem, [nos] demos muito bem. Ela, a minha gêmea, é advogada de Direito Internacional Humanitário e ela sabia que, sendo advogada,
teria que - e queria ficar - no Peru. Ela foi a que quebrou a tradição da família e ficou no Peru. Ela sabia que queria estudar na PUC de lá do Peru, na Pontifícia Universidade Católica do Peru.
Lá nos Estados Unidos eu me apresentei em uma universidade só, a Santa Clara, que foi onde estudei, porque a minha irmã estava lá. Novamente, não pensei muito, fui lá porque a minha irmã está lá, entrei, ótimo, (risos) maturidade cem pontos.
Nos Estados Unidos as aulas começaram em setembro; eu tinha me formado da escola em dezembro e meu pai falou: "Você não vai ficar, minha filha, fazendo nada durante nove meses. Você tem entrada direto na universidade, vá com a sua irmã." Assim, eu fiquei um semestre na PUC de Lima. Eu fiz… Chama-se Estudos Gerais, [em] que você faz um pouco de tudo: Lógica, História, Linguagem etc. Foi bem legal. Eu já sabia que ia pra Califórnia, então vamos dizer que não estudei tanto como deveria ter estudado, mas aprendi muito, cresci muito e fiz amizades muito boas também.
P/1 - Chegando na Califórnia, você já tinha, como disse, parentes lá. Você já tinha um certo... Já estava um pouco ambientada. Como foi, pra você, esse início do curso, na universidade?
R - Chegando na Califórnia eu tinha família, então foi um pouco mais fácil nesse sentido. A minha irmã estava na mesma faculdade, mas já estava no último ano, então a gente não coincidia muito [nos horários]. Era mais no final de semana que a gente conseguia se ver. A mesma coisa com o meu irmão: ele morava um pouco mais longe, eu pegava trem para visitá-lo, mas foi muito duro para mim, foi muito difícil. Até hoje eu lembro que foi uma experiência incrível, me marcou muito, mas foi difícil, por vários motivos. Primeiro a falta de diversidade: nessa época não era muito comum uma latina estar na Califórnia, especialmente no Silicon Valley, no Vale do Silício, que era onde a minha universidade ficava, porque a maioria era branco e loiro, realmente; outra coisa que foi muito difícil pra mim é que eu estava com uma bolsa por causa das notas, do bom desempenho e, além disso, estava com uma coisa que tem lá que chama-se de work study - você trabalha para a universidade, mas você não recebe o salário; o salário vai direto para a universidade, para pagar os estudos. Além desse emprego, eu tinha outro emprego num lugar que se chama Jamba Juice, eu fazia sucos.
Foi também muito duro porque, além de eu me sentir muito sozinha, tinha... Passei de morar em casa, com a minha gêmea, meus pais, escola privada, mais segurança [para]... Poxa, estar aqui com dois empregos, a pressão de manter as notas boas, estudar muito para não perder a bolsa… Eu lembro que nunca tinha grana pra nada. (risos) Minhas amigas diziam: "Vamos no concerto das Destiny’s Child?" Eu falava: "Poxa, não consigo, não dá, as contas não batem". (risos)
Eu lembro que nos primeiros três meses eu chorava acho que todas as noites. Tinha uma coleguinha do quarto, roommate que fala lá… Coitada, acho que ela deve ter pensado... (risos) Ah, não sei. Mas eu tinha a sorte de conseguir ir pro Peru uma vez por ano, então fui lá e falei para os meus pais, eu lembro que chorava: "Eu não quero voltar. É muito difícil, não quero voltar". Meu pai, esperto, já tinha passado por isso anos atrás, quando foi pra lá e não falava nem a língua. Ele falou pra mim: "Vai mais uma vez, tenta mais uma vez. Fica até o final do ano ou até a próxima vez que você voltar, uns seis meses e aí avalia." E esperto, ele sabia que ia voltar e já...
Eu acho que os seres humanos nos adaptamos a quase tudo.
Voltei, fiz um pouquinho mais de amizade, comecei a sair um pouquinho mais e aí foi uma experiência melhor, não tão triste quanto nos primeiros meses. (risos)
P/1 - E durante o seu curso, você chegou a pensar, a ter alguma ideia de que queria fazer esse trabalho de empreendedorismo social ou algo mais voltado pra ajudar as pessoas? Você manteve isso em mente ao longo do seu curso ou não?
R - Durante esses primeiros anos na faculdade, eu realmente não sabia o que queria estudar. Novamente, eu tinha essa clareza: "Ah, eu quero fazer uma coisa que ajude os outros e que realmente cause impacto no mundo", mas não sabia como. Eu acho que ninguém tinha explicado exatamente o que significa ser o que se quer ser, quais são as possibilidades de profissão, que existem várias. O que faz no dia a dia um arquiteto, o que faz no dia a dia um químico, acho que realmente não tinha essa informação.
Eu sempre brinco, eu troquei de... Lá nos Estados Unidos você troca de major, que é especialidade; pode trocar até acho que no terceiro ano, quase no terceiro ano e eu troquei cinco vezes. (risos)Eu cheguei em uma ideia de [que para] pessoas que não sabem o que fazer, tudo vai dar certo. (risos) Essa é a sorte dos Estados Unidos, que te dá essa flexibilidade de trocar de especialidade, então [você] chega lá e [diz] “a minha especialidade é Biologia, que é uma área que você pode fazer especialidade nos quatro anos, e depois ir pra o Medl School, a Escola de Medicina.”
Eu lembro que fui pra minha primeira aula de Química e Física e falei: "Isso aqui não é pra mim, não, eu vou procurar outro jeito de ajudar pessoas." (risos) Lembro que mudei pra Psicologia Social, aí eu mudei [depois] pra Ciências Políticas, [com] um pouco dessa vontade [de entender] como a gente faz política, como a gente faz ou junta pessoas pra fazer mudança.
Fui trocando e finalmente percebi que gostava de Economia e que era muito boa em Economia. Decidi ficar em Economia. Eu estava fazendo uma dupla especialidade: Economia e Marketing, porque achava sempre essa psicologia do cliente e do consumidor bem interessante. E aí decidi fazer as duas como minor, que é uma especialidade menor - duas especialidades menores, em Literatura Latino-americana e em Negócios Internacionais. Já tinha essa semente de ‘vamos criar coisas, vamos fazer comércio’. Daí foi como decidi ter essas ferramentas, esse conhecimento, esses fios para me levar onde o mundo, a vida e o universo me iriam levar.
P/1 - Então você teve uma formação bastante variada, os seus interesses eram bem variados. E qual foi a sua primeira experiência profissional? Depois dos sucos. (risos)
R - Eu me formei na faculdade, na Califórnia, no ano de 2002. Eu não queria, não sabia realmente o que fazer, ainda não tinha definido. Peguei a minha mochila e fui fazer uma viagem de mochilão, na Europa; acabei morando na França, uns meses lá, com uns amigos que eu encontrei, até a grana acabar. (risos)
"Agora vamos, a ficha caiu. Agora sim, tenho que voltar pra realidade do mundo e trabalhar." Voltei pra o Peru, pra Lima; meus pais estavam lá, minha gêmea estava lá e meu primeiro emprego lá foi... Eu fui professora de Economia na Universidad San Ignacio de Loyola. Eu ensinava macro e microeconomia e era bem engraçado, porque eu estava com 22 anos e meus estudantes estavam com dezoito, dezenove. Eu lembro, nunca vou esquecer do primeiro dia que eu cheguei lá e o decano, o diretor da área de Economia entrou na sala, uma sala de 43 alunos - não vou esquecer, 43 alunos. Quando eu entrei lá, a turma continuou falando porque achavam que eu era mais uma aluna. (risos) Ele teve que me apresentar e eu lembro do sentimento de estar escrevendo ali meu nome, me apresentando e tentando ficar focada para os joelhos não mexerem tanto, estava muito nervosa mesmo. E foi incrível.
Acho que na minha família tem muitos professores, está no meu sangue também: a minha mãe é professora; minhas duas irmãs são professoras, além do trabalho que elas têm, elas também ensinam; meus tios americanos [são] professores, tem muito professor; meu avô economista foi também professor. Foi incrível, realmente, entrar nessa área de educação e sentir que você está contribuindo para o crescimento de outros, poder passar de uma forma muito humilde a forma de você ver o mundo, ajudar os outros a tentar chegar à sua própria forma de ver o mundo, da forma deles.
Comecei me interessar na área de meio ambiente. Sempre dizia muito que amava animais, a natureza, quando cresci. Apareceu uma oportunidade numa consultora de impacto ambiental e social; era uma consultora canadense, chamada Golder Associates, que fazia avaliação, estudo para diferentes projetos de mineração no Peru - Peru é um país com muita mineração. Foi a minha primeira oportunidade de viajar para lugares muito remotos, muito longe de Lima, nas áreas onde operava a nossa empresa, para fazer entrevistas e conhecer as pessoas das cidades, dos povos locais, pessoas muito humildes, e tentar conversar outra língua, tentar entender do ponto de vista deles como eles estavam sofrendo ou se beneficiando de diferentes projetos nas cidades deles.
Foi realmente a primeira vez que eu falei: "Uau, que incrível poder estar perto de pessoas assim e poder contribuir de alguma forma e ser voz deles, de certa forma.” Fiquei um tempo, mas depois comecei a perceber que não queria contribuir para que mais empresas de muito dinheiro e mineração fizessem ainda mais dinheiro. Foi quando eu achei essa oportunidade de trabalhar para o World Wide Fund [for Nature]; não sei se vocês conhecem o ursinho panda, mas eu fui trabalhar com eles na conservação de meio ambiente e aí a minha experiência - eu estava com 24 anos, já - foi incrível: eu viajava pra Amazônia, trabalhei muito com comunidades indígenas - Shuar, Candoshi - no norte do Peru e perto da fronteira com o Brasil.
A gente trabalhava muito a educação, ajudando as comunidades a entender a importância de gerenciar melhor os recursos naturais. Por exemplo: tinha uma lagoa lá e eles pescavam e ficavam sem peixe, então [nosso trabalho era] um pouco explicar a importância de fazer vendas, [de] deixar momentos sem pescar. A gente ajudou a treinar algumas pessoas da tribo para cuidar dos recursos, cuidar da lagoa, foi bem interessante mesmo. Aprendi muito sobre trabalho conjunto, comunidades.
Novamente, meu time era a minha gerente, mulher, Mariana e eu, e foi bem, bem impactante como os apus, que eram os líderes das tribos, muitos deles casados com duas, três meninas, inicialmente não queriam escutar a gente, porque éramos mulheres. Isso ficou também muito comigo, até a gente mostrar para eles que realmente o trabalho que fizemos conjuntamente com eles funcionou - não só o melhor agenciamento do peixe, do rio, mas também, depois, os levamos a vender esse peixe em mercados locais próximos e eles tinham mais dinheiro, mais dinheiro pra saúde, para coisas boas para tribo.
Outra coisa que nunca vou esquecer, que me impactava muito: nas reuniões com os apus, com os líderes da tribo, eram os apus sentados com as penas, todos eles são bem sérios; a Mariana e eu sempre íamos com um ou dois representantes do governo, do Ministério de Produção do Peru, e as mulheres [ficavam] no chão, com as crianças; elas não podiam falar e a única coisa que faziam era tirar piolhos das cabeças das crianças. Isso também me impactou muito, com essa diferença de porque os homens apus lideram tudo e as mulheres não podem falar e tiram piolhos das crianças.
Foi bem interessante essa experiência. Novamente, estava com 24 anos, aprendendo muito da vida.
A gente acabou fazendo uma pesquisa com os apus meses depois, [pra saber] como tinha sido usado esse incremento de dinheiro que eles tinham ganhado por causa do projeto. Gastaram em petróleo, para os barquinhos que eles tinham, e cerveja. Aí a gente pediu permissão para os apus para falar com as mulheres apenas e foi concedida. Perguntamos para elas: "Ok, podem falar: o que vocês teriam feito de diferente com esse dinheiro?" Elas olharam pra gente: "Obviamente, investido na saúde e na educação dos meus filhos." (risos) Foi tipo: "Uau, que interessante a oportunidade de poder trabalhar com mulheres, com esse olhar diferente.”
Essa foi uma experiência incrível e, durante o meu tempo com a WWF, eu comecei a pesquisar, estava com vontade de estudar novamente. Queria um mestrado que pudesse unir a economia e o desenvolvimento econômico com o meio ambiente. Um dia, pesquisando, eu achei um mestrado perfeito para mim, que era Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico na London School of Economics, em Londres. Falei: "Será? Eu ir lá, que gosto, né?" (risos) E foi assim uma coisa de... Eu sou uma pessoa muito impulsiva, me jogo, e às vezes dá certo.
Eu me apresentei - isso foi em 2005 - e esqueci, continuei trabalhando. Dois, três meses depois chega uma carta em casa. Achei que era alguma coisa pro meu pai, nem abri; acho que meu pai [disse]: "É pra você.” Falei: “De Londres?”
Abri: "Você foi aceita." "Ahhhhhhh!!!" Pra mim era surreal, realmente surreal. Só que eu não tinha grana, não tinha dinheiro para ir, então escrevi uma carta para eles, uma carta, pedindo... Um e-mail primeiro, pedindo para eles me esperarem um ano, assim eu poderia trabalhar, economizar um pouquinho e procurar bolsas; me pediram para eu escrever uma página ou duas do porquê deveriam [me esperar]; eu escrevi e eles aceitaram.
Durante esse ano, trabalhei, economizei, me apresentei a três bolsas e, graças a Deus, por coisas do universo, eu recebi duas. Com essas duas bolsas - uma foi da União Europeia e outra foi do Prince Bernard, que era um príncipe que tinha um fundo para conservação do meio ambiente - fui fazer o mestrado em Londres, no ano de 2006. E foi um ano também incrível, de muitos pensados. Compartilhei um housing, [como] falam lá, cada um no seu quarto, mas morei com uma carioca que até hoje é amiga minha, Maria Rita, amo e adoro; duas indianas superparceiras, um cara da Indonésia, do Chipre e da ________. Até hoje somos muito amigos também.
Realmente, essa troca de experiências, de culturas, todo mundo cozinhando na mesma cozinha, todo mundo falando… O indonésio falava pra mim: "Esse arroz com pollo, com frango, a gente faz uma coisa muito similar, só que troca isso, isso e isso." Era incrível o quão diferentes, mas quão similares somos todos. Acho que foi a minha primeira oportunidade de perceber isso, que realmente todos somos humanos, todos rimos e ficamos tristes pelas mesmas coisas. Realmente foi assim, "uau", uma experiência de vida. (risos)
P/1 - E quando você terminou o seu mestrado, qual foi o próximo passo que você decidiu tomar?
R - Na época do mestrado eu estava namorando um peruano que morava na Colômbia e o meu plano era ir pra Colômbia ou para o Peru, para trabalhar e ficar mais perto dele e da minha família. Lá em Londres, eu comecei a pesquisar. Já tinha começado a pensar em lugares como o Banco Mundial, o Fundo Humanitário, o BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] - instituições grandes, com foco em redução da pobreza e melhoria de qualidade de vida das pessoas e projetos de desenvolvimento. Meus olhos brilharam. Lembro que achei um braço do Banco Mundial, que eu nem conhecia, honestamente, a IFC, em inglês, que é a Corporação Financeira Internacional; basicamente, é o maior banco de desenvolvimento do mundo, focado realmente nessa missão: de melhoria de qualidade de vida das pessoas, redução da pobreza. São projetos em vários setores que trabalhavam. Falei: "Uau, que interessante! E baseado em Lima, Peru, que incrível!”
Eu me apresentei novamente; “se joga e deixa as estrelas e o universo decidirem”, aí me ligaram. Eu lembro que estava viajando com amigos; estava na Croácia, uma viagem de: "Acaba tudo isso aqui e vamos de mochilão pra Croácia." Eles me mandaram um e-mail, [dizendo] que eu tinha sido selecionada para entrevistas, para ser analista do diretor regional da América Latina, falei: "Ah, vamos! Talvez dê certo.”
Foi incrível. Fiz todas as entrevistas; foram sete ou oito entrevistas pelo telefone, com sete pessoas diferentes, e finalmente me ofereceram o trabalho. Eu já tinha chegado no Peru, estava em Lima, visitando os meus pais. Aceitei, comecei duas semanas depois e duas semanas depois [de começar] meu pai teve um AVC. Foi tipo: “Uau, como novamente o universo conspira, né?” Estava meu irmão, a minha gêmea e eu, três de quatro filhos em casa.
Foi um momento muito difícil pra nossa família, para apoiar a minha mãe e o meu pai num momento de saúde muito delicado. Eu decidi que era para ficar ali o tempo necessário, para dar esse suporte para a minha família e foi assim mesmo.
(PAUSA)
P/1 - Retornando, Mariel, você estava comentando do momento que você tinha voltado pro Peru e que seu pai tinha tido um AVC. Então, me conta o que foi acontecendo, a partir daí.
R - Por volta acho que do ano de 2007 voltei pro Peru, comecei a trabalhar no IFC, no Banco Mundial, como analista e, ao mesmo tempo, tinha oportunidade de estar perto da minha família, morar com meus pais, meu pai tinha tido o AVC.
Foi um momento difícil, em todos os sentidos, acho que não tanto pessoalmente, ver o meu pai - meu herói, uma pessoa grande - virar uma pessoa muito dependente, muito frágil. O impacto que isso teve na minha mãe foi difícil, mas acho que no trabalho as pessoas foram incríveis; o meu chefe, meus colegas no IFC [foram] muito legais, me apoiaram muito, no que precisava: “Fica em casa, fica tranquila.”
Bom, aos poucos me empapé [inteirei] do trabalho. Aprendi muito, muito. Sempre falo que meus anos no IFC foram a melhor escola do mundo em termos de viajar pelo mundo, conhecer projetos em todos os lados, aprender a falar desde [com] um banqueiro em Manila até [com] um pequeno agricultor em Mindanau, Filipinas, Vietnã; é realmente essa continuação de interagir com milhares de pessoas muito diferentes entre si, muito diferentes de mim, mas ao mesmo tempo a humanidade é a mesma. Foi ótimo também no sentido de [aprender] como estruturar um projeto, como levantar fundos, como fazer um orçamento, como fazer, vender um projeto, fazer um storytelling, contar história. Foram três anos.
Dois anos depois - eu já estava há dois anos no IFC, em Lima, viajando um pouco pela região - meu chefe, que era o diretor da América Latina, foi transferido para o Egito, para Cairo. Ele falou: "Vamos para Cairo?" Falei: "Acho que não, não é o momento para mim." Acho que foi… Pela primeira vez, eu parei essa Mariel _______, pensando muito no meu pai e na minha família. Mas aí ficou muito o bichinho: "Tá, eu tô pronta para ir a outro lugar, outro país, mas que fique suficientemente perto do Peru, que eu possa vir em casa numa emergência", então meu chefe perguntou pra mim: "Onde você gostaria de ir?" Eu falei: "Onde tem coisas interessantes". Isso já em 2009, 2010.
No Brasil a gente tinha um programa chamado Iniciativa na Amazônia, Amazon Initiative, que era incrível para alguém com o perfil social, ambiental. Eu falei: "Poxa, quero ir." Tive uma entrevista com o diretor do país, country manager, como fala, no Brasil; deu certo e eu me mudei. E foi assim que cheguei no Brasil, em cinco de abril de 2010 e aí a minha vida mudou, de muitas formas. (risos)
No começo eu achei difícil. Realmente, São Paulo é uma cidade grande. Eu cheguei em São Paulo e, poxa, não falava português. Eu lembro que os clientes me ligavam, eu tinha clientes e parceiros do Nordeste e não entendia nada. Eu falava: "Desculpa, no hablo, não falo, devagar". Nada. E coisas no dia a dia: lembro que estava com uma colega, tinha uma colega peruana e depois venezuelana em São Paulo, porque obviamente não dava pra pagar aluguel sozinha. Não sei se ela assumiu que tinha pago a conta de luz, ou eu tinha assumido que ia, mas ninguém pagou e desligaram a luz. (risos) Eu lembro que cheguei [no prédio], não falava nada de português e o porteiro falou pra mim: "Dona Mariel, tem que ligar para a Eletropaulo." Eu falei: "Quem?" "Eletropaulo." "Quem que é esse Paulo?" Eu não entendia nada, eu achei que era uma pessoa?
[Tinha] muitas histórias desse tipo, de como ser de fora e ter outra linguagem foi um desafio, mas aos poucos fui aprendendo. Sotaque vou ter sempre, eu sempre falo, mas pelo menos já consigo me comunicar e entender português superbem.
O IFC no Brasil foi uma experiência incrível. Viajei muito pelo Brasil todo, tive projetos, ia muito para Rio Branco, no Acre, pra Belém, pra BH, Recife, Salvador… Sei lá, Rio… Fui quantas vezes? Ia conhecendo pessoas em São Paulo que falavam pra mim: "Poxa, essa peruana viajou mais que eu, conhece o Brasil melhor do que eu, né?"
Eu me apaixonei pelo Brasil, pelo país, pelas pessoas, pela alegria. Sim, como todo país, tem desafios e tudo o mais, mas as pessoas nunca perdem essa energia mágica que eu sinto no Brasil. Sempre falava para pessoas de fora: "Eu amo esse país, porque tem tantas formas de responder que você está bem: ‘Como você está? Tudo bem?’ ‘Beleza, joia, maravilha". Tem tantas formas que eu achava incrível, as pessoas felizes. (risos)
Eu fiquei um ano e meio. Era muito na área de agricultura e apareceu uma oportunidade de agrofinanças em Filipinas e dentro do... O legal de instituições como o Banco Mundial [é] que tem muito essas oportunidades de trocar de escritório, de país, de compartilhar experiências e eu nem aí, falei: "Poxa, tô no Brasil, né?" Meu pai estava bem, estável, mas eu falei: "Filipinas..."
Uma pessoa mandou pra mim: "Mariel, tem a sua cara essa vaga." Era um assignment, em inglês, uma oportunidade, [de] se não me engano seis ou nove meses e acabou sendo de quase um ano. Outra pessoa mais sênior com que eu tinha trabalhado também [disse]: "Mariel, isso é a sua cara." Daí [pensei]: “Tá, vou ler o que estão mandando, né?”
Li, falei: "Que legal, Manila, sei lá, Filipinas, vamos lá. São dez meses, quase um ano". Eu me apresentei, novamente. Entrevistas… “Universo, estrelas, decidam por mim”. (risos)
Fui selecionada, falaram pra mim: "Beleza, você vai daqui a pouco.” Falei: "Incrível, Manila, eba!" "Espera aí, não é Manila, é Davao City." Eu falei: "O quê?" (risos) Peguei o mapa-múndi e rodei procurando Davao City. É uma cidade na Ilha de Mindanau, que fica há duas horas de avião de Manila. É uma ilha agrícola, não tem quase pessoas de fora; tem, sem exagero, dez gringos, homens de sessenta anos, que foram trabalhar e ficaram lá.
Cheguei nessa ilha maravilhosa, cheguei no escritório e éramos meu chefe, que era um australiano, a assistente, que era uma menina de Davao e eu. (risos) Falei: "Uau, que experiência, vai ser punk, mas vamos lá."
Foi incrível. Em termos profissionais foi maravilhoso. Viajei, fui fazer projetos no Vietnã, na China. Dentro das Filipinas eu viajei muito pra comunidades - novamente, no meio do nada, agrícolas - que não falavam inglês, falavam tagalo; eu ia com uma pessoa que traduzia e era bem legal porque era falar um dia… Numa segunda-feira eu falava com os agricultores, pequenos agricultores, muito pequenos, muito pobres; na quarta-feira eu ia pra Manila e na quinta-feira eu tinha reunião com os banqueiros de Manila, top, top sênior. O desafio era tentar fazer a ponte entre os dois - que os banqueiros entendam de agricultura, entendam como financiar, por exemplo: como criar produtos financeiros para o produtor de tomates, ou para alguns legumes que tinham certos períodos, para que tenham um conhecimento de riscos, crédito etc; ao mesmo tempo, educar os pequenos produtores, para que entendam o que é um cartão de crédito, o que é uma dívida, o que são interesses. Realmente, fazê-los entender. Foi bem legal, mesmo.
Em termos pessoais, eu acho que [foi] o momento mais duro… Se eu achei que na Califórnia eu me sentia sozinha, aquilo foi… Eu sempre falo pra todo mundo, brincando, que foi a época que eu quase que criei a minha bola Wilson, como no filme - falar com a bola de futebol, né? (risos) O Tom Hanks. E até o meu marido dá risada, porque muitas vezes hoje eu falo tipo pra mim em terceira pessoa, em voz alta: "Ah, Mariel, você pode." Ele fala pra mim: "O que está acontecendo?" "Ah, isso é Filipinas. Estava muito sozinha, comecei a falar comigo, né?" (risos) Mas eu acho que me fez muito forte.
Realmente, uma coisa é gostar de ficar sozinha, outra coisa é estar sozinha, quando você realmente não fica sozinha e estar bem com você. Ao mesmo tempo, [tive] a oportunidade de viajar. Eu realmente falei para o meu chefe: "Olha, meu filho", falei... (risos) Eu falei assim mesmo: "Olha, eu amo essa oportunidade, mas a cada duas semanas eu vou precisar tirar uma sexta-feira e viajar, sei lá, sair, conhecer, aproveitar que tô aqui." E ele foi bem legal: "Tranquilo, você trabalha horas extras todos os dias e vai tranquila.
Literalmente, agora eu penso: estava com 32 anos, mulher, sozinha. Que perigo, minha filha! Mas eu pegava a mochila e ia pra... Onde eu fui? Camboja, pra Tailândia, Singapura, Hong Kong, sozinha. Viajei, conheci e tive um anjinho enorme, que me protegeu e me cuidou.
Acho que foi assim, quase um ano de experiência, crescimento pessoal e profissional maravilhoso, que realmente me conectaram com pessoas, novamente, tão diferentes, mas tão similares a nós.
Acabou essa experiência, voltei para o Brasil, pro IFC. Novamente foi um período de readaptação, um escritório que tinha tido já muitas mudanças em termos de pessoas, de pessoas que vão e voltam e uma cidade: tinha shopping, tinha correios… (risos) Realmente foi uma adaptação nova. Foi nessa época que, alguns meses depois, conheci o meu atual esposo.
P/1 - E de onde surgiu o Reprograma? Foi nessa época, foi um pouco depois?
R - A Reprograma surgiu no ano de 2015. Sempre falo que muito da inspiração, da vontade de fazer uma coisa, uma iniciativa de trabalhar com mulheres eu sempre tive, por várias experiências que já mencionei, mas a inspiração foi muito do meu marido.
Eu o conheci em São Paulo, no ano de 2013, quase no final. Começamos a namorar. Ele é empreendedor e eu falava pra ele, ou pensava pra mim: "Uau, que incrível. Como alguém deixa tudo, alguém que acredita numa ideia e todo mundo fala pra ele que ele está doido, mas ele acredita mesmo e vai e se joga." Eu pouco sabia, não sabia que era tão difícil empreender, mais ainda [ser] empreender social, que eu acho que tem outros desafios.
Eu senti no IFC, no Banco Mundial, que tinha chegado num momento que já tinha aprendido o que eu achava que era suficiente, que tinha chegado num top de aprendizado em dez anos e decidi, pedi demissão em 2015, em junho, julho. Casei nesse ano, no final de 2015, e comecei a pesquisar e criar o Reprograma. Eu estava planejando um casamento e planejando uma startup social, ao mesmo tempo.
O Reprograma surgiu como isso, uma ideia de tentar mudar uma realidade que me incomodava muito, que era o fato de escutar muito do meu esposo… Eu chegava e falava: "Poxa, que desafio, não tô achando programadores. Aqui no Brasil não se compara com China, com Índia, Estados Unidos, a quantidade de criadores de tecnologia é muito pouca, imagina mulheres. Eu abro uma vaga e chegam seis CVs, uma mulher e os outros. Não pode ser, porque nós, 50% da população, não estamos criando soluções com olhar diferente, [de] mulher.”
Novamente, minhas experiências de vida me mostraram que muitas vezes as mulheres temos, trazemos para a mesa coisas diferentes, formas e soluções diferentes; temos uma perspectiva, um olhar mais da comunidade, dos outros, e acho que isso pode servir muito, tanto para resolver problemas sociais e ambientais no mundo, mas também faz total sentido de business, para as empresas, especialmente startups, que estão trazendo criatividade, soluções inovadoras. Quer melhor jeito do que trazer pessoas diferentes para o time, para criar essas soluções? E foi assim.
Superinspirada e empolgada, comecei a olhar outras iniciativas, dentro e fora do Brasil. Percebi que no Brasil não existia nada assim, tipo, estilo bootcamp, gratuito, focado em mulheres em situação de vulnerabilidade. Outros países tinham modelos similares. Falei: "Ah, vamos lá. Tem que dar certo aqui, por que não?"
E aí me joguei, comecei a... Eu sempre falo que, nesses seis meses, eu tomei mais café que na vida toda. Eu marcava café com todo mundo [que] eu não conhecia e o lado extrovertido de Mariel ajudou muito! (risos) Era café com a moça que lidera o MIT no Brasil, café com a diretora da… Falava, falava, falava... E muitas pessoas me ajudaram, foi incrível achar pessoas que realmente acreditavam e compartilhavam dessa missão de querer mudar o sistema tecnológico brasileiro.
Começamos com um time de voluntários. Tinha a família Schultz, que é empreendedora e trabalhou muito para fechar também um lugar de gênero em tecnologia; o Paulo Silveira, fundador da Caelum Alura e outros. Éramos um time de seis, todos voluntários. [No] primeiro ano e meio, dois anos, a Reprograma foi, assim, todo mundo pro bono, professores, realmente todo mundo pro bono.
Fizemos o piloto com parceria com a ex-CDI, hoje Recode, como fala em português. Emprestaram laboratórios, espaço, computadores e a gente começou a testar o modelo, o conteúdo, o que funcionava, o que não, qual teria que ser a duração; a gente foi mexendo com linguagens como… Por exemplo, tinha empresas que falavam: "Poxa, queria muito contratá-las. Vamos mexendo com o conteúdo, para que sejam mais empregáveis?" Aí a gente começou a olhar soft skills, capacitação profissional etc, até chegar no que o Reprograma é hoje.
P/1 - E me conta um pouco sobre essa evolução, esse desenvolvimento da Reprograma. Como ele é hoje, comparado com esse início que você contou?
R - A Reprograma hoje… Bom, a Reprograma passou por... Eu sempre falo que a Reprograma é a minha primeira filha. Eu casei no final de 2015 e no início de 2016, fiquei grávida; o primeiro piloto foi em maio de 2016 e estava já com uma barriga enorme, então a Reprograma chegou um pouquinho antes que meu primeiro filho, que nasceu no final de 2016.
Têm sido cinco anos incríveis, de muita mudança, a começar do perfil. A gente começou com mulheres em situação de vulnerabilidade, esse era um público-alvo amplo, no sentido de... A gente não tinha definido ainda o que significava isso. Aos poucos a gente foi percebendo que tinha um papel muito importante, de focar na minoria da minoria e não só levar mulher branca, mas por que não mulher negra, porque não mulher trans? Por que não, obviamente, reforçar o que estamos falando, de trazer pessoas que veem o mundo diferente, por experiências diferentes. Realmente, a gente foi mudando muito o foco, o conteúdo, as metodologias.
Lá na época que a gente começou os pilotos, com os voluntários e as voluntárias, eu conheci as minhas duas cofundadoras, que são maravilhosas e sem elas a Reprograma não existiria. Somos as três mosqueteiras, como a gente fala. (risos) A Carla De Bona é a técnica. Ela é professora de UX, ensina em vários lugares, é consultora, então ela que manja realmente das linguagens, ela que desenvolveu os módulos, as metodologias. E a Fernanda Faria, que é a nossa carioca maravilhosa, que cuida de operações. Ela cuida de RH, de coisas do [aspecto] legal, comunicações etc. E foi incrível, foi mais [que] perfeito - as três com skills totalmente diferentes, mas acreditando numa missão em comum.
A gente começou presencial e fomos nós três, no primeiro ano e meio, dois anos, tentando crescer; contratamos ex-alunas, duas, fomos pra cinco mulheres e antes da pandemia, já pra essa época, a gente recebia muita demanda, do Brasil todo - mulheres de Salvador, BH: "Ah, tragam o Reprograma para aqui, por favor." E a gente [pensando]: "Poxa, se elas soubessem que somos cinco mulheres fazendo isso". (risos) Típico, para empresas [a gente] também falava: "Não se preocupe, vou pedir para o meu time de comunicação." (risos) [O time] era a gente, né?
A Carla, um dia, eu lembro, falou: "Meninas, a forma de escalar é levar tudo on line. Vamos tentar fazer on line?" Trabalhamos para assegurar o curso on line, realmente aberto para mulheres do Brasil todo. Foi incrível, realmente foi uma forma muito eficiente, mantendo o mesmo conteúdo, mantendo tanto o técnico, quanto soft skills, como o fato que a gente continuou trazendo mentoras. Para nós, as mentoras foram incrivelmente importantes, em termos de inspirar as alunas e as alunas as enxergarem.
As alunas ou ex-alunas começaram a virar professoras da Reprograma, virar professoras de outras iniciativas, de outras escolas privadas de programação. Aos poucos a gente percebeu que, além de desenvolvedoras, estamos tendo impacto enorme no Brasil, criando um pool de professoras, de mulheres com capacidade, vontade e paixão por pay it forward, devolver, dar tudo o que elas tinham recebido para outras mulheres e para mostrar para o sistema brasileiro que mulher manja de tecnologia sim, mulher consegue falar de coisas técnicas. Realmente, nesse sentido, é incrível, porque a gente foi, aos poucos, atingindo e conseguindo.
Bom, aí chegou o Covid e a pandemia e já estamos ‘preparadas’, entre aspas. Já tínhamos feito pilotos on line e basicamente nosso modelo foi 100% on line.
Uma coisa muito importante que não mencionei foi o fato que, para nós, o foco na empregabilidade era muito importante. Não era só ensinar, formar, mas ajudar a aluna a conseguir um emprego em tecnologia, achar uma empresa parceira que acredite nessa mulher e que possa investir nessa mulher pra continuar apoiando o crescimento profissional e o aprendizado dela, em termos técnicos. A gente focou muito nisso, até hoje é o nosso foco principal. E o fato de manter os cursos sempre de graça, eu sempre fui muito fã desse modelo. Eu sei que existem outras iniciativas, que têm o que chama em inglês [de] ISA, income share agreement, onde as alunas se formam e depois pagam, mas eu não queria isso, eu realmente queria... Eu não queria que as alunas ou as mulheres deixem de se inscrever, por medo de ter que pagar depoi. Também, você já vem trabalhando [há] dezoito semanas o mindset, a forma delas perceberem quem são elas, o valor que elas têm como contribuidoras; eu sentia que, depois, fazendo o pedido pra elas pagarem de volta, se perdia um pouquinho dessa força, desse impulso. E pra que cobrar, quando tinha empresas com dinheiro e muita vontade de diversificar o seu time em tecnologia querendo pagar? Então, pra mim foi assim, novamente: vamos ser a ponte entre essas mulheres e essas empresas.
Hoje continuamos nessa luta. No início desse ano, fui aprovar um projeto com o BID,
que acreditava muito no nosso modelo on line, e várias empresas tecnológicas no Brasil. Começamos o projeto TodasEmTech, que é focado em mulheres em situação de vulnerabilidade. A gente ensina back end e front end, com o foco em mulheres negras e mulheres trans. Realmente tem sido, no último ano, um aprendizado enorme, com relação a como também mudar a forma que nós operamos e nos relacionamos para incorporar, por exemplo, mulheres transgênero. A gente, por exemplo, pedia ensino médio finalizado; muitas mulheres transgênero no Brasil e no mundo não finalizam o ensino médio. Como a gente poderia também se adaptar, [adaptar] os nossos processos, para podermos ser mais inclusivos nesse sentido?
Tem sido incrível. Na última turma a gente, da TodasEmTech, tinha 70% das alunas negras e 7% eram mulheres trans que, para mim, é transformador, a gente tem tido mulheres transgênero. No Brasil, não sei se muitas pessoas sabem, mas 90% das mulheres transgênero se prostituem, não têm outra oportunidade de renda e têm uma expectativa de vida de 35 anos. Os cases que temos tido, de mulheres maravilhosas que passam pelo programa, têm a oportunidade de atingir um conhecimento novo e hoje estão trabalhando como devs em startups, é incrível. (risos)
O que alimenta realmente nossa vontade como time - hoje somos doze mulheres incríveis -
é um time incrível da Reprograma que, no dia a dia, trabalha para isso, para realmente ver um jeito de chegar mais mulheres, de tentar escalar, quem sabe levar para fora do Brasil. Eu sou peruana, meu marido é colombiano, temos tido muitas propostas: "Traga a Reprograma pra aqui, traga a Reprograma." Eu sempre falo essa coisa: "É meu sonho, mas piano, piano, si va lontano", pouco a pouco a gente chega lá.
É isso: a Reprograma é uma iniciativa que tenta transformar um setor do Brasil para mostrar realmente que é um ganha/ganha, tanto na reprogramação do mindset das mulheres, de como elas se percebem como contribuidoras, quanto mudar a percepção da empresa, para que a empresa possa ver também quanto vai ganhar. Está comprovado: a diversidade é um ganho não só econômico, em todos os sentidos.
Têm sido cinco anos e nesses cinco anos eu tive mais dois filhos, então são três filhos, além da Reprograma. (risos) Dois meninos, uma menina e agora mais um menino, que está a caminho. Eu já falo pro meu marido, brincando: "Com cinco filhos, quatro de carne e osso e a Reprograma, já fecha a fábrica". (risos)
P/1 - Já que você falou sobre isso, como é ser mãe pra você?
R - Uau, como é ser mãe para mim? Eu acho que, de tudo que eu tinha falado, de todas as coisas que eu tinha contado, é o maior desafio, que aos meus 41 anos eu tenho experimentado, mas é o desafio que mais enche o meu coração.
Eu realmente amo ser mãe. Eu sou, como se fala em inglês, mompreneur, empreendedora mãe, que é um desafio ainda maior porque, além disso, tenho trabalhado muito em casa. Como tive meus filhos um atrás do outro - engravidei da segunda quando o primeiro estava com nove meses, engravidei do terceiro quando a segunda estava com oito meses, agora engravidei com o mais novinho com um ano e meio - então tenho uma creche em casa, basicamente. (risos)
O meu marido e eu somos muito envolvidos. Apesar de sermos empreendedores, querer contribuir com o mundo e mudar as coisas, eu acho que o projeto mais importante pra nós são os três, quase quatro filhos. Eu sinto que - eu já falei disso muitas vezes antes - ser mãe me preparou e me ensina até hoje muitas coisas, para ser melhor empreendedora e vice-versa: paciência, saber escutar, saber negociar. Vocês não sabem como é negociar com uma criança de dois anos, três anos, (risos) não é fácil. É isso: realmente, trazer crianças pra esse mundo é uma missão séria e de muito compromisso e acho que o desafio, para mim, mais importante, mais difícil nos últimos cinco anos, tem sido aceitar que eu não consigo ser 100% mãe, 100% super mãe, nem 100% super profissional e, na mente, eu vou ter que equilibrar os dois papéis, tentar complementar o quanto puder, mas a realidade é isso: eu sou uma pessoa só e eu consigo fazer o que as minhas 24 horas (risos) me permitem fazer. Então, é isso.
P/1 - Bom, então a gente vai pras últimas perguntas, Mariel. Primeiramente, quais são as coisas mais importantes pra você, hoje em dia?
R - As coisas mais importantes pra mim, hoje em dia? Pra mim, o mais importante são as pessoas. A minha família, pra mim, é o primeiro sempre, tanto meu marido, como meus filhos, como a minha família nuclear: meus pais, meus irmãos, realmente somos muito unidos. Eu moro longe, já faz muitos anos que eu moro longe, então, eu agradeço que temos tecnologia, que temos WhatsApp, que temos Facetime, tudo isso, para tentar ficar presente, tentar acompanhar. E, novamente, o mais importante são as pessoas, fora da família.
Nunca vou esquecer uma coisa que meu pai me falava quando eu era criança: "Mariel, olha, minha filha, se você conseguir mudar a vida de uma pessoa na sua vida, você já viveu uma vida que vale a pena." Isso sempre ficou comigo e por isso eu acho que pessoas são mais importantes; especialmente nós, mais privilegiados, com educação, com oportunidade de ter viajado, com oportunidades que a vida nos deu, temos uma responsabilidade para com os outros que não têm isso. Acredito muito e meu marido também, a gente compartilha muito essa missão de dar, de devolver, de ajudar e de tentar dar um pouco do conhecimento, do material, do tempo. Acho que tempo é muito valioso, para poder mudar a realidade de outros e ajudar outros a ter oportunidades de educação, de saúde etc.
Acho que, para mim, as coisas mais importantes não são coisas. As coisas mais importantes são pessoas e tempo. Eu acho que quanto mais velha eu me torno, mais valor eu dou pro tempo. Talvez seja o fato de ter muitos filhos e pouco tempo, (risos) mas tentar realmente dar cada dia mais valor a esse pouco tempo que temos aqui nessa vida, realmente aproveitar cada minuto. Pode ser um pouco clichê, mas realmente tentar - e é um exercício diário - ficar mais presente, tentar lembrar que você nunca sabe qual o seu último dia nesse mundo e aí tentar mudar tudo, para deixar uma marquinha na vida de pelo menos uma pessoinha.
(01:21:03) P/1 - E quais os seus sonhos pro futuro, Mariel?
R - Meus sonhos pro futuro? Muitos. (risos) Eu acho que o principal é ver meus filhos crescerem e virarem pessoas de coração. Acho que pra mim coração é muito importante, pessoas com uma consciência social importante. E que finalmente façam o que eles querem fazer. Por exemplo: se quiserem ser músicos, artistas, sei lá, arquitetos, o que quiserem fazer eu vou apoiá-los.
Obviamente, meu sonho é vê-los crescer, acompanhar o meu marido até o finalzinho. A gente sempre brinca de envelhecer juntos, de como que vai ser. Ele é muito tecnológico, ele brinca: "A gente vai ficar pra sempre. Depois que a gente morrer, a gente vai pro cloud, a gente fica junto." Eu falo: "Ah, meu Deus, você fala isso". (risos)
Meu sonho também é que a Reprograma não precise existir mais. Eu sempre falo isso quando me perguntam qual é o objetivo com a Reprograma. Falo: "O meu objetivo, o meu sonho é que iniciativas como a Reprograma não precisem existir." Que realmente setores como tecnologia e outros tenham a presença diversa, não só em termos de gênero, mas raciais, culturais, de background socioeconômico, que realmente não existam barreiras nenhuma para pessoas diferentes entrarem. Acho que é isso, esse é meu sonho, que aos poucos a gente possa contribuir, que as pessoas tenham uma consciência social maior; acho que só assim, como humanidade, a gente vai conseguir avançar. Não só pensar em um ou na família de um e mais ninguém, mas realmente espalhar essa consciência e esse amor e essa vontade de ajudar os outros.
Eu acho que, quanto mais pessoas, especialmente pessoas como nós, que têm tido oportunidades, quanto mais pessoas se unirem a essa causa de retornar, de dar tudo o que temos recebido, esse mundo vai ser, com certeza, um melhor lugar.
P/1 - Então, vamos pra última pergunta: o que você achou de contar a história da sua vida pra gente, hoje?
R - Contar a história da minha vida hoje tem sido melhor que terapia. (risos) Posso falar isso? Tem sido incrível porque, realmente, quando você se escuta falar, você encontra coisas que, realmente, talvez, nem... Ou faz vínculos, ligações; teve coisas que falei: "Poxa, realmente isso foi o que me levou a fazer isso." Também é um aprendizado próprio, eu acho. E eu sempre gosto de compartilhar as minhas experiências, porque já aconteceu muitas vezes que falo com outras mulheres… Por exemplo, algumas mais novas que eu, que estão meio perdidas, se sentem muito, sei lá, duras com elas, porque [pensam]: "Poxa, eu nunca soube o que estudar." Aí eu partilho a experiência: "Olha, eu também não, mas deu tudo certo. Aos poucos eu cheguei onde estou e tudo vai dar certo, não se preocupe."
Acho que compartilhar experiências e histórias de vidas é bom para isso, especialmente para as pessoas mais jovens, talvez, escutar coisas que as deixem mais tranquilas, possam de um jeito inspirá-las, possam contribuir para a trajetória de outras pessoas também.
P/1 - Está certo. Bom, então em nome do Museu da Pessoa, Mariel, a gente agradece muito a sua participação, muito obrigado.
R - Qualquer coisa me avisa, tá bom? Depois me avise quando sair, que eu vou morrer de vergonha de me assistir, mas tudo bem.Recolher