Programa Conte Sua História
Depoimento de Kamel Remy Doss
Entrevistado por Felipe Rocha
São Paulo, 10 de agosto de 2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV605_Kamel Remy Doss
Transcrito por Karina Medici Barrella - MW Transcrições
P/1 – Primeiralmente, seu Remy, muito obrigado por estar ...Continuar leitura
Programa Conte Sua História
Depoimento de Kamel Remy Doss
Entrevistado por Felipe Rocha
São Paulo, 10 de agosto de 2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV605_Kamel Remy Doss
Transcrito por Karina Medici Barrella - MW Transcrições
P/1 – Primeiralmente, seu Remy, muito obrigado por estar aqui hoje com a gente, é um prazer recebê-lo aqui no estúdio do Museu.
R – O prazer é todo meu estar aqui com vocês.
P/1 – Eu sempre começo perguntando o seu nome, a data e o local de nascimento.
R – Bom, meu nome é Kamel Remy Doss, mais conhecido como Remy. Tenho 72 anos e o que mais?
P/1 – O local e a data.
R – De nascimento? Nasci em Suez, no Egito, no dia 17 de junho de 1945.
P/1 – Exatamente no fim da Guerra.
R – Exatamente no fim, junho de 45, é.
P/1 – Remy, eu queria que você falasse um pouco pra gente sobre seus pais. Quem eram seus pais, quais os nomes deles, o que eles faziam?
R – Meu pai era Youssef, que é José em árabe, Selim Doss, que é o nome do meu avô e Doss nome de família. Minha mãe é italiana, filha de italianos, Ermínia Carlo Dorta. Meu pai conheceu minha mãe no banco porque minha mãe trabalhava no banco e meu pai recebia a mesada dele no banco e começou a paquerar a minha mãe. Só que o meu avô ficou muito bravo dizendo ele, que ele não admitia que casasse com uma pessoa que não foi escolhida por ele, que ele já estava sendo, o meu pai foi prometido para uma prima dele. E ele não quis saber e quis casar com a minha mãe. Então, primeiro, desrespeitou o meu avô, segundo, casou com uma estrangeira. Então foi aquele escândalo, meu avô não aceitou, deserdou os dois, proibiu meu pai de ir na casa dele e assim diante. As irmãs dele que insistiram, insistiram e depois de anos meu avô acabou aceitando o casamento dos dois e acabou aceitando que meus pais frequentassem a casa dele, que meu irmão mais velho já tinha nascido e minha irmã também, entendeu? Então meu pai era super apaixonado pela minha mãe, ele sempre falava: “Quero morrer um minuto depois da sua mãe” “Por quê?” “Porque se eu morrer antes ela é capaz de casar com outro e eu não aceito”. Então já de certa idade, etc. Eles eram muito católicos, entendeu? Meu pai trabalhava na Shell, ele fiscalizava os postos de petróleo da Shell. Inclusive no deserto. Ele tinha que viajar muito pro deserto. Então meus pais mudaram do Cairo para Suez, que ficava mais perto do deserto onde ele fiscalizava os poços de petróleo da Shell, era auditor. E aí recomeçou, foi quando eu nasci em Suez. Eu fui o único a nascer fora do Cairo e a nascer em hospital, os outros três irmãos nasceram em casa, entendeu? Na época todo mundo dava luz em casa, etc, então meus três irmãos nasceram em casa. Que tem um dez anos a mais do que eu, que é o mais velho, depois a minha irmã, oito anos e depois o outro irmão de seis anos. Só que esse de seis anos, quando chegamos no Brasil, faleceu de acidente de carro. Então fiquei com o mais velho, a minha irmã e depois eu, eu sou o caçula. E aí, como dizia, meus pais são muito católicos e começou a ter problema no Egito com o Presidente Nasser que começou a perseguir os católicos, especialmente o meu irmão mais velho, que ele é meio nervosinho e trabalhava no Citibank e o chefe dele chamava ele de padre. Ele falava: “Eu não sou padre” “Mas você é católico, é tudo a mesma porcaria”. E o meu irmão engolindo, engolindo, um dia ele estava bravo, pegou a lista telefônica e jogou na cabeça do chefe. E na época de Nasser tinha a polícia religiosa. Essa polícia, você falando alguma coisa ruim contra o governo, contra o Nasser ou contra os muçulmanos, eles davam sumiço em você, pegavam, você não sabia, saía de manhã pra trabalhar e você sumia. Então quando ele contou isso meu pai ficou mais apavorado ainda e falou: “Desse jeito não vai dar certo porque
se ele começa a jogar a lista telefônica na cabeça do chefe, logo, logo ele vai sumir”. Então ele resolveu procurar um lugar pra gente ir embora do Egito. Especialmente tinha que ser um país católico, isso que era importante. Então eu naquela época tinha 15 anos, eu era o caçula, não mandava em nada, só obedecia, eu fazia o que os pais mandavam. Então eles escolheram Canadá, muitos egípcios começaram a migrar para o Canadá, Austrália e Brasil, porque um amigo do meu irmão que estudava com ele, que acabou virando meu cunhado, já tinha vindo pro Brasil junto com o irmão dele. Ele falava: “O Brasil é um país novo, o Brasil é um país católico”, então vamos submeter uma solicitação de imigração. E o Brasil aceitou nós na hora, na hora falou: “Pode vir”. Porque o meu irmão era formado economista na Universidade do Cairo, minha irmã era fluente em inglês e francês – e árabe, lógico – meu outro irmão era técnico em eletrônica. Então, acho que o Brasil falou: “Nossa, uma família assim”. E eu só estudava, que valia a pena vir migrar no Brasil. Aceitaram na hora, então pegamos tudo e vamos embora pro Brasil.
P/1 – Isso foi quando?
R – 1961. Nós saímos do Egito em fevereiro de 61, passamos o mês de março na Itália, que minha mãe é italiana e queria voltar, inclusive o irmão dela mora na Itália, quer dizer, faleceu, mas meus primos moram lá porque eles são italianos, ele voltou pra Itália, falou: “Eu sou italiano, vou morar na Itália” e saiu do Egito. Passamos um mês e depois pegamos o navio e viemos pro Brasil.
P/1 – Só voltando um pouquinho agora, seu Remy. Eu queria que você falasse um pouco sobre a sua infância lá em Suez, como que era, o que você lembra de mais marcante lá?
R – Bom, meus pais sempre foram um casal muito animado, muito, assim, como vou falar? De muitos amigos, entendeu? Então a gente sempre tinha festas, que até hoje, eu levei isso deles, eu gosto de fazer festa, aniversário de todo mundo a gente comemora, qualquer motivo é uma festa pra mim, entendeu? E tem uma das fotos, inclusive que meu irmão me mandou, falou: “Você continua igual, olha com seis anos a farra que você fazia”. Eu dançava a música árabe em cima de uma mesa (risos), entendeu? E todo mundo no ambiente, lá é cassino, não é cassino que nem a gente fala hoje, é um ambiente de fim de semana o pessoal ia lá tomar cerveja, jantava, almoçava, chamava cassino. E meus pais iam sempre com a família, com a criançada, com todo mundo, com os amigos e ficava lá, dançava, tem um lugar dançante, etc. E eu então dançando com seis anos de idade em cima da mesa, todo mundo olhando, meu irmão mandou pra mim agora, que eu pedi umas fotos e falou: “Olha, desde aquela época você já era farrista, gosta de festa”. Mas eu me lembro assim, de uma família muito unida, meus tios, tudo, a gente comemorava junto, especialmente com as irmãs da minha mãe, que duas irmãs moravam lá e o irmão que voltou pra Itália. Mas a gente, família muito unida, muito feliz, entendeu? E quando nós viemos pra cá eu era o caçula, meus irmãos começaram a trabalhar, meu irmão mais velho, como trabalhava no Citibank no Egito não conseguiram transferir ele pra cá, mas deram uma carta de recomendação. Ele veio, aceitaram ele na hora. Só que, como ele era formado economista, ele queria uma cargo bom e falaram: “Olha, aqui só tem auxiliar de contabilidade com salário mínimo”. Aí ele veio bravo e tal e meu pai falou: “Escuta, você nem português não fala, já te deram o emprego, fica quieto e aceita, quando você tiver prática, falar português direito, você pode arrumar outro emprego, mas por enquanto já é alguma coisa”. Aí ele começou a trabalhar no Citibank e nunca mais saiu, saiu com 30 anos, aposentado, chegou a vice-presidente. Esse que talvez eu vou recomendar ele pra vir falar com vocês. Pode me interromper porque senão eu começo a falar e não paro mais, pode me interromper.
P/1 – Eu ia perguntar um pouquinho sobre, você falou que era uma família muito unida. Como que eram esses dois lados da família? O lado do seu pai era mais árabe mesmo e o lado da sua mãe que tinha essa ascendência italiana. Como que era essa convivência, como que era ali na casa de um e na casa de outro?
R – Só que a família do meu pai era árabe só que não era daqueles árabes, árabes fanáticos. Como a gente era católico, a gente falava muito em francês ou árabe, entendeu, minha mãe falava italiano, mas a gente se dava muito bem e minha mãe conseguia controlar muito bem. Inclusive nas festas de Natal, Ano-Novo que a gente reunia, muitas irmãs do meu pai vinham passar com a gente e as irmãs da minha mãe junto também, então a gente passava as duas famílias. Mas de eles se visitarem não, o funil era
a minha mãe e o meu pai, então eles vinham na minha casa, as duas famílias, e se reuniam, mas a minha tia da minha mãe não ia na minha tia do meu pai, entendeu como é que é? Famílias separadas, mas não tinha fofoca, não tinha nada disso, não, cada um vivia. Em festas se reunia todo mundo, aí era farra, era brincadeira. Especialmente eu lembro muito do Natal à meia-noite, que a gente ia muito na missa da meia-noite porque os primos do meu pai cantavam a missa da meia-noite e depois ia todo mundo pra minha casa jantar, terminava uma e pouco da manhã e ia todo mundo na minha casa pra gente jantar. Então era bem alegre, tanto a família do meu pai, como a família da minha mãe.
P/1 – Você tem alguma lembrança desses avós, tanto de um lado como do outro?
R – Do meu pai não conheci porque nem meu pai conheceu, porque faleceu a minha avó, acho que meu pai tinha um ou dois anos só, que ele tinha seis irmãs e ele como primeiro filho homem. Faleceu primeiro o irmão dele no nascimento e meu avô ficou muito louco porque ele queria filho homem, os árabes fazem questão de ter filho homem, então faleceu. Quando nasceu meu pai, aí ele viveu três anos sem sair do quarto porque ele tinha medo que ele, o outro morreu de gripe, vamos dizer assim, naquela época. Então meu pai ficou três anos com a babá sem ter contato com gente de fora, nem na rua, nada, com medo que ele morresse. Aí depois nasceu um irmão dele e nasceu mais uma irmã. Aí minha avó faleceu, então meu pai devia ter pouca idade, nem ele lembra dela. Do meu avô sim, lembro que ele já era casado, minha mãe lembra, ele proibia minha mãe de ir como eu te falei, mas ele acabou morrendo nos braços da minha mãe. Mandou chamar minha mãe e morreu nos braços dela pedindo desculpas. Então você vê como o negócio era radical de um lado e depois quando conheceu minha mãe viu que não era nada daquilo. Então, é o que eu te falo, é uma família muito unida, tanto quanto a gente ia na família do meu pai, que eles faziam festas de jantares, as festas deles eram sempre jantares, jantares ou almoços. Do lado italiano não, era mais farra, dançar, eles saíam pra dançar e levava a família, porque ali os ambientes eram todos familiares, então eu me lembro bastante disso.
P/1 – E como que era a casa que vocês moravam lá em Suez?
R – Suez era casa de madeira, que tudo em frente ao mar eram casas de madeira. Pequena, então tinha sempre beliche, o mais velho ficava em cima e o mais novo ficava embaixo pra não cair. Eu fiquei lá até os oito anos e meu pai trabalhava e meus irmãos estudavam, que também com oito anos eu acabei estudando em escola inglesa, primário. Depois quando viemos pro Cairo, aí sim a casa era maior, já tinha três dormitórios e num dormia meu pai e minha mãe, minha irmã e eu e uma outra dormiam meus dois irmãos mais velhos. Mas eram casas boas, grandes, porque nos países árabes são casas grandes, tinha que ter sala de jantar enorme, sala de visita enorme, e depois os quartos, cozinha e banheiro.
P/1 – Qual a diferença de uma casa árabe para uma casa brasileira, por exemplo?
R – Tamanho. Tamanho, não tem comparação. Aqui, bom, hoje em dia, Egito meus primos já não moram naquelas mansões enormes, mas moram em apartamentos grandes. Quer dizer, menores do que a época, mas maiores do que o Brasil. Não tem ali apartamento de 57 metros quadrados, isso não existe. Pode ser uma sala de 57 metros quadrados. Então no Egito nós mudamos pra essa casa e depois mudamos para um apartamento. O apartamento tinha quatro dormitórios, sala enorme e sala de jantar enorme. E no meio uma porta de vidro que nas festas abria a porta de vidro, então juntava a sala com a sala de jantar tudo junto. Então aí que dormia meu pai com minha mãe, eu e minha irmã, meus dois irmãos e uma tia da minha mãe que ficou viúva, não tinha com quem morar e a minha mãe convidou ela pra morar com a gente, ela ficava no quarto dormitório.
P/1 – E era importante essa questão das salas grandes por conta dessas...
R – De receber visitas. Não só visita parente, mas visitar amigos, se visitam muitos.
P/1 – É comum fazer as festas na própria casa.
R – Ah, sim, sempre na casa. De sair fora, que nem eu falei do cassino, era mais em ocasiões muito especiais, mas nós, devido ao meu lado italiano, os meus pais iam mais vezes, entendeu? Eu aqui no Brasil fiz amizade com meu cunhado, que hoje faleceu, mas através dele que eu conheci minha esposa, a gente, tinha-se muito, como vou dizer? A gente fazia festas em casa, então minha mãe não me deixava sair muito tarde porque eu não conhecia e queria conhecer. Então ela convidava meus amigos pra irem em casa: “Não, vocês querem dançar? Venham dançar aqui”, que eles queriam ficar de olho, tal. E eles dançavam junto com a gente. Meu pai dançava com as amigas, minha mãe dançava com meus amigos, entendeu? Então era sempre família, coisa de família. Então foi legal nesse sentido. Porque pra mim foi tudo legal porque não tinha idade, tinha 15 anos, até os 15 quando saí pra mim estava tudo ótimo, tudo maravilha, não sabia nada. Escutava meus pais falando do meu irmão e tal, mas pra mim não tinha problema. Porque lá, depois do pai, é o irmão mais velho que manda, entende? Então pra mim, que eu era o caçula, com dez anos de diferença entre eu e meu irmão, eu tinha meu irmão como bicho-papão, entendeu? Porque ele exigia muito mais do que o meu pai. Meu pai era legal, tudo, mas meu irmão: “Ah, estuda, tem que fazer isso, quero ver suas notas!”, então pra mim era aquele cara bicho papão que mandava muito em mim, que era tradição árabe, sempre irmão mais velho substitui o pai, o dia que faltar o pai o irmão que mandava na família toda.
P/1 – Você lembra alguma coisa dessa mudança de Suez pro Cairo, como que foi?
R – Não. Não lembro nada. Porque meu pai foi transferido pela Shell, não adiantava a gente morar no Cairo que era 200 e poucos quilômetros do Cairo pra Suez, então mudamos todo mundo pro Cairo. Mas eu
não lembro dessa fase, lembro da casa.
P/1 – De Suez você não lembra muita coisa.
R – Suez lembro da casa de madeira, lembro do cachorro que a gente tinha um pastor, que teve uma história enorme do pastor que brincava com a gente, jogava futebol, jogava esconde-esconde, tudo.
P/1 – O cachorro?
R – O cachorro, pastor, é, jogava tudo isso. Tinha um árabe ali que tinha um boxer, você conhece o boxer? E ele apostava dinheiro pra briga de cachorros. E ele desafiava muito meu pai porque o nosso cachorro era muito conhecido na cidade, sabe, era tipo de uma aldeia, Suez é tudo pequeno, tudo era amigos e tal. E eles faziam muito, todo mundo adorava meu cachorro e ele ficava com raiva e desafiava, falava: “Vamos lá, quero ver se ele é bom mesmo na briga, tal”. Que meu irmão falava: “Não, não vamos fazer, não vamos fazer”. No fim ele mexeu no brio do meu irmão e ele falou: “Então agora está marcado, vamos brigar”. E nós ficamos revoltados, os vizinhos ficaram revoltados, como que vai deixar? O cara era matador profissional, o Led tão bonzinho que brincava com todo mundo, desde que ninguém mexia com a gente.
P/1 – Como era o nome do cachorro?
R – Led. Desde que ninguém mexia conosco. Mexeu conosco ele ficava bravo. E aí no dia foi uma farra, foi a cidade inteira em frente ao mar, aquele que eu te falei do _0:18:09_. O cara segurou o cachorro aqui, meu irmão segurou lá, cochichou um negócio no ouvido dele e largou. Ele saltou lá, pegou os dois, quando chegaram mais perto o Led deitou e ficou assim, de barriga pra baixo. E todo mundo: “Uuuuu, pronto, o cara vai lá matar ele”. Só que quando pulou, o Led pegou ele no pescoço e não largou mais. Pegou ele assim, não deu nem choro:
“Vai matar meu cachorro, vou falar pra ele parar!” “Não, agora vai até o fim”. Aí no fim meu irmão falou: “Larga!”, ele largou. Não morreu, mas já estava bem estrumbicado. E ganharam a aposta e tal: “Pra nunca mais me desafiar, que o meu cachorro é bonzinho, mas quando ele quer ser bravo ele é”. Então foi a tática que meu irmão tinha combinado com o cachorro. Esse cachorro marcou muito a nossa vida, tal. Mudamos pro Cairo, ele foi junto com a gente, lógico. Não sei se estou estendendo demais, é que no Cairo tinha uma garagem onde meu pai guardava o carro dele. Aí meu pai continuava viajando. E esse meu irmão que faleceu gostava muito de mecânica, desde pequeno. O cachorro dormia dentro de casa, quando ele queria ir no banheiro ele acordava minha mãe e deixava minha mãe ir na frente abrir a porta pra ele e ele saía. Esperava até de manhã pra entrar dentro de casa de volta. Um dia ele cutuca a minha mãe e sai correndo pra porta. Minha mãe olha e fala: “Bá, que me cutucou?”, continua ali, ele voltou, cutucou ela e voltou: “Acho que ele está apertado pra não fazer dentro de casa as necessidades”. Minha mãe levantou, abriu a porta, ele saiu correndo. No dia seguinte minha mãe vai no quintal, encontra perto do carro em cima de quatro caixões os pneus tudo largado e um monte de sangue no chão. Ela falou: “Ué, o que está acontecendo?”. Ela entra lá dentro, ele tinha um tapete que ele dormia, ele estava cheio de sangue, uma abertura assim no peito. Ela chamou o meu irmão e falou: “Pô, você que mexeu no carro do teu pai, tirou os pneus?” “Eu não, mãe. Além do mais as ferramentas não são nossa”. O ladrão entrou pra roubar os pneus do carro e o cachorro percebeu, foi lá. Conforme ele pulou em cima do carro, o cara estava deitado, pegou uma chave de fenda e abriu o peito do cachorro. Aí levamos pra costurar, etc. Uns meses depois o cachorro sumiu. O cara veio, voltou pra se vingar com alguma coisa, nunca mais achamos o cachorro. Foi um cachorro que marcou muito a infância da gente. Eu como era pequeno subia em cima dele, ele fazia cowboy, porque eu era piquititico, né? Então essa é uma coisa que marcou muito não só eu, pequeno, mas a família toda. Meu pai, quando nós vimos foi todo mundo, eu não fui pra escola, meus irmãos não foram pra escola, só pra procurar o cachorro. Meu pai não foi trabalhar, entendeu? Só pra ver se alguém tinha visto ele. Levaram, devem ter matado, lógico, pra vingança, mas... isso que, a transferência de casa, o que mais marcou foi isso. Porque foi logo depois que chegamos, entendeu? Que na época era difícil ter um carro, não era comum como hoje, era mais difícil, vai ver que falaram: “Esse cara tem dinheiro, então vamos roubar carro, pneu”, os quatro, o último pneu que estava um pouco duro que conseguiu salvar. Negócio foi marcante pra família toda.
P/1 – E ainda na infância, do que o senhor gostava de brincar? O que você fazia nessa época?
R – Ficava muito livre na rua. Como eu te falei, tinha uma árvore grande que a gente brincava de se esconder em cima de árvore. E o cachorro vinha, ele via a gente lá, ele fingia que não via, dava uma volta. Brincava com os vizinhos assim de coisas de madeira, carrinho de madeira. Naquela época não tinha essas coisas modernas de hoje, né? Brincava assim, o que mais vou te dizer? Eu não brincava tanto assim porque eu colecionava selo, coleciono selo, aliás, então sempre me dedicava à minha coleção no tempo vago assim, tomava conta da minha coleção. Até hoje. Mas brincava também, lógico, os vizinhos, amigos da escola, brincava essas brincadeiras simples, não lembro alguma coisa específica, essa da árvore eu lembro, esconde-esconde o cachorro que tinha que procurar a gente, né? Fora isso, coisa simples.
P/1 – Por quê que o senhor começou a colecionar selo?
R – Não sei, acho que eu nasci assim (risos). Não sei, eu tinha paixão por selos e toda mesada que meu pai me dava eu pegava selos. O cara do Correio me guardava selos pra mim, depois no fim do mês recebi a mesa e pagava. Selos do Egito, né? E depois o pessoal trocava selos, tal, tal, tal. Mas aí saímos do Egito, é uma história muito longa pra sair do Egito. O egípcio não podia imigrar, o governo egípcio não deixava o egípcio imigrar. Pode já pular isso ou tem mais alguma coisa?
P/1 – Não, pode seguir.
R – O meu pai tinha um amigo dele de infância que era ministro do interior. E ele conseguiu, através desse amigo, fazer com que o Nasser assinasse uma lei que permitisse o egípcio imigrar para outro país, entendeu? Então nós fomos a primeira família a migrar a família e pudemos trazer dinheiro e trazer coisas. Então nós fomos aceitos no Brasil e tudo, então minha mãe comprou baú, embrulhou louça, roupa de cama e mesa, roupa nossa, tudo, pra poder chegar no Brasil e não precisar gastar dinheiro pra comprar isso. E o governo só permitiu 500 dólares por família, não podia levar mais do que isso. Então nós viemos embora de navio pela Itália, ficamos um mês na Itália, depois viemos pro Brasil. Quando chegamos na alfândega, que fomos de navio, então o caminhão levou os baús, levou tudo pra chegar na Alexandria, que era o porto, abriam todos esses baús pra ver o que tinha dentro, porque era difícil uma família migrar, então os caras falaram: “Essa família tem alguma coisa”. Porque naquela época muita gente fugia, especialmente judeus, e judeu lá tinha muito dinheiro porque eram ouvires e eram joalheiros. Então pra fugir do Egito, porque eram judeus, eles escondiam pedras preciosas, diamantes, em vários lugares do corpo, inclusive lá embaixo, entendeu? Então a polícia descobria e começou a investigar lá embaixo também, entendeu? Se você não está levando uma coisa assim. Isso foi uma coisa que deixou minha mãe completamente arrasada, porque a policial feminina teve que passar a mão lá dentro pra ver se ela não tinha algum diamante. Então isso ofendeu muito a minha mãe. Nós ficamos da manhã até as oito horas da noite só abrindo e fechando baús, polícia verificou tudo. Quanto acharam a minha coleção de selos chamaram meu pai e falaram: “Cadê a avaliação disso?”
“Avaliação do quê?” “Não, isso aqui é dinheiro, você está fugindo com dinheiro”. Ele falou: “Isso aqui é a coleção do meu filho, nem mexo com isso”. Ele falou: “Não, isso aqui é dinheiro, você tinha que ir nos Correios, avaliar esses selos, pagar o equivalente ao Correio e eles embrulhavam com o selo fechado e você podia sair do país porque isso aqui é dinheiro que vale lá fora”. Ele falou: “Então, meu filho, não sei nada disso, tal” “Então sou obrigado a confiscar”. E confiscaram todos os álbuns de selo que eu tinha. Eu fiquei tão desesperado que eu jurei pra mim mesmo nunca mais olhar para um selo, entendeu? De tanta raiva que eu fiquei porque a minha vida estava ali dentro. Quando cheguei no Brasil tem um selo aqui, que vendia muitos selos nas bancas de jornais, eu olhava e falava:
“Não vou comprar, não vou comprar”, mas acabei comprando, tal, tal, tal. E me aposentei, os primeiros dez anos praticamente da minha aposentadoria eu dediquei a organizar a minha coleção, comprar selos que me faltam em leilão. Então selo é história. Você não pode colecionar todos os selos, porque selos do mundo inteiro, haja dinheiro pra fazer. A única que tem coleção grande é a Rainha Elizabeth, da Inglaterra, e o rei do Egito. Quando Nasser tirou o rei do Egito, falou: “Essa coleção do Cairo”, porque pegaram ele de pijama, puseram no avião e falaram: “Sai. Vai pra Europa e esquece o Egito”. Então falaram: “Vamos leiloar isso aqui que vale muito a coleção dele”. A rainha Elizabeth mandou o pessoal arrematar a maioria porque o que ele tinha ela não tinha e o que ela tinha ele não tinha, entendeu? Então ela arrematou uma grande parte dos selos do rei do Egito e ela ficou a maior colecionadora de selos, que ela tem uma equipe de caras entendidos só pra organizar. Ela gosta do selo, mas ela não participa de colocar, isso que é o gostoso do selo, você ver por que aquele selo foi emitido. O papa veio no Brasil, então tem três selos falando que o papa veio. Só que se você só tem dois não adianta, você precisa ter, então tem selo pra completar a coleção. Tem coleção de selo carimbada, tem coleção de selo novo, tem coleção de quadro. Quadro que é quando você tem uma folha de papel assim e emite 50 selos. Os quatro de cada canto são chamados quadro, tem gente que coleciona essas quadras. Tem gente que coleciona cartão com selo do primeiro dia que foi emitido. Todo selo quando emite, eles fazem um cartão dizendo por quê que foi aquele selo e põe o selo e carimba o dia, esse é outro tipo de coleção. Eu coleciono só selos novos. Então, pra mim colecionar do mundo inteiro não tem condição, então comecei a diminuir depois, comecei a trabalhar, eu tinha meu dinheiro e tudo e comecei a me dedicar a alguns países só, entendeu, porque aí você pode comprar daquele país os selos. Ou então, tem pessoas que se dedicam a selos de trem, o cara gosta de trem, então ele compra selos do mundo todo, mas só de trem. De cachorro, de barcos, de gatos, de joias. Assim tem, certas coleções. Eu faço do país, então volto pra trás, selo de hoje é barato, de ontem um pouco mais caro. Agora quando você vai comprar, que nem do Brasil, três Olhos de Boi, foi o segundo selo do mundo, que o primeiro selo foi na Inglaterra, 1842 e em 43 o Brasil emitiu três selos, chamados Olho de Boi, que é um quadradinho assim pequeno com forma de um olho assim, entendo? Aqui lá é de 30 réis, 60 réis e 90 réis. São os três. Eu tenho o de 30, que eu comprei, o de 20 minha filha me deu de presente no Natal e o de 90 réis eu não tenho. Três anos atrás um cara da loja de selo me ligou e falou: “Remy, achei o de 90 réis que falta pra sua coleção, é lindo, limpinho” “Tá, tá, quanto que tá?” “Vinte mil reais” “Ah, esse daí também, não extrapola 20 mil reais um selo” “Mas está faltanto na sua coleção, eu te faço em cinco vezes de quatro mil!”. Eu falei: “Não”, eu me controlo pelo menos isso, entendeu? Aí não comprei. Porque o selo, o valor é cada vez mais raro porque no dia que eles emitem o selo é um milhão de selos. Quantas vezes você recebeu cartas com selo e jogou fora? Então vai diminuindo, diminuindo a quantidade do mundo, então aquele selo vai virando raro por causa disso.
P/1 – E qual foi o que você conseguiu que você ficou mais satisfeito?
R – Ah, os dois Olhos de Boi, de 30 e de 60, porque já tenho pelo menos dois terços da coleção. Porque esse sim, você não tem a coleção toda porque, pelo amor de Deus. Depois foi Olho de Cabra, que aí é um selo menorzinho, eu tenho.
P/1 – Teve algum que você lembra da sua coleção antiga, de criança, que você recuperou depois e...
R – Ah, todos do Egito, todos.
P/1 – Conseguiu recuperar tudo?
R – Tudo, tudo, desde 1860, por aí. Porque como comecei a viajar muito a trabalho pro Egito, aí comecei a comprar tudo outra vez, que aí pra entrar no Brasil não tem problema, sair de lá também não tem problema. Então meu primo, eu falei: “Primo, quero alguém que vende selos porque quero refazer minha coleção do Egito”. Eu sou egípcio oficialmente, já teve todos os selos do Brasil, não vou ter do Egito? Então comecei a comprar, comprar, cada viagem que eu fazia pra lá eu gastava um dinheiro para falar pro cara:
“Pro mês que vem quando eu voltar eu quero esse, esse, esse e esse, vê o preço pra mim”, eu gastava pra comprar, assim fui comprando todos eles.
P/1 – Você falou que faz por países, né?
R – Por país.
P/1 – Qual país você acha que tem os selos mais bonitos?
R – Nova Zelândia que eu faço porque um amigo é neozelandês, ele queria selos brasileiros e eu falei: “Então me traz selo da...” Lá em Dubai, quando eu morava em Dubai. Lá tem selos muito bonitos. San Marino, que é perto da Itália é muito bonito os selos deles. Esses são os que eu coleciono. Depois, como fui morar em Dubai, Dubai é assim, seja país do golfo, do mercado comum árabe que é Kwait, Arábia Saudita, Catar, Bahrein, Emirados Árabes e Omã. Então comecei a comprar desses, todos. Desses países eu tenho desde o primeiro selo. Todinhos, todos os selos. Só da Árabia Saudita não porque a Árabia Saudita também é 1900 e alguma coisa começaram a emitir selos deles, porque antes emitiam selos da Inglaterra carimbado Kwait, carimbado Saudi Arabian porque é colônia inglesa. Fora os países árabes eu tenho Portugal, San Marino, Nova Zelândia, Estados Unidos e Brasil.
P/1 – É uma coleção...
R – E mais seis países do Golfo e mais o Egito.
P/1 – Boa coleção já.
R – Porque esse vai, mais velho é, mais caro é, então você vai comprando de um em um, um em um. Os atuais são baratos. Eu tenho inscrição em todos os países árabes, na Nova Zelândia e em San Marino, de todo selo novo eles me mandam e debitam do meu cartão de crédito. Então até hoje foi emitido, não digo ontem, mas o mês passado eu já tenho, que eles me mandam através do cartão de crédito que eu deixei a inscrição nesses países. Porque eu visitei esses países, só a Nova Zelândia que eu não visitei mas o rapaz me inscreveu lá então marca cartão de crédito.
P/1 – Voltando um pouquinho, você estava vindo pro Brasil de navio, a alfândega parou, confiscou a sua coleção.
R – Isso.
P/1 – Como que foi essa viagem de navio pra cá?
R – Foi tudo lindo, novidade.
P/1 – Lembra o nome do navio, como foi a viagem?
R – Ana Costa. Foi na Anna Costa, da linha Costa. Nós fizemos Alexandria-Bari, que fica perto de Nápoles. Depois de trem fizemos Nápoles tudo, passeando, porque mandamos pra Gênova os baús e tudo e só as malas nós fomos passear porque minha mãe queria voltar pra visitar um pouco a Itália e visitar o irmão dela em Milão, que tinha um irmão em Milão. Aí nós fomos de trem passeando, conhecendo Nápoles, etc, etc. Fomos até Milão, até Roma, voltamos pra Gênova, aí pegamos nossos baús, colocamos no navio e viemos embora. Aí o navio só farra, só brincadeira, dançando, comendo, bebendo, foi muito legal a viagem.
P/1 – Vocês chegaram aqui por onde?
R – O navio parou primeiro no Rio de Janeiro, foi aí que nós aprendemos a primeira palavra brasileira sem querer, né? Que nós saímos do navio, passeamos lá no Rio de Janeiro, no porto, e meu pai queria uma cerveja, estava calor, em março, né? E aí paramos no lugar e falamos: “I wanna una birra”, e o cara trouxe um copinho assim, sabe aquele copo de café? Com uma água dentro, olhamos aquilo: “Mas que cerveja mais esquisita”. Meu pai falou:
“Putz, isso aqui é álcool, não é cerveja”. E meu pai falou: “Birra, birra”. E o cara falou: “Pinga isso aqui, pinga isso aqui!”. E nós: “Birra, birra!”. Aí veio um senhor e falou: “Vocês são italianos?” “Somos, sim, pô” “Vocês querem cerveja, né?” “É! Mas olha o que ele está servindo” “Não, birra aqui se fala cerveja e isso que ele está dando é pinga, que é aguardente brasileira” “Ah bom, então agora a gente não pede mais a pinga, birra, pra não confundir, a gente aprendeu a palavra cerveja”. Depois subimos no navio e descemos em Santos. Pra mim foi uma chegada em Santos boa, mas depois disso foi horrível. Porque o pessoal da imigração brasileira estava esperando nós no porto. Colocaram nós e as malas, tudo, dentro de um trem e nós viemos pra Mooca onde tem um centro de imigração. Falando nisso está aberto agora, eu vou um dia lá pra ver como está o ambiente porque diz que tem o registro de quem ficou lá. Ficamos um mês lá, era obrigatório, até a gente acertar, achar onde morar, etc. E no trem, pra mim era uma abelha, não sei, me mordeu aqui. Mas começou a arder, arder, eu fiquei com o pescoço assim. Eu falei: “Que belo país é esse que morde a gente desse jeito”. E meus amigos no Egito falaram: “Vocês vão no Brasil?” “É” “Por aí dizem que tem animais selvagens nas ruas, como você vai fazer?” “Ah, não sei, meus pais falaram ‘vamos pro Brasil’, nós estamos indo, eu não sei, não mando nada”, era pequeno. Eu falei: “Olha aqui os animais que já me pegaram de jeito”. Mas era uma abelha que me mordeu aqui, ficou inchado e tal. E a nossa experiência na Imigração foi muito ruim para o meu pai, porque o meu pai não se separava da minha mãe pra nada. Quer dizer, viagem a trabalho sim, mas digo assim, nada. E eu, ele, meus dois irmãos, tínhamos que morar, dormir no barracão dos homens. E minha mãe e minha irmã no barracão das mulheres. Que era assim, cem camas, uma do lado da outra e já viu, né? Ali o pessoal peidando, desculpa eu falar, gritando, portugueses, espanhóis, tudo aquilo ali, já viu, né? E a gente não estava acostumado com isso, entendeu? E meu pai sofreu muito que no fim, os últimos 15 dias da vivência dele lá foi no hospital deles. Lá dentro tinha um hospital e tal porque ele passou mal do estômago, tal, porque todo nervoso, meu pai atingia o estômago dele, então ele ficou na enfermaria, vamos chamar assim, porque aí pelo menos numa cama sozinho, sem tanta gente junto. Mas realmente foi ruim. Aí quando meu irmão arrumou então no Citibank, minha irmã arrumou no Banco Francês e Brasileiro, por causa do francês que ela fala, meu outro irmão arrumou na Arno, como era eletrônico ele trabalhou na Arno. Eu vagabundando, só estudava e meu pai também porque ele era de idade, 50 e poucos anos, não podia trabalhar. Então o primeiro emprego dele foi na Praça da Sé, tomava conta de uma farmácia de um egípcio, que não sei como calhou dele conhecer e tal, o cara falou: “Eu preciso de alguém que toma conta” porque sei que o pessoal rouba muita coisa da farmácia, então eu não tenho tempo de ficar olhando tudo isso. Você vem, trabalha só pra fiscalizar o pessoal. Ele arrumou um emprego e começou a trabalhar lá. Aí ele conheceu um outro egípcio que era diretor da Phillips, aí arrumou para mim trabalhar como office-boy, aí eu tinha 15 anos, o cara falou:
“Não fala português direito, não fala nada, então vamos começar a vida como office-boy”, foi onde eu entrei na Philips pra trabalhar como office-boy nos primeiros anos de trabalho.
P/1 – Só voltando um pouquinho. Qual foi a primeira impressão de São Paulo que você teve? Além da hospedaria, quando...
R – Ah, foi maravilhoso, foi maravilhoso porque muito grande. O Egito, quer dizer, Suez era um buraco. Heliópolis, onde a gente morava, era pequeno, Cairo era grande. Que nem São Bernardo e São Paulo, é assim, mas não era tão grande como São Paulo, então pra nós era tudo grande. Não tinha metrô lá também no Egito. Então foi uma novidade, tudo era novo, tudo era bonito, entendeu como é? Aí com o salário do meu irmão, que foi o primeiro a arrumar emprego, eu nunca esqueço, ele ganhava 11 cruzeiros, sei lá eu o que era naquela época, por mês no Citibank. Nós alugamos uma casa depois de um mês no Cambuci, que era 11 cruzeiros o aluguel. Então ele ficava sem nada. Então ele dava aula de inglês por fora pra ganhar um dinheirinho pra ele. Minha irmã e meu outro irmão rachavam a despesa de comida de casa. Porque com os 500 dólares que meu pai trouxe, ele comprou todos os móveis da casa. Cama, armário, acabou o dinheiro. Ele falou: “Agora cada um que trabalha vai participar”. Até eu casar, o trabalho era assim, quem trabalha metade é pra casa e a outra metade é da gente, foi assim toda, meus irmãos, todo mundo era assim.
P/1 – E o que você fez com o primeiro salário que você recebeu da Philips?
R – Joguei pra cima e caiu todo o dinheiro em cima de mim (risos) porque a Philips pagava em dinheiro, né? Então abri o envelope e falei: “Mãe, olha aqui!”, vru, caiu tudo. Aí depois dei metade pra ela (risos). Eu tomei banho de dinheiro. Mas foi maravilhoso. Eu tinha sempre o problema que eu gostava de me vestir bem. E esse meu irmão que faleceu não comprava roupa de jeito nenhum, mas comprava carro, comprava moto, comprava essas coisas. Então eu só gostava meu salário com roupas. Aí fiz amizade na Philips com um rapaz que morava no Ipiranga. E ele falou: “Remy, já que você está sozinho, você não tem amigos, não tem nada, vem no Ipiranga, perto do Cambuci, eu tenho amigos lá e você sai com a gente, tal”. Foi aí que eu conheci a minha esposa, o irmão dela que trabalhava lá e o tio também trabalhavam lá.
P/1 – Só uma dúvida antes. Você falou que nessa época que o seu irmão veio a falecer, né?
R – Não, meu irmão faleceu em 69.
P/1 – Foi depois.
R – É, depois. Nós chegamos em 61, dia 31 de março de 1961, quando nós descemos em Santos. E ele faleceu em primeiro de maio de 69, de acidente de carro.
P/1 – Você já estava...
R – Eu estava namorando já com a minha esposa, mas não estava nem noivo ainda porque nós íamos ficar noivos e depois casar. Devido ao falecimento dele, que ele era o único solteiro depois de mim, aí adiamos porque meus pais passaram muito mal, etc. Porque ele tinha 29 anos, eu tinha 23 na época.
P/1 – Foi uma coisa trágica.
R – Isso, foi uma coisa bem triste, choque. Porque ele estava bem, estava bem, perna quebrada, estava o fêmur quebrado. Então foi em Joinville, Santa Catarina, a firma, Wallita Auto Peças ele trabalhava, não sei se você conhece, falaram: “Pagam aí, traz ele de avião pra cá que ele opera aqui na Beneficência Portuguesa”. O cara que estava dirigindo o carro que teve o acidente trouxe ele, que o cara não fez nada, ele fez porque era um Karmann-Ghia, sabe o Karmann-Ghia estava aquele puta merda como eles falam, como ele estava deitado dormindo, o cara brecou, ele bateu o peito nesse puta merda, entendeu? E a força fez com que ele esmagasse as pernas, quebrou o fêmur. Então transportaram ele de avião, veio aqui, operou de domingo pra segunda, na segunda-feira, dia primeiro de maio, eu fui no médico no domingo e falei: “Olha, como que foi a cirurgia? Ele está correndo algum perigo?” “Imagina! Perna quebrada não mata ninguém”. Essa frase a gente até gravou bem: “Perna quebrada não mata ninguém”. Eu falei: “Então tá bom, né?”. Naquela noite ele passou mal e faleceu. Porque bateu o pulmão naquele puta merda e começou a pingar sangue. Só que o hospital aqui falou: “Já que ele foi internado no hospital em Joinville e falam que ele só tem a perna quebrada, então o resto não precisa fazer nada”. Chegou aqui e falou:
“Só vamos operar a perna”. E aquele sangue foi saindo, saindo. Quando encheu o pulmão ele não conseguiu mais respirar. Aí quando perceberam já era tarde demais e ele faleceu, 29 anos. E minha mãe estava na cabeceira dele até a hora que ele faleceu. A minha mãe passou muito mal. Quer dizer, ela congelou. Ela não chorava, não fazia nada, sabe? Congelou. Meu pai não, meu pai gritava, chorava, batia a cabeça na parede e tal, de tristeza e tudo. E o médico falou: “Cuida mais da tua mãe do que do teu pai, porque o teu pai está desabafando e a sua mãe não está, então vocês tomam cuidado com a sua mãe”. Mas foi um período muito triste. Aí eu tive que adiar meu casamento: “Vamos esperar um pouco até recuperar um pouco a família”. Aí casei em 70, em dezembro de 70.
P/1 – E pra você, Remy? Você falou que o seu irmão mais velho era um pouco, tinha essa coisa mais da hierarquia, mas o outro...
R – O outro dormia junto comigo no quarto aí no Cambuci, então nós éramos bem amigos. Era amigo assim, ele ia namorar, ou paquerar as meninas, e usava a minha roupa. Para eu emprestar minha roupa pra ele, ele me emprestava a moto. Você conhece Interlagos, ouviu falar? Então, ele tinha uma Interlagos e uma moto. A moto ele importou de mil cilindradas, pra você ter uma ideia, uma Java mil ciliindradas. Então ele me emprestava a moto para eu namorar com minha namorada e eu emprestava a roupa pra ele, entendeu? Era esse o acordo que eu fazia. Então nós éramos muito, muito unidos. Eu senti muita falta, não consegui mais dormir no meu quarto sozinho, entendeu? Aí eu dormia no quarto com meus pais às vezes, até passar aquele momento. Porque aí eu também não podia chorar porque se eu chorasse meus pais choravam mais, então eu tinha que engolir o choro. Eu só fui chorar duas horas sem parar na GM. Cheguei lá, comecei a chorar, minha irmã falou pra todo mundo, que minha irmã também trabalhava lá, falou:”Deixa ele chorar porque em casa ele não está conseguindo chorar”. Aí chorei, chorei, chorei até me acalmar um pouco. Foi muito brusco, uma hora você vê ele conversando e, de repente... que ele falava: “Nossa, foi bacana! Porque batemos e depois veio um ônibus de excursão que veio socorrer a gente, cheio de meninas e tal, me carregaram dentro do ônibus, depois tal. E no avião! Nossa, no avião puseram uma cama dentro do avião só pra mim! Porra, foi legal!”. Meia hora depois o cara está morto. Porque nós tínhamos ido embora, foi meu cunhado que veio, porque minha mãe falou: “Eu vou ficar aqui porque ele está tossindo muito”. E meu pai falou: “Já que sua mãe vai ficar eu vou ficar também”. Meu cunhado, casado com minha irmã, falou: “Já que os dois velhos vão ficar eu vou ficar porque amanhã é dia primeiro de maio, é feriado, então nós não vamos trabalhar, eu vou ficar tomando conta dos dois velhos”. Foi nessa noite que aconteceu. E ele foi em casa acordar a gente, eu e minha irmã e falou: “Acordem que o teu irmão acabou de falecer”. Aí foi aquele negócio violento, mas ultrapassou esse momento triste, passou.
P/1 – Bom, vamos falar um pouquinho de coisa alegre então. Eu queria saber como o senhor conheceu a sua esposa, mas antes eu queria saber um pouco mais sobre essa coisa de roupa. Onde você ia comprar as roupas que você gostava, se tinha algum alfaiate de confiança, alguma loja.
R – Eu tinha camiseiro, que eu fazia as camisas com gola alta que nem Elvis Presley. Fazia bota, mandava fazer bota no Belém, porque como a Philips é ali no Belém, no Largo do Belém tinha o sapateiro que eu fazia sob medida. Eu comprava as botas e mandava ele fazer o salto mais alto, sabe, pra ficar um pouco mais alto. E roupa comprava sempre tudo preto, só usava roupa preta, pra sair nos bailes, etc. Eu usava pra cima e pra baixo sempre táxi. A turma falava: “Pô, mas você gasta tanto dinheiro de táxi”. Porque não gostava de ônibus, não gostava de empurra-empurra do bonde, entendeu? Por isso que falavam: “Guarda dinheiro pra comprar um carro que é melhor”, mas eu não queria guardar. Eu saí da Philips, dei um jeito que esse diretor me ajudou, no lugar de eu pedir demissão ele me mandou embora para eu receber fundo de garantia, indenização, pra ter um dinheirinho. Gastei tudo em ternos e roupa. Meu irmão falava: “Mano, com esse dinheiro você compra um Fusca à vista, um fusquinha novo, zero quilômetro, à vista. Compra um carro!”. Eu falei: “Eu não, depois não vou ter dinheiro pra andar no carro que nem você”. Ele não tinha dinheiro pra andar de moto e nem com o Interlagos. Então quando eu usava, além de emprestar roupa eu botava um litro, dois litros de gasolina para eu andar e ele andar também porque metade do salário dele era pra pagar as prestações, entendeu? Então a gente viva nessa base. Eu não queria dívida, eu sempre fui um cara, tenho pavor de dívida, tenho medo de não poder pagar e depois... porque meu pai falava: “Você tem um nome, zela por ele, porque o pessoal vai lembrar do seu nome, ou no bem, ou no mal. Então que seja sempre no bem, zela pelo teu nome”, então a gente sempre levou isso na vida. Então eu não comprava nada a prestação, tinha dinheiro comprava, não tinha dinheiro não comprava, entendeu? Então as roupas eram assim. E ele não, porque tudo o que ele, a metade dele que sobrava, ele gastava nas prestações, na moto, no carro, entendeu? Então ele não tinha pra comprar roupa e a minha mãe ficava com dó, comprava umas cuecas pra ele, comprava umas camisas, de quebra-galho, porque ela também precisava do dinheiro pra gente viver, comer, a família toda. Então eu emprestava sempre pra ele, ele me emprestava os carros pra mim, ia de carro, de moto paquerar minha esposa. E a minha esposa, como eu conheci? O irmão dela trabalhava na Philips, o irmão e o tio. E o tio era o caixa. Então como eu era office boy, ele sempre falava: “Vai no caixa e paga essa conta pra mim”. Eu chegava lá e ele falava: “Escuta, é verdade que na sua terra não tem táxi, tem camelo com taxímetro?”. Eu falava: “Puta merda, o cara vem fazer sempre a mesma pergunta”. E Turquinho. Nossa senhora! Eu ficava louco da vida quando me chamavam de Turquinho. Eu falava: “Gente, eu sou egípcio! Egito, Egito! Turquinho é turco, da Turquia” “Ah, mas é que é tudo a mesma porcaria”. Eu ficava com raiva. E o diretor falou: “Remy, para de ficar bravo, se você mais ficar bravo, mais eles vão te chamar de Turquinho. Quando te chamar de Turquinho finge que não é com você”. Eu falei: “Tá bom”. Aí ficou o apelido Turquinho, a vida inteira Turquinho. Na GM continuou sendo Turquinho também, entendeu? Então esse irmão da Vera falou: “Vem lá no Ipiranga, que a gente tem amigos e tal” e comecei a frequentar e acabamos acontecendo, com 14 anos foi que eu te falei, né, vindo do Egito até o Brasil pra desencalhar ela, 14 anos, que eu nunca tinha namorado. E acabou dando certo. Minha sogra era muito brava, que não deixava namorar, não deixava sair, etc, e a gente saía, eu com o irmão dela pra farra, pros bailinhos, tal, onde a minha sogra não deixava, a gente saía do mesmo jeito. E ela ficava muito brava, né, largava ela em casa pra ir fazer farra com o irmão.
P/1 – E onde vocês saíam, o que vocês iam fazer pra namorar?
R – Ah, em casa, só em casa. Quando ia no cinema tinha que ir, vamos dizer, na sessão das seis, até sete e meia, oito horas porque até oito e pouco tinha que estar em casa. Aí o meu
sogro que me ajudava muito: “Eu vou com vocês”. Ele morava no Ipiranga, a gente ia até a esquina, ele ia no salão de bilhar e eu ia no cinema. A gente às nove, nove e pouco, voltava e se encontrava na esquina e voltava e a minha sogra ficava feliz porque o sogro foi junto, entendeu? Só que ele adorava jogar bilhar e minha sogra achava ruim, então ele jogava bilhar e eu ia namorar no cinema. A gente ia no cinema, tal, no horário: “Cumpre o horário, isso é uma coisa que eu exijo”, porque ele vai sair do jogo, do bilhar, pra ficar na esquina esperando a gente chegar, né? Mas depois a minha sogra foi maravilhosa, tomou muito conta dos meus filhos, etc. E aí eu também ajudei muito ela porque ela aposentada, meu sogro faleceu não tinha quase dinheiro. Morou sempre na casa que eu tenho em São Bernardo onde eu morava e ela morava na casa do lado. Foi uma mãe pra mim, minha sogra. Por isso que a turma fala de sogra, eu falei: “Eu não posso falar porque ela foi maravilhosa”.
P/1 – E esses bailinhos que vocês iam, como que era?
R – Era muito em casa de família. Um conhecia o outro: “O baile vai ser na casa do Fulano. O Felipe está fazendo baile na semana que vem”. Mas era assim, levava comida e bebida. Nunca a gente gastava sozinho, entendeu? E eu levava disco porque eu tinha muitos discos italianos porque na época era música romântica, Pepino de Capri, tinha Elvis Presley, toda essa turma da época, eu gastava com disco. Então lá ia eu com meus discos, chegava lá e a gente fazia os bailinhos. Fazia de vez em quando na minha casa, o outro fazia na casa do meu cunhado, fazia na casa de amigos. Ou então bailes de formatura, que aí era Clube Pinheiros, era no clube, em cima do aeroporto de Congonhas tem um salão enorme que era salão do aeroporto, a gente falava, que tinha formatura lá em cima. Nossa, aqueles lá eram sofisticadíssimos, pra você conseguir um convite lá era, ó! Nós éramos seis amigos, eu, esse meu cunhado, um amigo vizinho dele, um japonês, um cara também do Ipiranga e o primo dele que morava no Tucuruvi. Nós éramos em seis, grupo de seis, onde ia um iam os outros cinco atrás, a gente era bem animado assim. Só que namoro é até às dez, saía do namoro a gente se encontrava no Paissandu, no centro de São Paulo, e ia pra gandaia, todo mundo ia junto. E a minha esposa sabia porque ela chegava pro irmão dela e falou: “Nossa, Remy me falou que ontem vocês foram no baile tal” “Remy te contou?” “Sim, você saiu, né?” “É, nós fomos no baile tal”. Aí chegava de noite e ela falava: “Tá vendo, você saiu!” “Como você está sabendo? Orra, teu irmão é cagueta?” “Não, ela chega pra mim e fala que você contou, eu falava, ‘sim, fomos’, vou mentir por quê?” e caía nessa. Mas foi uma época muito, muito boa pra mim, que minha mãe começou a me deixar sair porque eles tinham medo, essas coisas, tudo, não conhece, etc, então tive que apresentar os amigos quem era, fazia bailes em casa pra ela se acostumar. Uma vez só que não cheguei em casa, nossa, virou uma revolução, avisaram a polícia, meu irmão de moto a procurar, meu pai de carro, todo mundo. Porque eu trabalhava, aí a Philips mudou pra Santo Amaro, eu morava no Ipiranga, no Cambuci. E um amigo da turma, que trabalhava comigo, gostava de uma menina na Philips e essa menina gostava de mim. E eu já namorava com a Vera. Então nós saímos de lá juntos e descemos no Paissandu, eu no ônibus pra Ipiranga, Cambuci, e ele no ônibus pra Silvio Romero: “Ah, vamos tomar um drinque, conversar sobre a menina”. Ele começou a chorar e eu: “Não, tenha paciência, eu vou falar com ela”, aquela conversa toda. Sei que tomamos conhaque. Acabou com a garrafa de conhaque (risos), aí queríamos vomitar, pra não vomitar a rua entramos no cine Paissandu pra usar o banheiro do cinema. Chegamos lá e o fiscal viu os dois homens no banheiro, não saía mais, foi lá atrás da gente: “O quê, vocês estão bêbados?” “Não, não, não, é que comemos um ovo cozido lá fora e fez mal o ovo pra ele”. Então saíam, saíam daqui porque aqui não é lugar pra vomitar. Vomitamos pra caramba. Aí pegamos o táxi e ele falou: “Remy, vamos pra minha casa que minha mãe é mais legal porque se sua mãe ver você desse jeito vai dar bronca”. Pegamos um táxi, eu numa janela vomitando, ele na janela do outro. Chegamos na Silvio Romero na mãe dele. E a mãe dele que pagou o táxi. De manhã acorda o meu irmão: “Levanta que a mãe vai te matar!” “O que foi, o que foi?”. Eu tinha dormido no sofá lá, não estava nem aí. Minha mãe falou: “É a última vez que você sai e não volta pra casa sem avisar. Tem telefone, você liga e fala onde você está, onde você vai, por que você está indo e não está voltando pra casa. E nunca mais me faça isso”. E nunca mais fiz. Mas foi histórias que a gente conta de jovem. Mas foi muito legal. Essa passagem de estrangeiro muito serinho, que minha família sempre foi muito séria, para farrista, brasileiro em turma, a turma de seis caras era uma turma muito unida, sabe? A gente tinha até um nome, pra você ter ideia, um nome esquisito, por que também não me pergunta, catchup. A Turma do Catchup. Até agora o amigo escreveu: “Remy, lembra da Turma do Catchup?” “Pô, você está desenterrando defunto? Esquece, cara!”, mas é uma época da vida da gente muito legal. E a minha esposa ficava muito louca porque a mãe não deixava, ela ficava em casa e a gente saía pra gandaía, não tinha culpa, todo mundo saía. E a minha sogra não deixava, tanto que o irmão dela estava junto. Mas ele: “Eu não quero me meter, problema do namoro com a minha irmã é você e minha mãe. Não me mete nessa que eu não vou proteger, não vou fazer nada” “Pô, mas que amigo é você, hein? Estou querendo namorar sua irmã” “Minha irmã não, você quer fala com minha mãe, fala com ela, eu não quero me meter nisso, nem quero ter responsabilidade”. Porque a gente era farrista, fazia de tudo, entendeu? Mas foi época boa, viu? E até hoje, eu vou fazer 47 anos de casado, quase cinquentinha já. Se eu falo muito me breca, viu? Porque senão eu vou embora, como eu te falei, uma semana não vai dar tempo.
P/1 – E aí você mudou de trabalho, né?
R – Depois eu fui pra Philips em Santo Amaro, é muito longe porque tinha que ir de ônibus, de metrô, tal, e mais a distância muito grande do centro de Santo Amaro até lá onde tinha a fábrica. Então a minha irmã arrumou pra mim na GM, que é em São Caetano. A gente morava no Cambuci, tinha ônibus da GM que passava bem quase em frente à avenida, entendeu? Aí pedi demissão, o cara me arrumou dinheiro e eu entrei na GM. Na GM fiquei sete anos.
P/1 – Entrou como?
R – Como ajudante de escritório. Eu tinha 20 e poucos anos, 22, 23 anos, por aí. E lógico, você vai entrando e vai melhorando, etc. Aí em... eu tinha oito anos de GM. Que ano? 78 menos oito... É, eu ia casar. Não, já tinha casado. Dani nasceu eu estava lá, 84, que eu saí, fui trabalhar primeiro na Johnson, que uma amiga minha era secretária de um diretor na Johnson e falou: “Remy, estamos precisando de uma vaga pra ser supervisor de compras. Eu falei de você e o diretor quer te entrevistar” “Eu não entendo de compras, não tenho nada a ver com compras, estou trabalhando com importação de peças da GM” “Não, mas vai lá, ele quer falar contigo, tal, vai na hora do almoço” “Mas eu vou fazer o quê lá? Não entendo de compras” “Não, vai lá”. Bom, eu fui, o cara falou: “Você está admitido” “Não, pera aí, eu quero saber, não entendo de compras” “Mas é isso que a gente quer, uma pessoa que não entende porque você não tem vício de compras, de recebar bola e tal tal tal”. Eu falei: “Tá bom, mas eu não me sinto seguro” “Mas não se preocupa porque vamos te treinar pra ser um bom supervisor de compras, tá?”. Eu falei: “Mas estou contente na GM, não tenho queixa nenhuma, estou ganhando bem”. Ele falou: “Eu já sei quanto você está ganhando, sua amiga já me falou, eu estou pagando três vezes o seu salário”. Eu falei: “O quê?” “É, três vezes o que você ganha na GM”. Eu falei: “Caramba, agora não tem como falar não”, justo a Vera estava grávida da Daniele, dessa menina que está aqui. Já tinha a Andreia, tinha dois anos, e estava grávida dela. Eu falei: “Posso pensar até amanhã?” “Pode”. Cheguei em casa, contei pra Vera e ela falou: “E o que você está esperando?”. Eu falei: “Pera aí, vou sair da GM” “E daí que você vai sair da GM?” “Mas eu gosto da GM” “E dai que você gosta? O cara está te pagando três vezes, tá pra chegar mais uma menina aí”. Eu falei:
“Tá bom”. Aí fui na GM, pedi demissão e fui trabalhar lá. Só que a Engesa, eu já tinha contato com o pessoal da Engesa, que eu fazia exportação de caminhão GM, fui trabalhar em exportação, caminhão GM pra América Latina com tração 4 por 4 e quem fazia a tração era a Engesa, então tinha contato. E eles me convidaram pra trabalhar e eu não queria porque eles fecharam o primeiro contato de tanque para exportação que era pra Líbia, então eles queriam alguém que entendesse de exportação. Eu falava: “Não, não vou trabalhar na Engesa”, peguei e fui pra Johnson. Quando descobriram que eu estava na Johnson, mas o diretor da Engesa me ligou, mas me esculhambou, mas pela amizade: “Mas você não presta, quantas vezes te falei, vem trabalhar conosco. Agora você vai na Johnson pra ser supervisor de compras? O quê que é isso, Remy?! Vem pra cá, vem trabalhar com a gente, eu estou precisando de você”. Eu falei: “Não, aqui estão me oferecendo três vezes mais o que eu ganhava na GM, por isso que eu aceitei” “E se eu te dou três vezes o que você está ganhando na Johnson, você vem?”. Eu falei: “Bom, daí gozação tem hora, meu amigo. Pô, faz nove meses que eu estou aqui” “Três vezes, vem ou não vem?”. Eu falei: “Puta merda, será que está tão difícil?”, porque eles precisavam de alguém que falasse inglês e árabe e eu justo falava as duas coisas porque ou achava alguém árabe ou achava alguém falando em inglês. Voltei pra casa e falei: “Estou pedindo demissão na Johnson” “Por que, o que você vai fazer? Você vai voltar na GM?” “Não, isso, isso e isso” “Pô, mas Engessa, o que ela faz?”. Contei, aí pedi demissão na Johnson e o cara ficou louco. Ele falou: “Remy, fica, você está acertando o departamento”. Porque o que eu fazia? O cara chegava pra mim e falava: “Você tem 10% da nota”, eu falava: “Não, na nota você vai dar 10% de desconto” “Não, não posso porque o preço fixo é esse, essa bola é por fora”. Eu falava: “Não, ou você dá na nota esses 10% de desconto, porque se você vai dar pra mim é porque você tem, então você vai dar desconto na nota. Senão, eu vou cancelar você como fornecedor da Johnson”. Ele: “Não, pega aí, não faz isso”, aí acabava pondo. E o diretor gostou da redução do custo dos produtos e tal e eu contei: “Não, estou fazendo isso, isso e isso. O cara me oferece bola, então, pra atiçar o cara eu pedia bola”. Ele falou: “Não, o outro ganhava, quanto você quer? Nosso praxe é 10%” “Ah, então tá bom, 10% você vai me dar de desconto” “Não, não posso” “Vai dar sim”. Por isso que ele queria: “Te promovo gerente agora, em lugar de supervisor eu passo você pra gerente, mas não vai embora”. Eu falei: “Não, infelizmente, compras não é comigo”. Quando eu saí da GM tinha acabado de lançar o Chevette, comprei um vermelho. A turma falava: “Hum, supervisor de compras, já está com carro novo, carro zero”. Eu falei: “Gente, eu comprei esse carro na GM quando pedi demissão tinha direito a comprar carro, porque você sempre tem direito. Mas eu comprei o carro lá na GM, não tem nada a ver com Johnson” “Já está supervisor de compras”. Eu falei: “Ah, não aguento”. Um amigo, porque fiz amizade lá: “Remy, não liga pra isso aqui, eu também sou Compras de uma outra divisão e eu aguentei isso aqui muito tempo, agora eles acharam você novo e estão pegando no seu pé, mas não leva a sério”. Eu falei: “Não, eu levo, fica espalhando que eu estou recebendo bola, que é isso? Não admito essas coisas”. Pra mim foi a oportunidade de sair e voltar pra Exportação, que era a Engesa. Aí fiquei, fui morar na Líbia, morar um ano, aí a Vera não quis mais voltar, tive que morar mais seis meses. Volto. E a secretária lá fala: “Remy, tem um cara da GM que está ligando toda hora perguntando de você”, eu falei. ‘Pô, ele está na Líbia, não está voltando’, ele quer saber quando você está voltando, tal, liga pra ele”. Eu falei: “Quem é, a pessoa de Exportação?” “É, o Danton”, que era meu colega de trabalho. Eu liguei e ele falou: “Pô, Danton, o quê que foi?” “Orra, até que enfim você ligou. Vem pra cá, entrevista, que nós temos um diretor americano que soube de você e quer que você venha trabalhar de volta pra cá, na exportação que nós estamos ampliando para os países árabes”. Eu falei: “Voltar?” “É, vem pra cá”. Eu falei: “É pra já”. Na hora do almoço eu peguei o meu carro e jupt, pra São Caetano. Porque na Engesa eu não estava aguentando porque era uma firma de família, era filho pra pai, pra filho, irmão, tal, mandava em tudo aquele problema todo lá e eu não fico em família assim não. Eles queriam que eu voltasse pra lá, já que tinha me comprometido ficar lá, minha mulher não queria mas eu tinha obrigação de voltar. Fiquei três meses sozinho, quando falou mais três meses sozinho, eu
falei: “Pô, seis meses sozinho aqui não dá, pô” “Não, você vai ter que ficar” porque o governo ficava com o passaporte da gente, entendeu, não deixava passaporte no nosso bolso, então eles tinham que autorizar o exército a me devolver o passaporte pra poder viajar. Ai eu falei: “Chega, não quero mais saber” “Não, você vai ter que voltar”. Aí fiquei mais três meses. E quando liguei pra Vera pra falar pra ela que eles estão me pedindo pra ficar mais três meses e eu ia ficar, ela falou: “Remy, volta já porque estou precisando de você”. Eu falei: “O quê que foi?” “Meu irmão faleceu a semana passada”, que era o meu primeiro amigo ali. Eu falei: “Ah, agora eu não fico mais”. Dei essa desculpa, falei: “Meu primeiro amigo, minha esposa está muito” tinha 33 anos, eles falaram: “Venha, mas você vai voltar” “Tá bom”. Eu vim e depois não voltei mais, voltei pra GM. Aí fiquei até completar os meus 60 anos, fiz 35 de GM.
P/1 – Esse período na Líbia foi a primeira vez que você voltou pra região depois que veio pro Brasil, né?
R – Isso. Primeira vez.
P/1 – Como foi voltar e voltar para um outro lugar?
R – Olha, pela Líbia foi traumatizante. Porque o seguinte, a gente trabalhava com o Exército. O Exército era muito perigoso no sentido de você estava trabalhando lá dentro, mas você não podia falar uma coisa do Kadafi, não podia nada. O Kadafi, ele morava em todos os quartéis, todo quartel tinha uma suíte pra ele. E ele dirigia seu próprio carro, que era um Peugeot velho pra caramba. Ele saía do palácio, a comitiva saía com moto, etc, etc, ele depois saía pelos fundos, então ninguém sabia onde ele estava. De repente ele aparecia naquele quartel pra dormir, o apartamento dele tinha que estar em ordem sempre. Acordava manhã, pegava o carro, voltava pra trabalhar. Naquela outra noite, você não sabia se ele ia voltar lá, se ia em outro quartel, etc. Já várias vezes ele estava no quartel onde eu trabalhava. Que no contrato de venda de 200 tanques eles exigiam que tinha 20 mecânicos morando lá pra ajudar na assistência técnica, no conserto ou garantia dos tanques. Então esses caras eram brasileiros que não falavam nem inglês, nem nada, tudo mecânico. Como o diretor, a Engesa arrumou um diretor morando lá, inglês, o cara não falava português pra se virar com os mecânicos. Aí eu fui pra lá numa feira, que eles fizeram uma feira de material bélico e a Engesa fez um novo tanque que pegava na água, então, levou pra lá e falou:
“Remy, você não quer representar nós, ficar lá no stand, já que você fala o árabe, tal? Pra explicar pro pessoal como funciona”. Eu falei: “Vamos lá”. E o diretor: “Pô, Remy, você fala inglês, você fala o árabe e eu peço alguém pra tomar conta desses brasileiros que estão aqui e falam que não tem ninguém” “Não, mas eu não tenho nada a ver com isso, eu trabalho na exportação, na papelada” “Ah não, vou falar com o dono da Engesa pra te mandar pra cá”. Chego no Brasil e o cara falou: “Prepara as malas que você está indo pra lá, vai morar lá”. Então eu fui morar lá pra tomar conta desses caras. Então enquanto eu estava lá organizei o estoque de peças deles, peças brasileiras.
P/1 – Era o Urutu que vocês estavam negociando?
R – Não, era Cascável, os primeiros 200 foi Cascável. Depois esse marítimo era o Urutu, que fizeram ir lá na feira pra mostrar, etc, entendeu? Então eu fiquei lá para ajudar os mecânicos e ao mesmo tempo para organizar o estoque deles de peças, chegava peças de reposição e pra prateleira, tinha uma armazém enorme só com prateleiras vazias, falou: “Esse vai ser peças brasileiras, se vira”. Então eu organizava, mais dois ajudantes e fazia isso. E de noite os mecânicos vinham na minha casa, muitas vezes vinham almoçar, jantar em casa, fim de semana a gente estava junto, ia pra praia junto. Porque eles não sabiam fazer nada. Agora, o problema da Líbia era que o Kadafi falava na televisão e no rádio que o povo líbio é muito, não importante, muito rico, e quando ele precisa mão de obra ele contrata de fora. Então estrangeiro lá era que nem... “Ah, eu estou te pagando”. Agora, eu tinha uma carteirinha que trabalhava pro exército. E o pessoal falava: “Não usa muito essa carteirinha porque pega mal estrangeiro trabalhando pro exército” “Tá bom” “Mas como você fala o árabe, Remy, então ninguém vai duvidar”, porque tinha muitos egípcios trabalhando lá. Então, o que acontece? A minha esposa usava roupa normal, lógico, não decote, nem nada, mas respeitando as leis árabes. Mesmo assim a turma sabia que ela era estrangeira, que ela não falava o árabe. Supermercado, desculpe falar, mas a gente andava pra fazer compra no supermercado, os árabes passando lá faziam assim, passavam a mão na bunda dela assim. Ela: “Pô, Remy, o cara está passando a mão”. Eu falei: “Fica quieta, finge que não é nada porque se eu brigar eu vou preso porque sou estrangeiro e ele não porque ele é líbio. E por isso que ele é superior”, isso que o Kadafi falava. Então ela ficava louca, não queria ir mais no supermercado, etc, todos esses problemas. E qualquer problema que eu tivesse, tinha que o coronel me garantir porque senão ia preso, entendeu? Uma vez a Engesa levou um Sp2, não sei se você conheceu o que é SP2? Não? É o carro Volkswagen esporte, dois lugares, era bem baixinho assim, tipo Pullman, tá? Pra dar de presente para um cara lá e o cara não queria porque amarelo, onde ele ia com esse carro todo mundo sabia que era ele, entendeu? Então ele devolveu e falou: “Remy, já que você precisa de um carro aí usa esse aí”. Então todo mundo sabia onde eu estava (risos). Mas tudo bem, eu ia trabalhar. Na estrada eu pedi passagem para um cara, ele não me deu. O que eu fiz? Fiz assim, emparelhei e fiz só assim, entendeu? Aí eu peguei assim e fui embora. Ele veio atrás de mim e me pediu passagem, eu falei: “Ah, agora eu vou te ensinar como dirige”, peguei, encostei e dei passagem. E no posto de polícia mais adiante me pararam, falaram: “Você cuspiu em cima do líbio?”. Falei: “Eu, cuspi?”. Ele falou: “É, ele disse que você cuspiu nele” “Meu amigo, eu não cuspi nada, eu pedi passagem, ele não me deu, passei assim e só fiz assim com a mão”. Ele falou: “Não, ele disse que você cuspiu, você vai preso” “Eu estou te falando que eu não cuspi” “Não, mas ele é líbio, a gente acredita na palavra dele e não na sua. Ainda mais egípcio?”. Eu falei: “Não, eu sou brasileiro, passaporte brasileiro” “É, mas você fala o árabe, você é egípcio”, porque o sotaque é egípcio. Eu falava: “Não, não, não”. Eu falei: “Bom, já que eu vou preso mesmo”, eu tirei a carteirinha: “Está aqui, eu trabalho pro Exército” “Ah bom, já que você trabalha pro exército passa. Mas olha, a próxima vez que você cuspir no líbio você vai preso, hein?”. Quer dizer, até o fim acreditaram no cara e eu não. Eu usava essa carteirinha só em último caso, entendeu? Pra não dar esse tipo de problema. Mas ali era um ano que nós ficamos lá era tudo nessa base de medo, de você não saber se podia falar, se não podia falar, se o cara escutava você falar alguma coisa, entendeu? Era difícil. Por isso que minha esposa não quis mais morar: “Ah não, Remy, tchau”.
P/1 – Mesmo pra passear, assim, nunca era uma coisa tranquila.
R – Não, não. Ali aquelas fotos de Bengasi é porque ficava lá o fim de semana, era feriado, feriado deles é a semana inteira, o jejum, Ramadã, aquelas coisas, ia ficar fazendo o quê? Ia pra praia, às vezes não dava, tal, eu falei: “Vamos conhecer o país”. Então conhecia a cidade e fomos até Bengasi, que Bengasi pela história, inclusive os alemães ficaram lá, entendeu? Então eu queria conhecer. Aí ficamos lá uns dois, três dias conhecendo, tal. E no caminho parei nas cidadezinhas, etc, até voltar. Duzentos e poucos quilômetros ficava de Trípoli, mas não tinha muito o que fazer, não podia sair do país porque o passaporte ficava preso. Eu queria ir pro Egito, não podia. Então tinha que ficar lá mesmo e passeava por lá dentro mesmo. Agora, uma vez por ano, no Natal, sim, aí pedia oficialmente, me devolveram o passaporte, aí fui pra Itália, passei o Natal, fui pra Itália, França, Inglaterra e voltamos pra Líbia. Aí fomos passaro Natal e Ano-Novo e voltamos, oficialmente, tudo oficial. Mas aí: “Ah, até que enfim estamos num país decente”. Foi legal, mesmo assim foi legal, foi uma experiência boa, pras duas meninas, que a terceira não estava. Depois voltei, mudei pra GM de volta. Aí comecei a eu viajar sozinho pra exportação, eu voltei pra exportação da GM e comecei a viajar principalmente pra países árabes.
P/1 – Ficou praticamente cuidando desse setor global, por assim dizer.
R – Isso, eu fazia países árabes e fazia Caribe, algumas ilhas que falam francês, porque como eu falo francês a GM me deu esses países. Mas era mais pra países árabes que estavam comprando carro do Brasil, então, desenvolvia isso. Depois me convidaram pra ir morar em Dubai. Falou: “Já que você tem toda essa experiência vem morar aqui com a gente”, aí me transferiram pra GM americana, mas isso já no fim da história. Vai perguntar mais alguma coisa?
P/1 – Pode contar, depois a gente volta qualquer coisa, não tem problema nenhum.
R – Como eu viajava muito pra esses países, África que fala francês e países árabes encontrava sempre um funcionário da GM americana, que morava na região pra me ajudar, etc e tal. E aí os Estados Unidos soube, lógico: “Encontramos com
Remy, etc”, então ela falou: “Olha, Remy, estamos montando um escritório na Árabia Saudita, você não quer morar lá?”. Eu falei: “Olha, posso pensar no caso, como que é?” “Tem as mesmas condições que os colegas, tal”. Eu falei: “Eu quero saber salário, porque salário do Brasil é completamente diferente do salário de vocês aí. Então se eu vou continuar com o meu salário transferido em dólar, ainda mais que o dólar no câmbio negro é uma fortuna, eu vou estar mendigando em Dubai e não quero isso” “Não, não, você vai ganhar igual os americanos, o que os seus colegas vão ganhar você vai ganhar igual porque você está fazendo o mesmo trabalho deles. E além do mais, como a gente começou a exportar picape para esses países, Arábia Saudita e tal, você vai ficar responsável pela área brasileira e mais produto americano”. Eu falei: “Tá bom, vou falar com a minha esposa”. Só que você tem que me dar uma resposta amanhã porque a minha escolha é entre você e um outro cara. Se você não aceitar eu tenho ainda outro cara que vai aceitar, que é de uma outra GM, não sei de onde” “Tá bom”. Voltei pra cá,
meu diretor falou: “Remy, não vai me dizer que você não vai aceitar, né?” “Não sei, deixa eu falar com a minha esposa porque ela tem a experiência de Líbia, que é horrível país árabe e tal, agora Árabia Saudita é pior ainda, porque Arábia Saudita a mulher tem que andar coberta, na Líbia não precisava, pelo menos a cabeça pra estrangeiro, não pode mostrar cabelo, não pode dirigir carro, não pode andar sozinha na rua, tem toda essa limitação”. Ele falou: “Não, os nossos funcionários vão morar num condomínio fechado, que ali tem tudo, tem piscina, tem tudo, tem um carro da GM que duas vezes por dia vai levar vocês para o supermercado, as esposas que precisarem comprar alguma coisa é o motorista da GM que vai levar, pras crianças irem na escola vai ter o ônibus da GM que leva, não se preocupa, vocês vão estar bem assessorados”. Bom, aí fui pra casa: “O que aconteceu, você está cedo em casa” “Vamos sentar aí, chamar as meninas aí” “O quê que foi?” “Chama as meninas, tal”. Aí eu falei: “Fui convidado a morar fora” “Não é país árabe, né?” “É” (risos). Ela falou: “Puta, onde que é?” “Arábia Saudita” “Nossa! Você fala tão mal da Arábia Saudita, agora você vai aceitar?”. Eu falei: “Mas o dinheiro é isso, isso e isso” “Ah bom, agora a conversa é outra”. Realmente era muito dinheiro.
P/1 – Nessa época já tinha a caçula, a terceira, ou não?
R – Já. A Gabi tinha 12 anos já. Era 12, a Dani 16. Dezesseis não. A Gabi tinha dez, a Andréia 16, 14 e dez. Eu falei: “Vera nós vamos morar num condomínio, vai ter tudo isso, vai ter as esposas americanas dos outros caras”. Nós éramos em 12 americanos e eu o único brasileiro, entendeu? Ela falou: “Bom, é bom pra teu emprego, pela GM?” “É lógico! Eu sendo convidado pela GM mãe, americana, lógico que pra mim é um prestígio” “Então vamos embora, já que é isso, vamos embora, seja o que Deus quiser”. Aí voltei, falei que eu aceito, tal. Aí me deram a baixa aqui e fiquei esperando o visto pra morar na Arábia Saudita. Aí me desliguei da GM do Brasil, só que meu salário continuava. Fiquei seis meses esperando e o visto não vinha. Porque na Arábia Saudita, pra você ir morar lá com família é muito difícil, tem que mostrar pra que você precisa desse cara, o que ele é formado, um cara da Arábia Saudita não pode fazer esse trabalho no lugar desse estrangeiro? Um rolo. E a GM mandando papelada, mandando papelada. Isso foi em fevereiro. Em junho, a GM fala: “Me vem pra cá que nós estamos fazendo a convenção de lançamento dos novos carros, modelo 88”, isso foi em junho de 87, “então todos os concessionários do países árabes vão estar aqui. Como você vai trabalhar com eles já vem pra cá e participa da convenção do lançamento do novo carro”. Eu falei: “Tá bom”. Peguei, fui pra lá, conheci os carros: “Remy, pô, legal que você vai trabalhar com a gente, que legal, tal”. Tudo bem. Aí o presidente mundial anuncia que a partir do mês de julho a GM não vai mais pra Arábia Saudita e vai abrir o escritório em Dubai, porque Dubai é muito mais fácil, muito mais rápido arrumar visto para moradia. “E o primeiro a ir pra lá vai ser o Remy que ele já muda pra lá logo que conseguimos o visto de moradia”. Todo mundo: “Legal!”, porque em uma hora você está na Arábia Saudita, uma hora e pouco você está no Kuwait, então é mais fácil ir pra lá. Aí o diretor, que era da Inglaterra, falou: “Remy, eu já estou indo e vou tratar do seu visto de moradia e logo que eu tiver eu te chamo”. Ele fez pra mim e pra família. Aí em setembro foi que saiu o visto, de junho pra setembro. Setembro larguei tudo, esvaziei a minha casa, fiquei morando 20 dias em hotel, porque a GM é que toma conta de toda essa parte aqui, aí nós fomos morar em Dubai. Dubai é bem melhor, a Vera podia dirigir, não precisava se cobrir, desde que não seja um decote, uma minissaia. Tem que respeitar a religião, entendeu? Mas o resto tinha muita liberdade. A gente ia na praia, ela de maiô podia, não podia de biquini, então essas coisinhas que são restritas lá, né?
P/1 – Como era a cidade na época? Porque hoje é aquele monte de arranha-céu, super tecnológico.
R – Maravilhoso. Hoje é super maravilhoso, naquela época era maravilhoso. Porque não tinha trânsito, não tinha nada, não tinha construção, não tinha nada, entendeu? Mas você dirigia, você parava porque tinha um carro na minha frente, o farol fechou, entendeu como era? Maravilhoso. Agora, Dubai é uma coisa espetacular. Eu adoro. Minha filha caçula foi chamada pra voltar lá, ficou dois anos, veio pra cá pra casar, aí falaram pra ela: “Fica então no Brasil”, mas dois anos depois voltou pra lá, entendeu? Depois que deu a luz ao menino ela voltou pra ficar no Brasil porque faleceu a sogra dela, então o filho falou: “Não, quero ajudar o meu pai, que foi muito de repente também”. Então, pra mim Dubai é maravilhoso, maravilhoso. É um país, olha, minha filha morava 20 quilômetros do centro de Dubai. É um condomínio novo, prédios e casas, prédios e casas, tudo pra alugar. Você acredita que quando foi aprovado, que naquele no meio do deserto ia construir esse condomínio de 20 prédios e 200 casas, etc, já mandaram fazer a estrada pra ir até lá. Seis pistas pra ir e seis pistas pra voltar. De um asfalto, meu amigo, que se você jogar uma bolinha de gude assim ela ia embora direitinho porque não tinha caída pra lugar nenhum, maravilhoso. Quando começaram a fazer o condomínio, a estrada já estava prontinha. Então é maravilhoso, é tudo legal. Você deixa todos, na minha época já, que era época antiga, que não tinha todos esses prédios, não tinha toda essa maravilha, você deixava o carro aberto. Logo no começo nós fomos no supermercado fazer compra do mês, entendeu, em julho, né, porque em julho ninguém fica lá mais, mas como eu tinha acabado de chegar eu não podia tirar férias. Mas aí, eu desligava o carro e ia no supermercado fazer compras, demorava uma hora, uma hora e pouco. Quando voltava não dava pra você pegar o volante, que fervia o volante, queimava a mão. Então tinha que abrir as portas, deixar ventilar, ligar o ar condicionado pra esfriar um pouco pra poder entrar. Meus colegas falaram: “Remy, você nem parece árabe. Deixa o carro ligado, com ar condicionado ligado”. Eu falei: “Gente, mas estou dentro do supermercado uma hora e pouco” “E daí, Remy, aqui não tem ladrão, pode deixar à vontade”. O pessoal que conhecia lá. “Pô, é mesmo, que burro, pensando no Brasil”. Então ia no supermercado e deixava o carro ligado com o ar condicionado pra poder depois que fazer compra você poder voltar pra poder entrar no carro de tão quente que estava, entendeu? Então pacote, deixa o vidro aberto com pacote dentro e ninguém rouba. Porque a lei de cortar a mão, esse negócio todo. Quando voltava pro Brasil uma vez por ano, que voltava de férias no Brasil, era o inferno, porque deixava tudo aberto. Então: “Porra, fecha isso aqui que você não está em Dubai, fecha o carro. Olha o vidro! O vidro traseiro está aberto, fecha”. Era todo aquele desespero, entendeu? Mas era pra ficar três anos, não me deixaram vir embora, fiquei quatro, depois fiquei cinco e aí foi que vim. Porque a Andreia, a mais velha, com 18 anos terminou a faculdade e precisava voltar pro Brasil porque ou ela fazia faculdade fora, mas era muito caro. Eu falei: “Pra ela dá pra pagar, mas daqui a pouco a Dani vai fazer a mesma idade e vai querer estudar fora”, aí não dava porque é moradia. A faculdade a GM pagava, mas a moradia, essas coisas, entende? Então ela quis voltar pro Brasil e estudar aqui, então morou com a minha sogra. Foi exatamente na guerra do Kuwait, que eu te falei que a gente foi morar nos Estados Unidos, tal, ela já estava no Brasil. E ela tinha vindo pra passar o Natal com a gente, em Dubai, que a GM paga. Quando ela chegou em Dubai, dois dias depois falaram: “Remy, a sua filha está aí, mas ela tem que voltar imediatamente para o Brasil porque vocês estão vindo todo mundo pros Estados Unidos porque presidente não aprovou vocês ficarem aí em Dubai devido a essa guerra que vai estourar agora em janeiro. Manda ela de volta imediatamente”.
P/1 – Isso a GM?
R – A GM avisando, porque eles sabiam que a Andreia estava lá porque eles que compravam a passagem, deram a passagem pra mim. Aí eu falei: “Bom, mas e o Reveillon?” “Remy, os aviões estão todos lotados, dá um jeito dela ir embora a hora que tiver passagem”. Aí justo o dia 31 ela arrumou uma passagem que fazia Dubai-Frankfurt, Frankfurt-Brasil. Uma menina de 18 anos sozinha. Ela chegou aqui praticamente na noite do ano-novo. Aí, realmente aconteceu tudo aquilo, fomos pros Estados Unidos, aí vim pra cá, eu falei: “Eu não quero morar nos Estados Unidos”. O diretor falou: “Olha, Remy, você quer morar no Brasil?”. Eu falei: “Eu quero, pelo menos aqui está nevando, 15 graus abaixo de zero”.
P/1 – Você contou lá fora, vocês também tiveram que ir embora no fim das contas, sua filha veio antes.
R – Minha filha estudava já no Brasil, ela foi pra passar o Natal com a gente e o Ano-Novo porque a GM paga passagem. Como tinha esse problema falou: “Não, ela não vai ficar até o Ano-Novo, manda ela voltar pro Brasil agora porque senão, o presidente está pedindo pra vocês virem para os Estados Unidos”, ela não podia ir para os Estados Unidos porque ela já não era mais moradora de Dubai, entendeu? Foi quando nós fomos para os Estados Unidos. Eu falei: “Mas aqui tem 15 graus abaixo de zero, está todo mundo tremendo de frio”. E aí tem uma passagem gozada, que um dia, eu colocava pijama, calça, terno, tal, de tanto frio que estava. Duas meias, duas camisas, uma camiseta e mais uma camisa.
P/1 – Isso em Detroit.
R – Detroit. Porque fomos todo mundo pra Detroit porque eu te falei da passagem, que parava no Haiti e tal. Haiti não, Havaí. Aí o pessoal: “Ô Remy, você está usando...” “Lógico, eu não tenho roupa de frio, você acha que eu vou comprar? Dubai é quente, o Brasil é quente, eu vou comprar roupa de frio aqui pra quê, pra gastar dinheiro?”. Não, a gente se vira, tal. E moramos num hotel que era flat, era dois andares, em cima os quartos e embaixo sala, tal, etc. Era hotel, mas era nessa base. Aí chega um diretor pra mim e falou: “Remy, posso falar com você?” “Pois não”. Ele falou: “Estou sabendo, minha secretária comentou comigo, que você está vindo trabalhar com pijama embaixo do terno, é verdade isso?” “É verdade” “Por quê?” “Porque eu não tenho roupa de frio, eu não vou gastar meu dinheiro aqui pra comprar uma roupa de frio, pra quando voltar em Dubai é calor, Brasil é calor, não temos 15 graus abaixo de zero com essa neve nas ruas, tal”. Ele falou: “Tá bom, está aprovado você gastar mil dólares por pessoa pra você comprar roupa de frio. Mil pra cada um”. Estava eu, a Vera, a Dani e a Gabriela, quatro mil dólares. Liguei pra Vera e falei: “Estou indo aí, vamos gastar pra caramba, só trazer nota que a GM paga”. Mas compramos de tudo e não deu pra gastar tudo, eu falei: “Não vamos também abusar de roupa, vai fazer o quê com essa roupa depois?”. Aí nesse ínterim, a ordem era: “Nenhum funcionário da General Motors ia viajar de avião, proibido geral”. Onde você estava tinha que ficar, por isso que no Havaí falaram: “Olha, você vai querer ficar no Havaí? A partir do dia tal você não pode mais viajar, você vai ter que ficar aí e pagar despesa do seu bolso”. Aí 800 dólares a diária de hotel eu falei: “Eu não vou gastar isso”, aí viemos embora. Mas aí eu falei pro meu diretor: “Eu vou pro Brasil. Eu quero ir pro Brasil. Aqui eu não faço nada porque a gente não está conseguindo se comunicar com Dubai e nem com os concessionários. Concessionários todo mundo se mandou também e tal. Vou ficar aqui fazendo
o quê, com esse frio? Já vou matricular meus filhos, dez mil dólares de matrícula e três mil dólares por mês cada uma. A Dani e a Gabi, melhor escola de Detroit, aqueles negócios todos”. Falou: “Mas já está feita a matrícula, vão estudar”, estudaram uma semana. Aí eu falei: “Mas eu gostaria de ir pro Brasil” “Olha Remy, faça um memorando explicando por quê você quer ir pro Brasil e eu vou levar pro presidente. Se ele aprovar você vai, porque ele deu ordem que nenhum funcionário viaja”. Ele falou: “Qual é a companhia?”. Eu falei: “Escuta, a Varig, ninguém nem sabe que Varig é brasileira. Vai pôr uma bomba lá só porque eu estou no avião? Não tem cabimento” “Põe isso por escrito que a Varig é companhia brasileira, não é conhecida mundialmente, tal, que não tem perigo dos iraquianos colocarem bomba lá”. Coloquei tudo isso e mandei. Falei pra Vera: “Se der certo, deu, se não der”. Aí eles falaram: “Pra vocês saírem do hotel começa a procurar apartamento mobiliado pra vocês saírem”, porque não sabiam quanto tempo ia durar essa guerra. Começamos a olhar apartamento mobiliado aqui, ali, ali, diretor me chama e fala: “Remy, aqui. Presidente aprovou, você pode ir amanhã para o Brasil”. Eu falei: “Sério?” “Pode ir embora para o Brasil amanhã” “Ah!”. Falei pra Vera: “Fecha as malas, vamos embora”, que era fevereiro, era o carnaval, meu amigo (risos). Lá 15 graus abaixo de zero, aqui carnaval? Vamos embora.
P/1 – Vocês ficaram quanto tempo em Detroit?
R – Do dia cinco de janeiro até 20 e pouco de fevereiro. Um mês e pouco.
P/1 – Detroit era a sede da indústria automobilística.
R – Sim, da GM. Puta prédios enormes.
P/1 – Todas as outras também?
R – Todas. A Ford, a Chrysler tinha. Depois essas outras, Toyota, tal, naquela época não tinha muito, estavam pequenas fabriquetas dessas japonesas, etc. Depois virou o mundo. Só a GM tinha 16 fábricas lá.
P/1 – Em Detroit?
R – Não, Detroit, Estados Unidos 16 fábricas tinha. A Ford a mesma coisa, a Chrysler. Depois foi enxugando, enxugando, enxugando e agora está com bem menos.
P/1 – E todas as sedes eram em Detroit.
R – Eram em Detroit. Que nem São Bernardo é para a indústria brasileira, entendeu? São Bernardo, quase todas as indústrias têm fábrica lá, né? Mas Detroit é o centro de toda mão de obra automobilística, era de lá.
P/1 – E a cidade, além do frio?
R – A cidade é bonita, mas não é bonita. Agora deixa eu explicar o porquê. Quando você chega lá, que eles vão dar um carro pra mim e um carro pra Vera, tem que ir no departamento pessoal, uma reunião de accomodation, como fala. Pra se acostumar ao ambiente. Então a primeira coisa, Napa de Detroit e em vermelho: “Esse lugar vocês não pisam, mas de jeito nenhum” “Por quê?” “Esse é o bairro dos pretos. Então você procura não entrar nisso aqui, mas não é procura, é não entrar porque se você entrar não sai vivo” “Tá bom”. Então a gente ali com o mapa. “E aqui? Pode entrar aqui?” “Pode” “Pode entrar aqui?” “Pode”. Eu falei pra Vera:
“Você também, vai sair”, porque ficava no hotel o dia inteiro, né? “Toma cuidado, manda a Dani ajudar, essa rua está na lista ou não está na lista?”. Então isso era um empecilho muito grande. Depois o problema era a neve, que a neve ali era brava, então você tinha que primeiro acostumar. Os americanos o que faziam? Iam pra casa deles pegar roupa e continuaram morando no hotel, já que a GM estava pagando hotel. Eu não tinha essa chance pra ir buscar roupa, por isso que me deram aquelas roupas. Mas aí peguei, vimos embora. Então ela é uma cidade bonita porque o lado dos brancos era bonitinha, as fábricas, fábricas não, os escritórios centrais porque fábricas acho que não chega até lá. A GM não tinha nenhuma fábrica em Detroit, o escritório central, tinha uns cinco, seis prédios enormes, que era toda a administração mundial era ali. Depois no outro lado ali era a Ford, o outro lado era a Chrysler. Todos os prédios assim. Mas não era um prediozinho, eram prédios enormes, entendeu? Muita gente. E as fábricas, cada modelo tinha uma fábrica em algum lugar. Então a cidade era bonita, mas com medo de você cair sem querer naquele bairro preto, entendeu? Então tinha que estudar bem as ruas, etc. Eu entrei uma vez e a Vera falou: “Não, não, não, cuidado, isso aqui está na lista”. E juuuiii, dei rapidinho ré e fui embora antes que alguém pegasse. Se pega ou não pega também não sei porque não me pegaram, mas também não arrisquei de ir nesses lugares.
P/1 – Só voltando um pouquinho. A gente quando estava lá fora você contou que quando você estava em Dubai você voltou pro Egito, né? Você tinha comentado, pra passear.
R – Sim, pra passear.
P/1 – Você queria que a família conhecesse. Como foi? Foi a primeira vez que você voltou pro Egito, né?
R – Foi.
P/1 – Conta como foi direitinho e como foi voltar pro Egito tanto tempo depois, o quê que mudou?
R – Mudou muita coisa. O Egito, meu, era um tipo de Egito. O Egito quando eu voltei era diferente. Por quê? Na época quando a gente estava lá tinha muitos católicos, muitos estrangeiros morando, tal, então a cidade era mais bonita, mais limpa, mais organizada, entendeu? Quando o Nasser assumiu o poder mais muçulmano muita gente começou a fugir. Judeu, ele expulsou todos os judeus de lá, não ficava mais nenhum judeu. Judeu tinha joalheria, tudo na mão de judeu, então, pessoal de dinheiro, ele começou a perseguir esses caras, só fugindo, fugindo, fugindo. Então, não só judeu, mas também católico começou a sair, outras coisas começou a esvaziar, tal. Pra não deixar cair o vazio, ele liberou, falou: “Qualquer egípcio que mora nas cidadezinhas pode vir pra capital”. Quer dizer, quem mora em São José dos Campos, Santos e tal, pode vir morar na capital, entendeu? E aí começou o pessoal vir de nível mais baixo, começaram a, invadir não digo, mas chegou a morar lá. Então eles não tinham higiene, não tinham limpeza,
não tinham nada disso, então a cidade começou a ficar muito suja. E o governo não tinha condições pra ficar limpando. Então isso foi um impacto muito grande da minha época pra quando voltamos pra mostrar pra família, pras meninas. Mas meu lado foi familiar, eu quis voltar lá mais pra ver minha família, meus primos, tinha tias minhas, irmãs do meu pai ainda estavam vivas, meus primos estavam todos lá, entende? Então fizemos as duas coisas junto, visitamos os parentes, apresentei minha família pros meus parentes e aproveitamos e conhecemos o Egito. Quer dizer, o Egito assim, pirâmide, museu, essas coisas todas de antigamente. Fui até Luxor, Assuan pegando o navio que faz o Nilo, de Luxor até Assuan que é maravilhosa essa viagem, são cinco dias e quatro noites que você vai de avião até Luxor e depois de lá você pega o barco porque o Nilo não tem onde, então ele é tranquilo. O barco é achatado na frente assim, quadrado, ele vai andando, tal, você para em todas as cidadezinhas que tem túmulo de faraó. E depois você chega a Assuan, que Assuan é uma outra história que uma hora te conto, mas é onde tem a barragem pra administrar o Nilo. Porque o Egito vive de agricultura graças ao Nilo porque o Nilo na época de enchente, na África, o Nilo aumenta e transborda dos dois lados, quando acaba a época de chuva da África, o Nilo volta ao lugar, mas ele deixa o limo, um barro, tudo na beirada, e aí onde é esse barro, pra agricultura é maravilhoso. A prova disso é que o melhor algodão do mundo é o egípcio, por causa de fibra muito grande devido a esse limo aqui. Só que aí o Nasser queria... eu falei pra você que eu falo demais, hein? O Nasser falou: “Não, vamos tentar organizar esse Nilo pra não ter só na época da enchente, ter o ano inteiro”. Primeira coisa, fazer barragem. Onde? Lá em Assuan, que é baixo Egito. Depois de Assuan, limite com o Sudão, que o Nilo passa pelo Sudão pra depois entrar no Egito. Ele pega o Egito de ponta a ponta, de baixo até o mediterrâneo, que é a Europa, ele desagua no Mediterrâneo, entendeu?
P/1 – O Delta, né?
R – O Dellta, exatamente, Delta porque assim, ele chega até o Cairo, no Cairo ele se abre assim e forma o Delta. Então, eles falaram: “Olha, o único jeito é aquele lugar lá”. Mas como vão fazer essa barragem? Porque está cheio de templos faraônicos, é história. Então, convidaram engenheiros do mundo inteiro pra estudar como proteger esses túmulos faraônicos. Chegaram à conclusão que não dava pra proteger todos, alguns que são os mais importantes poderão ser protegidos desde que corta eles em fatia e constrói em outro lugar. Falaram: “Pô, rocha, como é que faz rocha, granito, essas coisas?” “É o único jeito, não tem outro”. Então qual era o templo mais importante da região?
P/1 – Karnak.
R – Karnak e Ramsés, o túmulo do Ramsés e da mulher dele. Então falaram: “Bom, Karnak deixa lá porque fica em Luxor, lá não vai ser atingido. Mas o Ramsés e o outro vai ser, e é um dos faraós mais importantes”. Então começaram a fatiar, numerar e construir a 250 quilômetros fora, onde fica Abu Simbel, que dá uns 40 minutos de avião, mais ou menos. Que é deserto, só que o Nilo passa e o deserto é mais alto, então não tem perigo do Nilo aumentar pra atingir eles outra vez. Então fizeram e puseram lá. Com toda engenharia, computadores, etc, etc, fizeram. Só que tinha um segredinho ali. Naquele templo dele, do dia 22 de fevereiro de cada ano, meio-dia solar entrava um raio de sol dentro do templo na cabeça dele pra ilumiinar ele no caminho pro céu. E o no dia 22 de outubro, foi quando ele morreu, esse raio outra vez entrava. Então eles falaram: “Temos que colocar a posição do templo exatamente pra que nessa data”. Fizeram, inauguraram, tal, tal, agora vamos ver o sol. 22 de fevereiro nada. Puta merda, não conseguiram mesmo. Não deu certo. Tá bom, paciência, não deu certo, não deu certo. No dia 23: “Corre, corre, o raio!”, veio o pessoal todo lá, entrou e depois parou. Erraram por 24 horas. Aí falou: “Então vamos pegar o túmulo, ver como fica o túmulo”. Dia 22 de outubro nada, dia 23 entrou o raio. Então com toda computação, etc, etc, erraram de 24 horas. E é uma coisa fantástica. Lindo, lindo, lindo, lindo.
P/1 – Ver essas ruínas do Egito antigo é o que você mais gostou de ter visitado?
R – Ah sim, sem dúvida. Eu conheço tudo isso porque além de ter estudado quando estava no Egito voltei lá, só a primeira viagem com a minha família e depois fui levar muitos amigos lá. “Remy, já que você não faz nada, aposentado, faz viagem pra nós”. Porque como eu conheço bastante países a turma começou a falar: “Já que você aposentou da GM e não faz nada, arruma umas viagens pra gente, você conhece todo o mundo, tal”, aí comecei a organizar e me chamaram de Remy Tour. Remy Tour organiza viagem, vamos lá. E amigos. Primeiro fui no Egito, lógico, foram 16 pessoas, tirando eu e a Vera deu 14 e eu fiz dez dias, cinco no Cairo, visitei as pirâmides, visitar os museus e tudo isso, e cinco dias pegar esse navio, pra ir de Luxor até Assuan de navio, para em todos os lugares. Em Assuan ver todo esse negócio de Abu Simbel. Então você pega o avião, vai até Abu Simbel, tem os ônibus que te pegam lá, te levam até dois templos porque do lado é a mulher dele, então eles fizeram os dois templos nessa base. Você visita tudo, depois você volta, o ônibus te leva de volta pro aeroporto e você pega o avião e volta pra Assuan. Depois, no fim da tarde você pega o avião e volta pro Cairo. Então dá certinho cinco dias.
P/1 – Quando você era criança lá em Heliópolis, nos arredores de Cairo, quando você mudou pro Cairo foi a primeira vez que você viu as pirâmides?
R – Sim, foi a primeira vez .
P/1 – Você lembra qual foi a primeira impressão que você teve?
R – Ah não, era oito anos, não lembro. Depois sim, depois a gente voltou muitas vezes. E como eu te falei, com a minha tia italiana fazia muito piquenique. A sexta-feira que ia fazer piquenique, então muitas vezes a gente fazia nas pirâmides. Era fora da cidade, completamente fora da cidade.
P/1 – Era como se fosse um parque?
R – Não, era deserto, era dentro do deserto. Só que para nós deserto era normal, entendeu? Então fazia comida, minha mãe fazia as coisas, tal, a gente levava para lá e passava o dia. Só que agora ele está no centro da cidade, que a cidade cresceu tanto, com todo esse pessoal vindo, todo esse pessoal tendo vários filhos, etc, porque muçulmano tem que ter muitos filhos para aumentar a religião, então o Cairo é praticamente, as pirâmides estão dentro do Cairo. E isso está dando problema nas pirâmides, entendeu? Por isso que em volta das pirâmides não estão deixando muito trânsito. Mas você vê, ônibus de excursão te leva até o pé da pirâmide. Então a vibração do motor está atrapalhando a pirâmide. O museu do Cairo, com todas essas coisas de pirâmide, fica na Praça da Sé deles, no centro. Tiveram que tirar muita coisa porque ali um trânsito horrível, o trânsito no Egito é absurdo. Porque como eu te falei, o cara ganha dez dólares por mês e está pouco ligando, então o cara vai, outro passa, quem buzinar primeiro passa. Não interessa se o farol é vermelho ou não, buzinou, passa primeiro. Então é um caos total. Por isso que eu, quando a GM ia pra lá, pra visitar meus primos queriam me dar um carro, eu falei: “Não, me dá carro com motorista eu vou, mas eu não vou dirigindo nesse trânsito”. Então eles me deram com motorista para me levar pra cá e pra lá. Mas é horrível o trânsito. Meus primos, lógico, estão acostumados e moram lá. Então o que acontece? Afetou tanto as múmias do museu que tiveram que fazer um outro museu perto das pirâmides, que seria mais longe, pra poder colocar todas essas múmias, que estavam começando a derreter. Não derreter porque éseco, duro, mas esfarelar, devido à vibração dos carros em volta do museu. Então deixaram os museus, as estátuas, os sarcófagos, ali onde tem o corpo do faraó, etc, e as múmias deixaram tudo mais perto das pirâmides. Porque não deixa de ser trânsito, mas não tanto quanto o centro. Porque ali logo logo também vai estragar muita coisa por causa de trânsito, cada vez mais, Egito aumentando, Cairo aumentando, não está dando mais como preservar as coisas, entendeu?
P/1 – E você volta aqui, continua na GM e você fica na GM por todos esses anos.
R – Até 2005. Aí completei 35 anos de GM e quis me aposentar, falei: “Chega”.
P/1 – E como foi o último dia?
R – Ah, teve últimos dias porque cada departamento fala: “Ah Remy, vamos tomar um negócio, vamos chops ali, chops ali, lá”. Justo ali em São Caetano, lugar pequeno. Foi gostoso porque me preparei pra minha aposentadoria. Eu já tinha pedido a aposentadoria um ano e meio mais ou menos antes, um ano e pouco. Porque a GM faz pacotes, você quer sair eu dou, pra cada ano de casa eu te dou mais um salário. Se você tem um mês de férias eu te dou três salários, sabe aquelas vantagens, que eles chamam de demissão voluntária. E eu quis numa dessas. Mas esse pacote está durando só dois dias, esse pacote de vantagens. Quando eu voltar eu quero pegar esse pacote, vocês me garantem?”. O vice-presidente falou: “Fica sossegado que os dois dias não valem pra você, já que você quer pegar o pacote, vai valer enquanto você continuar na GM”. Eu falei: “Tá bom, você me dá sua palavra”. Mas eu fiquei com o pé atrás, fui no Diretor de Pessoal e falei: “Escuta”, ele falou: “Já estou sabendo, fica sossegado. Quando você voltar e quiser sair esse pacote vai valer pra você também”. Porque variava o pacote, às vezes era um salário a mais, um e meio, às vezes era mais isso, mais aquilo. E aquele lá foi um dos melhores e eu queria. “Não vou sair com menos se posso sair com mais”, entendeu? Aí eu fui.
P/1 – O Corsa e o Astra eram os dois carros de produção...
R – Brasileiros que a gente vendia pra lá desmontado, em caixa, e eles montavam na GM Egito.
P/1 – Mas eles eram desenvolvidos também aqui?
R – Não. Desenvolvido na Alemanha pela Opel. Todo modelo carro GM aqui era baseado no desenho Opel, começou desde o Opala, né? Opala era o Record da Alemanha. Agora não porque foi vendida a Opel, né? Agora GM desenvolve, o Celta é desenho nosso, Meriva é desenho nosso. O Zafira ainda é desenho da Alemanha. Esse desenho agora, o Cruze, é desenho americano, que é o carr mundial da GM, todas as fábricas do mundo produzem o Cruze igualzinho. Que nem o Corolla da Toyota, que é carro mundial. Então como o Brasil era barato pra exportação, então eles compravam. Eu era responsável pela GM África do Sul, GM Egito e GM Índia, são os três países que compravam carro desmontado daqui e montavam lá. Então a cada três meses eu tinha que visitar cada um deles.
P/1 – Cada um desses países?
R – Cada um. Então vamos dizer, em janeiro eu ia pro Egito, fevereiro ia pra Índia, em março ia pra África do Sul. Em abril ia pro Egito outra vez, assim começava o ciclo a cada três meses. Pra mim o Egito era ótimo porque eu passei lá com meus primos e todo mundo, né, às custas da GM, era muito legal. Mas em geral, vamos dizer, era bom porque aumentava as exportações da GM, muita grana entrando.
P/1 – Qual o balanço que você faz desse tempo todo na GM? Do primeiro dia ali que você começou?
R – Maravilhoso. É o que eu digo, por que a gente é GM? As minhas filhas, eu comprei carro pra todas elas desde que fosse GM, se era outra marca não comprava. Porque GM é GM, pô. Desde moleque, 20 e poucos anos eu estava lá. Saí, mas voltei, então tudo o que eu tenho eu devo à GM, então não tenho o que falar da GM. Lógico, sempre tem aquelas encrenquinhas, tal, fui promovido, foi a cabeça do gerente, dos funcionários, etc, mas sempre você tem. É que nem encrenca que tem com gerente, com diretor, mas no geral a GM de antigamente, porque hoje pelo que eles falam da GM, pessoal que fica, é muito triste. Porque nós éramos família. A gente recebia uma promoção já ia direto, às cinco horas saía da GM: “Vamos comemorar a promoção. Eu recebi um aumento de salário, vamos lá comemorar” “Você vai pagar a cerveja hoje”. Depois, mesmo na minha época falava, se os funcionários davam aumento falava: “Fala pro funcionário não falar nada porque o outro não está recebendo”. Então se você criava aquela animosidade, entendeu? Então dava aumento pra você mas não podia falar pra ela porque ela dizia: “E eu?”, não é no lugar de ficar contente porque você está recebendo a gente falava: “Não conta pra ninguém”. Aí dava pra ela e falava: “Não conta pros outros”, então formava aquele ambiente, muito ruim. Por isso que eu saí, na época eu falei: “Não, chega”. A GM teve um problema, acho que eles estão enfrentando agora, deu muito valor ao jovem. Eu não sou contra o jovem de jeito nenhum, minha turma é muito jovem, mas só faculdade não resolve. Eu falava pros meus funcionários: “Olha, vocês estão estudando faculdade tal, mas não esquece da rua, a rua você aprende muito. A faculdade te ensina o que está no livro, a rua te ensina a malandragem do seu negócio”. E levei muitos tombos na minha vida, mas eu levantei e aprendi com os tombos, entendeu? Então ótimo, tem que estudar, tem que se formar, mas não pensa que porque você se formou que você é o tal. Você não tem a vivência, você não tem o dia a dia. Você tem a faculdade, o livro está ali, o que está no livro você decorou muito bem, mas e o resto? Cadê o jogo de cintura pra você resolver o problema? Você não tem. Então eu falava. Através disso eu fazia questão que eles viajassem comigo pra aprender, o que eu resolvia lá, como que resolvia. Tive cada caso na minha vida, por isso que a minha filha queria que eu escrevesse o livro, entendeu? Coisa que se eu te contar e a gente ficar mais um mês aqui, mas é devido a isso, você tem experiência, que é o livro, que é a técnica, mas você tem que ter a vivência. E o jovem de 22, 23, 25 não tem. Eu também quando entrei na GM não tinha. Quando saí da Philips era novo, moleque ainda. Então isso fui conseguindo aos pouquinhos trabalhando lá. E a GM começou a dar prioridade pros jovens e os velhos aposentavam: “Pega o pacote porque vai ser o último. Pega esse pacote porque é bom”. E a turma indo, indo. Pois agora chegou um ponto que falam: “E agora? Como que estamos? Só tem jovem, cadê a experiência?”. E depois outra coisa, não estou metendo o pau no jovem. A GM investiu muito em curso nos Estados Unidos, que é dois anos de GMI, que é General Motors Institute. Você jovem, a GM te pagava o curso de inglês e falava: “Você vai ficar dois anos estudando nos Estados Unidos”. Você estudava e de tarde você trabalhava na GM aquilo que você aprendeu. Se você era noivo, tal, você casava, você levava a esposa junto. Legal. Depois dos dois anos ou três, dependendo do curso, você voltava. Aí você tinha uma boa vaga aqui, não diretoria, mas digo uma boa vaga. Muitos largavam a GM por causa de 100, 200 reais a mais no salário e ia na Ford. Então a Ford teve muita gente da GM porque chegava no aeroporto, ficou sabendo que o grupo da GM está voltando dos Estados, Grupo GMI eles chamavam. Eles pegavam no aeroporto. Um colega meu falou: “Você acredita que um cara veio me falar no aeroporto, se eu topava, me deu o cartão para eu ir lá na Ford, que a Ford tinha vaga pra mim”. Isso tudo com 100, 200 reais. Então a gente velho da GM não se conformava. Eu me neguei a trabalhar na Ford, me neguei a trabalhar na Volkswagen. A Nissan me convidou pra trabalhar e eu não aceitei. Porque GM é GM, família, entendeu? Depois passou um tempo e já não era mais. A minha filha mais velha, a Andreia, trabalhou 21 anos na GM. Chegou no pacote, falou: “Filha, estamos reduzindo o pessoal”, o chefe dela não queria, falou: “Olha, eu disponho de duas moças recentes, uma tem quatro anos e outra tem três, mas eu fico com a Andreia e mando embora essas duas moças porque a Andreia tem mais experiência”. Falaram: “Não, pelo tempo de casa que ela tem, 21 anos, é muito e o salário dela é muito alto, então você vai mandar ela e vai ficar com as duas”. Entendeu? Então não tem mais consideração, nem nada. Quer reduzir, reduz, acabou e não interessa. O cara liga pra ela até hoje, entendeu? Então é esse tipo de problema que é o choque da GM de ontem com a GM de hoje.
P/1 – Qual foi o momento mais marcante que você teve em todos esses anos? Um trabalho que você fez que foi extremamente...
R – Ah não, trabalho tem muito... uma coisa que me impressionou, um funcionário meu uma vez, eu não sei até onde vai essa verdade porque depois eu me aposentei e não tive tempo e paciência de fazer. Ele chegou pra mim e falou: “Remy, você chegou a ver quantos carros você vendeu na sua vida?”. Eu falei: “Nunca pensei nisso”. Ele falou: “Posso me meter? Eu vou investigar desde aquela época que você estava, onde você estava, a exportação, aqui, Brasil, tatata”. Eu falei: “Pode fazer”. Ele falou que é um bilhão de carros. Na minha carreira de 35 anos de GM. Se é verdade ou não é, eu não chequei, nem nada, mas isso me impressionou. Porque eu sempre que o Egito comprava 35 mil por mês. E tudo isso contava que eu era responsável. A Índia comprava uns 40 mil. E assim por diante. Mas eu não ficava ali anotando quanto vendia. Depois que eu voltei de Dubai eu assumi a área de vendas a frotista e depois vendas a governo. Então todo governo do Brasil comprava carro, concorrência, etc, eu vendi 78% dos carros do governo no Brasil, ganhava todas as concorrências. E isso é um orgulho. Pra ver ter ideia, de uma vez só foram duas mil Blazers pra Polícia Militar de São Paulo. Então isso você chega e fala: “Eu vendi dois mil carros numa tacada só”. O Covas chamou lá na sala dele e falou: “Eu quero comprar carro, mas dá desconto”, todos aqueles negócios pra gente fazer, que o único que produzia Blazer era a GM. Essas coisas que eu também digo que precisa tomar cuidado na hora de anunciar porque como se fala essas coisas, que você fez, que você vendeu, isso é coisa confidencial da GM. Então no livro que eu ia fazer a moça fez questão de botar isso e eu falei: “Não, isso não pode”. Então eu gostaria que você tirasse daí porque não interessa pra ninguém essas coisas. Eu estou contando pra você só pela vida, entendeu? Outra emoção muito grande foi quando me convidaram pra ir pra Dubai. Porque eu fui pra Líbia pela Engesa, que era completamente diferente, não davam isso, não davam aquilo. GM te dava tudo, até videocassete porque os americanos se queixaram que a televisão lá era em árabe e inglês um canal, só que inglês da Inglaterra. E eles não gostam do inglês da Inglaterra, então eles queriam vídeo. E o diretor lá: “Pode comprar um vídeo cada um e vocês têm até cem dólarese por mês pra alugar vídeo”. Sabe quantos filmes a gente alugava por 100 dólares? 150 filmes. Por mês. Que todo mês você tinha que gastar seus 100 dólares, 150 filmes por mês. Então não chegava a assistir tudo isso. Mas estou falando o bem-estar que a GM se preocupa aos funcionários. O que ela gastou pra transferir 14 famílias de volta pros Estados Unidos só porque podia o Iraque chegar até Dubai. Podia, porque tinha que passar pela Arábia Saudita, por tudo isso e aquilo era difícil. Mas mesmo assim fizeram. Então o bem-estar do funcionário é muito, muito, coisa importante. Fora as regalias, pagava escola. Olha, a água não é potável em Dubai pra beber, a da torneira. Pras outras coisas podia. Então a GM, conforme a sua família, eu, minha mulher e três filhos, eu tinha direito a duas caixas, quer dizer, 24 garrafas de um litro e meio de água mineral por semana, que era pra beber e pra cozinhar. Pra tomar banho podia usar a da torneira. Porque a água não era potável então podia comprar, era 24 garrafas de água por semana que eles davam pra gente, entendeu?
Tudo eles que pagavam. Então era muita coisa. No meio do ano, como Dubai era um país difícil de morar, a gente tinha dez dias de viagem de folga pra folgar um pouco. Então eles pagavam passagem, até dois mil dólares, 120 dólares por dia por pessoa da família. Então era cinco, você imagina o dinheiro que eu recebia pra pagar hotel, comida, etc, durante essa viagem. E dois mil dólares de passagem, eles pagavam tudo. E depois em julho pagava pra vir pro Brasil. Então eu pagava no caminho pela Europa, porque tinha, obrigatoriamente você tinha que passar dois terços das suas férias no seu país porque senão a mulher fica: “Ah, estou com saudades, não vi minha mãe, quero ir embora pro Brasil pra ver minha mãe que eu não vi, etc”. Falava: “Então se você quer passear no caminho pode, mas dois terços você tem que ficar no Brasil”. Então 20 dias a gente passava aqui. Só que minha família passava mais porque as aulas começavam dia 15 de setembro, então eu tinha um mês de férias, vinha em junho, começo de julho ia embora e elas ficavam aqui até dia dez de setembro que eles pegavam o avião e dia 15 começavam as aulas. Então essa foi uma emoção muito grande eu ter sido convidado pela matriz de morar lá.
P/1 – E depois o senhor se aposenta e começa a fazer esse Remy Tour?
R – É, pros amigos. E aí comecei a mexer com minha coleção de dinheiro, comecei a comprar selos que me faltam em leilão de computador. E eu também coleciono cédulas, dinheiro do mundo inteiro. Então eu também comecei a organizar isso, comprar cédulas, etc, que aí estava folgado ficava o dia inteiro em casa. E essa de viagem era mais amigos. É um amigo do amigo, amigo de Brasília: “Pô, Remy, meu vizinho quer ir” “Não estou levando ninguém nas costas, pode ir. Desde que seja uma pessoa legal”, porque é um grupo, a gente passava 15, 20 dias juntos, então tinha que ser uma turma legal. Nunca tive problema com ninguém, sempre gente boa. E aí eu programava desde onde que ia, o que fazia, o que ia visitar. Aí eu fazia o quê? Leilão pelas agências, pegava as agências e falava: “Esse roteiro, eram tantos dias assim, assim e assim, quanto você cobra?”
“Cobro x por pessoa” “Tá bom”. Ia na outra agência: “Eu quero isso” “Cobra tanto” “O outro fez mais barato” “Então pera aí, quantas pessoas?” “Uns 15, 16, 20, eu não sei ainda” “Se for 15 pessoas a gente te arruma um desconto, tal, tal”. Eu pechinchava assim e depois fechada: “Tá, então vamos pagar em dez vezes sem juros”. Pegava e recolhia os cheques do pessoal, ia pras casas, pessoal, casa da GM, ia na GM, pegava os cheques e dava na agência, podia buscar a passagem, ia buscar o voucher, ia buscar essas e organizava tudo. Pro Egito eu que levava, que tem certos lugares que não incluem no roteiro de turismo e que são lugares mais muçulmanos. Por exemplo, você sabe história, Moisés foi colocado numa cesta, né? Em cima desse lugar onde a princesa faraônica achou ele fizeram uma igreja. Aquela igreja não consta em lugar nenhum como turístico, mas eu levo o pessoal lá. Tem outro lugar que está no meio, infelizmente, do bairro muçulmano, e até hoje a polícia pede pra avisar antes. Eu não sabia, levei a turma, a polícia chegou e falou: “O que você está fazendo? Não pode”. Era a turma da GM, inclusive, diretor da GM foi junto. Quando o César queria matar todas as crianças até dois anos porque sabiam que ia nascer o Messias, que era o Salvador e tal, ele falou: “Bom, como judeu não, judeu não vai salvar ninguém, manda matar todas essas crianças”, porque não sabia quem era Jesus. E a Maria e São José pegaram o Cristo e foram pro Egito. Chegando no Egito ela descansou embaixo de uma árvore, essa árvore está lá até hoje. Entendeu? Ela tem uma história, tal, depois um dia te conto, já que você gosta de história. Mas levava a turma lá com o ônibus, a polícia chegava: “Pelo amor de Deus, você não pode vir aqui porque essa turma toda é muçulmana, vai ver vocês é capaz de jogar pedras no ônibus e tal. Tem que avisar pra gente vir escoltar vocês” “Tá bom, da próxima vez eu aviso vocês”. Aí eles escoltam a gente, com polícia o pessoal tem medo, não se mete. Então essas coisas o pessoal gosta porque não consta no turismo normal, se vai por uma agência não vai te mostrar essas coisas porque não é proibido, mas eles pedem pra evitar esses lugares que são mais católicos, entendeu?
P/1 – Isso tanto lá como aqui, você também leva pessoal de lá pra fazer turismo aqui no Brasil.
R – Não. Porque ali o pessoal do Egito, não sei porquê, eles têm medo do Brasil. Convidei 20 milhões de vezes meus primos a vir, não vêm. Não adianta que eles não vêm. Eles vão para os Estados Unidos, vão para o Canadá, mas aqui eles não vêm. “Ah, não sei, e se você não estiver?” “E daí que eu não estou, está meu pai” “Ah, porque a gente não fala português, a gente sabe que o brasileiro não fala outro idioma” “Imagina, o brasileiro entende inglês, tal” “Não, já falaram pra nós que o brasileiro não fala idiomas. Então como vou fazer? Chegar no aeroporto e não encontro com você, por acaso você não vai, o que eu vou fazer sozinho lá eu e minha mulher ou eu e meus filhos?”. Eu falo: “Pô, imagina, se eu não estou aí, tem meu pai, se não está meu pai tem meus irmãos, tem minha esposa, imagina” “Não, não, não”. Até hoje não veio ninguém. Só minha prima do Canadá veio duas vezes, que é filha da irmã da minha mãe, que eles saíram do Egito e foram pro Canadá e nós saímos do Egito e viemos pra cá. Mas o pessoal ali, turismo de lá pra cá não, é difícil. Agora daqui pra lá sim porque Egito é muito, muito rico de turismo, de história.
P/1 – O que você sente mais falta, do Egito estando aqui ou do Brasil estando lá no Egito?
R – Ah, do Brasil. Pra mim Egito é um lugar de passeio. Não sei se porque eu saí de lá com 15 anos, então não tem... o meu irmão já é um pouco mais. Meu pai, que a gente pensou, que ele chorava tanto que queria ver as irmãs. Pagamos passagem pra ele e tudo, quando chegou lá, 15 dias depois:
“Já matei a saudade das minhas irmãs”
“Pô, gastamos uma fortuna pra você ir até lá, agora você volta 15 dias depois?” “Ah, já me enchi a paciência ver minhas irmãs, o país é sujo”, como eu te falei, é um Egito muito sujo, tal, veio embora. Então pra mim é um lugar de ver primos, que eu gosto de ver primos. Como eles não vêm pra cá eu vou pra lá, de levar, vamos dizer, o dia que você for comigo pro Egito, eu tenho prazer de te explicar pirâmide, explicar esse lugar aqui, isso que é gosto. Mas de eu ir morar lá não, não. O que eu queria uma vez foi: “Já pensou a GM Egito me convidar pra ir trabalhar lá?”. Porque quando você sai do seu país é normalmente três anos, só se eles querem pedir mais, que nem Dubai eu fui pra três anos e acabei ficando cinco. Mas já pensou ir trabalhar como gerente de vendas da GM Egito por três anos? Com todas as mordomias que eles dão pra diretoria, etc, no meu país? Aí ia ser uma maravilha, com mordomia, empregado, tudo eles pagam. Até motorista eles pagam por causa desse problema que eu falei do trânsito, etc. Então a GM paga tudo lá, aí eu ia voltar pros meus primos lá como diretor da General Motors ia ser legal. Mas não calhou.
P/1 – Uma perguntinha, voltando um pouco, Remy. Eu queria que você falasse um pouco sobre o casamento. Como foi o casamento com a dona Vera?
R – Olha, pra mim foi uma aventura, uma experiência. Porque como eu falei, eu queria casar antes, tive que adiar porque o falecimento do meu irmão. Então ficou assim, adia, mas quando vai ser, tal tal. E a pressão pelo que a gente via, eu brigava muito com a Vera. Brigava de terça e fazia as pazes de quinta, brigava quinta à noite e fazia as pazes sábado, brigava sábado e fazia as pazes domingo (risos). Mas coisa boba, que depois falava: “Mas por que brigamos terça-feira?”, a gente não brigava. E as tias delas falaram: “Olha, esses árabes aí são fogo, não namora, desmancha porque esses árabes têm costumes diferentes”. Porque oficialmente eu era árabe, lógico, egípcio, né? Mas foi uma experiência muito legal. Não sei se porque a gente era jovem, a Vera tinha 21 e eu tinha 25 quando casamos. Eu adiei um pouco, tal, aí depois com 25 acabamos resolvendo casar. Morei no fundo da casa da minha mãe, numa quarto, cozinha e banheiro. Depois a Vera engravidou da Andrea, ai mudamos para um casa perto da minha sogra e depois mudamos para outra casa mais perto da minha sogra quando nasceu a Dani. Depois aí comprei minha casa em São Bernardo. Aí nasceu a Gabriela, a caçula, em São Bernardo e aí fomos indo. Então, meu casamento, devido a vida que eu levei, digo metade da minha vida foi entre aviões e hotéis, isso é com certeza. E enquanto isso a Vera tomava conta das crianças e da minha casa, muitas coisas, pagamento. Então isso foi uma coisa muito boa porque eu viajava, era obrigado a viajar a trabalho, lógico, meu trabalho era esse. A minha média era 15 dias por mês, 15 dias fora e 15 dias no Brasil, mas cheguei a viajar 45 dias, fiz 13 países. Comecei no Senegal, na África, e terminei em Angola, lá embaixo. Treze países. Entra num país, entra em hotel, sai de hotel, entra em avião, sai de avião, assim foi 45 dias seguidos em 13 países. Depois falei: “Não, nunca mais”, aí chega. E volta pros meus 15 dias porque economizar dinheiro da GM por causa de passagem muito cara. Porque na época, pra poder ir nesses lugares você tinha que ir pra Europa, passar uma noite em Paris, em Londres, onde fosse, e depois no dia seguinte pegar outro avião pra ir pra Arábia Saudita, pro Egito, onde for. Era custo muito grande pra GM. Mas depois de sofrer 45 dias falei: “Não, eles vão gastar porque eu não vou ficar mais do que 15 dias, é o limite”.
P/1 – Quando você ficava fora como era voltar pra casa?
R – Ah, maravilhoso. Tem detalhes que eu não vou contar porque tem mocinhas aí, mas voltar pra casa é sempre maravilhoso, muito, muito bom. Depois que eu voltei a morar aqui, o que eu peguei? Viagem pelo Brasil inteiro, que vendia carro pra governo, então todos os governos tinha que visitar. Governador, Secretário de Segurança, coronéis de polícia, delegados da polícia civil. Mas eu viajava de segunda e voltava na sexta, mais do que isso não fazia, aqui no Brasil.
P/1 – Voltando um pouco, você lembra do dia do casamento de vocês? Como que foi, onde foi?
R – Onde foi sim, lógico. Casei na Igreja São José do Ipiranga porque minha sogra casou lá e a mãe dela casou lá. Só que eu fazia faculdade e minha esposa também. Aí fomos falar com o padre, ele falou: “Não, vocês tem que fazer curso” “Tudo bem, eu faço curso de sábado e domingo porque de segunda à sexta a gente tem faculdade”. Ele falou: “Não, sábado e domingo é meu fim de semana, eu não dou curso. Vocês têm que vir durante a semana”. Eu falei: “Padre, nessa época, fim de ano é provas e tudo, pra gente passar de ano. Eu não posso faltar uma semana inteira à noite na faculdade, nem eu e nem minha esposa, pra fazer um curso pra casar. Abre pra mim uma exceção de sábado, domingo, estou à tua disposição” “Não, sábado e domingo eu não vou atrapalhar o meu fim de semana pra dar curso pra vocês”. Eu falei: “É nessa base? Então tudo bem. Padre, o convite já está emitido, a data já está certa, o horário tá certo e o endereço da igreja está certo. Se você não me casar, meu amigo, foge porque eu vou te pegar” “Não, eu...” “É isso. Até logo, obrigado”. No dia do casamento cheguei lá, tudo pronto, cheguei no altar, ele falou: “Você ganhou, estou te casando”. Eu falei: “É o mínimo que você pode fazer. Por isso que tem muita gente desistindo de ser católico, de ser cristão, por causa de vocês”. Ora, vou faltar uma semana de prova porque o padre não quer dar o curso no fim de semana? Que absurdo é esse? Entendeu? Não fiz o curso. Nem eu e nem a Vera, voltei lá e ele casou. Ainda no altar ele falou: “Estou te casando, você ganhou”. Foi o mínimo que podia fazer, lógico, você tinha dúvida que eu ia ganhar? O que eu ia fazer nos jornais e tudo, ia fazer o maior escândalo. Eu quero ser católico, quero casar aqui, agora você vem com essa frescura?”. Essa foi uma das coisas. Depois, como a gente não tinha posse, não tinha dinheiro, minha mãe deu champanhe e minha sogra fez o bolo. Então saímos da igreja, fomos na casa da minha mãe com o pessoal mais íntimo, tal. Tinha muita gente no casamento, gente que eu não convidei, mas porque era primo do meu amigo, ou fulano irmão do meu amigo, sabe, na igreja foi muita gente. Mas aí não tinha condições e foi assim, tomamos o champanhe e bolo. Depois disso a gente se trocou e fomos pra Santos passar o fim de semana porque na segunda eu ia pra Bahia passar a lua de mel. Então pra não ficar, só tinha voo na segunda-feira pra lá, pelo preço, etc, então falei: “Não vou ficar aqui em casa”, então nós pegamos e fomos pra praia na casa de um amigo. Aí foram todos os amigos juntos lá. Chegamos lá estava todo mundo no apartamento esperando a gente chegar, foi mais uma lua de mel coletiva do que realmente (risos). Depois o pessoal foi embora, voltaram pra São Paulo e ficamos só eu e a Vera lá o domingo e na segunda-feira subimos, pegamos o avião e fomos embora pra Bahia. Foi uma semana na Bahia e uma semana no interior de Belo Horizonte, Ouro Preto, aqueles negócios lá. Porque a Vera sempre me falava, ela tem dois sonhos na vida: um era conhecer a Bahia e o outro era conhecer a China. Eu falei: “Bom, Bahia, eu fiz a surpresa, na lua de mel a gente vai na Bahia, agora China vai ser difícil”. E a primeira coisa que eu fiz quando cheguei em Dubai, as férias, aquela semana de dez dias, peguei mais uma semana por conta e fiquei 15 dias na China. Falei: “Agora estou cumprindo o seu sonho que é conhecer a China”. Foi a primeira viagem que fizemos. Depois fizemos muitas outras porque todo ano eu tinha direito àquelas férias, então a gente conheceu muita coisa da Ásia. Porque Dubai fica no meio do caminho, entende? Então pra você ir pra Ásia, Hong Kong, Cingapura, todos esses lugares, ali era sete, oito horas. Aqui são no mínimo 20 horas. Daqui a Dubai, voo direto, agora a Emirates faz, são 15 horas de avião. Então eu falei:
“Gente, vamos aproveitar essas viagens que a GM está dando pra ir pra cá que depois pra ir do Brasil pra cá, primeiro, vai ser caro, muito tempo, então não vai ter condições da gente passear”. Então tanto eu como minhas meninas conhecemos, ampliou muito o horizonte deles, devido a todas essas viagens, toda essa cultura. Porque eu gosto de ir num lugar, mas gosto de saber como vive o povo, como que é, o que eles fazem, sabe? Coisas assim pra gente ter um pouco de conhecimento dos lugares. Mesmo quando viajava sozinho a trabalho, sempre de noite eu pedia pro concessionário: “O que tem bonito para visitar aqui?”,
na primeira vez que eu ia. “Pera aí, a gente vai jantar e depois eu te levo conhecer e tal”. Então a gente conhecia, conversava, etc. Então minhas filhas tiveram muito a cabeça aberta devido a isso aí.
P/1 – E ela ficou feliz de realizar esses dois sonhos?
R – Ah, ficou! Olha, a Bahia foi emocionante porque era lua de mel, entendeu? Está certo que era só nós dois, né, mais sozinhos, mas a China também foi muito legal porque pegamos a China na época fechada, não a China de hoje, ainda pegamos que o pessoal todo andava com a mesma roupa, aquela roupa de Mao Tse Tung, de não ter carro na cidade. Eu fui na cidade, o que a gente encontrou foi Opala. Eu quis no hotel porque eu queria ver os Opalas andando lá. E realmente eu fui e realmente os Opalas estavam rodando lá. Porque ali na época dizia o seguinte: “Todo estado, se ele tiver dólares, ele pode importar o que ele quiser”. Então esse estado, Guilin, tinha muito turismo, então ele tinha muito dólar. Então ele quis comprar carro. E como no Brasil era barato, ele comprou Volkswagen, Passat e o nosso Opala. Então é o único estado que tinha carro brasileiro ali. Então eu fui pra ver, tirei uma foto do carro lá com placa chinesa, etc. Mas ainda não tinha. Ali você não podia ir sozinho, você tinha que entrar em grupo e sair em grupo, não tinha carimbo no passaporte, o visto era comunitário, então todo mundo, de Hong Kong fomos pra lá, eu fiz Dubai-Hong Kong e depois fui pra China, tinha os ingleses e americanos juntos. Era tudo num papel assinado pela embaixada. Esse grupo tinha que estar sempre juntos, onde um dia tinha que ir todo mundo junto. Então o pacote do turismo era tudo isso aqui. Então achei um tour que incluía Guilin, porque eu queria ir pra Guilin pra ver os carros, entendeu? Aí nós fomos e foi muito legal. Porque ali tem muito controle de dinheiro. Você entra, tem que declarar quanto dinheiro você tem e na hora de sair você tem que declarar quanto você tem e a diferença onde você trocou. O banco que você vai trocar tem que carimbar. Nesse dia trocou 200 dólares, nesse dia trocou 500 dólares, sabe? Depois eles fazem a média. Se você tiver menos, tal, tem que justificar onde você gastou. Entendeu?
P/1 – O que a sua esposa queria ver lá na China?
R – Nada, queria ver a China, de tanto ouvir falar da China. E a China realmente é muito bonita, é muito exótica, muito diferente. Independente do povo, estou falando.
P/1 – Dessas viagens todas que você fez, seja com a família, seja...
R – Ah, várias, Já sei qual você vai perguntar, qual mais me interessa, né?
P/1 – O que mais te impressionou?
R – Todo mundo me pergunta isso. Sabe o que é? Como eu conheço quase cem, tem muitas coisas diferentes. A China foi uma coisa que impressionou bastante, entendeu? Israel foi outra que me impressionou. Rússia impressionou. Agora, você pega Estônia, que é antiga, as colônias russas, maravilhosas. Porque você vai lá na Rússia você pensa o quê? Tudo deprimente, tudo comunismo, aquele negócio. Que nada! Não tem nada a ver. É lindo. Esses ex-países da Rússia, que são agora independentes, tem história pra caramba, castelos, coisa muito bonita. E o norte da Europa também é muito interessante, entende? Para o brasileiro acho que não deve ser muito legal morar lá porque ali é muito certinho, tudo é certinho, tudo tem um motivo porque tem que ser. E o brasileiro não vive desse jeito de jeito nenhum, mas é muito, muito bacana, muito limpo, muito educados.
P/1 – Então vou mudar a pergunta. Qual foi o momento dessas viagens que você estava mais feliz?
R – Ah, teve vários. Na Bahia foi legal porque estava de lua de mel. Eu realmente fiquei muito feliz, muito emocionado com o casamento em si, tá? Outra foi quando levei minhas filhas pro Egito, esse foi legal, você está na pirâmide com a sua mulher e teus filhos. Um lugar bem mais longe de onde a gente vive, o Egito pro Brasil é longe pra caramba, é muito legal. Outra emoção foi Dubai. Dubai porque além de ser Dubai, que é aquela maravilha de Dubai, que não era a de hoje, é Dubai daquela época, foi muita mordomia, eu fiz amizade com seis famílias, eu e mais cinco. Era um árabe, pra você ter ideia, um árabe, dois italianos, dois brasileiros, dois portugueses e eu. Então a gente se unia todo fim de semana juntos. Foi muito legal. A hora que eu fui embora, o negócio ficou tão emocionante que todo mundo criança, marido, mulher, foram falar tchau pra gente no aeroporto. Então os homens faltaram no trabalho, as crianças faltaram na escola porque foi um dia da semana, né? Pra falar tchau pra gente no aeroporto. Então foi uma emoção muito grande de amizade. Dessa época, o único que voltou a ver todo mundo fui eu. Eu voltei pra Dubai pra trabalhar, visitei meu amigo árabe que é de lá. Fui pra Portugal, conheci as duas famílias. Fui pra Itália, visitei as duas famílias. E eles: “Ah não, Brasil, não tem dinheiro”, nenhum veio aqui, mas eu fui em todos eles e visitei. E continua a amizade, a gente se fala agora com o WhatsApp, com Skype, a gente se aproximou de novo. Mas mesmo na época de ligação cara a gente sempre se ligava, mantivemos um certo elo de amizade. E amizade que eu digo sincera e barata porque não me custou nada ter um amigo que nem aquele, o árabe de lá, ter um amigo maravilhoso. Eu e ele tínhamos casa, os outros moravam em apartamento. Então o churrasco era sempre uma sexta-feira na minha casa, uma sexta-feira na casa dele. Porque sexta é o domingo deles, então ninguém trabalha, quinta à tarde e sexta. Então o churrasco ali não era de carne, os nossos churrascos, era de peixe ou caramão, porque era mais barato do que um quilo de carne. Porque o peixe e o camarão era pescado lá, enquanto que a carne era importada. Então tirava camarão desse tamanho. Pobre é assim, não tem dinheiro pra comprar carne, se vira a fazer churrasco de camarão, olha o camarão! Aqueles camarões assim e a turma: “Porra, você fica gozando da gente!”, mas então era um fim de semana meu e um fim de semana dele, mas todo mundo junto. Então pras meninas também foi muito bom porque eles também tinham filhos, então fizeram amizade, tal. E ali amizade era assim, sair pro shopping, voltar, porque não tinha baile, essas coisas,
mais pra família. Nas festas todo mundo vinha pra minha casa. No carnaval eu inventei o carnaval brasileiro na minha casa, festa de Natal na minha casa, Ano-Novo na minha casa, então isso a gente agrupava muito a amizade, que a amizade ficou. Até agora, mês passado uma italiana que morreu o marido, infelizmente, mas ela queria vir com uma filha, o marido e a neta. Ela falou: “Remy, nós vamos em dezembro passar no Brasil com vocês”. Eu fale: “Legal, vem, fica em casa, minha casa é grande, cabe todo mundo”. Semana passada me liga: “Remy, está dando uns problemas aqui, talvez não vai ser esse ano, talvez o ano que vem”. Eu falei:
“Mas venham, venham passear aqui com a gente, puxa, minha casa cabe vocês. Só compra a passagem, o resto a gente se vira aqui”. Ainda lembraram. Já faz o quê, 20 anos que vivi lá, em 92 saí de Dubai, cheguei em 87 e saímos em 92, cinco anos fiquei lá. Então a amizade ficou, uma amizade sincera. Barata porque não tinha nada um com o outro, foi uma amizade que apareceu e ficou sem interesse nenhum, porque eu não tinha interesse no exército de Dubai, que era o árabe, o italiano trabalhava na Iveco, então não tinha interesses pela amizade.
P/1 – Você sempre fala das meninas. Como que foi ser pai?
R – Ah, aí é outro tipo de emoção. Dizem que ser avô é melhor do que ser pai, eu acho que cada coisa tem a sua. Ter filho, primeiro não acreditei. Não porque, grávida, lógico, minha esposa estava grávida eu me acostumei. Mas na hora de ver aquele bichinho desse tamanhinho numa cestinha, entendeu? E minha sogra do lado. Sabe qual foi minha primeira preocupação, de olhar na cestinha? Se ela tinha os dois olhos, as duas pernas, os dois braços e os dez dedos. Por que, não me pergunta. Minha sogra: “Ai Remy, como ela parece com você” “Que parece nada!” “Olha como ela é tua cara!”. Eu olhava, contava, tem os dois braços, tem os dedos. “Ah, graças a Deus ela está inteira, está sã”. Não sei porquê, não tem nenhuma criança doente na minha casa, nem nada, mas foi uma coisa que me impressionou. Depois que eu vi eu falei: “É minha filha”, aí que eu caí na realidade. Entrei dentro, falei com a Vera, tudo. Mas aí que você sente a emoção. Agora neto, meu amigo. Neto é completamente diferente. Faço coisas com minhas netas que eu nunca imaginava fazer com minhas filhas, sabe? Que você faz com todo prazer.
P/1 – Por exemplo?
R – Deitar no chão e ela trepar em cima de você, fazer cavalinho, entendeu? Mas a neta tá pedindo e você faz. Tudo, tudo, não sei falar não pras minhas netas. A minha filha fica brava, a Dani também: “Pai, para de dar teu celular pras meninas porque elas só ficam ouvindo música” “Deixa a menina usar meu celular” “Elas trumbicam tudo, mudam tudo, tal”. Eu pego e refaço tudo o peço para alguém refazer pra mim, mas eu não sei falar não pra elas, entendeu? É uma alegria muito, muito grande, uma emoção muito grande. Não sei porque eles falam que filho se tem muita responsabilidade, que você vai ter que criar e educar essa criança. Neto você não tem responsabilidade nenhuma, é só farra e desautorizar os pais. O pai fala não, você fala sim, entendeu? Você não tem responsabilidade porque encheu o saco você pega: “Tá aqui, o filho é teu, leva embora pra casa”. Não sei se é isso, mas é uma maravilha, é muito gostoso ter neto. Não é melhor do que ser filho, são emoções bem diferentes uma da outra.
P/1 – Eu queria...
R – Pô, ainda tem pergunta, eu falei tanto assim!
P/1 – A gente já vai encerrando, seu Remy. Agora eu queria perguntar mais já pra encerrar, quais são seus sonhos, o que você espera pro futuro?
R – Olha, o meu futuro é limitado. A Vera não gosta que eu falo isso porque nada é limite. Mas olha, eu já estou realizado. Tenho minha casa, tenho uma chácara maravilhosa perto daqui, em Indaiatuba, tenho uma família maravilhosa, tenhos amigos maravilhosos. O que a gente pode querer mais? Viajei pelo mundo a trabalho, particular. Agora estou diminuindo as viagens por causa do dólar que está muito caro, então muita gente fala: “Ah Remy, esse ano não vai dar, tal”, então eu também desisti de ficar perguntando. Mas, por exemplo, de navio em janeiro, esses negócios de navio, gente, você conhece, já viajaram alguém de vocês? Faça essa viagem. Faça ou pra Bahia, que tem um navio sete dias que vai pra Salvador, para no Rio, para em Ilhéus, etc, ou então vai pra Buenos Aires e faz Buenos Aires, Montevideu e Punta del Este e volta. É baratíssimo, gente! Por dois mil reais você ter sete dias maravilhosos, de comida de primeira classe, cinco refeições. É café da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e ceia à meia-noite, todo dia. Tem show, para na cidade você desce, passeia, volta no navio. Tem pra dançar, tem show de dançar, tem show que eles dão lá você assiste. Mas depois tem salão pra dançar, você vai em grupo de amigos, é maravilhoso. E é barato, por dois mil reais você não acha nada. Sete dias. Vai no resort aqui estão te cobrando mil reais pro reveillon. Ali tá dois, três mil reais uma viagem dessa. Então, eu digo: “Essa ainda dá pra gente fazer”, eu estou fazendo. Mas assim, amigos, tal, vamos, vamos. Chega em Buenos Aires e vamos pra Bahia, chega de Bahia vamos pra Buenos Aires, porque de sete dias só tem essas duas opções. O resto três, quatro dias vai pra Angra dos Reis, ou vai pra Búzios, três, quatro dias e volta pra Santos. Então pouca coisa e é mais barato. Mas esses de longe é dois mil e 500, três mil reais, você não acha em lugar nenhum por esse preço a mordomia que o navio te dá. E vale a pena porque você está passando no meio de uma mordomia enorme, entendeu? Então agora estou fazendo esse tipo de viagem. Não tenho mais nada na vida. Lógico, eu falo que eu vou viver 120 anos, isso eu tenho certeza porque eu vou viver mesmo porque quero assistir a formatura das minhas netas. Como a última nasceu agora (risos), vai fazer um ano em setembro, então sou obrigado a viver 120 pra assistir pelo menos a formatura dela. E só isso, realmente sou feliz, tenho uma família maravilhosa, dois genros. Tirando os corintianos, fora isso está tudo ótimo, que os genros são muito bonzinhos, muito responsáveis, muito carinhosos com a família, entendeu? Então isso. Futuro, na minha idade, 72 anos, não posso dizer não é velho, lógico, não me sinto velho, mas eu digo, eu já fiz tudo, já trabalhei, já viajei, já me diverti, já tenho o que eu quis, entendeu? Eu tinha apartamento na praia e vendi porque ninguém mais ia na praia porque todo mundo ia pra chácara, então mantenho a chácara até agora e vendi o apartamento. Então realmente não tenho muitas coisas assim: “Não, gostaria de fazer isso”. Quero voltar a viajar sim, porque eu adoro viajar e minha esposa também. Você falou em viagem, a mala dela já está lá embaixo esperando pra por no carro, entendeu? Então é uma coisa que eu gosto de fazer.
P/1 – Tem algo que você lamenta não ter feito?
R – Ah, eu não sei. Acho que não.
P/1 – A gente pode encerrar já, Remy. Foi incrível, a gente sempre faz essa pergunta pra fechar, eu queria que você contasse o que você achou de estar aqui hoje lembrando tudo isso? Como foi contar sua história pra gente?
R – Olha, eu vou ser sincero, eu vim preocupado. Porque quem inventou isso aqui foi a Dani. “Pai, vem ver” “Ih, lá vem ela”. Primeiro fez aquele, fazer um livro da minha vida e acabou falhando porque eu não quis, entendeu? Eu falei: “Agora eu vou falar não pra Dani”. A Vera falou:
“Remy, experimenta, vai ver, você nem sabe o que ela está falando. Vai lá ver, pra que falar não desde já?” “Ah, sei lá eu, vou ter que falar as coisas da minha vida, tal”. Eu falei: “Tá bom, Dani, eu vou com você”. Então vim aqui preocupado, o que eles iam me perguntar, o que eu ia fazer aqui? Quando você ficou lá explicando, explicando, eu falei: “Pô, mas pera aí, aí já é mais simples do que eu pensei, mais legal do que eu pensei”. Entendeu? Quando eu te falei: “Essas coisas eu posso até falar porque faz parte da minha vida, mas”, porque a Dani falou: “Pai, a mamãe mandou te lembrar, não esquece de falar as coisas que aconteceram na África”. E o que mais, outra coisa? São as coisas que acontecem na vida da gente que você fala: “Aconteceu, tive que participar daquilo”, mesmo querendo ou não querendo aconteceu. Posso ter mais um minutinho? Pode? Eu viajava pela África como te falei. Então pra ir pra Angola, não tem avião que te leva pra Angola de vários países da África porque Angola é mais comunista, então, o único lugar que tinha avião que te leva pra Angola é no Congo. O Congo é comunista. Então eu fazia vários países da África, parava no Congo uma noite, porque eu chegava de tarde e o avião pra Angola saía de manhã, entende? Então, tinha que dormir uma noite no hotel, no dia seguinte pegava e ia pra Angola. E depois de Angola ia pra Lisboa, porque Angola era colônia antiga portuguesa e Lisboa a São Paulo, tranquilo. Eu chego um dia lá, saio do aeroporto, pego o táxi e falo: “Por favor, Hotel Meridien”, que eu costumava ficar. Ele falou: “Pois não. O senhor veio pro Congresso Africano?”. Eu falei: “Não” “É que está tendo Congresso Africano aqui em Brazavile”. Eu falei: “Não, estou em trânsito porque estou indo pra Angola”. Ele falou: “O senhor não tem reserva de hotel?”. Eu falei: “Não, eu fico sempre no Meridien quando eu venho” “Olha, que por causa do congresso está tudo lotado” “Mas uma noite só, um quarto, imagina!”. Tudo bem. Aí chegamos no Meridien, ele encostou e falou: “Não paga, desce, vê se tem lugar e depois vem buscar sua mala”. Eu falei: “Gente, a cada dois, três meses eu estou aqui” “Infelizmente estamos lotados por causa do Congresso” “Qual é o outro hotel?” “Ah, vai no fulano”. Aí fui no fulano, lotado. Fulano, lotado, lotado. Eu falei: “Cara, onde você pode me indicar mais?”. Ele falou: “Olha, se o senhor não se incomodar, no porto”. Eu falei: “No porto tem hotel?”. Ele falou:
“Tem aqueles quartinhos, sabe como que é, pra fazer servicinho, tal”. Eu falei: “Vai aquele mesmo, pelo menos pra até amanhã para eu ir embora”. Chegamos lá lotado. Eu falei: “Caramba, e agora?” “Agora não conheço mais nada de hotel”. Eu falei: “Escuta, quanto você vai me cobrar essa corrida?”. Ele falou: “Cinquenta dólares”. Eu falei: “Você topa ganhar cem?” “Opa, topo. O que eu preciso fazer?” “Você vai comigo de volta no aeroporto, nós vamos estacionar no estacionamento do aeroporto, você dorme aqui na frente, eu durmo aqui atrás, até a hora que abrir o aeroporto”. Porque depois que chegou o meu avião fecharam o aeroporto, fecha, entendeu? “A hora que abrir o aeroporto eu te pago cem dólares e eu desço” “Joia, eu topo. Só que o senhor permite eu ir até a minha casa avisar a minha esposa?”. Eu falei: “Lógico, pode ir tranquilo”. Você sabe a diferença entre medo e pavor? A diferença? Não. Medo é você ter medo de qualquer coisa, agora pavor é porque você está preocupado de desespero, já dá desespero. Aí conversando com o cara, tal, francês, etc. Eu olhando pelo espelho, a cidade estava ficando assim as luzes, menor, menor. Eu falei: “Esse cara está saindo da cidade”. Um breu, uma escuridão só. Eu falei: “Onde que está indo esse cara”. Eu falei: “Você está indo pra sua casa?” “Ah sim, sim, eu moro por aqui, tal, mas jaja, logo logo estamos chegando”. Eu falei: “Pô, o cara sabe que eu cheguei de aeroporto, sabe que tenho dinheiro no bolso porque quem viaja, ele falou ‘você está a passeio’ ‘não, a trabalho, etc’, sabe que eu tenho dinheiro. Ninguém sabe que eu estou lá, nem onde, nem hotel, nem nada, a GM sabe que eu dormia uma noite em hotel em Brazavile pra ir pra Angola, o concessionário de Angola está me esperando amanhã. O cara me mata, me corta em pedaço, ninguém vai nem lembrar que eu existo, quer dizer, que eu estou lá em pedaços. Comecei a ficar com medo. Até a hora que sumiu tudo, um breu só. Não via a cidade, não via mais nada. Quando chegamos assim ele falou: “Eu moro ali”. Umas velas acesas. Falou: “Um momentinho, já volto”. Eu falei: “Ele vai entrar lá, chamar os amigos dele e vão me retalhar aqui”. Eu falo seis idiomas, eu rezei em todos os seis, questões de frações de minutos, rapaz. Mas fiquei com tanto medo de tremer. Aí o cara saiu, fiquei ali olhando, tudo vela dentro da casa dele. Abriu a porta, deu pra ver velas. Eu falei: “Meu Deus do céu, onde que eu fui me meter” “Pronto, o senhor me desculpe, tal, que minha sogra faleceu e o velório dela é aqui na minha casa, tal, mas está tudo certo, eu vou com o senhor”. Eu falei: “Tudo bem”. Ele me levou de volta, dormimos no aeroporto. No dia seguinte eu dei cem dólares pra ele, abracei o cara e fiquei lá até uma hora que veio meu avião. Por que tudo isso? Porque eu tinha preconceito. E tudo isso por quê? Porque o cara era preto. Entendeu? Eu abracei ele e falei: “Meu Deus do céu, olha o que eu pensei, entrei com medo, fiquei apavorado, rezei pra caramba, só porque o cara era preto”. Então aquilo lá me marcou muito. E o cara era gentil pra caramba, realmente ele morava fora da cidade. É que ali, Brazavile, a cidade pequena, quer dizer, um metro depois já não é mais cidade, entendeu, já é breu. E o cara não tem culpa de morar ali, né? Mas olha, foi o velório da sogra dele, mesmo assim ele aceitou, deve ser por causa do dinheiro. Ele podia dizer não, né? E o que eu ia fazer? No meio da cidade ali, com uma mala e sem saber onde ir. Eu falei: “Nunca mais eu vou duvidar de preto ou ter preconceito”. Além de não precisar ter, essa foi uma lição pra mim porque eu tinha preconceito, sabe? Então foi um negócio. A Dani falou: “Pai, conta na história da sua vida, tal”. E na GM: “Pô, que vida você leva, hein? Viajando de primeira todo mês, todo mês morando em hotéis cinco estrelas, assim numa boa” “É, numa boa, mas se você começar a contar essas coisas”, havia outras coisas que aconteceram, entendeu? Mas as coisas que o pessoal vê de um jeito e não vê o outro lado. E a turma: “Porra, mas você ficou em Dubai, veio com o rabo cheio de dólar, né?”. Só que pra mim voltar com o rabo cheio de dólares você não viu o que a gente sofreu sozinho lá. A gente sente muita falta de amigos, etc. Até não formar o grupo em Dubai, que foi um ano, demorou, a gente sofreu muito. Eu ligava muito pro Brasil pra falar com amigos, falar com meus pais, essa coisa toda. Depois fui diminuindo, você começou a ter amizade com gente e o tempo passava mais rápido. Mas a gente sofre muito lá fora. É gostoso, mas você sente muita falta, especialmente dependendo da vida que você tem aqui. Em São Bernardo nós temos um grupo de amigos também, tudo a gente faz junto, desde pequenininhas as crianças já juntavam panelas de domingo: “O que você fez?” “Ah, fiz o arroz” “Então traz aqui, eu fiz molho, fiz uma lasanha”, juntava todo mundo na garagem de um e comíamos junto, a criançada brincava junto. Então nós ficamos muito amigos. E a mesma coisa, quando fui pra Dubai, nossa, foi uma choradeira no aeroporto. Quando voltei fizeram até faixa: “Bem-vindo de volta das arábias!”. Isso faz com que a vida é legal, minha vida é muito boa porque tenho amigos e amigos sem interesse, isso que é importante na vida da gente, você ter amigo, que na hora que você precisa pra chorar, o cara está lá, isso é importante na vida da gente (emocionado). Obrigado, vocês são nota dez de ter paciência de me ouvir falar tanto.
P/1 – Imagina, seu Remy, uma história incrível, hein? Deu o tempo certinho? Perfeito.
FINAL DA ENTREVISTA
Dúvidas:
E aí no dia foi uma farra, foi a cidade inteira em frente ao mar, aquele que eu te falei do _0:18:09_. – Página 5.Recolher