Entrevista de André Müller de Mello
Entrevistada por Luiza Gallo e Bruna Oliveira
São Paulo, 01/11/2021
Projeto: Porto & Cidade - BTP/Ultracargo
Realizado por Museu da Pessoa
Entrevista n.º: PCSH_HV1088
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Vamos lá!
R – Vamos lá.
P/1 – André, pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é André Müller de Mello. Eu nasci no Rio de Janeiro, em janeiro de 1975.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Soriano Müller de Mello e Maria Nazaréth Müller de Mello.
P/1 – E onde eles nasceram?
R – O meu pai nasceu no Rio e a minha mãe nasceu em Manaus, Amazonas, mas se criou no Rio desde muito nova.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Ah, eu sei. É uma história bem legal. É pra contar? Posso contar a história? Eles se conheceram no Rio, a minha mãe conta muito essa história, que tinha uma festa que ela não queria ir de jeito nenhum, porque era muito tímida e não conhecia muito bem todo mundo, mas tinha sido convidada. E a minha avó, mãe dela, ficou enchendo a paciência pra ela ir pra festa. E ela falou: “Não. Eu não vou, porque eu não tenho o que vestir”. E aí a minha avó falou: “Não. Você vai pegar uma roupa minha. Eu te ajudo”. Enfim, botou a maior pilha pra minha mãe ir nessa festa. E lá ela conheceu o meu pai. E logo depois começaram a namorar. Então, eu sempre agradeci a minha avó pela força, porque senão eu não estava aqui. (risos)
P/1 – E como você descreveria os seus pais?
R – Ah, os dois maravilhosos, sensacionais. Super pais. Presentes. E sempre me deram bastante estímulo, a mim e à minha irmã. Eu tenho uma irmã um ano e meio mais velha, que mora no exterior há trinta anos, quase. Mas super pais, fantásticos. Hoje, ainda, os dois estão vivos. Eu estou perto dos dois. O meu pai está muito doente, mas a minha mãe está...
Continuar leituraEntrevista de André Müller de Mello
Entrevistada por Luiza Gallo e Bruna Oliveira
São Paulo, 01/11/2021
Projeto: Porto & Cidade - BTP/Ultracargo
Realizado por Museu da Pessoa
Entrevista n.º: PCSH_HV1088
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Vamos lá!
R – Vamos lá.
P/1 – André, pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é André Müller de Mello. Eu nasci no Rio de Janeiro, em janeiro de 1975.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Soriano Müller de Mello e Maria Nazaréth Müller de Mello.
P/1 – E onde eles nasceram?
R – O meu pai nasceu no Rio e a minha mãe nasceu em Manaus, Amazonas, mas se criou no Rio desde muito nova.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Ah, eu sei. É uma história bem legal. É pra contar? Posso contar a história? Eles se conheceram no Rio, a minha mãe conta muito essa história, que tinha uma festa que ela não queria ir de jeito nenhum, porque era muito tímida e não conhecia muito bem todo mundo, mas tinha sido convidada. E a minha avó, mãe dela, ficou enchendo a paciência pra ela ir pra festa. E ela falou: “Não. Eu não vou, porque eu não tenho o que vestir”. E aí a minha avó falou: “Não. Você vai pegar uma roupa minha. Eu te ajudo”. Enfim, botou a maior pilha pra minha mãe ir nessa festa. E lá ela conheceu o meu pai. E logo depois começaram a namorar. Então, eu sempre agradeci a minha avó pela força, porque senão eu não estava aqui. (risos)
P/1 – E como você descreveria os seus pais?
R – Ah, os dois maravilhosos, sensacionais. Super pais. Presentes. E sempre me deram bastante estímulo, a mim e à minha irmã. Eu tenho uma irmã um ano e meio mais velha, que mora no exterior há trinta anos, quase. Mas super pais, fantásticos. Hoje, ainda, os dois estão vivos. Eu estou perto dos dois. O meu pai está muito doente, mas a minha mãe está firme e forte. E nós todos estamos cuidando do meu pai.
P/1 – E o que eles faziam? Com que eles trabalhavam?
R – O meu pai estudou Direito, mas pouco exerceu. Ele começou a trabalhar com finanças. Primeiro trabalhou, isso no Rio de Janeiro, ainda, em Furnas, centrais elétricas e depois se especializou em finanças internacionais. Ele tinha domínio de inglês, porque ele tinha, jovem, feito umas viagens como comissário de bordo, viagens internacionais. Então, graças a isso, ele conseguiu uma transferência para uma empresa de engenharia em São Paulo. De modo que eu nasci no Rio, mas fiz três anos de idade, já morando em São Paulo, capital. Então eu cresci e me criei em São Paulo. E, ao longo da infância, depois eu acho que a gente vai tocar nesse assunto, em São Paulo e viajando pra Santos, a vida toda.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe trabalhou em Banco, no Rio de Janeiro. E depois que nos mudamos pra São Paulo, ela parou de trabalhar durante um bom tempo. Ficou cuidando da gente, cuidando da casa. E voltou a trabalhar muitos, muitos anos depois. Acho que, sei lá, trinta anos depois. Foi trabalhar numa loja aqui em São Paulo. E ficou lá um bocado de tempo, gerenciando uma loja de roupas, em São Paulo. E, também, importante comentar que o meu pai fez uma carreira longa na Promon Engenharia, essa empresa em São Paulo. E, quando se aposentou, ele, inquieto demais, não estava lidando bem com a aposentadoria, virou empresário. Ele abriu uma empresa. Então, ele e a minha mãe trabalharam mais, sei lá, quinze anos nessa empresa, juntos.
P/1 – Empresa do quê?
R – Era uma empresa de artigos esportivos. O meu pai é muito ligado ao esporte. Esportista a vida toda, apaixonado por tênis. Então, ele abriu uma empresa que vendia artigos esportivos no varejo e atacado. E eles foram adquirindo concessões para lojas, dentro de clubes. Eles chegaram a ter cinco lojas em cinco clubes, em São Paulo, durante um bom tempo. Então, vendia tudo pras escolinhas de esporte, dentro desses clubes.
P/1 – E, André, como era a sua relação com os seus pais, na infância? Você se lembra?
R – Ah, lembro. Lembro. Era muito boa. Eu tinha mais abertura, proximidade com a minha mãe do que com o meu pai. O meu pai era maravilhoso, mas meio difícil de conectar, assim, não éramos muito confidentes. E, enfim, mas sempre presente e próximos. Em determinado momento, eu acho que quando eu tinha doze ou treze, eu não lembro ao certo, eles se separaram. Mas o meu pai foi morar no mesmo bairro, a três quadras de casa, de modo que ele continuou muito presente, assim. A separação foi, naturalmente, impactante, dramática em alguns aspectos, mas foi consensual, amigável, não teve disputas, nem nada disso, não envolveu disputa da guarda dos filhos, nada. E ele continuou com aquela rotina de pegar na escola, levar pra natação, tal. E fazia questão que eu e a minha irmã almoçássemos ou jantássemos com ele duas vezes por semana. Ele continuou frequentando a nossa casa. Então, ficou muito próximo, mesmo depois da separação. Muito presente.
P/1 – E a sua irmã, qual é o nome dela?
R – Adriana. Super aliada. Super amiga. Somos muito, muito, muito próximos. Apesar dela morar na Califórnia, há muito tempo, a gente é muito amigo, muito parceiro. É fantástico. Eu tenho o maior orgulho. Ela esteve aqui, recentemente. Eu estou atacado de saudade, porque ela, a vida inteira, veio pelo menos uma vez por ano. Às vezes, sozinha, às vezes, com o marido e os dois filhos. Mas, por causa da pandemia, ela ficou dois anos sem aparecer. E num momento muito difícil, com o meu pai doente, tal. Ela participou de tudo, de todas as decisões, tal. Mas ela veio, depois de dois anos, conseguiu passar uma semana, agora, esse mês. Então, foi uma semana mega especial. A gente ficou muito colado, matando a saudade. E ela não podia ficar mais, mas foi ótimo. Ela veio sozinha, a gente aproveitou bastante. E estou ansioso. Parece que ela vai voltar em março, agora, pra ficar um pouco mais.
P/1 – E, André, você conheceu os seus avós?
R – Sim. Eu conheci pouco, a mãe do meu pai, Dona Judite. Ela faleceu quando eu tinha, talvez, cinco anos, alguma coisa assim. Mas ela já era uma figura muito quieta, muito calada, muito distante na minha memória. Eu convivi, assim, com ela, lembro da figura dela, mas sempre de pouco assunto comigo, assim. Lembro bem da figura. Ela não era antipática, nem nada, mas também não lembro de nenhum papo com ela, nenhum momento, assim, especial, de conexão. E conexão mesmo, eu tive com a mãe da minha mãe, a minha avó Alaíde. Essa sim. Essa, eu curti muito. Muito, muito, muito.
P/1 – Você lembra de alguma atividade que vocês gostavam de fazer juntos, alguma história com ela?
R – Ah, eu lembro. Eu lembro. A minha avó era maravilhosa. Era uma figura muito influente, inclusive, na memória, nas decisões da gente. Era uma figura muito central. Uma pessoa que a gente lembra como uma pessoa muito sábia, muito lúcida, muito sensata, muito centrada, mediadora de conflitos e referência para tomar qualquer decisão difícil, para resolver qualquer dilema, ela era “a pessoa” pra conversar, porque ela era muito, muito sábia. E muito querida também. Afetuosa. Divertida. Ela morava no Rio. Mas nós viajávamos para o Rio de Janeiro, pelo menos duas vezes por ano. Nas férias de julho, o mês inteiro, a gente passava na casa dela: eu, minha irmã, a minha mãe e o meu pai um pouquinho no começo e um pouquinho no final. E as férias de verão que, na época, na minha época, eram muito mais longas do que são hoje, né? Assim, então a gente ficava em férias, sei lá, ainda em novembro e só voltava pras aulas quase no Carnaval. Então, tinha um pedaço de novembro, dezembro, janeiro e um pedaço de fevereiro. Essas eram as férias. E, assim, eu e a minha irmã entrávamos de férias num dia e dois dias depois a gente estava indo pro Rio. E a gente voltava às vésperas de retomar as aulas. Então, todas as férias da minha vida: Rio de Janeiro, casa da minha avó e da minha tia Dulce, irmã do meu pai, que era outra casa que eu frequentava muito, também. Ah, lembrei de uma coisa pra mencionar, minha avó. A minha avó... com ela eu mantive, desenvolvi o hábito de escrever cartas. Então, a minha avó me incentivava. A gente trocou muita carta. A gente tem uma vasta correspondência. E ela... bom, enfim, isso era muito importante. Está muito vivo na minha mente a troca constante de correspondência com a minha avó, sobre tudo. Era espetacular a curtição de receber uma carta dela, largar tudo e escrever umas cartas imensas. E eu tenho essas cartas, hoje, desde quando eu era moleque, assim, escrevendo aquele garrancho, né? Mais um cartão e mais desenhos do que escrita. Até o final, já, eu tenho cartas de eu contando pra ela de namoros, de viagens que eu fiz, já depois de concluído o ensino médio, cartas imensas, longas. Era bem legal.
P/1 – Uau! E ela era do Rio?
R – Era do Rio. Não. Na verdade, ela nasceu no Ceará. Mas ela estava no Rio há muitas décadas. E ela fez uma passagem por Brasília, um período antes de Brasília ser fundada. Ela trabalhou lá pro Juscelino Kubitscheck e depois voltou pro Rio de Janeiro. Mas a minha avó, ela era uma servidora pública, com uma história incrível. Uma carreira muito interessante. Mas a avó que eu tenho na mente, assim, já era uma fiscal da Receita Federal, que foi o último cargo, onde ela ficou muitos anos. E eu lembro dela ainda trabalhando, tal. Depois se aposentou. E outras histórias que eu tenho na mente, assim, dela. Mas é isso.
P/1 – E, André, você sabe a história do seu nascimento? Como escolheram o seu nome?
R – Como escolheram o meu nome, eu não sei. Honestamente, não. Não sei. Bom, André e Adriana é muito parecido, né? Assim, tem a mesma raiz e tudo. Então, eu não tenho uma história, assim, nem de indecisão, de embate, de procura, não. Não me lembro disso. Mas a história do meu nascimento, ah, tem várias histórias. Eu falei muito da minha avó, mas quero aproveitar e contar da minha tia Dulce, que foi uma pessoa importantíssima pra mim, irmã do meu pai. E ela era a zeladora das histórias da família, uma excelente contadora de histórias. Então, todas as histórias que eu sei da família do meu pai e da família também da minha mãe, eu ouvi da Dulce. Então, era fantástico, assim. Eu lembro, eu gostava muito de estar com ela, de frequentar a casa dela... trazia certo, até, mal-estar, assim, porque eu chegava na casa da minha avó, que era quem nos hospedava, a mãe da minha mãe. Era a nossa sede no Rio de Janeiro, nosso quartel-general. Então, em determinado momento, tinha aquela recepção, aquela coisa de avó, né: “Olha o que eu comprei pra vocês, porque eu sei que vocês gostam disso, de comer aquilo”. Curtindo os netos, paparicando os netos e com altos programas para fazer. A minha avó, toda organizada e metódica, já tinha os filmes que a gente ia ver, os espetáculos que a gente ia assistir, o teatro que a gente ia, né? Eu adorava aquilo tudo, achava maravilhoso, mas eu queria ir logo pra Dulce, pra minha tia. Então, a minha mãe falava assim: “Meu filho, pelo amor de Deus, vai mais dois dias, pelo menos, né? Você não pode ir já amanhã. Segura a tua onda, depois você vai”. Porque eu queria, também eu estava muito ansioso pra ir pra Dulce. E rolava uma ciumeira, né? Claro. Mas eu sempre dava um jeito de conciliar os humores e as atenções, tal. Mas as minhas viagens pro Rio ficavam divididas entre essas duas casas. E a pergunta era? Nem lembro mais. A história do meu nascimento, não é? Acho que era isso, né?
P/1 – É, mas é isso. Não... a história do seu nascimento também deve passar pela Dulce, pelas avós...
R –Tem. Tem uma história. Eu não sei se... tem uma história engraçada, que foi o seguinte... hoje também, mas no meu tempo – a gente está falando de 1975 – era um abuso a questão das cesáreas. Todo mundo nasceu de cesariana. Era uma loucura completa. Então, eu e a minha irmã nascemos assim, não foi parto normal. E o meu nascimento estava programado para duas semanas depois da data em que, de fato, eu nasci e a Dulce contava essa história. Era de enlouquecer os detalhes que ela contava. Mas ela disse que estava com a minha mãe, barrigão, porque o meu pai precisou fazer uma viagem, o meu pai era ligado a finanças internacionais, então ele vivia viajando. Então, ela foi lá fazer companhia pra minha mãe, no final da gestação. E a minha mãe, em determinado momento, à noite, saiu do banho e falou pra minha tia: “Dulce, que engraçado, a minha barriga está fazendo uma coisa, assim, muito estranha. Ela fica dura e daqui a pouco fica mole. Mas não está doendo, não está nada. Mas que engraçado, eu não senti isso até agora”. Aí a minha tia Dulce foi lá olhar e viu, falou assim: “Escuta. Você vai parir. É isso o que está acontecendo. Você está achando engraçado, mas você vai começar a ter contrações”. Ela falou: “Não, imagina. O André só vai... a cesárea está marcada para daqui duas semanas. Não tem jeito. Não vai ser hoje”. Ela falou: “Vai ser hoje. Se arruma, porque vai ser hoje”. E foi mesmo. Essa coisa engraçada da barriga endurecendo e ficando flácida, mole, aconteceu, sei lá, às nove da noite e eu nasci à meia-noite e quinze do dia dezessete. Eu sou quase do dia dezesseis. Essa é uma história engraçada, do meu nascimento.
P/1 – E, André, você se lembra da casa onde você passou a sua infância?
R – Eu lembro. Nós fomos uma família que mudou muito de casa. Desassossego do meu pai, assim, bicho carpinteiro. Então, mas eu lembro. Eu lembro bastante das casas. As casas do Rio não, porque eu era muito novo. Mas eu lembro dos apartamentos em São Paulo. Eram sempre apartamentos. Campos Bicudo, Barão do Triunfo, Macuco. Cinco apartamentos. É. Cinco apartamentos. E eu lembro, eu lembro bem de todos eles.
P/1 – Teve algum bairro, algum desses apartamentos que foi mais marcante pra você, que você ficou mais tempo?
R – Ah, eu acho que eu tenho mais memórias de dois deles. Um na Barão do Triunfo, no Brooklin, que eu não sei se a gente ficou mais tempo, mas é um período da minha infância que eu tenho memórias muito fortes, muito marcantes. E o outro já pré-adolescência e adolescência, foi na Avenida Macuco, em Moema. Eu lembro muito desse, também, mas por outras razões: amizades que surgiram. Eu meio que, nessa fase, tive duas casas, porque tinha o apartamento do meu pai, que era muito próximo e ele sempre me incentivou muito a ir pra lá, dormir lá, passar uma noite lá. A gente assistia filme até tarde, depois eu ficava lá, só voltava pra casa no dia seguinte. Então, tive essas duas casas. Então, sim, tenho boas memórias desses dois endereços em São Paulo.
P/1 – E as brincadeiras? O que você mais gostava de brincar, nessa época?
R – Eu lembro muito de jogos de tabuleiro, que eram bem importantes, na nossa infância. Não tinha muita brincadeira de rua, tanto quanto eu gostaria e acho saudável, mas não tinha. Tinha brincadeiras dentro do prédio, né? Era assim: a gente tinha piscina, não sei o que, uma área onde a gente andava de bicicleta, jogava bola. Enfim, muita coisa, muita brincadeira dentro do prédio. Na época, o meu pai estava se apaixonando pelo tênis, que foi o esporte que ele mais praticou. E ele começou a frequentar alguns clubes em São Paulo, até se achar no Clube Hípica de São Paulo. E ele me levava pra lá. E eu ficava horas e horas e horas curtindo os cavalos, curtindo os bichos. Eu adorava. Ele queria que eu jogasse tênis com ele, que eu nadasse com ele, que eu corresse. O meu pai corria, sei lá, onze, quinze quilômetros. Eu achava aquilo um porre. (risos) Então, eu detestava. Ele ficava meio frustrado. Mas, enfim, eu corria e ficava o dia inteiro por conta daqueles cavalos lá. Fiz amizade com os profissionais, eles deixavam, me indicavam qual cavalo era bravo, onde eu não podia mexer, com qual eu podia mexer. E eu fiquei uns bons anos curtindo isso. Tanto que cavalo é o meu bicho predileto, assim.
P/1 – E, nessa fase, ainda na infância, você pensava o que você queria ser quando crescer, esses sonhos de profissões?
R – Eu tinha na mente, assim, que eu queria viajar, eu queria muito viajar. Coisa que, no final das contas, não rolou. Mas, assim, eu queria uma profissão que me permitisse viajar bastante, uma coisa assim recorrente, que eu tinha muito em mente. Acho que um pouco mexido com os relatos da minha avó, que viajou bastante a trabalho, da minha tia, que também era viajadeira. E do meu pai, que eu via sempre viajando pro exterior. Então, eu tinha isso em mente, assim. Mas não especificamente uma profissão. Eu sabia que eu queria circular, viajar e transitar.
P/1 – E, André, você pincelou falando que passava, visitava Santos, na infância.
R – Foi.
P/1 – Como que rolou isso?
R – Ah, foi o seguinte: eu, nesse prédio do Brooklin - é, nesse... é do Brooklin? É - eu tive o meu melhor amigo, o Daniel, morava lá. A Márcia, a mãe dele, ficou muito amiga da minha mãe. Então, nós frequentamos muito as casas, uns dos outros. E a Márcia e o marido dela, o Osmar, tinham um apartamento em Santos e eles vinham muito pra cá. Sei lá, não sei se todo final de semana, mas muitos finais de semana. Certamente, todos os feriados e todas as oportunidades, sempre vinham. E a Márcia gostou da ideia de me trazer sempre, porque eu era uma companhia legal pros três. E eu acho que ela viu que eu era de boa, não aprontava, não dava muito trabalho, tal. Então, eu, durante muitos anos, frequentei Santos, direto, direto, direto. E me apaixonei por isso aqui e fiz amigos já dessa época, aqui. E frequentei os carnavais de Santos. Conheci as praias. A Márcia ficou viúva muito cedo. O Osmar morreu num câncer, assim, horroroso, fulminante. Mas ela nunca parou de descer. Então, sei lá, eu acho que... eu não lembro bem a idade, mas talvez dos dez aos dezessete, eu frequentei Santos, com muita frequência.
P/1 – Imagino que, ao longo do tempo, as atividades foram mudando, mas o que vocês curtiam fazer, visitar?
R – Bom, assim: o programa principal era a praia. Eu lembro que o apartamento deles era no José Menino. Então, era só atravessar a avenida e estávamos na praia. Muitas histórias de praia, né? A gente era, a gente virava peixe. Eu acho que a gente entrava no mar de manhã e só saía da água no fim do dia, era impressionante. A gente gostava muito. Mas eu lembro de alguns passeios. Eu lembro do centro histórico, algumas coisas. Eu lembro de uns lugares em que ela gostava de levar a gente pra comer. A gente comia um pastel, eu não lembro exatamente o nome, mas eu lembro que ela adorava e a gente gostava também de comer aquele pastel. Tinha uma sorveteria que ela era muito fã, na própria avenida da praia, próxima ao prédio, a gente gostava também. Lembro de ela ter levado a gente ao Aquário. O Aquário, algumas vezes, a gente curtiu aquilo. Carnaval de rua. Teve uma época em que o Carnaval era na avenida da praia, eu lembro muito disso. Então, chegava na hora, a gente descia com cadeiras de praia, cada um com a sua cadeirinha e a gente sentava, assim, pra curtir os desfiles. Era bem legal.
P/1 – Voltando um pouco, eu queria saber se você se lembra da primeira escola que você estudou.
R – Sim, eu me lembro. Escola Morumbi, em São Paulo. Eu lembro. Eu não gostava muito de ir pra escola. Nunca gostei. Nunca fui bom aluno. Só na faculdade que eu peguei gosto de estudar, mas eu nunca fui... eu sempre dei muito trabalho pra minha mãe. Muito. Lembro da minha irmã muito estudiosa, muito dedicada, assim, tirando notão, sendo super orgulho, tal e eu enlouquecendo a minha mãe. Lembro muito, assim, novembro, quarto bimestre, minha mãe chorando pra professor particular de matemática, física, química: “Meu filho vai perder o ano, pelo amor de Deus”. E eles falando: “Mas minha senhora, eu não tenho horário. É novembro. Eu não tenho”. Ela: “Pelo amor de Deus, ele precisa tirar onze na prova. Pelo amor de Deus”. Assim, muitos anos, isso. Não sei como é que eu fiz isso com ela, mas enfim, (risos) eu detestava estudar. Mas melhorou. Era muito ruim nessa escola. A escola é maravilhosa. Eu não me enquadrava. Eu não estou questionando o currículo da escola, a escola é maravilhosa. Mas, assim, eu não gostava. Eu não me entendia. Não era pra mim. Não era uma escola maravilhosa pra mim. Depois fui pro Pueri Domus, me entendi melhor. Mas, mesmo assim, dei muito trabalho ainda. Eu detestava. Eu cabulava aula. O Pueri Domus, a unidade onde eu estudei, tinha uma biblioteca maravilhosa. E eu ‘cabulava’ aula e me metia dentro da biblioteca, me ‘entocava’ lá, gostava de ler. Mas eu não gostava de estudar, não, assim, de ficar na sala de aula. Cabulei muita aula, sempre passei raspando. Lembro que, quando eu concluí o ensino médio, eu precisei terminar o ensino médio... é. Eu terminei o ensino médio no Objetivo, que na minha época tinha uma coleção imensa de apostilas e livros deles. Era uma coisa, assim, que não acabava: pilha e pilhas e pilhas. Eu lembro de ter vindo pra Santos, quando eu terminei o terceiro ano do ensino médio e eu fiz uma figueira com as minhas apostilas. E tomei um porre. E dancei em volta da fogueira, assim, que nem índio. Assim, um rito de libertação muito louco, assim. Eu não gostava, mesmo.
P/1 – Muito bom.
R – É.
P/1 – Teve algum professor que tenha te marcado, de alguma forma?
R – Tem. Tem. Tem. Tem dois professores. Mas especialmente a professora Heloísa. Três professores que me marcaram. A professora Heloisa, de biologia, no ensino médio, que era a única coisa que fazia sentido pra mim. Já era uma pista. Eu gostava muito, aquilo entrava na minha cabeça. Eu gostava das aulas, das práticas, das atividades. Peguei um gosto por aquilo. E ela era... eu acho que ela entendeu. Ela devia, sei lá, de algum jeito – acho que no conselho de classe, não sei - saber do meu péssimo desempenho nas outras disciplinas. Então, eu acho que ela viu que tinha um valor ali, naquele meu interesse, né? Então, ela sempre me incentivou muito. E, no terceiro ano, foi ela que olhou pra minha cara e falou: “Bom, está na cara que você vai ser um biólogo. Isso, pra mim, está muito claro, desde o ano passado”, antes de eu saber. E ela estava certíssima. E lembro também de um professor cujas aulas me marcaram muito: o professor Celso Antunes. Eu tive aula com ele e era uma coisa, assim, eram umas aulas diferentes, no auditório. Ele reunia duas, três turmas e fazia uns julgamentos. Ele colocava dilemas e questões políticas e discutia ética. E aquilo ficava incendiado, em determinado momento. E ele conduzia a gente pra discussões e debates. E a gente, de vez em quando, era selecionado para interpretar papéis. Então, aquilo era muito bom, era muito especial, eu lembro bastante. Depois, virei professor, né? E, em determinado momento - vou aproveitar que eu estou falando do professor Celso Antunes e vou comentar isso: eu fui dar aula no Centro Paula Souza, numa escola técnica daqui de Santos, o Aristóteles Ferreira - eu e outros colegas fomos convidados pra ir pra administração central, em São Paulo, para montar um grupo do ensino médio que ficou responsável por capacitação, formação, atualização e laboratório de currículos do ensino médio, das duzentas unidades no estado e a gente ficou alguns anos preparando cursos para os professores do Centro Paula Souza. E teve um encontro de formação em especial, em que eu lembrei, eu usei um texto do Celso Antunes, do professor Celso Antunes. E aí eu não aguentei e escrevi pra ele. Meio que uma desculpa, assim: “Ah, posso usar o seu texto?”, tal. Mas eu sabia que eu podia usar. Mas, enfim, eu queria retomar contato com ele e escrevi um e-mail gigante pra ele, dizendo que eu lembrava da aula específica em que a gente trabalhou com aquele texto, um texto chamado Persona, muito interessante. E ele respondeu. Ele foi uma graça, respondeu o meu e-mail, foi super gente boa, gente fina. Depois eu acho que a gente até nos falamos por telefone. Mas foi bem legal. Eu lembro bem das aulas dele, também.
P/1 – E como foi esse período pós escola? Não sei. Você começou a trabalhar logo? Ou você já foi pra faculdade? Como foi essa transição?
R – Eu, antes de terminar o ensino médio, comecei a trabalhar numa locadora do bairro. E, apesar dos inúmeros avisos e alertas da minha mãe, de que eu ia focar mais no trabalho do que nos estudos, eu falei, eu prometi, jurei que não. Mas realmente aconteceu isso. E eu repeti esse ano. Mas tudo bem. Mas eu fiquei dois anos trabalhando nessa locadora, o que foi ótimo pra mim, porque eu, nesses dois anos, assisti muita coisa legal. Então, a locadora não abria aos domingos. Então, no sábado à noite, a gente podia levar na mochila, tudo o que a gente quisesse pra escolher em casa, o que a gente ia ver. Óbvio que a gente não ia assistir dez coisas no domingo, né? Mas a gente, eu começava a assistir filme no sábado à noite e assistia dois, três filmes no domingo e segunda-feira devolvia pra locadora. Então, eu vi muita coisa importante, legal, pra mim. Foi ótimo ter trabalhado lá. Depois, eu não passei... no ano que eu concluí o terceiro ano do ensino médio, eu prestei vestibular, mas só prestei as públicas, não passei. Me dei muito mal, porque eu não estudava, mesmo. Então, aconteceu que, no ano seguinte, eu conciliei o cursinho à noite, com o Exército, porque eu servi o Exército. Não fui voluntário, mas fui, sei lá, pego. Enfim, fui forçado a servir. Fiquei treze meses num quartel em São Paulo, Segunda Divisão do Exército. Depois disso, o que aconteceu? Ah, bom, aí eu estudei no cursinho e passei. E fui estudar Biologia em Mogi das Cruzes, na Universidade de Mogi das Cruzes. E lá foi ótimo. Eu, logo no primeiro ano, participei de um processo seletivo e fui selecionado para um instituto de pesquisa, Centro de Monitoramento Ambiental da Serra do Itapeti, que foi o meu primeiro trabalho. Eu fui estagiário, virei bolsista da instituição. Mas eu fiquei a graduação inteira e depois fui efetivado. Foi a experiência mais importante pra mim, durante a faculdade. Eu, até... pediram pra eu trazer uns objetos, né? E um dos objetos que eu trouxe, foi relacionado a isso. Eu não sei se pode mostrar. Pode mostrar? Aqui, ó, sou eu fazendo trilhas interpretativas, no Parque Natural Municipal da Serra do Itapeti, o primeiro parque natural municipal do Brasil. Eu, estagiário, ainda, mas muito interessante. Foi importante pra mim, essa experiência no Cemasi, porque até então, eu tinha certeza absoluta que eu ia estudar genética. Eu entrei pra faculdade pra estudar genética, que foi a minha paixão no ensino médio. E eu achava que era o meu único talento. E escolhi essa - eu passei em duas - porque essa, na época, essa universidade tinha uma parceria com a Polícia Federal, para esclarecer crimes. Tinha um laboratório de genética que auxiliava a Polícia Federal, para esclarecer crimes. Eu achava isso fantástico. E meti na cabeça que era isso que eu ia fazer. Mas passei nesse processo seletivo e fui trabalhar com biologia da conservação de florestas tropicais. E depois eu não parei mais de mexer com isso, sempre foi Mata Atlântica e Floresta Amazônica. Eu me apaixonei, esqueci completamente da genética e fui só trabalhar com conservação de florestas tropicais. Então, foi isso.
P/1 – Não sei. Se você quiser comentar um pouquinho mais sobre essa experiência...
R – Tem uma coisa que é interessante, que essa foto que eu mostrei, esse lugar, esse Parque Natural Municipal da Serra do Itapeti, em Mogi das Cruzes, de alguma maneira incrível, está ligado ao meu trabalho hoje. Eu acho. Apesar de terem se passado, sei lá, nem sei, quase vinte anos ou um pouco menos. Mas é o seguinte: dentro dessa unidade de conservação onde eu trabalhei como bolsista, como estagiário, havia um sítio arqueológico. E esse sítio arqueológico estava sendo estudado pela professora Margarida Andreatta. E eu achei aquilo fantástico e me aproximei das escavações. Eu não podia participar, mas eu fiquei curioso e aprendi algumas coisas. Eu chegava mais cedo, saía mais tarde, conversava com os estagiários dela, com a equipe dela. Fui atrás do plano de manejo do parque, para aprender um pouco mais sobre essa história de sítio arqueológico, enfim. Então, eu fui estagiário numa unidade de conservação com um sítio arqueológico dentro. Anos depois, participei de um concurso para educador junto ao Engenho dos Erasmos, que é um sítio arqueológico, hoje, com uma unidade de conservação de Mata Atlântica em volta. Então, eu tenho a impressão de que o meu desempenho no processo seletivo foi marcado pela minha experiência lá na Serra do Itapeti, com a professora Margarida Andreatta. Eu acho que eu não hesitei em me inscrever e não hesitei em dar tudo o que eu tinha – estudei, devorei a bibliografia, o edital, tudo, enfim, quis aprender tudo. Eu queria muito e me esforcei demais pra ter um bom desempenho nesse concurso. E deu certo, aconteceu. E o Engenho dos Erasmos teve uma escavação muito importante, coordenada pela professora Margarida Andreatta. Então, isso já tinha acontecido, quando eu cheguei lá, mas eu estudei para o concurso, os relatórios dela. Então, sei lá, achei que era uma volta muito louca da vida. Interessante.
P/1 – Vamos voltar só um pouquinho? Ah, não sei se voltar, mas na juventude, assim, essa época, como você se divertia? Você ainda morava em São Paulo, ou você já tinha se mudado? Como foi esse período?
R – Juventude?
46:33) P/1 – É. Um pouco a transição, entrando pra faculdade. Ah, do Exército também, como foi essa experiência pra você?
R – Foi bem marcante. Eu não queria, não queria, não queria, fui bem a contragosto. Estranhei bastante, no começo. Mas, no final das contas, são dobras que a gente faz na vida. A gente vai dando um jeito de as coisas ficarem interessantes, né, se a gente pode. Então, no final das contas, foi ruim, teve um estranhamento no começo. No final, deu tudo certo, como costuma dar. Assim, eu fiz ótimas amizades, me entendi lá com os oficiais. Fui trabalhar no gabinete do General Nialdo Neves de Oliveira Bastos. Esse nome eu nunca vou esquecer, porque na fila do almoço, era uma fila imensa, a gente só podia servir se a gente soubesse de cor o nome do general, do capitão, do tenente, do tal. Então, a gente ficava na fila, decorando as patentes e os nomes, porque se você errasse, você ia pro final da fila. Era, (risos) enfim, coisas do Exército daquele tempo. Hoje, eu não sei se ainda tem isso. Mas a gente decorou. E, no final das contas, eu fui escolhido, selecionado lá, pra trabalhar no gabinete dele. Era a Segunda Divisão do Exército e ele era comandante do Comando Militar do Sudeste, enfim. E foi interessante. Tinha lá uma rotina de trabalho. A gente tinha uma rotina de trabalho. Eu aprendi um bocado de coisas ali, sobre rotinas. Eu era muito novo, tinha dezoito, dezenove anos. Acho que era a primeira vez que eu estava num lugar com tanta cerimônia, com tanto rito, mas foi interessante. Eu passei ileso, não fui preso, teve colega meu que era preso, não aparecia, eles iam buscar em casa. Eu fiz tudo direitinho e passei ileso, assim, com boas memórias. De vez em quando tinha umas sacanagens, de militar entediado, que ficava fazendo a gente limpar o mesmo corrimão, trinta vezes, mesmo estando bom. (risos) Umas coisas assim. Mas, enfim, a gente não teve nada de ruim, de traumático, de nada. Eu aprendi muita coisa e fiz amigos. Logo depois disso, fui pra Mogi, que foi muito legal, foi muito bom. Foi muito bom, porque saí de casa. Aí foi legal. Foi bem legal. Ah, foi muito bom. Eu fiquei uns cinco anos morando em Mogi. Frequentando São Paulo, naturalmente. Mas o que aconteceu? Eu não queria voltar de jeito nenhum, porque eu gostei muito da experiência de estar fora de casa, foi bem legal. E também pelo seguinte: porque os meus pais estavam separados. Então, eu saí da casa da minha mãe. E, enquanto eu estava na faculdade, os meus pais voltaram. Depois de dez anos separados, eles começaram a namorar de novo. Então, os meus pais, enquanto eu estava na faculdade, os meus pais se separaram. Então, eu saí da casa da minha mãe. E, enquanto eu estava na faculdade, eles começaram a namorar e voltaram. Então, quando eu terminei a faculdade, começou um agito de: “Olha, agora você volta pra cá, né? Volta pra casa”. Mas aí eu já voltaria pra casa dos meus pais. Aí é que eu não queria mesmo, de jeito nenhum. Então, eu fiz de tudo pra não voltar pra casa. Arrumei, me virei em trabalho. Eu precisava dar um jeito de manter lá, as contas, dividi apartamento, me virei nos trinta. Não dava mais pra ficar no instituto de pesquisa, que era a minha paixão, mas que pagava pouco. Então, eu formado, falei: “Bom, se eu não quero voltar pra casa, se eu não quero voltar para São Paulo, eu vou ter que trabalhar”. E assim fiz. Então, do instituto de pesquisa, eu já emendei em vários trabalhos. E não voltei, mesmo. Eu não voltei mais pra casa. Fiquei em Mogi mais um tempo e depois fui pro Pará. Morei no Pará.
P/1 – Como foi essa viagem?
R – Foi o seguinte: ainda no final da faculdade, eu tinha uma amiga jornalista em São Paulo e ela me chamou, uma vez, para auxiliá-la num projeto de uma rádio, que ficava em Diadema. Depois eu descobri que era uma rádio pirata. Mas, enfim, era ótimo. Era ótimo. Mas, enfim, era uma questão lá de concessão. A rádio fazia um serviço comunitário maravilhoso. Era super importante. Eu fiquei três anos super envolvido com a rádio. Eu tinha um programa, aos finais de semana, sobre Mata Atlântica. Eu escrevia com um imenso prazer, aquilo. Ficava atrás de sons de aves, de CD com som de bicho. E falava sobre espécies nativas e exóticas e tal. Então, ela me chamou pra fazer um programa. Eu acabei me envolvendo mais. A gente ficou muito amigo. E eu curti muito esse negócio de rádio, que a gente chamava de rádio comunitária. Depois que a polícia federal foi lá, fechou tudo e levou todo o material da gente, que eu entendi que era uma rádio pirata. Mas ok. Essa jornalista que, assim, tinha mais ou menos a idade da minha mãe, mas era uma senhora, assim, incrível, sensacional. E ela fazia vários programas, gerenciou a rádio. Era muito dedicada a aquilo, importante pra ela, também. E ela montou um time e viu que eu estava empenhado, me botou no time também e me dava corda, me incentivava. Então, eu estava me sentindo, assim, super bem de trabalhar na rádio, aprendendo um monte de coisa, a operar mesa, tal. E, frequentando a casa dessa jornalista, eu conheci a irmã dela. E foi com quem eu casei, a Claudia. Mas a Claudia morava em Belém. Era uma família toda de lá. A Ana, a Ana Cleide morava aqui. Mas a Claudia morava em Belém e vinha nas férias e era quando a gente estava junto. Então, quando eu vi que estava muito ruim segurar a onda em Mogi das Cruzes e eu não queria voltar pra casa, ela começou a me chamar, falar: “Vem pra cá, que a gente dá um jeito”. E eu falei: “Estou indo. Estou indo” e fui. E fui pra Belém. Fiquei quatro anos lá. Casamos. A minha filha nasceu lá. E só voltamos depois, quando a minha filha ia fazer um ano, mais ou menos, é que a gente voltou.
P/1 – E como foi essa experiência de mudar para Belém? Você já tinha ido pra lá?
R – Não. Não. Não. Nunca tinha ido, não. Eu sabia, achava que eu sabia muito, de conviver com a família. Assim, com as irmãs, namorando com a Claudia, achei que eu sabia, mas não. Nada me preparou para morar em Belém do Pará, mas eu gostei muito. Eu gostei muito. E eu estava pronto pra ficar. Assim, trabalhei lá, um bocado de tempo. E a gente estava, assim, procurando apartamento pra financiar. O plano era ficar. Mas o que aconteceu é que a empresa onde eu trabalhava quebrou, faliu. Eu trabalhei durante um tempo, numa empresa que fazia relatórios de impacto ambiental para obras de larga escala, em toda a região metropolitana de Belém. Então, eu trabalhei lá com arqueólogos e antropólogos, enfim, com uma turma bem interessante. E houve um relatório, o principal relatório que a gente fez, pra uma avenida importante lá e pra alça viária. Na época, um projeto que ia integrar todo o estado, tal. Foi um projeto imenso, da Secretaria Estadual de Transportes. E o governo, na ocasião, deu um calote, não pagou. Ou o dinheiro... eu não sei, porque os proprietários da empresa, quem nos contratava, não entrou em detalhes. Mas eles tomaram um super calote. E aí, todos nós ficamos sem trabalho. Na época em que a minha filha tinha nascido, né? Foi o pior momento pra ficar sem emprego. E a gente recebeu o que tinha que receber, em doses homeopáticas, quando dava. Foi muito ruim. Então, eu não tinha como ficar lá sem trabalho, com um bebê. E, na ocasião, eu falei com os meus pais e eles falaram: “Vem pra cá, que a gente se vira”. E eles tinham as lojas, né? Os dois estavam com aquela empresa. O meu pai já tinha se aposentado, mas tinha as lojas. E eu voltei, fiquei um tempo trabalhando com eles. Foi o que segurou a onda. Mas o plano era ficar lá mais tempo, de tanto que eu gostava. Eu gostei muito. Eu gostei muito. A família da minha esposa, o meu sogro, a minha sogra, maravilhosos. Maravilhosos. Eu tenho histórias incríveis. Dava pra ficar três dias de estúdio, aqui, contando as histórias maravilhosas daquela casa. E também a primeira vez que eu morei numa casa, né? A primeira vez na vida, eu morei numa casa. Era uma casa na Cidade Velha, um bairro assim... era uma casa antiquíssima, que foi crescendo pra trás e pros lados. Era uma casa muito interessante. E eu fui criado em apartamento. Então, pra mim era tudo novidade. O meu sogro dizia que eu era ruim até pra tomar choque. Ele tirava onda. (risos) Ele falava que, né, ele me chamava: “Vamos subir no telhado, porque o vento levou a telha. Vamos trocar o encanamento, quebrar a parede não sei das quantas. Vamos podar o açaizeiro. Vamos não sei o quê”. Enfim, atividade de casa. E eu não sabia fazer nada disso. E ele foi maravilhoso, porque ele viu que eu queria aprender, que eu tinha interesse, boa vontade. Então, foi bem divertido. Ele foi um super “professorzão”, assim.
P/1 – André, não sei, você quer contar alguma dessas histórias com a sua nova família? Como foi? Não sei.
R – Ah, tem algumas histórias. Vou contar uma. Eu, no começo, assim, o calor é uma coisa, o corpo sofre horrores. Eu, realmente, não estava preparado, o meu organismo não estava preparado para aquilo. Então, quando eu ia comer, no final de semana, eu ia pra casa do meu sogro, da minha sogra, eles faziam almoços especiais pra mim e pros outros filhos, que também podiam aparecer. Então, era uma coisa, tinha muita comida. Era um jeito que eles tinham de demonstrar afeto. Muita família tem isso, né? Mas, assim, eu estava apanhando com o calor. Então, o meu apetite sumiu. E a gente sentava pra comer e eu comia um pouquinho e falava: “Nossa, mas está uma delícia. Mas está gostoso. Mas está ótimo”, tal. E eu estava lá, batendo papo. Mas o meu sogro, “seu” Sandoval, não se conformava. E ele falava assim pra esposa, pra minha sogra, falava: “Iolina, vai fritar um ovo, que o Comprido não gostou da comida. Ele não gostou. Vai fritar um ovo”. Daí daqui a pouco chegava ovo frito, chegava... porque ele falava assim: “Esse cara não está comendo. Ele não está gostando da comida”. Eu falava: “Não, não é nada disso. Para, está tudo bem. Eu estou satisfeito”. Mas não adiantava, eu tinha que comer. Aí depois, eu, literalmente, morria numa rede lá, em algum canto e ficava lá em estado catatônico, pra lidar com aquela... tudo novo: tempero novo, comidas novas, sabores novos. E aquele calor, é uma coisa de louco. Eu acho que eu nunca acostumei com o calor. Mas fui me adaptando, naturalmente. Mas me acostumar, não. Mas, no começo eu sofria, aí tinha essa coisa da comida. Mas depois eu aprendi, assim, a comer tudo, não tinha nada, nada, nada que eu não gostasse. Eu fiquei superfã de todas as comidas, de todos os jeitos de comer, de todos... eu trouxe, até, objeto também dessa época. Pode mostrar? Deixa eu mostrar.
P/1 – Pode, claro.
R – Deixa eu ver. Tem uma história de lá, que eu quero contar, que é o seguinte: fazendo o levantamento dos impactos, dos relatórios de impacto ambiental, eu viajei pro interior, eu fui para áreas de mata, de floresta. E a gente fazia trilhas, tal. E teve uma ocasião em que eu estava numa cidade pequena e a gente tinha que fazer uma trilha. O meu time estava fazendo levantamentos de flora e fauna e o arqueólogo estava atrás de sítios arqueológicos. Isso, no trajeto das avenidas e das obras. E eu lembro que eu ia fazer uma trilha que eu não estava, particularmente, preocupado, mas eu estava sentido uma apreensão da galera e eu não estava entendendo muito bem. E a gente parou pra comer numa casa de uma senhora muito gente boa e ela perguntou pra eles qual era a trilha que a gente ia fazer, que horas a gente ia voltar. E aí ela perguntou de mim. Porque devia estar na minha cara que eu não era de lá. Evidente, né? Então, ela foi conversar comigo, perguntou se eu sabia aonde é que eu ia andar, que não sei o quê. E eu devia estar desencanadíssimo. E ela foi lá pra dentro da casa dela e voltou com isso aqui. Ela voltou com isso aqui e falou assim: “Meu filho, presta atenção: você vai amarrar isso na sua bota. Isso aqui é um dente de jacaré-açu. E você vai amarrar na sua bota, pra você se livrar de cobra, porque tem muita cobra ruim no caminho que vocês vão andar”. E, pô, eu comecei a ficar com medo, porque ela falou aquilo com uma solenidade, com uma seriedade, olhando no fundo dos meus olhos. Eu entendi que ela era uma bruxa velha, né, daquela comunidade. E eu, na hora, falei assim: “A senhora pode me benzer também?” (risos) Ela falou: “Claro”, tal. Aí ela fez lá uma reza, tal. E eu amarrei esse negócio na bota, com certeza. E fui, assim, com o olho bem atento. E até hoje eu amarro isso na bota, quando eu vou fazer alguma trilha, eu entro em alguma mata, alguma coisa. Mas essa história foi muito marcante, assim, pra mim. Eu conheci figuras fascinantes, viajando pelo Pará. Em especial, as mulheres mais velhas, que fazem garrafadas, que são cozinheiras e que são feiticeiras e que são bruxas. Assim, essas figuras, muito marcantes, com rezas, benzedeiras, com remédio pra tudo. Profundas conhecedoras das ervas. E não é só a erva. É fantástico. Tem uma época certa de colher, uma lua certa para colher. Tem um jeito certo. Tem um número de dias certo pra deixar a garrafa enterrada, aonde, né? Não é qualquer fogueira, tem madeira certa para usar, na época certa. É maravilhoso. É maravilhoso. E essas coisas não estão em nenhuma biblioteca. Não é uma coisa que você vá pra uma biblioteca, abrir um livro, pra aprender qual é... sei lá, que tem uma madeira certa, para transformar em braseiro, pra benzer uma criança que está com alguma coisa. Elas têm um conhecimento muito profundo, né, disso tudo. E, pra mim, além do casamento, do nascimento da minha filha, o que ficou de muito forte foi essa dimensão humana da biodiversidade amazônica. Isso me marcou profundamente, assim.
P/1 – Como é isso? Quer falar um pouquinho mais da dimensão humana?
R – Da biodiversidade? Porque a floresta dita as regras pras comunidades que estão ali. Então, as marés, os ventos, os animais, as plantas, os ciclos da água, as comunidades vivem, têm um laço muito forte do conhecimento deles de todos esses segredos e esses ciclos e essas regras e essas lógicas. E a floresta também ensina e sustenta, a pesca e o açaí e, enfim, toda essa economia da floresta, que é o avesso de predar a floresta e derrubar tudo e botar no chão. Mas o outro lado da economia da floresta é muito fascinante, é muito lindo. É o que eu sinto mais falta, é o que eu tenho mais saudade. É o que eu aprendi a observar, quando viajo pra qualquer lugar. É o gosto que eu tenho, observar as figuras e os hábitos, as maneiras de fazer, os saberes, os quereres das populações tradicionais, que eu acho isso muito lindo. Realmente, muito especial. E profundamente ameaçado. Isso é muito triste.
P/1 – André, como foi se tornar pai? O que a paternidade representou na sua vida?
R – Tudo. Mudo tudo. Muda a cor do mundo. Ser pai muda a cor. O mundo fica de outra cor, de outro jeito, dentro e fora. Eu trouxe uma foto da minha filha maravilhosa. Eu faço questão de mostrar. Ela é muito linda. Agora ela está com dezenove anos. Mas essa é super princesa. É Beatriz, o nome dela. Aí, foi muito bom. É muito bom, mas tornar-me pai foi muito bom. E a gente revê, instantaneamente, a gente começa a rever planos. E o que antes dava pé, de repente, não parece mais interessante. E a gente revê critérios e encara outras coisas e ganha uma escala temporal. A vida da gente ganha uma escala temporal. A gente ilumina um futuro que antes não estava iluminado, assim, começa a fazer planos numa outra escala. Pô, é bom demais. É bom demais. Eu sou muito, muito amigo e parceiro e confidente e aliado. Amigão, amigão. A gente é muito amigo. Muito, muito, muito. Bom demais.
P/1 – E como foi essa volta? Você foi pra São Paulo, depois de Belém? Ah, voltou pra casa dos seus pais. Como foi morar junto com eles?
R – Bom, eu não queria de jeito nenhum, como eu falei, mas quando você está com a sua filha no colo, de repente, aquilo pareceu a coisa mais óbvia e correta e adequada. E broncas, encanações e travas, sumiu tudo, acabou tudo. De ambos os lados. Se é que teve, por parte dos meus pais, eu acho que não, antes, né? Mas com neto, com neta, ah, não, aí todas as portas se abrem e tudo fica mais fácil. E foi ótimo. E eu descobri que eu estava morrendo de saudades de casa. E nós fomos muito bem acolhidos. E imediatamente comecei a trabalhar e me senti útil. E senti que eu tinha um plano, que eu tinha uma saída, que eu tinha um chão. Porque foi horroroso ficar sem trabalho em Belém. Foi muito assustador. Bater em várias portas lá e não conseguir, foi muito assustador. Então, tratamos de voltar logo. E foi muito bom. E meus pais paparicaram demais a minha filha. E, pelo amor de Deus, foi lindo. Foi muito legal.
P/1 – André, talvez eu dê um pequeno salto, mas eu queria saber como foi essa experiência de prestar o concurso público e começar a trabalhar no Engenho São Jorge dos Erasmos.
R – Ok. Bom, eu estava trabalhando com os meus pais, mas eu não queria ficar muito tempo. Assim, nas lojas, eu estava vendo que tinha trabalho pra três de mim. E quando as coisas davam certo, aparecia trabalho pra quatro de mim, porque era isso, era uma loja nova, né? Então, eu senti que se eu bobeasse, eu ia ficar super, mega envolvido e preso naquele negócio. E eu não queria, porque eu já tinha começado uma carreira de biólogo. Então, como é que foi? Eu não conseguia me desvencilhar do trabalho com o meu pai, mas eu falei: “Bom, pelo menos, eu vou dar umas aulas de biologia”. Eu não tinha dado aula, ainda. Eu queria fazer uma pós-graduação, que custava caro, não cabia muito no orçamento e eu falei: “Bom, eu vou dar umas aulas”. E eu comecei a lecionar e não parei mais. Até 2020 eu dei aula. Eu comecei a dar aula em 2004. Acho que foi isso. Enquanto isso, eu fiquei de olho em concursos e fiz alguns. E o do engenho foi um deles. Mas, assim, dos concursos, o do engenho, sem dúvida, foi o que mais me chamou a atenção. Porque era Santos, que eu conhecia e que eu tinha uma super ligação com a cidade. E era um sítio arqueológico e Margarida Andreatta. Com uma reserva de Mata Atlântica do lado. Eu falei: “Gente. Não. Puxa vida, eu quero muito isso”. E aconteceu uma coisa muito, muito... eu acho que eu nunca contei isso pra ninguém, mas eu vou contar: na primeira prova, porque foram três etapas, né, no processo seletivo. E eu estudei muito pros três processos, mas eu fiquei com medo de chegar atrasado na prova e vim na véspera e fiquei num hotelzinho. Vim com uma mochila cheia de livros, papéis e apontamentos e anotações, tal. E falei: “Bom, vou ficar estudando esse negócio, até... se bobear, eu fico estudando a noite inteira”. E aí, enquanto eu estava fazendo um lanche, antes de começar a estudar, a TV estava ligada na TV Cultura e passou um episódio especial, se não me engano do Roda Viva ou algo equivalente, com o professor Aziz Ab’Saber. Assim, estava começando a entrevista. E eu fiquei hipnotizado com o que ele estava falando, que tinha tudo a ver com tudo que a gente tinha, eu já tinha estudado. E eu, ainda bem que eu ouvi a minha intuição: eu não peguei papel, não peguei caneta e deixei meus apontamentos de lado. Eu simplesmente fiz assim, fuuu, pra dentro daquela conversa com o professor Aziz. E eu tenho certeza que teve uma benção do professor Aziz Ab’Saber na minha prova, porque eu fiquei, naturalmente, mexido. Foi uma entrevista de uma hora e meia, duas horas. Imagina! Assim, foi ótimo. Sem dúvida, aquilo deve ter impactado as minhas respostas, meus textos. Enfim. Então, isso foi uma história que eu lembrei agora, que eu achei importante comentar.
P/1 – E como foi esse processo, receber a notícia que tinha passado?
R – Foi, foi... os meus pais estavam, não teve um dilema, eles estavam contentes por mim, estavam torcendo muito. Eu é que me precipitei. E assim que eu soube que eu passei, eu meio que expressei, me senti à vontade pra dizer: “Ufa”. Falei com o meu pai. Acho que eu não devia ter falado aquilo. Mas eu falei meio que: “Puxa. Ok. Vou voltar pra minha área”. Sei lá, eu devo ter, não foi bem uma esnobada, mas eu acho que não caiu muito bem, acho que eu falei demais, porque era um momento especial, que ele estava perdendo alguém lá, né? Ele ia ter que botar alguém no lugar, porque eu fazia muita coisa. E aí, o que aconteceu? Imediatamente após a publicação do resultado do concurso, houve uma greve imensa na Universidade de São Paulo. E a gente ficou acho que três ou quatro meses, sem poder tomar posse do cargo. E aí eu fiquei trabalhando com o meu pai, depois daquela conversa que a gente teve, que eu vi que não caiu muito bem. Mas deu tudo certo. Mas eu estava meio pra lá e meio pra cá, querendo assumir logo. Já psicologicamente livre daquele meu trabalho com ele, mas continuei fazendo. Foi importante, tal. E depois fomos chamados pra assumir, eu e o Rodrigo Christofoletti, que só tinha duas vagas, entramos nós dois, como educadores. E aí foi reencontrar Santos. Então, apesar de eu ter estado em Belém alguns anos e longe e tal, eu nunca me senti estrangeiro em Santos. Eu sempre me senti muito em casa, porque já conhecia muito, né? Já tinha frequentado muito, conhecia muito. Então, foi ótimo, assim. Na época, na ocasião, o engenho não tinha a estrutura que tem hoje. E ele é um sítio arqueológico que está num bairro periférico, na zona noroeste de Santos. E há quinze anos, um pouco mais. Mas eu amei. Eu amei. Eu já amava o engenho. Eu já gostava do engenho desde que comecei a estudar para as provas, muitos meses antes. Então, eu amo aquele lugar, até hoje. Eu sou muito apaixonado pelo engenho.
P/1 – E o que te encantou lá? Como foi poder conhecer um pouco da história daquele lugar? E se você puder contar um pouquinho da história, pra gente.
R – Ok. O Engenho dos Erasmos é, hoje, um órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, que fica em Santos. E esse órgão contém um sítio arqueológico com ruínas de um engenho de açúcar do começo do século XVI. A origem do engenho remonta a 1534, contemporâneo à fundação da Vila de Santos, que é de 1532. Então, não foi, provavelmente, o primeiro engenho de açúcar de todos. Na verdade, a gente não sabe. Mas, aparentemente, não foi. Mas foi, certamente, um dos primeiros. Um dos três primeiros. E certamente, dos primeiros, é o que sobrou, pra contar história. Então, hoje, é a mais antiga evidência física preservada da presença portuguesa no Brasil. Na categoria engenho de açúcar, sem sombra de dúvidas, o mais preservado. Um complexo arquitetônico único que está tombado, hoje, nas três esferas. E que, além disso, preenche todos os pré-requisitos para candidatar-se a património da humanidade. E hoje, há ruínas desse engenho de açúcar, que foi erguido a mando do Martim Afonso de Sousa, donatário da capitania, fundador da vila, a primeira vila, de São Vicente. Ele firmou uma sociedade e mandou erguer o engenho que, com certeza, foi erguido com indígenas escravizados, por indígenas escravizados. E esse engenho funcionou durante cem anos, pelo menos. Ou mais. Talvez mais. Mas o engenho é um engenho muito importante, em vários sentidos. Mas, assim, o partido arquitetônico do engenho é completamente diferente dos engenhos que a gente, geralmente, tem na cabeça, dos engenhos dos livros de história, que tem um partido arquitetônico casa grande, capela e senzala, né, que é o engenho que a gente tem na mente. Esse engenho é um reflexo direto da experiência portuguesa de fabricação de açúcar nas ilhas do Atlântico. Então, ele é um engenho do tipo fortaleza. Então, são paredes muito grossas, erguidas com aquela técnica de pedra e cal. São rochas sem encaixe aparente, encaixe perfeito. E com uma argamassa, depois, rebocadas com uma argamassa. Uma argamassa que usou conchas, cal de conchas, provavelmente de sambaqui. Então, hoje, essas ruínas estão sob a guarda da Universidade de São Paulo. A USP tem a guarda. Mas como o bem tombado é de todo mundo, é um local público, mantido com o dinheiro público de contribuinte e gerido por uma universidade pública, a Universidade de São Paulo. E está aberto à visitação. Tem diversos programas, dentro de um programa maior de uso público, né? E hoje a gente considera o lugar como um museu a céu aberto, um museu universitário a céu aberto. E é um lugar belíssimo. Belíssimo. É um lugar lindo, que fica na Vila São Jorge, na zona noroeste de Santos, um bairro jovem. E é por isso que o engenho sobreviveu, digamos assim. Hoje, é possível... agora está fechado por causa da pandemia. A gente está com obra, ainda não retomou. A equipe de estagiários está voltando, aos poucos. Mas a gente, sem crise sanitária, recebe onze mil visitantes por ano. É bem interessante. O que é um pouco menos da capacidade de carga do sítio. A gente está quase chegando lá, assim. Então, ainda tem como crescer, como ampliar o público. Esse vinha sendo o nosso trabalho. Aí, durante esse ano e meio de quarentena sem fim, a gente voltou as nossas atividades para o on-line. Mas agora vamos retomar atividades com o público, porque esse é o nosso, eu acho que o nosso principal talento, assim: a atividade com o público, presencial.
P/1 – E, André, como funciona esse seu trabalho?
R – Eu sou educador, coordeno uma equipe de bolsistas, tanto da Universidade de São Paulo, quanto da Universidade Católica de Santos, que são o primeiro contato com o público. As visitas são todas guiadas, monitoradas, né? Então, para visitar o sítio arqueológico, as ruínas, é preciso fazer uma mediação. Então, eu lido diretamente com esse programa de mediação. E, inclusive, tenho feito, como todo educativo de museu faz, uma autorreflexão e uma autocrítica sobre os discursos, a gente busca sempre refletir sobre isso. Temos também convênios com as prefeituras de Santos e São Vicente. O engenho fica muito próximo à divisa entre os dois municípios, na ilha. Os dois municípios têm área insular e continental. Mas o engenho está no pé no maciço rochoso, que tem o morro no coração da ilha. E o engenho está no pé do maciço rochoso, na face noroeste. Então, a gente tem programas, convênios, atividades conjuntas com as duas secretarias de educação, de Santos e São Vicente, secretarias de turismo, as secretarias de cultura, as secretarias de meio ambiente. A gente desenvolve uma série de programas com os municípios. As redes, as duas redes municipais visitam o engenho. O engenho está no currículo escolar, tanto de Santos, quanto de São Vicente. Então, as crianças fazem estudos do meio, lá. Com o transporte garantido pelas prefeituras. Esse é um trabalho muito bonito, ininterrupto, que está rolando há mais de dez anos e tem sobrevivido às gestões, o que é ótimo. Tem momentos em que: “Ah, cortou, acabou, desmanchou a equipe” “Puts”, mas enfim, depois acaba dando certo de novo. E a gente tem um programa importante, também, chamado Programa Portas Abertas, que é um calendário de eventos educativo-culturais gratuitos, aos finais de semana. Eu trabalho na curadoria desses eventos. Então, tem sarau, tem cursos de difusão, tem cinema, teatro, música, dança, workshops e oficinas, enfim. A gente está fazendo cerca de... sem quarentena, né, sem pandemia, entre trinta a trinta e cinco eventos por ano, que é bastante, assim, é bem legal. Fora os cursos de difusão de trinta horas, que a gente faz de dois a três por ano. Dois a três cursos de difusão por ano. E temos um espetáculo noturno, de projeção vídeo-mapeada, que é lindo. Lindo. Começou com recursos Bndes e Pró-Reitoria de Cultura e Extensão. Um trabalho lindo, que usa os próprios remanescentes das ruínas pra contar uma história, a história do lugar, com sete projetores de alta resolução. Então, é lindo. É lindo. Como tudo o que acontece lá, é gratuito. A gente vai retomar. Eu creio que esse ano, não mais. Mas no ano que vem, a gente vai retomar. Já vai pra quarta temporada do espetáculo. É algo que demanda muito da gente, porque só pode ser feito à noite e fora do período de chuvas. Pra um público restrito, então a gente faz duas, três sessões por noite, praticamente, todos os sábados, porque é uma experiência que tem uma trilha sonora muito rica e são fones de ouvido sem fio. Então, a gente faz sessões pra um público muito pequeno, de quarenta e cinco, cinquenta pessoas. Então, é por isso que precisa fazer, às vezes, três sessões por noite. É bem legal. É lindo.
P/1 – E, André, a partir das várias pesquisas de vocês, quais foram as descobertas ou hipóteses levantadas sobre o engenho e o período que ele foi construído? Pensando no modo de vida das pessoas, na economia, como funcionava, um pouco?
R – Ok. Olha, a Universidade de São Paulo produziu muito conhecimento de qualidade, conhecimento bom, desde 1955 até hoje, sobre o engenho. Nem tudo está na internet, mas tem muita coisa lá. Eu, inclusive, quero aproveitar pra dizer que a gente captou recursos ProAC pra uma exposição. E vai ter um pedaço dessa exposição que estará na internet. A gente está preparando um banco de dados, para colocar tudo o que ainda não estava na internet e para consolidar, planilhar e facilitar a vida de produções acadêmicas que estavam espalhadas. Então, em breve, vai ter, assim, vai ter um status mais atual, de todo esse material produzido. Mas o engenho é um ícone da empresa colonialista, no sentido mais amplo, né? O engenho é fruto de um período da modernidade em que o mundo ficou menor e foi possível para europeus, especialmente portugueses, mas para europeus, desvendar maneiras de atravessar o Atlântico. Então, o engenho é resultado de todo esse momento, de tudo o que estava acontecendo, das eras das descobertas, das grandes navegações, projetos coloniais, rotas mercantis, massacres e opressões de nativos, formação do território que a gente conhece hoje, conquistas e formação do território. E hoje o engenho pode, é um local que ainda, como o potencial arqueológico está longe de estar esgotado, então o engenho ainda tem muitas respostas pra nos dar, mas a coisa fica boa quando vestígios documentais entram em diálogo com vestígios de cultura material, que é o fazer da arqueologia e os arqueólogos e arqueólogas, historiadores e historiadoras param pra conversar com biólogos, com antropólogos, com geógrafos. Enfim, é um espaço de diálogo entre áreas, para estudos que são resultado desses diálogos como, por exemplo, estudar a paisagem histórica, que é um estudo fascinante, maravilhoso. A história das técnicas construtivas. A história, a própria história econômica, naturalmente, que se debruçou muito sobre esse lugar. Mas não tem fim o que a gente pode estudar lá, não tem fim. É muito legal. E as respostas não estão todas dadas. A gente sabe um bocado sobre o engenho, mas a gente não sabe muito mais. E o que é ótimo e torna aquele museu vivo, em que muita coisa está sendo estudada ainda. A gente tem inúmeros projetos para captação de recursos. A gente, naturalmente, graças ao momento geral que a gente está vivendo, está aprendendo a captar recursos, recursos externos para tocar projetos. E até que a gente está indo bem nessa parte, estamos captando bem. E tem muita coisa ainda pra descobrir, muita coisa. Mas o engenho é fascinante. Pra falar a verdade, eu tenho dificuldade, até, de escolher, assim: o que, por onde eu começo, o que eu posso falar sobre esse lugar, né? Então, eu estou meio perdido. Não sei muito nem pra qual lado que eu vou.
(01:39:24) P/1 – Tá. Fique à vontade. Se você puder contar um pouquinho quais foram as contribuições, a importância do engenho para esse começo de vilarejo de cidade, de Santos e São Vicente e pensando no que se tornou o Porto, né? Na origem desse projeto de um porto, muitos chamam de Porto das Naus, do escoamento de açúcar. Se você puder contar um pouquinho pra gente.
R – Tá. Olha, o engenho está associado à expedição do Martim Afonso de Sousa, 1531, 1532. E a gente sabe que o Martim Afonso de Sousa chegou no Porto das Naus, que era o que tinha. Eram trapiches disponíveis no Porto de São Vicente, não o Porto de Santos que a gente conhece hoje, o Porto de Santos não existia em 1532. Então, o engenho está historicamente associado à capitania de São Vicente, à Vila de São Vicente. Ele ficava longe de tudo, por questões de segurança. Quer dizer, o Martim Afonso, quando escolheu aquele lugar para erguer o Engenho dos Erasmos, a gente costuma se fazer essa pergunta, né? Mas por que aqui? Por que distante de tudo? Por quê? As respostas estão naquela paisagem, as respostas estão lá. Algumas, a gente pode imaginar. Ele fez, às margens do Rio São Jorge, que hoje não existe mais, mas na cartografia histórica fica claro que tinha um rio caudaloso, importante, que permitia o escoamento do açúcar em embarcações de até médio porte. Então, a questão do rio era importante. A questão da segurança era importante, porque é uma configuração que permite uma vista panorâmica. Tem a proteção do morro, na retaguarda do engenho. Tem uma coisa interessante, que o engenho está mirando pro planalto. Isso dá pra dar uma viajada em cima disso, também, assim, de o engenho está olhando pro planalto, meio que alinhado com um desejo que já era claro de explorar, subir a serra. Tanto que teve que ser proibido, né, durante um tempo, não podia, não podia subir a serra. Tinha água, pra girar a moenda. Era um engenho do tipo real. Um engenho com alta tecnologia. Um engenho que custava caro pra fazer e pra manter. Porque quem não tinha recursos, podia ter engenhocas, engenhos menores, movidos à tração animal ou até humana. Mas aquele engenho junto com o engenho dos Adorno e o Engenho Madre de Deus, mas especialmente o engenho do Martim Afonso, o Engenho dos Armadores do Trato, que era o nome da companhia, da sociedade que o Martim Afonso fez com outras quatro pessoas, aquele engenho era de um grande porte. E era um engenho do tipo real, porque tinha uma roda d’água. E aquele engenho produziu muito açúcar. Produziu muito açúcar, de 1534 até, talvez, final do XVI. A gente não sabe, exatamente. Mas foi um baita de um empreendimento, que depois passou pra mão de flamengos. Um dos sócios do Martim Afonso, nos Armadores do Trato, era o Johan Van Hulst, ele tinha laços com uma família de comerciantes de Antuérpia. E o patriarca dessa família, Erasmo Schetz, fica sabendo, através do Johan Van Hulst, do Engenho dos Erasmos... não, que não era o Engenho dos Erasmos ainda, o engenho do Martim Afonso, Engenho do Governador, na época. E ele fica sabendo. E ele era um financista, um comerciante. Era um legítimo representante do pensamento capitalista que estava surgindo. Então, ele mete na cabeça que quer comprar o engenho. O que, de fato, acontece. O engenho é erguido em 1534, mas em 1543 já é do Erasmo Schetz, já é um negócio flamengo em São Vicente. E a fase áurea de produção do engenho aconteceu sob a gestão dessa família. O que é fantástico, porque eles nunca estiveram aqui, eles nunca vieram. Então, olha só: um empreendimento transatlântico, muito bem gerido por cartas, ao longo do século XVI. E, naturalmente, com aliados, né? Porque os Schetz, lá na Antuérpia, eram um núcleo familiar católico, cercado por protestantes. E eles tinham laços muito fortes com a Companhia de Jesus. Então, tem relatos do Anchieta aparecendo no Engenho dos Erasmos, pra dar uma incerta e saber como é que estavam as coisas. Tem umas histórias muito legais. Mas o que é certo é que os Schetz enviavam procuradores, representantes, gente de confiança para gerir, assim, o engenho. Às vezes, dava ruim, porque tem episódios em que tentaram passá-los para trás, procuradores, né, que tentaram vender sem autorização e sumir com o dinheiro. Enfim, tem episódios assim. Mas, basicamente, o engenho funcionou muito e gerou muita riqueza ao longo do XVI, enquanto foi propriedade dos Schetz. Depois, só deu dor de cabeça pra eles.
P/1 – Pensando, até, no seu outro trabalho, que você mesmo fez a junção de trabalhar com o meio ambiente, com a preservação do meio ambiente com ruínas, o que representa, para você, trabalhar nesses lugares com muita história, com muitas culturas, com muitas descobertas da nossa própria história e isso de preservar, de cuidar, para que continue existindo, assim? O que representa, pra você?
R – Nossa, que pergunta incrível! Não. É uma pergunta incrível. Porque isso, sem dúvida, é o que tem me motivado. É o que tem dado sentido pro meu trabalho. Conservação do patrimônio histórico-arquitetônico. Preservação do patrimônio ambiental. Identidades, história cultural, na história das culturas e identidades. É, sem dúvida, o que eu mais gosto de fazer, é lidar com isso. E eu tenho o privilégio de trabalhar num lugar que tem, em que tudo isso acontece. Porque hoje, o engenho é um sítio arqueológico, é um museu, é um centro cultural, porque tem um calendário de eventos, é uma instituição que nos permite promover e valorizar a diversidade local, que é riquíssima, é fundamental. É tudo, na verdade, é o que mais importa. E tem um fragmento de Mata Atlântica vizinho às ruínas, que agora é uma unidade de conservação, é uma área protegida. Então, tem uma coisa interessante que, quando a gente está lá nas ruínas e precisa fazer um exercício de imaginação, pra tentar entender como era o engenho no século XVI, a gente tem que acionar a imaginação e mobilizar gavetinhas de conhecimentos, para fazer aquelas paredes se reerguerem, né? E tentar imaginar como é que era o engenho e as pessoas que trabalhavam ali e tal. E botar o rio no lugar, porque hoje é um canal açoreado, poluído, detonado. Mas botar o rio no lugar e, portanto, a produção do engenho sendo escoada pelo rio. As pessoas chegando lá, os piratas atacando por ali. Tem muita história de pirata. E também é preciso imaginar que o engenho devorou a floresta. Os engenhos eram vorazes devoradores de florestas, que eles transformavam em combustível, né? Então, hoje - é muito interessante, assim - os esforços da preservação das ruínas do engenho, do patrimônio histórico-arquitetônico e os esforços de preservação da floresta estão de mãos dadas. Tem assento do Conselho do Parque dedicado à gente. E tem assento de gestores do Parque no Conselho Deliberativo das Ruínas. E a gente trabalha juntos e publica guia de aves juntos. E a gente faz educação patrimonial e educação ambiental, juntos. E somos servidores técnicos de carreira, trabalhando junto: prefeitura, universidade e governo do estado em profundo diálogo. Que é o que... arquitetar pontes é o que temos pra gente fazer o nosso trabalho. Mas é interessante imaginar que no passado o engenho devorou a floresta. Mas saber disso é interessante, é importante também. E preservar, hoje, a diversidade do parque que habita as ruínas, né, tudo isso é muito legal. Mas a história dos rios é uma história fascinante também, porque os rios eram as ruas e avenidas, né? Isso vai nos levar à questão do porto. É muito intrigante. As pessoas chegavam no engenho, embarcadas. O açúcar produzido chegava no porto, embarcado. Saía embarcado do engenho, pelo Rio São Jorge, ia primeiro pro Porto das Naus. Depois, o Porto das Naus foi substituído pelo Porto de Santos, que reunia qualidades muito mais impressionantes e úteis e importantes. O Porto das Naus lá em São Vicente serviu, no começo lá, pra vila embrionária. Mas, digamos assim, que a nobreza... a nobreza, não, mas os fidalgos que chegaram com o Martim Afonso e pra quem ele distribuiu sesmarias... ele veio com quatrocentos homens. Esse pessoal ficou em São Vicente. Mas, assim, já pouco tempo depois, uma expressão dos colonos já dentro de um projeto colonial de ocupação da terra e formação do território, essa expressão dos colonos já é o Porto de Santos. Eles já se expressam mais pelo porto, no lado oposto da ilha, que é um porto que, até fiz umas anotações, mas assim: a profundidade era mais adequada, tinha facilidade de atracação maior, em terrenos secos. Atracar em terrenos secos, o Porto de Santos era mais ideal. Tinha um abrigo natural dos ventos - é isso mesmo – e correntes marítimas, por causa dos morros. Por causa da configuração geomorfológica da área, tinha uma proteção importante dos ventos e correntes marítimas. Tinha rochas e pedras dos morros para edificações, bem disponível. Os morros também protegiam todo mundo, dos ventos frios, sudoeste. Tem uma corrente que, especialmente chama a atenção na época do inverno, que traz ventos muito frios e que, lá no Porto de Santos, os morros bloqueiam um bocado desses ventos. Ah, e tinha nascentes de água doce, fundamentais, porque as águas marinhas dos portos sempre são insalubres, né? Assim, tem que ficar muito esperto com isso. Então, com tudo isso em jogo, o Porto de Santos, naturalmente, foi substituindo o Porto das Naus. E aí, lógico, como você falou: a história da Vila de Santos e a história do porto são a mesma coisa, né? São a mesma coisa, as duas histórias aconteceram ao mesmo tempo. E o engenho, o Engenho dos Erasmos, a gente tem... o professor Carl Larga publicou – eu vou mandar esse documento pra vocês – um texto na Revista de Estudos Históricos de Marília, em 1963. É um texto difícil de achar, mas está garantido, eu vou mandar, em que ele traduziu um envio grande, um frete gigante que saiu de Lisboa, a mando da família de Antuérpia, para o Engenho dos Erasmos. Assim, é uma quantidade imensa de produtos. Interessante que tem a ver com o engenho colonial numa sociedade escravagista, porque tem camisa pra escravo vestir, pratos e talheres de madeira, pra escravos comerem, tal. Eu estou usando o termo do documento. Hoje, a gente fala “escravizados”, mas enfim, eu estou usando o termo do documento. Mas, ao mesmo tempo, tem produtos que têm a ver com uma certa sofisticação e um luxo europeus. Então, tem obras de arte, tem tecidos finos, têm instrumentos musicais, tem peças sacras, tem um monte de coisa interessante. Essa viagem aconteceu em 1579. A gente não tem escrito: “Saindo de Lisboa, chegando no Porto de Santos”, mas é claro que não foi pro Porto das Naus, foi pro Porto de Santos. É claro. Assim, não é perigoso, nem um pouco, inferir e imaginar isso, porque o Porto de Santos era a escolha natural e óbvia e mais segura e mais adequada e mais correta. Então, o Porto das Naus foi por onde saíram escravos, foi por onde... porque tinha uma São Vicente antes da fundação da vila. Tem uma história antes, que envolve degredados e tal. Mas, logo depois, eu não tenho dúvida de que o açúcar produzido no engenho e essas coisas importantes que chegaram, chegaram pelo Porto de Santos. E era possível, é possível imaginar isso, esses produtos desembarcados no Porto de Santos e chegando no Engenho dos Erasmos por água. Pela água, não era por terra. O engenho estava no caminho entre Santos e São Vicente. O engenho estava no meio da trilha, do caminho antigo, que ligava Santos a São Vicente. Passava-se pelo Engenho dos Erasmos. Era possível fazer isso por terra, mas não carregando açúcar e nem carregando produtos. Não dava pra fazer, de jeito nenhum. Não sei se eu respondi a pergunta. Eu nem lembro mais qual era a pergunta, mas, enfim.
P/1 – Super.
R – Tá.
P/1 – André, queria só saber como funciona essa relação com o bairro, assim, com os moradores desse bairro. Eles sabem dessa história? Não sei, eles têm esse cuidado? É algo um pouco consciente? Como é essa relação? Ou não?
R – Ótima pergunta e importante. O engenho, na última década e meia, vem se esforçando e tentando estreitar laços com o seu entorno imediato, com o bairro da Vila São Jorge e, enfim, com toda a zona noroeste. Isso mostra-se mais desafiador do que a gente supunha no começo, mas sempre dedicamos bastante energia e atenção a isso. Ocorre que o Engenho dos Erasmos ficou quarenta anos fechado. Ficou muito tempo fechado. Fechado para público, isolado, portões fechados. Eventualmente, pesquisa em arqueologia e história, mas fechado para público. E até hoje a gente paga essa fatura, sem dúvida. Porque quarenta anos fechado, isso significa que o engenho saiu do mapa afetivo das pessoas. Nós ainda estamos em processo de retomada. Então, até hoje – eu estou lá há quinze anos - quantas e quantas vezes, a gente ouve: “Nossa, mas eu moro aqui há trinta e cinco anos, eu nunca vim aqui. Gente, como que pode!” Eu falo: “Calma, não se culpe tanto. O engenho ficou fechado por quarenta anos. Mas que bom que vocês estão aqui, agora”. Então, a gente convida muito, chama, divulga, participa. Teve uma coisa muito barra, que aconteceu nessa pandemia, que a gente sofreu um retrocesso muito grande na questão da atuação no território. Nós ficamos muito isolados. De março de 2020 até... mais de um ano e meio, em que o engenho, instituição museu, aprendeu a falar com gente do Brasil inteiro, dando cursos. A gente dava cursos de difusão e a gente celebrava quando enchia o nosso auditório de sessenta e cinco lugares. Era, assim, um sucesso, né? Corre, pega cadeira, vamos lá. Então: “Ah, montamos uma turma com setenta, oitenta”, era o máximo. De repente, a gente fez um curso para mil pessoas. Fabuloso, fantástico. Mas a gente não estava no nosso território. Estávamos trabalhando das nossas casas. Tem um paradoxo, tem uma coisa tão complexa aí, tão dolorida, né? Sentimos muita falta de estarmos no nosso território, em contato com as famílias vizinhas, em contato com a escola vizinha de porta, com quem a gente já fez tanta coisa boa, mas a escola estava fechada, os professores não estavam lá. Nós não estávamos lá. Então, isso foi muito barra, foi muito ruim. Mas os laços que a gente tinha, eu acho que eram fortes o suficiente pra gente, agora, retomar, ligar, descobrir quem, descobrir o que sobrou, quem está aí, quem foi embora, quem se mudou, quem saiu, quem pirou, quem morreu, quem, né? Foi muito ruim. Foi muito barra. Mas estamos aí, estamos de volta.
P/1 – Nesses quinze anos, teve alguma história marcante, pra você? Pensando em visitação, com pessoas, ou outras. Alguma história de sufoco, alguma história engraçada, enfim.
R – Teve. Teve. Teve bastante história legal. Eu vou escolher algumas, aqui. Mas tem uma que, pra mim, é muito cara, no sentido, assim, de especial. Teve um momento no Programa Portas Abertas, que a gente quis estabelecer um diálogo com uma aldeia indígena de Bertioga, Tupicanguá. De Peruíbe, na verdade, eles. É uma história muito comprida, mas a gente ficou sabendo de uma questão na escola indígena da aldeia. Conversamos com uma pedagoga indígena de lá, uma pessoa interessantíssima: “Ah, vamos trazer aqui a aldeia aqui, pra eles conhecerem o engenho”. Tem indivíduos enterrados lá. Tem um cemitério no engenho. A gente queria trazer a aldeia pra conhecer. E a gente, antes, eu fui vê-los numa feira, numa coisa assim, que aconteceu em Santos. E eles estavam lá, fazendo cânticos tradicionais e vendendo artesanato. Eu falei: “Poxa, é tão bonito. Vamos fazer um evento pro público conhecer as músicas deles”. E fizemos o evento. Chegou no dia, apareceu bastante gente, um ônibus cheio, da aldeia. Tinha uns muito jovens, até os mais velhos. E o cacique estava muito quieto. E eu estava querendo conversar, porque eu via que os mais jovens ficavam olhando pra ele. Onde ele não ia, ninguém ia. Onde ele... ele estava, assim, muito cabreiro. E eu estava querendo ver se eu deixava ele mais à vontade, lá. Eu estava orbitando o cacique, ali, perguntando: “O senhor quer alguma coisa? Quer água? Quer café? Quer tal? Que bom que o senhor veio! Puxa, que legal”. Tudo lindo, tal. E ele desconfiadíssimo, assim, super, super quieto. Eu falei: “Puxa, como é que eu vou fazer, né?” E o público começou a chegar e eu queria falar do lugar pra ele. Eu queria que ele, sei lá, me desse uma abertura, pra eu explicar por que a gente tinha chamado. Porque, até então, eu só tinha conversado com a pedagoga. E aí ele falou assim pra mim: “Vamos fazer as nossas canções. Depois, o público” – serião – “pode ver . Se quiser um artesanato nosso, nós trouxemos também e tal. E temos o nosso CD, que a gente gravou recentemente”. Eu falei: “Ah, que bacana. Deixa tudo aí. Pô, tomara que o pessoal goste”, claro. Fizeram um espetáculo lindo dentro do auditório, que tem uma acústica sensacional. Foi lindo. As pessoas amaram. E eles foram explicando o que significava cada canção, pra quem eles estavam cantando, Nhanderu, o Deus e falaram sobre o tambor. Maravilhoso. Aí, sucesso, lindo. Quando o público foi embora, ele falou assim: “Olha, eu quero subir lá nas ruínas, pra fazer uma oração. Você autoriza?” Eu falei: “Claro. Por favor. O senhor autoriza de eu assistir?” Aí ele falou: “Pode. Tudo bem. Não tem problema. Pode subir”. E aí, eles subiram. E eu fui contando pra ele e ele traduzindo. Foi super fantástico. Eu contando a história do lugar, ele traduzindo. E, em determinado momento, uma senhora que estava lá, começou a chorar compulsivamente. E eu fiquei preocupado, eu falei: “Gente, será que ela está passando mal? O que será que houve?”, tal. E ele fazia, assim, tipo: “Calma. Deixa. Deixa”. Ele estava com uma calma com aquele choro. E ela chorava, chorava, chorava, chorava, chorava. E eu não estava entendendo muito, assim, o meu instinto era: “Pega um copo de água com açúcar”. Sabe aquela ansiedade nossa, né? E ele, enfim, entendeu melhor o que estava acontecendo. E, em determinado momento, ela parou de chorar e começou a cantar, puxar músicas. Eles cantaram. Ela puxava e eles cantavam em cima. E ela puxava, eles cantavam. Eu acho que eles cantaram, sei lá, mais do que lá dentro do auditório, que foi o que o público veio ver. Eles ficaram mais de uma hora cantando. E ele fez as rezas e as orações dele. E aí, lá embaixo, eu achei que eu tinha entendido, eu falei: “Puxa, muito obrigado o senhor ter deixado eu ir. Foi lindo”. Ele falou assim: “Você entendeu o que aconteceu lá em cima?” Eu falei: “Não. Não entendi. Acho que não”. Ele falou: “Olha...”. Olha só o que ele me disse, ele falou assim: “Você lembra da sua avó?” Eu falei: “Lembro”. Aí ele falou assim: “Se você fechar o seu olho, você consegue lembrar alguma coisa que tocava na casa dela, ou que ela cantava? Alguma música que ela gostava muito?” Eu falei: “Claro que eu lembro. Eu lembro de várias músicas, que eram músicas que estavam sempre tocando lá na casa dela”. Ele falou: “Então, aquele choro lá em cima, foi um choro que mora aqui nesse lugar, que é um choro de saudade. Quando a gente subiu, bateu saudade. E a gente matou a saudade de quem pediu música”. E aí eu comecei a chorar, claro. Fiquei todo desconcertado. Entendi tudo o que tinha acontecido, porque aquela cantoria sem fim. E ele falou: “A gente desceu quando a saudade passou”. Então, olha que incrível, né? Ele disse que estavam matando a saudade de alguém. Essa história me pegou, assim. Eu nunca, nunca vou esquecer disso. Foi fantástico. Depois eles voltaram lá, outras vezes, tal. Mas eu sou muito grato, eu aprendi um monte de coisa nessa tarde, assim. Muito, muito bacana. Mas tem várias outras histórias, né? Ah, tem mais uma que, puts, essa história é muito, muito interessante: num domingo, eu estava fazendo um plantão sozinho, lá. Porque o engenho não fecha nunca, ele funciona de domingo a domingo. Todo dia é dia de visitar o engenho, das nove da manhã às quatro da tarde. É só chegar que vai ter monitoria. Lógico que, se for grupo, precisa agendar, mas se for morador, turista, pesquisador... e nesse domingo, eu estava sem bolsista, sem estagiário, sem ninguém. Eu estava sozinho ali e apareceu um casal de idade. Eles, muito educados, muito gentis, muito perguntadores e querendo saber tudo. Disseram que eram moradores da região, moradores de Santos, mas que nunca tinham ido ao engenho. Tinham visto o engenho numa matéria na TV Tribuna, que passou mesmo, havia passado recentemente uma matéria, eles falaram: “Ah, vamos, está na hora de conhecer”. Foram lá, nesse domingo. E aí foi muito legal, porque eu estava contando a história, empolgadão e eles me interrompendo, fazendo um monte de pergunta, tal. E, de repente, a senhora viu que eu estava num papo lá com o marido, o parceiro, o companheiro dela e ela foi contemplar alguma coisa, se afastou um pouco da gente. E aí foi muito interessante. Ela incorporou um Preto Velho lá, sem aviso. E aí o marido dela sabia exatamente como proceder, o que fazer, tal e eles ficaram conversando ali. Eu me afastei um pouco, deixei aquilo rolar, porque eu sabia que era um lance deles, assim. Mas o senhor fazia assim com a mão pra mim, tipo: “Não precisa ir embora, pode ficar aqui. Já vai acabar”. Tipo: ele estava lá, ouvindo os recados. Assim, eu não fiquei muito de bituca na conversa do Preto Velho com o... mas eu sei que tinha a ver com aquele lugar, com aquele momento, com aquele dia, com o momento da vida deles, com a descoberta deles. Tinha a ver com tudo aquilo. Foi um momento importante e marcante da visita. E aí ele ficou meio preocupado, achando que eu ia ficar assustado, encanado; eu falei: “Não. Para com isso. Está tudo bem. Conversa aí. Fica à vontade”. E aí trocaram a ideia deles, tal. Teve até uns recadinhos muito legais pra mim, também, interessantes. E ok. Depois, continuamos. Continuamos. Mas esse dia também foi muito marcante pra mim, porque, ah, é muito legal, essa questão da dimensão subjetiva e espiritual do lugar. Lógico, a universidade é um local de ciência e a universidade é laica. Ok. Mas as comunidades do entorno, as pessoas que, na verdade, são o alvo do nosso trabalho... alvo, no melhor sentido, eu nem gosto de falar “alvo”, mas, o objetivo maior do nosso trabalho é que haja ressignificação daquele lugar, né? Não adianta nada botar o sítio arqueológico numa cúpula e falar: “Vamos proteger, essa parede aqui, não vai tombar por mais três mil anos”. Não. Não é nada disso. É preciso... a única maneira de preservar e conservar o lugar a médio e longo prazo, de salvaguarda segura de sítios e monumentos, é que eles façam sentido para quem está em volta. Porque, no final das contas, é só valorizando, reconhecendo, que a própria cidade vai proteger a sua memória. Não é a Universidade de São Paulo que vai chegar e falar: “Olha, sentem aqui, que nós vamos ensinar pra vocês”. Não. Troca. Muita troca, muito diálogo, parceria. Produção de conhecimento, sem dúvida, mas também liberdade para dar significados distintos para aquele lugar. Isso aí, essas são as histórias mais legais. Tem várias outras, de significados diferentes. Acho que é isso.
(02:18:51) P/1 – ______ (2:18:52), uma paisagem, tudo ao entorno, lembra que ele teve vida, né, que tem vida.
R – Aham.
P/1 – Que tem histórias de vida. Desde humana, animal, vegetal.
R – Sim. Sim.
P/1 – É isso. Estar num lugar é se deixar ser tomado, né?
R – É. Dá tempo de eu contar outra história?
P/1 – Lógico.
R – Veio na minha cabeça agora, eu queria muito contar essa, que é uma história muito emocionante também. De visita monitorada. Eu estava fazendo uma mediação para uma turma, turismo social do Sesc, que é um turismo intergeracional, que vai mãe, pai, filho, avó e neto, enfim, uma coisa assim. E tinha uma adolescente lá, que estava visivelmente constrangida com a avó, que estava amando viajar, estava muito expansiva, muito comunicativa, muito perguntando, querendo saber das coisas, feliz, curtindo. E a menina estava achando aquilo um mico. Assim, total. A menina estava meio emburrada, meio: “Ai, vó. Ai, tá bom, vó. A senhora já falou isso, vó”. E eu: “Puxa, mas essa menina está ‘tesourando’ a avó. Deixa a avó curtir. Passeando”. Dava pra ver que a avó não saía de casa há muito tempo, ela estava gostando de viajar. E aí, em determinado momento - a menina ‘tesourando’ a avó, ‘baixando a bola’ da avó - eu estava falando sobre a produção de açúcar num engenho do XVI. E a avó falou, assim: “Ah, eu sei tudo como é que faz, porque eu cresci num engenho. Eu sei como é que fazia”. Aí eu falei: “Então, conta pra gente”. E ela contou em detalhes, ela falou assim: “Mas não era só isso. Olha, gente...” Todo mundo, assim, curtindo. Ela falou: “Vocês não sabem a luta e a beleza que era fazer um bolo de milho numa fazenda, quando eu era criança. O meu irmão ia pegar os ovos no vizinho. O meu outro irmão, mais velho, pegava uma lata, virava a lata do avesso, pegava prego e furava, pra gente debulhar o milho. Eu esperava o milho chegar. Sentava com a minha mãe, a gente ralava aquilo”. Ela contou a epopeia, em detalhes, do que era fazer um bolo de milho, desde dos ingredientes, a lenha, pro forno a lenha e como debulhar. Mas ela contou aquilo com uma beleza, um encantamento, um olho brilhando e uma articulação e uma saudade, um negócio! Ficou um depoimento mágico. Nenhum de nós nem piscava. Ninguém queria saber mais da monitoria do engenho. A gente queria saber se o bolo tinha ficado bom, quem é que vinha comer esse bolo, quando que era o... porque foi uma coisa fantástica. E com essa força do depoimento, ela dobrou aquela neta. A neta ficou tão orgulhosa! E ela terminou, a neta foi dar um abraço na vó, falou: “Vó, a senhora nunca me contou isso”. Ela falou, assim: “Ah, mas eu tenho um monte de histórias. Você precisa aparecer mais e me perguntar”. Deu uma bronca, assim, mas gentil. E aí ela terminou assim, que eu achei fantástico, ela falou assim: “Hoje, as minhas netas e sobrinhas, assim, ficam com preguiça de fazer um bolo de saquinho”. Aí a menina pôs a mão assim na cara, falou: “Ai, vó, não vou mais ficar com preguiça. Prometo”. Ela falou: “Não. Vem tudo pronto num saquinho. É só misturar e botar no...”. E aí, aquilo mudou, inverteu a lógica do dia. Inverteu, assim, a ordem. Subverteu tudo. A menina estava orgulhosa, incentivando a avó a contar histórias e interessada na história da avó. E todo mundo viajou pra aquela fazenda, que ajudou a dar contornos pra história que eu estava contando e também foi uma experiência muito significativa pra mim, ver essa neta e essa avó nessa dinâmica, assim, mudar drasticamente. Foi interessante.
P/1 – André, eu ia te perguntar sobre seus aprendizados ao longo dessa trajetória profissional. Talvez você já tinha dito muito, esses encontros. Não sei. Se você quiser acrescentar mais alguma coisa.
R – Eu acho que encontros, trocas, diálogos, ressignificação. Naturalmente, proteção e valorização da diversidade. Eu acho que tem um ‘objeto’ que eu trouxe que... não sei se pode ser considerado um objeto, mas eu vou transformar num objeto, aqui, agora, que eu acho que explica um pouco isso. Talvez me ajude a responder essa pergunta. Que é um objeto que está na minha pele. Deixa eu levantar aqui e mostrar a minha tatuagem. Isso daqui é um Ogum. É um São Jorge, mas também é um Ogum, porque tem o coração azul e porque é uma arte do Carybé, um artista argentino, que se apaixonou e morou no Brasil. Naturalizado, radicado no Brasil. Morreu no Brasil, nos anos 1960. Ficou trinta anos estudando o candomblé, estudando religiões de matriz afro. Era artista plástico, escultor, ceramista, historiador, enfim. Sempre gostei da sequência de aquarelas dele e também dessas obras em que ele retrata o sincretismo, os encontros. E eu não aguentei e fiz o São Jorge, Ogum, nesse formato meio cordel, eu não aguentei e fiz. Eu acho que isso daqui explica bem, assim, o meu encantamento pelos encontros, pelas trocas, pelos diálogos e entendimentos. Assim, o que a gente pode fazer pra ter menos conflito e mais justiça, entendimento e diálogo e compreensão e aprendizado. A gente consegue fazer isso. É um desafio. A diversidade é fascinante, maravilhosa e desafiadora, porque pode gerar intolerância, desentendimento e conflito. Não deve e não pode. Mas também gera muita transformação, muito enriquecimento, muita poesia, muita transformação, muito aprendizado, muita consciência de classe, muito tudo o que a gente precisa. Acho que é isso.
P/1 – Queria saber como é o seu dia-a-dia e faz, não sei, outros trabalhos? Você também é professor, né? Se você quiser contar.
R – Sim. Eu lecionei durante quase quinze anos, ensino médio, ensino técnico profissionalizante. Minha paixão, o ensino técnico. Sou super, super, mega apaixonado pelo ensino técnico profissionalizante. Fiquei um tempo afastado da sala de aula, para produzir material para professores pelo Centro Paula Souza. E o que aconteceu é que faz muito pouco tempo que eu não estou mais dando aula. O meu pai adoeceu. O meu pai tem Alzheimer, uma doença degenerativa progressiva e sem cura e demandando cada vez mais atenção, tal. Eu não estava dando conta de engenho, USP, sala de aula e dar uma atenção pro meu pai, junto com a minha mãe. Então, eu precisei me afastar das aulas, para poder assumir essa questão nova aí, do meu pai. Inicialmente, eu me licenciei. Em 2020, eu me licenciei no final de 2019, eu falei: “Gente, eu vou pegar um ano. Porque, eu não estou dando conta. Eu estou começando a pisar na bola com a escola. Não dá. Nunca fiz isso”. E aí foi o ano da pandemia. Eu estava com essa licença de um ano. E aí, em 2021 terminou a minha licença, a escola me chamou. Eu falei: “Gente, não. Eu não vou voltar”. E aí eu encerrei o meu contrato com o Centro Paula Souza, encerrei o meu vínculo. Era um concurso também, mas eu sabia que não ia dar, porque havia muita demanda por parte do meu pai e a equipe do engenho está muito reduzida, portanto a carga horária aumentou muito, jornada, a demanda também. Então, é a primeira vez, em quinze anos, que eu não estou na sala de aula. Mas sei que eu precisei, eu precisava fazer isso. E que, quando as coisas melhorarem um pouco, eu volto. Mas, enfim, atualmente, tem sido isso.
P/1 – Só queria te perguntar como foi começar a trabalhar e voltar pra esse espaço da escola, que antes não era muito agradável pra você, né, na sua infância.
R – Ah, pois é. Eu peguei gosto pelo estudo, na faculdade. Porque antes eu detestava, eu tinha horror. E eu fiz, na sala de aula, exatamente aquilo que eu sentia na pele que estava faltando. Então, foi um trabalho de resistência, também. E o meu envolvimento com o currículo, tudo isso, eu acho que a minha experiência como aluno norteou a minha experiência como professor. E eu vi algumas coisas. Primeiro que, sob um ponto de vista, a escola pra onde eu voltei, em outro papel, tinha melhorado bastante em determinados aspectos: certas caretices, certas rabugices, certas lacunas do currículo, certas restrições. Eu senti que muita coisa melhorou. E sob outros pontos de vista, muita coisa ainda estava precisando - ainda precisa – melhorar. Agora então, nem se fala, que a gente andou pra trás, muito, demais. É um horror o retrocesso que a gente está vivendo, criminoso, horroroso. Mas até então, eu posso falar até 2018, 2019, ah, eu fico feliz que eu estava em um time que fazia um trabalho bem legal, pela escola e pelos jovens, era muito bom. Era muito bom. Eu não vou conseguir ficar longe disso, não. Eu só preciso de um momento, assim, em que eu tenha condições de voltar. Mas eu tinha imenso prazer, assim, era bem legal. Estou com saudade. Estou me tocando agora. Enquanto eu te conto, eu estou me tocando que eu estou morrendo de saudade. (risos)
P/1 – Ressignificar tudo o que você trouxe também, hoje, né?
R – Sim.
P/1 – André e como essa pandemia, enfim, impactou a sua vida, pensando nos aspectos profissionais e também pessoais, de promover reflexões? Ou não? Enfim.
R – Bom, foi horroroso pra todo mundo, né? Foi horroroso. Eu preciso fazer a ressalva que eu, enquanto servidor público estadual, tive um suporte. Assim, não parei de trabalhar, em nenhum momento. Continuamos trabalhando. Pra falar a verdade, a gente está convencido de que a gente trabalhou mais do que antes, todo mundo tem essa sensação, porque as fronteiras entre o público e o privado ruíram. E o trabalho, também, foi questão de sanidade. Quer dizer, trabalhar para não pirar, não enlouquecer, também teve isso. Então, o que eu estava dizendo, é que foi horroroso com a ressalva de que, em nenhum momento, eu senti que eu ia ficar sem trabalho. Então, foi muito, muito horroroso pra quem perdeu trabalho e renda. Eu não passei por isso. Foi horroroso lidar com a ansiedade, lidar com o medo, lidar com as notícias, lidar com o entorno, lidar com a ameaça da morte, lidar com as incertezas jogadas na nossa cara. Lidar com o luto, porque a gente enterrou amigos, enterrou entes queridos, a gente perdeu gente. Foi horroroso aprender a ficar tanto tempo em casa. Foi horroroso ficar enclausurado. Foi horroroso ver o que estava acontecendo. Enfim, foi horrível. Mas, lógico, também muita coisa se aprende. A convivência, a proximidade com a família, enfim, tem muita coisa, dobras que a gente faz. A gente faz dobras e vai aprendendo o que pode, conhecendo mais sobre si mesmo também e sobre os outros, relativizando o que antes parecia tão ruim, agora é bobo, né? Depois do que a gente passou, tudo foi relativizado, na nossa escala de valores. E também militar politicamente. E enfim, fazer, ser solidário do jeito que dava, com vizinhos no prédio. Militar dentro do prédio. E conhecer certos amigos, muita coisa se revelou, a gente aprendeu muito sobre o nosso círculo próximo. Então, isso foi esclarecedor. Foi dolorido, assim, às vezes, descobrir como certas pessoas queridas pensam e pensavam. Era bem dolorido, mas esclarecedor. E no trabalho, é isso: trabalho foi sanidade. A gente trabalhou muito. Nós trabalhamos muito. Obviamente, estávamos impedidos de lidar com o público. Mas a gente captou recurso, entrou em um monte de edital, captou um monte de recurso e deu conta dos projetos. E fizemos cursos e publicamos. A gente fez o que deu.
P/1 – André, o que o engenho e tudo o que ele representa, assim, de preservação ambiental, cultural, de histórias, de memórias, de pessoas, de épocas, né, da nossa história, representa na sua história de vida? Qual é a importância dele? E tudo o que ele representa pra você?
R – O engenho, sem sombra de dúvida, foi o trabalho mais maravilhoso que eu já tive, que eu tenho, agora. Eu não me lembro de profissionalmente, pessoalmente, me sentir tão realizado, pleno. Aprendi muito. E aprendo ainda. Mas ele significa... um exemplo de como pode, como podemos lidar com a memória da gente, assim: um exemplo, uma possibilidade... veja, eu não estou dizendo que o nosso trabalho é exemplo pra ninguém. Não estou falando que a minha atuação é exemplo pra ninguém. Eu estou falando que o monumento, como sítio de memória, como monumento nacional, é um exemplo de como é possível a gente fazer as pazes com o nosso passado, não passar pano no nosso passado, mas fazer as pazes. No sentido de reconhecer o que precisa ser reconhecido, acolher o que precisa ser acolhido, refletir sobre os discursos e as práticas institucionais, especialmente, isso é muito importante, reconhecer uma instituição, um museu, aprender todo dia e cada vez mais a enxergar todos como sujeitos, isso é trabalho pra uma vida inteira, né? Isso é trabalho para uma vida inteira. Então, o engenho, assim como outros sítios e monumentos, é isso, são possibilidades de a gente fazer uma conciliação possível com o nosso passado, que é sangrento. É sangrento, é pauleira, é violento. É um passado bem cruel. Mas dá pra haver conciliação. Na verdade, a gente não tem opção, a gente precisa dessa conciliação para ter paz, hoje e acabar com essa loucura dessa intolerância, desses conflitos que a cidade abriga e que não tem mais cabimento, não tem mais condições, não tem mais. E, talvez, os sítios e monumentos sejam campos muito especiais para que essa conciliação aconteça. Acho que é isso.
P/1 – E quais são os seus maiores sonhos?
R – Na vida? Viajar, que eu deixei pra lá. Eu preciso viajar. Estou com muita vontade de viajar. Eu fiz uma viagem em 2019, que eu não sabia que ia ser a última viagem. Foi uma viagem pro Ceará, maravilhosa, que eu fiz pra um seminário de um instituto federal cearense. Fui pro Cariri, para a região do Cariri. Gente, um negócio maravilhoso. Foi um seminário sobre patrimônio material e imaterial, arqueológico, tal. Meu Deus! Até trouxe a minha flauta de taboca. Está aqui, em algum lugar. Porque a gente conversou muito com índios, indígenas, representantes de várias etnias. Fizemos oficinas de grafismos indígenas corporais, com jenipapo e tal. E eu fiz uma oficina de flauta de taboca. A gente fez, cada um fez a sua. E, quando eu estava em busca de objetos para trazer, eu lembrei disso aqui. Isso aqui simboliza a viagem mais fantástica que eu fiz, logo antes da quarentena e hoje, o sonho de transitar de novo, de viajar, de expandir fronteiras e estar com outras pessoas, descobrir outras coisas. Viajar é muito bom. É. Viajar é muito bom.
P/1 – Você sabe tocar?
R – Ah, não. Eu sei, mas não dá. Essa daqui... porque fui eu que fiz. Foi a primeira flauta de taboca. Então, assim, é muito desafinado, desengonçado. Eu toco. Em casa, sozinho, eu toco. Mas aqui eu não conseguiria. Eu não teria coragem. Em respeito a vocês todos e quem assistir esse vídeo. (risos) Não dá.
P/1 – André, a gente está caminhando bem pro fim. Antes, eu queria saber se você gostaria de acrescentar alguma coisa que eu não tenha te perguntado, contar alguma história, alguma passagem de algum momento, ou deixar alguma mensagem.
R – Eu quero deixar uma mensagem. Eu não sei, eu não preparei essa mensagem. Eu sei o que eu quero dizer, mas eu não sei como dizer. Mas o que eu quero dizer é que ser chamado para ser ouvido é uma experiência tão intrigante e transformadora também. Eu tinha alguma ideia disso, porque na curadoria dos eventos lá, eu já tinha, teoricamente, imaginado que é transformador pra quem está ali falando. Eu sabia que tinha uma coisa de valorização, de revisão e tal. Mas eu quero dizer que o trabalho de vocês é lindo, porque vocês ‘musealizam’ de uma maneira brilhante, histórias de vida, baús de histórias das pessoas, que todas as vidas são lindas e são ricas. Então, é lindo. E o trabalho de vocês é lindo também, porque mexe com a gente, estar aqui nessa posição, falando e rememorando a vida e legitimando histórias, porque o que a gente escolhe pra contar, é uma coisa tão incrível. E parando um minuto pra olhar pra trás e pra falar: “Puxa, o que eu vou contar? Pô, é muita história, mas quais histórias me vêm primeiro? O que está mais forte?” Olhar em casa, escolher objetos e ser lembrado, a quantidade de histórias que os objetos carregam. Eu nem mostrei todos, mas eu falei, né? Eu vou, pelo menos, mostrar. Eu trouxe... isso aqui foi uma coisa que eu peguei da casa da minha tia Dulce, quando ela faleceu. Fantástico. Isso aqui é um cinzeiro horroroso, mas foi o que eu consegui ficar, assim, dela. E era um negócio, ela era fumante, isso vivia lá, perto dela. E eu consegui pegar isso e outras coisas. Então, esse negócio está lá, hoje. É um objeto que me faz lembrar dela. E isso daqui é uma das centenas de corujas da coleção da minha avó. A minha avó era colecionadora de corujas. Hoje, essas corujas estão, com todo o amor e carinho, na casa da minha mãe, na minha casa, tem algumas com a minha filha, tem algumas com a minha irmã. Mas, assim, a gente é louco pelas corujas. Cada um foi escolhendo algumas. A gente guarda com o maior carinho, assim. Então, voltando, é muito emocionante escolher objetos e reencontrar-se com as pessoas, com as histórias, com as memórias. É muito legal. Então, eu estou muito feliz de ter vindo aqui, de ter recebido o convite, de ter tido a oportunidade de vir. Muito, mesmo. Parabéns!
P/1 – A última é justamente isso: como foi, pra você, ter compartilhado um pouco, um pouquinho de algumas lembranças, de algumas histórias, com a gente. Ter se lembrado da infância, das viagens, da avó, da Dulce, da tia. Enfim, poder relembrar um pouco de tudo o que a gente é atravessado, né? Enfim, como foi pra você, dividir um pouco com a gente?
R – Foi sensacional. Foi mágico. Foi especial. Porque, puxa, a gente corre tanto de um lado pro outro, a gente está sempre com tanta coisa pra fazer e é muito importante, interessante e intrigante, até, rememorar essas histórias, né? A minha tia Dulce falava uma coisa, ela falava assim: “Quem conhece o bom, não gosta do mais ou menos”. Era um ditado dela, assim, que eu demorei pra entender isso: “Quem conhece o bom, não gosta do mais ou menos”. Mas por que eu lembrei desse ditado? Porque é uma experiência rica e fina, parar pra selecionar história, abrir o baú, o tal do baú e reencontrar-se com essas histórias, pra transformar em verbo, para imortalizar, é muito legal. Muito legal. Eu gostei demais. E tomara que eu tenha outras oportunidades, assim. Eu vou procurar outras oportunidades de fazer isso, porque eu gostei. Eu me vi no papel de contar histórias e eu gostei. Eu gostei muito.
P/1 – André, eu não tenho como te agradecer. Foi muito, muito, muito especial, muito enriquecedor. Foi um presente passar a tarde com você, mesmo a distância.
R – Puxa, que legal!
[Fim da Entrevista]
Recolher