P1 – Olá, Erich, tudo bom?
R1 – Olá, como vai?
P1 – Tudo bom? Prazer, Rosana.
R1 - Tudo bem, Rosana? Muito prazer!
P1 – Joia. Prazer. A Ane falou que você entrou um pouquinho antes. Desculpa, eu estava numa outra reunião e não vi, senão eu teria adiantado.
R’ – Não, imagina, eu acho que eu fiz confusão na hora de agendar, aquela correria de ‘vou jogar logo na agenda, pra não perder’, que a gente faz e acho que tinha acabado jogando no horário errado. Não tem problema nenhum.
P1 – Você sabe que eu também tinha pensado que era às seis? Hoje eu olhei, falei: “Não, ela falou que era às seis e meia, mas eu tinha achado também que era às seis”. Vai ver que é o inverso, né?
R1 – Eu fiquei com isso na cabeça também.
P1 – Tudo bom? Obrigada por ter aceitado o nosso convite pra compartilhar a sua história no Museu da Pessoa.
R1 – Imagina! Uma honra! Muito legal! Adoro o projeto de vocês! Como eu te falei, eu ouço falar dele há muito tempo pelo Von, então pra mim é também um momento de realização colaborar e poder contar um pouquinho aqui da história. Super honra!
P1 – O Museu é uma ONG, nós temos trinta anos de existência, ano que vem a gente vai fazer trinta anos e é o primeiro museu digital de história de vida do mundo. E a gente já tinha uma vocação pra ser da internet antes da internet. A gente fazia CD-ROM, não sei se você lembra disso.
R1 – Opa, claro! Eu não sou tão jovem assim, eu vi muito CD-ROM rolando por aí.
P1 – Você tem cara de jovem. Por isso que eu não se você viu. Aí a gente fez do São Paulo Futebol Clube; fez do Sesc, do Memórias do Comércio; aí, quando veio a internet, o Museu conseguiu conectar as suas histórias e, desde o começo, a missão do Museu é conectar as pessoas, a partir de suas histórias de vida. E a gente acha que todo mundo tem uma história pra contar, um saber pra compartilhar e, se a gente entender o outro a partir da sua história de vida, pode ser até um combate contra a intolerância, sobretudo nos dias de hoje. Aí hoje a gente tem um acervo de cerca de vinte mil histórias de vida, sessenta mil imagens, no Brasil inteiro, que conta a história do Brasil nos últimos dois séculos. Tem de presidente da República a catador de papel, pessoas com deficiência a indígenas, negros, cantores de churrascaria, presidentes de empresa, a moça que serve o café, o copeiro. Enfim, é esse mosaico de pessoas. Pessoas transexuais. Enfim, tem essa diversidade, porque a gente acredita que o que importa são os seres humanos. E aí a gente tem um braço também que o Museu tem um programa educativo muito forte, que é a disseminação dessa metodologia que a gente criou, para os professores trabalharem com seus alunos e as comunidades, os seus próprios projetos de memória. E aí, todo esse material, todas essas histórias vão pra uma base de dados do Museu, a entrevista é transcrita, editada duas páginas dela, vai na íntegra, duas páginas editadas; um vídeo editado; as fotos que eu não sei a Ane falou com você, que depois a gente vai pedir pra você selecionar cerca de dez a vinte imagens que contem também sua história de vida e aí todo esse material é tagueado, porque depois isso que vai permitir que ele seja buscado.
R1 – Que massa! Nossa, que legal! É o que você falou: uma vocação pra esse mundo digital já desde a raiz, da forma digital.
P1 – É muito interessante esse momento da pandemia terrível que a gente está passando, mas pra nós foi muito interessante, porque a gente já tinha essa vocação e acho que a gente está podendo exercê-la cada vez mais agora. Deu uma acelerada nisso. A gente... casa de ferreiro, espeto de pau, porque a gente é assim, mas precisou... teve essa pandemia, quer dizer: nos obrigou e nos colocou ainda mais na linha de frente do digital.
R1 – Legal demais. E aí, Rô, esse nosso papo exige uma imagem aqui dessa nossa conversa? Você vai gravar esse momento?
P1 – A entrevista é gravada em áudio e vídeo. A gente tem que ficar assim. Tem algum problema pra você?
R1 – Não, não tem nenhum. Eu estou perguntando mais, por uma questão, realmente, de acesso aqui. Eu preferia estar de fone, pela qualidade de te ouvir, se você achar que isso não é um problema visual, do fio do fone. Como é que você vê isso? Você acha que atrapalha?
P1 – Não, acho que não, mas você está com problema de escutar assim? Às vezes dá um pouquinho de microfonia o fone, depende. Ontem eu fiz uma entrevista que o Doutor Cristiano estava com um fone e deu uma microfonia. Mas se você acha que você vai escutar melhor, é como você achar melhor.
R1 – Tá. Eu vou fazer um teste, porque o áudio dessa máquina, pra mim, aqui, está muito ruim, desse meu computador.
P1 – Então tá, porque você tem que se sentir confortável na entrevista. Se você for ficar tenso pra escutar, é melhor você colocar, assim.
R1 – É, foi o que eu imaginei. Eu vou fazer um teste. Eu vou entrar no mesmo link do Zoom automaticamente aqui pelo celular, aí você seleciona a imagem do computador.
P1 – É melhor você pôr o fone. Pelo celular, a imagem não fica tão boa.
R1 – Então, mas você vai ter a minha imagem pelo computador.
P1 – Ah, tá, entendi.
R1 – Eu posso não estar com o fone, só de estar com o aparelho aqui do meu lado, com certeza vai ficar melhor. Eu tenho usado bastante esse subterfúgio, vamos ver se ajuda.
P1 – Aí, Erich, é uma entrevista que eu vou ajudar você a construir uma narrativa da sua história de vida. Eu dei um admite aqui.
R1 – Espera aí, então, vamos lá. A hora que eu estiver te escutando aqui, eu ponho no mudo.
P1 – Você está em São Paulo?
R1 – Eu estou em Indaiatuba. Agora você só fixa a imagem naquela que está no computador, porque aí você tem a minha imagem e aí você me diz se o áudio está bom.
P1 - Não, o áudio está bom, mas a sua imagem vai ficar congelada aqui ou não? Você continua aparecendo pra mim.
R1 – Eu continuo. Você só precisa clicar aí e você clica naquela minha outra imagem, que está lá em cima, aqui da sala e você manda pinar a imagem, fixar naquela.
P1 – Não, mas aí eu não vou ficar te vendo.
R1 – Vai, porque você vai fixar naquela imagem. Vai lá em cima...
P1 – Não, mas eu tenho que ficar vendo você falar.
R1 – Mas então, você vai ver. Você vai lá em cima...
P1 – Desculpa a minha ignorância!
R1 – Tranquilo. Vai lá com o mouse na imagem que você quer ver, não nessa que está congelada.
P1 – É na sua?
R1 – Isso. Aí você clica nos três pontinhos em cima da imagem e fala: “Pin, vídeo”, clica em pin vídeo.
P1 – Ah, entendi.
R1 – A hora que você fizer isso e der certo, meu áudio não vai roubar a imagem que você escolheu enxergar.
P1 – É você, você está grande aqui, pra mim, na tela. Está ótimo.
R1 – Está me vendo aqui, independente de eu estar falando ______ (10:06). Maravilha, eu vou fazer a mesma com a sua, porque daí eu vou ficar te vendo o tempo todo, perfeito. Agora acho que estamos os dois nos vendo, eu fico confortável que o áudio está pertinho de mim aqui.
P1 – Está ótimo!
R1 – Joia. E aí você estava falando, então, Rô, sobre a construção da narrativa, né?
P1 – Isso. Aí eu vou perguntar desde as suas origens familiares - expliquei um pouco no telefone, né ou não? – infância, escola, adolescência, a concepção do Recicleiros, seu trabalho, enfim, até os dias de hoje, seus sonhos. A memória não é linear, às vezes você começa a contar uma coisa aqui e você vai parar lá embaixo e aí eu sou, aqui, uma guia, eu vou te ajudar a trazer e vou colocando questões que você vai ver, é um bate-papo. Quando você vê, a gente esquece, não fosse o vídeo, se tivesse ao vivo e, de qualquer maneira, a hora que você precisar parar, tomar uma água, quiser sair, enfim, tudo pode.
R1 – Que bom! Que gostoso! Eu estou aqui super confortável. Você perguntou se eu estava em São Paulo, eu estou, na verdade, aqui em Indaiatuba, no interior, atrás de uma casa pra mudar e então eu estou assim nesse mercado absolutamente aquecido. Incrível, o mercado imobiliário, o que aconteceu na pandemia. Então eu estou caçando casa pra mudar.
P1 – Eu achei que tivesse um monte de opção pra alugar. As pessoas não foram entregando?
R1 – Rô, você não tem noção. Tem, assim, muito pouca oferta de casa pra alugar, muito pouca, virou realmente um artigo raro e eu acho que isso aconteceu porque vários movimentos de migração estão acontecendo nesse mundo imobiliário durante a pandemia. Tem o cara que gastava dez mil de aluguel e que precisa descer pra cinco; tem o cara que gastava cinco e precisa descer pra dois, pra três, pra quatro. Então, tem uma dança de cadeiras...
P1 – Todo mundo teve que negociar.
R1 – Eu acho que todo mundo teve que mudar um pouco a vida. Quem não foi afetado economicamente falou: “Cara, eu descobri que eu não preciso ficar em São Paulo, então eu vou atrás de mais espaço, mais qualidade de vida”.
P1 – Muitos amigos meus foram pra praia, foram pra outra casa que tinha ou mesmo alugou temporada que pagaria, sei lá, mil reais o dia, alugou a casa por trezentos o dia. Uma loucura! Mas você está procurando aqui em São Paulo?
R1 – Eu estou procurando aqui no interior, próximo a São Paulo, talvez eu tenha achado hoje. A minha irmã mora em Indaiatuba, então eu estou aqui na sala da casa dela agora, fazendo esse papo com você, porque eu vim ver uma casa aqui vizinha à casa dela, que a quatro casas pra esquerda, aqui, vagou. E aí eu acho que é a minha melhor opção. Eu quero vir pra cá, quero gastar menos com escola das crianças, quero também um pouco mais de sol...
P1 – É uma grana, é.
R1 – Puts, é outro padrão.
P1 – São Paulo é muito caro, né?
R1 – É e, cara, São Paulo a gente não tem duas coisas muito importantes pra mim, que eu abdiquei nos últimos bons anos, que é sol e ar puro. Então, assim, eu não tinha sol, porque eu estava vivendo muito indoor em São Paulo, morando em apartamento que não era ensolarado e ar puro é uma coisa que você não tem ali em São Paulo, né? Então, eu estou com dois filhos agora e eu estava super a fim de um ritmo de dia a dia, por mais que seja super acelerado de trabalho, a gente trabalha demais aqui, a gente teria um dia a dia com momentos de fuga mais qualificados. Então, eu vim atrás disso e estou aqui buscando esse lugar.
P1 – Ai, que maravilha! Muito bom! Então, vamos começar, Erich?
R1 – Vamos embora!
P1 – Está pronto?
R1 – Vamos lá!
P1 – Dá uma respirada, vamos chegar, vou pedir pra você fechar um pouquinho o olho, respirar fundo, inspirar, expirar, vai tentando fazer um exercício de ver as imagens da sua vida, da sua infância e tenta chegar na imagem mais antiga que você consegue lembrar da sua história. Não interessa a imagem em si, não tem problema se é uma foto que você lembra, se é uma história que te contaram, tenta entrar em contato com essa lembrança, com essa imagem. (pausa) Vou pedir pra você ir voltando, respirando...
R1 – Legal, fui parar numa imagem bem especial, que eu não imaginei que eu fosse cair nela.
P1 – Erich, qual é seu nome completo?
R1 – Meu nome é Erich Burger Netto.
P1 – Você nasceu em que data e em que cidade?
R1 – Eu nasci na cidade de São Paulo, em 3 de junho de 1982.
P1 – Qual foi a imagem que te veio à cabeça?
R1 – Veio uma imagem muito legal que eu caí nela por foto, mas eu tenho a sensação dela muito presente, eu tenho essa imagem muito presente, que sou eu com, talvez, uns dois anos e meio de idade, numa piscininha Regan, daquelas de lona, no quintal da minha casa, onde eu nasci, ali perto do aeroporto de Congonhas, eu estou segurando na borda dessa piscina e a minha irmã - já fiquei arrepiado no primeiro segundo de conversa (risos) – está atrás de mim, segurando assim, por trás de mim, minha irmã é dois anos mais velha e essa irmã que conseguiu arrumar essa casa que eu vim ver aqui pertinho dela, que saiu um pouco de São Paulo e que agora a gente está, inclusive, celebrando a possibilidade de morar muito perto, três casa de distância, novamente. Essa piscina está no quintal do fundo da minha casa, que foi a casa onde eu nasci e fiquei até os 22 anos idade, quando eu saí pra viajar um pouco. Então, foi essa a imagem que me trouxe, um quintal com muito significado, um lugar muito especial, uma imagem com a minha irmã, muito especial também.
P1 – E seus pais, como é o nome deles?
R1 – Meu pai é Eduardo Burger e a minha mãe Anna Beatriz Antunes Razzo.
P1 – Eles são de São Paulo, seus pais?
R1 – Eles são de São Paulo, moram os dois lá, inclusive, ainda. Meus pais são separados definitivamente desde que eu tinha uns 12 anos, eu acho. Foi a separação que não voltou mais, a definitiva ali, de algumas tentativas de separação frustradas e desde então eles são separados, mas moram lá em São Paulo.
P1 – E seus avós maternos e seus avós paternos, são de São Paulo? São de onde?
R1 – São de São Paulo. Tanto a família da minha mãe, quanto a do meu pai têm uma história bem íntima com o bairro da Vila Mariana, eles são ali das raízes do bairro. O lado materno é formado por um avô já falecido, com ascendência italiana, trabalhou no ramo da carne, frigoríficos, açougues. Foi meio a história do meu avô materno, Nelson. E uma avó com ascendência portuguesa, a Dona Dulce, que está viva, ainda, inclusive, eu tenho a minha vó viva, é um grande mérito que eu tenho aqui. Então, eles são o meu lado materno ali, Vila Mariana, família grande, minha vó com muitos irmãos e tal, então minha mãe com muitas primas e primos, aquela família mais numerosa. Do outro lado, do lado do meu pai, é um avô austríaco, meu xará, meu grande símbolo da vida, assim, um cara que eu perdi há dois anos, com muita tranquilidade, mas um cara que eu tive uma relação muito íntima, admirei a vida inteira, demais, um cara que ajudou a formar o meu caráter, muitos dos meus valores, meu avô Erich. Austríaco, chegou no Brasil ali com quatro anos de idade, só com a mãe a irmã, ficou o irmão e o pai na Áustria, num momento de guerra ali e tal. Então, o meu avô foi também, desde que eu lembro do meu avô, já era separado da avó Vilma, que é a mãe do meu pai. Então, eles se separaram, meu pai tinha seus 16, 17 anos, mais ou menos, se eu não estou com o número errado, mas muito próximo disso. E aí o meu pai e a minha tia Sueli, irmã do meu pai, moraram com meu avô. A minha vó que saiu de casa. Então, separar naquela época, já não era algo muito trivial, a mãe sair de casa e o pai ficar com os filhos, menos ainda, mas foi essa história que eu tenho já de começo: o vô Erich separado da vó Vilma, casada a vó Vilma, com o Rui, que nunca foi vô Rui, sempre foi Rui e o meu avô, que nunca mais se casou. Então, essa é a raiz da família.
P1 - Por que eles se separaram?
R1 – Puxa, a história que eu conheço e que até onde eu sei que é a verdadeira, a minha vó se apaixonou por um amigo do meu avô e decidiu que ia sair de casa e aí, como eu tenho muita intimidade com meu avô e conversei muito, a vida inteira, com ele, ele assumia muito ali uma... meu vô era um cara muito direito, impressionante, assim. Ele falava: “Cara, eu fui culpado disso tudo, por uma opção de vida que eu fiz”, que o meu avô que chegou no Brasil, imagina, né, imigrante ali, sem estudo, estudou só o primário, mas era um grande técnico de válvulas de segurança e aí criou uma indústria de válvulas de segurança no Brasil, pra produzir válvulas pra Petrobras na época, uma coisa bem, assim, disruptiva, pra um cara que não estudou, mas eles eram gênios. Ele e o irmão dele eram gênios nessa história de produzir ferramentaria e tal e aí meu avô era o cara que saía as seis horas da manhã e voltava às onze, tentando construir uma vida. Meu pai começou a ter uma vida, junto com a minha tia, em ordem. Meu avô construiu a própria casa, na Vila Mariana. Então, ele se construiu com uma quantidade de trabalho muito grande. E aí, obviamente, minha vó ficou em casa falando: “Cadê meu marido? Cadê aquela vida que eu sonhei?” e eu acho que isso fez ela se interessar por outras coisas. E aí meu avô falou: “Tá bom” e aí isso aconteceu. Eles se separaram acho que por isso: quem não dá assistência, perde pra concorrência, né? Aquele lema que existe, eu acho que foi o que aconteceu com meu xará. (risos)
P1 – E seu pai? E por parte da sua mãe, seus avós, como eles eram?
R1 – Cara, meus avós ficaram casados até meu avô Nelson falecer. Cinquenta e sei lá, quatro anos de casamento, acho que um negócio assim. E minha vó traz um negócio muito interessante. O casal ficar casado tantos anos, tal, eles têm três filhos, tiveram três filhos: minha mãe e minha tia Catarina, que é minha grande madrinha e o irmão delas, que é o Nelson Filho. E a minha vó fala um negócio: “Quando você quer muito uma coisa, você tem que aprender a virar páginas da vida, você tem que aceitar virar páginas de coisas que acontecem e não se apegar exatamente a elas”. Isso eu sei que minha vó conta essa história, por essa questão de: “Eu entendo que eu tenho um marido que é um homem com uma cultura da época”. Com todas essas histórias que são polêmicas, que eu converso muito com a minha esposa, né, o negócio do machismo, da posição ali do chefe de família e tal e o que minha vó quer dizer com isso é: “Eu sei de coisas que aconteceram durante a nossa vida de casado e eu resolvi pôr na balança e virar algumas páginas, pra que a família se mantivesse, que o homem que eu, a vida inteira, amei e que sempre foi leal, estivesse do meu lado”. Então, a minha vó fala isso, sempre que eu bato papo com minha vó sobre vida conjugal, sobre essas coisas, eu a vejo trazer uma dose de racionalidade absurda. Então, foi isso. A história deles foi junto até o final e o dia que meu avô morreu, eu lembro muito bem, eu estava no apartamento da minha vó quando chegou a notícia, o desespero dela, aquela sensação de ‘fiquei sozinha’, a falta do meu avô, porque eles tinham relacionamento muito próximo, eles curtiam muito a vida, meus avós eram de viajar, de pegar a estrada e tal, então ela ficou aí bem sozinha, se sentiu bem sozinha, com a despedida do meu avô.
P1 – E o que sua mãe conta da criação que ela teve dos seus avós?
R1 – Puxa, minha mãe, primeiro, conta assim... a minha mãe foi uma pessoa muito bajulada pelo meu avô. Minha mãe era a caçula e ela sempre foi uma pessoa, assim, muito... minha mãe é uma pessoa frágil psicologicamente. Ela é uma pisciana bem pisciana, que precisa bastante carinho, colo, tal e eu ouço, pelas histórias dela, que ela teve muito isso com meu avô. Minha mãe tem síndrome de pânico, então de repente ela tinha síndrome de pânico numa viagem na Argentina, que ela estava fazendo com uma turma e meu avô aparecia lá, porque ela teve síndrome de pânico, sabe? Esse cara meio extremo, esse era meu avô e, com a minha mãe, muito disso. A minha mãe teve uma infância ali, por todas as informações que eu tenho, da família, bem privilegiada pra época, pra condição também da comunidade, do bairro onde eles viviam ali, nessa época na Vila Mascote, quando aquilo ainda ali era... você é de São Paulo?
P1 – Sou.
R1 – Tá. Roque Petroni, Cupecê, aquele bairro Vila Mascote era tudo mato, eles tinham uma chácara ali e tal. Então, vivam ali já de uma maneira legal, depois foram pra Vila Mariana criar raízes ali, então era aquela família que tinha TV colorida, aquelas referências do bairro. Então, eles tiveram uma vida bem interessante, que meu avô criou ali, a partir dessa história da carne, né? Vendendo carne, tendo frigorífico, açougue, essas coisas, sempre envolvido nesse meio. Então, eles tiveram uma vida relativamente confortável desde o início e tiveram esse tratamento, mesmo, do meu avô muito provedor, da minha avó dona de casa ali, tradicional ou então costurando as roupas das filhas, apesar de uma certa condição financeira favorável e tal, mas acho que, no final de contas, eu vejo a minha mãe e os meus tios ali com uma certa formação, de uma certa forma, muito diferente do que eu tive, de uma visão, assim, de muito buscar as coisas, sabe? Talvez porque a nossa condição financeira, na nossa família, em casa, durante a minha infância, tenha sido muito diferente, então eu acho que isso já te propõe novo posicionamento. Eu acho que a forma como você... quem cresce com grana não necessariamente vai ser uma pessoa sem ambições e tal, mas eu lembro muito disso bater pra mim pra caramba, de assim: eu preciso criar condições... eu vejo que a vida que eu tenho aqui em casa não é confortável, então eu preciso batalhar desde muito cedo, isso soma com as minhas origens, o meu ímpeto já, natural, de querer fazer as coisas e eu sinto que os meus tios, a minha mãe foram criados meio que numa situação de proteção, que talvez não tenha dado esse estopim do negócio, da busca por coisas, pelos seus objetivos, pelas suas realizações. Então, acho que é uma base diferente, que te põe com outra visão sobre conquista de objetivos, sobre desafios. Então, eu vejo muito mais do que eu ouço isso, nesse aspecto da criação dessa parte da família.
P1 – Erich, você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R1 – Na Vila Mariana, no bairro, ali, jovens, 12, 14 anos, se conheceram naquela época, foram namorados a vida inteira de jovem e aí aqueles namoros que vai e volta, briga, reata e tal e aí, num determinado momento, a minha mãe, ali, se separou do meu pai de namorado e acabou casando com uma outra pessoa ali, o Ricardo. Eu fui descobrir isso também com 14, 15 anos de idade. Eu não sabia da história. Eu descobri isso numa briga do meu pai indo embora de casa e jogando no ventilador essa história que ninguém, em casa, conhecia (risos) e eu fiquei sabendo que minha mãe tinha se casado e ela se casou com esse cara que estava indo para os Estados Unidos estudar e ela foi junto e ficou acho que um ano e pouco casada com esse cara, voltou, se separou e aí casou com meu pai. Então, eles têm uma história de infância, ali na Vila Mariana já, todo mundo meio se conhecendo, os meus avós paternos conhecendo os meus avós maternos, porque eram todos do bairro. Então, já era uma raiz meio histórica.
P1 – Seu pai, qual é a profissão dele?
R1 – Meu pai é engenheiro civil, mas na minha lembrança de moleque, da profissão do meu pai, não era da Engenharia Civil. Ele já era um cara que tinha se formado e resolvido empreender. Então, as primeiras lembranças que eu tenho do meu pai é com uma fábrica de plástico, uma injetora de plástico ali, que fazia peças de pequenos materiais e tal e já era essa época a dureza de que as coisas não davam muito certo, meu pai já tinha sido sócio do meu avô materno com açougue e aí briga de família e aí então não dá certo, meu pai sai do negócio do açougue e faz uma sociedade, nessa história do plástico, com uma outra pessoa, nunca dá muito certo, aquela história de família meio arrastada ali, que as coisas não estão andando muito bem, aí meu pai empreende ali mais uma... aí resolve voltar pra história do açougue, faz um açougue com o futuro marido da minha prima, brigam no açougue com o futuro marido da minha prima, que nessa hora já era marido e aí acaba a história do açougue e meu pai ferrado ali, financeiramente, a coisa só ia indo pra baixo e aí meu pai pega, nesse momento, se separa da minha mãe também e aí começa a construir uma vida nova, voltando pra Engenharia Civil, montando uma história de um escritório de perícias e avaliações de engenharia, começando bem pequenininho, miudinho, destruído ali financeiramente e emocionalmente; minha mãe, do outro lado, também, porque agora estava sem o meu pai e as coisas que ela sempre fez da vida, que ela é uma grande artista, mas uma péssima gestora, empreendedora e ainda meu pai volta pra engenharia, começa a reconstruir a carreira dele, vem se acertando, vem ganhando uma certa tranquilidade financeira e tal e aí, quando as coisas já estão redondinhas, a minha tia, irmã do meu pai, se suicida. Eu estou com 23 anos nessa hora, lá na Austrália, tentando realizar o sonho de aprender a falar inglês, que eu vi que era uma coisa que eu precisava, então eu peguei tudo que eu tinha de economia, eu trabalho desde cedo, desde os 16 anos, nessa hora eu tinha um carro, um Golzinho, não sabia falar inglês, tentando pegar o osso desde moleque ali, no mercado de trabalho, ter algum diferencial, galgar ali posições. A pressão, em casa, nesse momento, era muito chata ali, de falta de grana, minha mãe chorava, aquela história toda, aí eu pego e vou trabalhar no Banco Itaú, de office boy, pipipi, aí depois eu faço essa trajetória, como você falou que é um vai e vem de história, mas voltando pra história desse momento onde eu estou trabalhando no mercado, com 22 anos e aí, um dia, conversando com essa minha tia, irmã do meu pai, advogada do Banco Itaú, uma carreira em aspas grossas bem sucedida, pelo que a gente foi ver que era pessimamente sucedida no âmbito pessoal, de realização e eu falo: “Um amigo meu foi pra Austrália, vai ficar um ano lá pra aprender falar inglês, parece que lá tem trabalho, então não precisa ter muita grana pra ir, consegue sobreviver lá lavando louça”. Isso era 2004. Ela falou: “Por que você não vai?” Eu falei: “Como assim, eu morar fora do Brasil?” Pra mim era aquela coisa, aquela caverna que você acha que não existe um lado de fora. Imagina, eu? Ela falou: “Vende seu carro, eu te ajudo a pagar a passagem, você paga as despesas e dane-se ter um carro, vai pra Austrália”. Abriu uma janela que eu não sabia que existia, eu fui, fiz conta, falei aqui e ali e fui na Câmara de Comércio Brasil-Austrália, comecei a me agilizar, falei: “Tia, parece que a história é real, dá pra ir”. Ela falou: “Então, vai embora”. Eu pego, vendo tudo, saio do emprego e vou pra Austrália. Pimba. Chego na Austrália, aquela abertura de mente, de coração, de emoções, aprendendo a falar inglês, estudando, conhecendo gente, fico um ano lá, ainda faço umas viagens muito legais pela Ásia, que me abriram também uma percepção e uma admiração extrema ali pelos asiáticos, pelo sudeste da Ásia, conheço coisas que eu nunca imaginei que eu conheceria lavando louça, construindo deck de madeira em obra, botando a mão na massa e construindo um capítulo na minha vida que eu achei que não existiria, achava que eu não tinha esse alcance naquela época e volto pro Brasil e meu pai me pega, depois de um ano, no aeroporto e a primeira notícia: “Sua tia morreu”. Aquela tia que eu estava louco pra voltar e trocar uma ideia em inglês. Era o meu projeto, chegar e falar: “Olha como valeu a pena!” Eu já escrevia em inglês umas cartas pra ela, chego aqui, minha tia tinha se suicidado, por excesso de pressão no trabalho, por angústia, depressão. É muito louco isso, esse momento. Meu pai quis falar na hora que eu cheguei, porque ele sabia que eu estava com uma super expectativa de falar com a tia Su e aí vai rolar num outro momento essa história, mas aí, então, acontece esse lance aí e aí isso traz pra mim, também, porque o meu primeiro emprego, com 16 anos... eu já tentava, com 13 anos de idade, trabalhar na locadora de vídeo. Você me pergunta do CD-ROM, eu tentei emprego na locadora de vídeo do bairro. (risos) Você imaginar que o CD-ROM é até moderno nessa história. Mas eu chego ali com 13 anos, tentando arrumar um trabalho na esquina. A galera: “Você está maluco, você não consegue, não dá pra empregar um moleque de 13 anos” e aí, com 16, eu entro no Itaú, porque a minha tia falou: “Existe um programa de contínuo, office boy, aqui no Banco, quer começar a trabalhar, eu te dou uma ficha, você preenche e vai” e aí eu comecei no Itaú e aquela coisa: Itaú, Banco, pipipi, vou trabalhar, me dedicar, tal. Fui pra Itautec, super jovem também, maior expectativa em cima de mim ali, que eu comecei a construir uma expectativa, quando eu volto também e vejo a minha tia tendo sucumbido à pressão e que eu sabia que ela vivia essa pressão, porque eu trabalhava de office boy no Jurídico Societário e ela era advogada chefe do Jurídico de Contratos de Propriedade Intelectual. Então eu via minha tia no dia a dia passando e eu sentia minha tia no estresse nas respostas das minhas cartas da Austrália e tal. Tanto que meu vô carregou essa culpa de: “Eu não soube perceber a situação da sua tia e ajudar”. Meu vô morreu com essa culpa, eu sei, nas costas, né? Mas isso me traz uma fotografia muito mais precisa, assim, um indício de como a gente deveria curtir o dia a dia porque, afinal de contas, é isso: minha tia poderia ter largado o osso muito mais cedo e ter ido curtir um beira mar em qualquer lugar, solteira, já tinha as economias dela e tal, mas aí eu conto isso, porque daí a vida do meu pai, nesse momento, também se transformou numa vida muito mais confortável financeiramente, porque minha tia não tinha filhos, não tinha marido. Tinha o meu avô e o meu pai. Então, ela também deixa, nesse momento, umas economias ali que meio que fizeram o colchão do meu pai. Então, meu pai sai daquele momento que eu falei ali entre os meus dez anos de idade, até os meus 18, 20 anos, num aperto extremo ali, pra começar a construir sua vida e veio esse bônus da história do ponto de vista financeiro e aí meu pai chega numa condição de vida que hoje ele está bem confortável, assim.
P1 – Vamos voltar um pouco?
R1 – Vamos lá!
P1 – Quando você era pequeno, que imagem você tem da sua casa? Como era a sua casa?
R1 – Eu tenho dois momentos, Rô: esse muito mais próximo, dessa fotografia que eu falei, daquela casa térrea, ensolarada, com quintal, mas sem vizinhos, a gente morava num bairro esquisito ali, onde era um ferro-velho o vizinho da direita; um posto de gasolina o vizinho da frente; um restaurante, no vizinho da esquerda, uma churrascaria. Então, eu nunca tive vizinho, nunca tive o térreo do prédio, nunca tive o amigo da rua. O quintal era o nosso mundo, meu e da minha irmã. Tanto que quando a gente saiu da casa, minha mãe vendeu, ia ser demolida a casa pra construir um comércio, eu ainda fiz uma pintura na parede e fotografei e mandei pra minha irmã, que representava meio essa coisa de como aquele quintal, cara, foi o nosso mundo, foi o nosso dia a dia, foi a nossa fazenda, o nosso campo de futebol, nosso playground e, assim, você sabe cada lajota daquele piso de caco, de telha vermelha, que era o piso desse quintal, você sabe o formato de cada lajota. E eu acho muito louco isso hoje em dia, porque eu falo: eu sou absolutamente detalhista, assim, eu sou capaz, daqui um ano, lembrar que tinha uma tomada branca do seu lado esquerdo aí, durante essa entrevista. Apesar dela ser branca, na parede branca, eu vou reparar essa tomada e vou me lembrar. E aquilo era tanto o nosso mundo ali e era tanto tudo que a gente tinha, porque não se saía. Eu morava numa avenida, esquina com uma avenida de ônibus. Uma favela do lado, ali, muito próxima de onde é a Avenida Água Espraiada, aquele canto mesmo do final da Espraiada, não na ponta da Marginal. Então, não tinha essa de sair pra rua. Às vezes que você saía, de vez em quando você ainda era assaltado, porque você não era da favela, mas você era de uma casa que estava fora do contexto, então era perigoso o lado de fora ali, né? Então, a lembrança que eu tenho dessa casa era a nossa casa, o nosso mundo. Até meu pai estar ali a gente tinha piscina Regan no fundo, ali, então de fim de semana a gente tomava sol no quintal, a gente fazia um churrasquinho na churrasqueirinha portátil, gostoso pra caramba, todo mundo junto ali, um radiozinho tocando uma música, eu e minha irmã brincando, eventualmente um primo, um tio, meu avô que ia de domingo e levava um frangão ali e passava o domingo com a gente, então ele estava sempre sentado na banqueta, ali. Então, eu tenho essa fase muito gostosa, que me remete a essa história de uma casa com quintal, ensolarada, que é o que eu estou buscando agora e que essa pandemia me falou: “Saia, chega do apartamento de sombra”, que eu nunca gostei de morar, porque eu me criei em casa e eu estou atrás desse quintal ensolarado. E aí teve a outra fase, que foi a fase onde a gente, já maior, com uma situação financeira bem diferente ali, como eu te falei e aí uma fase mais chata, mais carregada emocionalmente, pós brigas ali dos meus pais, que eles não sabiam, muito, conduzir esse momento e então esse momento sempre rolava essas histórias.
P1 – Quantos anos você tinha, nesse momento? Nessa casa, nessa primeira casa do quintal ensolarado, você viveu lá quanto tempo?
R1 – Eu vivi 22 anos, até ir viajar pra Austrália...
P1 – Na mesma casa?
R1 – Na mesma casa.
P1 – Então, vamos voltar um pouco. Como era o cotidiano na sua casa? Quem exercia autoridade, ela era dividida, como era isso?
R1 – A minha mãe, que a gente ainda não falou profissionalmente dela, mas ela sempre trabalhou dentro de casa. Não como dona de casa. Minha mãe sempre trabalhou dentro de casa, minha mãe sempre precisou de movimento em casa, sempre curtiu isso e o meu pai era aquele que saía pra trabalhar de manhã e voltava às cinco e meia da tarde. Essa é a lembrança mais básica que eu tenho. Quando eu sou pequeno, ali, eu lembro mais dessa história do fim de semana, a gente curtir tomando um sol, tal. Lá pros dez anos, eu já lembro mais dessa cena: minha mãe dando a maior ripa, trabalhando lá em casa com a loja dela, tentando deixar a casa florida, tentando deixar a casa cheirosa, bonita, harmoniosa. Era uma casa simples, que quando a gente chegou era uma oficina, minha mãe falou que tinha rato pra caramba, que saía do ralo e ela num puta desespero, minha mãe é paranoica por limpeza, é a Doutora Covid: tudo que falam de covid hoje, minha mãe fez a vida inteira. O paninho branco com Cândida na entrada da casa, pra bactéria... micróbio é uma palavra que eu ou ouvia muito da boca da minha mãe, que caiu em desuso micróbio, né? Ninguém fala mais de micróbio, mas minha mãe falava muito desse bicho. Então, meus pais, ali, aos trancos e barrancos, tentando dar um tapa na casa, reformando ao longo do tempo, pra ela ficar minimamente agradável. Então, eu lembro, a partir ali dos nove, dez anos, dessa cena da minha mãe sempre _______ (43:04) e meu pai chegando mal humorado às cinco em ponto da tarde e deitando na cama, ligando a TV e brigando no jantar, porque alguém pegou a colher de arroz com a mão errada ou porque está fria a comida ou porque a camisa está sem botão dentro do guarda-roupa. Essa fase é muito chata, cara. Foi pré-separação dos meus pais e que foi ufa. Se você quer se separar sem seus filhos ficarem tristes, fique uns três anos fazendo isso que meu pai fez, porque eles vão dar graças a Deus que vocês se separaram. É uma boa maneira de construir uma separação ali, justificada. Então, nesse momento, até uns 12, 13 anos, eu não lembro exatamente quando meus pais se separaram, mas era essa fase chata, sem clima, minha mãe triste, meu pai nessa pegada que voltava da fábrica sabendo que as coisas não estavam indo bem e chateado, tal. Aí rolou a história do açougue, quando ele faz o açougue a coisa também tem um pico bom, mas depois fica uma porcaria também. Então, ficou essa sensação ali final, antes do meu pai se separar da minha mãe e aí minha mãe tentar juntar os cacos e reconstruir aquele ambiente agradável, com medo, sozinha, financeiramente vulnerável, sem estar a galera pra cima e pra baixo, então tendo que se virar, aí ficou meio sem chão e vai se arrastando e eu e a minha irmã crescendo, com 15 pra 16 eu arrumo o primeiro emprego no Itaú, aquele vale refeição eu começo a sentir uma puta sensação boa de poder entregar em casa, ali, o vale supermercado e o vale refeição e sentir que eu estou... era isso que eu queria: tentar deixar minha mãe mais tranquila naquele momento, mais protegida e eu pego e arrumo esse emprego, lembro até hoje, ganhando trezentos e sessenta e cinco reais por mês, que eu achava que era uma fortuna, porque sei lá, eu achava que aquilo era uma puta grana, eu com 16 anos de idade e mais trezentos e cinquenta de vales supermercado em geral. Eu falei: “Nossa, agora eu estou me sentindo um pouco mais ajudando as coisas acontecerem e ajudando minha mãe”. E aí isso, então, permanece uns dois anos e pouco, até eu fazer quase 18. Eu entrei com quase 16 no Itaú e com quase 18 eu arrumo um emprego na Itautec, pra ganhar quase a mesma coisa, mas saio do Itaú e continuo, então, a minha jornada de trabalho ali. E aí vou conectando...
P1 – Vamos voltar só um pouquinho. A gente vai chegar na Itautec de novo. Como você, nesse período, antes ainda dos seus dez anos... com quantos anos você entrou na escola?
R1 – Entrei ali, eu lembro a primeira escola que eu estudei, que era muito gostosa, uma escola particular ali no bairro, era o Bosque Encantado. Sei lá, eu devia ter três, quatro anos e minha irmã cinco, seis. Pré-escola, mesmo. Foi a primeira escola que a gente estudou, tenho várias lembranças dessa escolinha que a gente estudava.
P1 – O que você lembra dela?
R1 – Cara, eu lembro de cada classe, lembro do piso do taquinho de madeira, de todas as salas, das confusões que rolaram na casinha que tinha os três porquinhos pintados, lembro de tudo, cara.
P1 – Que confusão era essa?
R1 – De molecada ali, desde briguinha que acontecia nessa casinha; até a gente escondido pra não aparecer na sala de aula, dentro dessa casinha; até um dia que, meu, eu lembro essa cena maluca, assim, das primeiras experiências sexuais de criança ali e eu lembro de um amigo e uma amiga que eu tinha na classe, devia ter sei lá, cara, seis anos de idade no máximo e eu lembro deles ali se descobrindo, então a menina baixando a calça do menino dentro da casinha dos três porquinhos e a gente falando: “Meu, o que está rolando aqui? Que loucura é essa?” Mas sabe aquela coisa de criança se descobrindo? E eu lembro da diretora nessa hora, aparece no parquinho, vê essa cena, eu do lado de fora da casinha, ela dá um tapa na bunda do menino ou da menina e aquilo vira uma história de diretoria, chama os pais e tal, rolou um puta rolo. Eu lembro que esse puta rolo foi por esse momento sexual na casinha de madeira dos três porquinhos, ali. Até hoje eu lembro do estalo da mão da diretora na bunda de um dos dois, ali, naquele lance que não podia estar acontecendo. Imagina! Nem sei hoje que repercussão teria uma coisa dessas, (risos) nos momentos atuais. Mas cara, eu lembro dos brinquedos em sala de aula, que a gente tinha que fazer aqueles trabalhos, sabe aquele da tábua de madeira com uma agulha com lã e que você vai costurando o negócio? Eu lembro até da textura da cor da lã que a gente costurava os negócios. Eu tenho muitas lembranças do Bosque Encantado, que era essa escola perto de casa. E aí a gente sempre estudou em escola particular, mas cara, isso foi a gotas de suor e sangue. Minha mãe não queria a gente em escola pública de jeito nenhum, era inadmissível. Eu lembro do meu pai cogitando a ideia ali, a gente sem grana, aí minha mãe descobrindo, no momento mais... meu vô pagou uma época escola, meu outro vô pagou uma época escola pra ajudar, aí chegou uma hora que ninguém pagava e minha mãe descobriu que no Colégio Objetivo, se você conseguisse algum deputado, alguma coisa assim, que fizesse uma carta pro Di Genio, que era o dono da escola, ele concedia descontos, por interesse lá de relacionamento. Cara, eu lembro da minha mãe caçando alguém, indo lá no... como é que chama ali o escritório de político?... enfim, do Arnaldo Faria de Sá. Eu lembro desse nome até hoje, que minha mãe é eternamente grata, porque o cara mandou essa carta e a gente consegui um belíssimo desconto e conseguiu se formar, eu e minha irmã, no Objetivo, estudando no Objetivo, sem ter ido pra uma escola pública.
P1 – Do que você mais gostava no primário? Que lembranças que você tem? O que você mais gostava de fazer na escola? Você lembra de alguma professora?
R1 – Você sabe que, de primário, eu não lembro de nenhuma professora? As únicas coisas que eu lembro, eu lembro vagamente, sempre, do rosto das professoras de Artes e lembro desses momentos, dessas aulas eu lembro com detalhes, como eu te falei, do tipo: qual era a lã e o pincel que a gente usava pra pintar. Eu lembro da sala de Artes, das coisas penduradas, secando no varal, eu lembro de tudo isso. Lembro muito vagamente. Dessa época, de professoras, eu nem lembro. Eu vou começar a lembrar de professora ali no ginásio, na quinta, sexta série, eu vou começar a lembrar do rosto de professoras. Antes disso, não.
P1 – Você sabe o nome de alguma? Que matéria você gostava no ginásio?
R1 – Matérias do ginásio. Estou falando, assim, do comecinho: quinta, sexta, sétima série foi sempre Ciências, as matérias de Humanas sempre me trouxeram mais interesse. Assim: História, Geografia, Ciências sempre foi uma coisa que eu gostei muito, mas a minha identificação sempre foi ali na parte de Artes. Falou de aula de Artes, de livro, de pintura, dessas coisas, eu lembro muito, ao mesmo tempo que eu peguei uma birra... eu peguei duas birras na escola, não sei te dizer por quê. Numa das escolas onde eu fiz o ginásio, no Magno, a gente tinha aula de flauta. Aula de música era flauta. Flauta era o instrumento e era isso que você tinha que tocar. Eu me recusava a tocar flauta. Era meio uma bandeira minha, não sei por que e eu tirava zero em toda prova de flauta, que era mensal e dez em toda a prova escrita: partitura, teoria musical, que era a bimestral. Então, eu passava com seis e meio, tendo tirado zero na flauta. Mas eu encanei que eu não faria isso, não aprenderia flauta, não sei por quê. Hoje me preocupa, nas fases da minha criação, por vários preconceitos que eu tinha, inclusive esse preconceito musical da flauta. Acho que vem do meu pai isso. E com inglês. Que eu encanei que eu também não ia aprender inglês. Eu só me dava mal em inglês e hoje eu sou absolutamente grato por aquele momento que eu te contei, quando eu vou pra Austrália aprender inglês, me dedico pra caramba no inglês, continuo me dedicando, sei falar, uso pra caramba no meu dia a dia hoje, toda reunião, palestra em inglês, toda coisa, lembro da minha tia como: “Puta, tia, ainda bem que você me cutucou nisso, senão eu estaria fugindo de oportunidades que hoje eu tenho, que fazem toda a diferença aqui na Recicleiros e no meu dia a dia, na minha satisfação, na minha autoestima, mas eu lembro que é isso: eu não toco nenhum instrumento, mas eu falo inglês. Corri atrás do inglês, mas continuo (risos) sem tocar flauta, violão e nada mais.
P1 – Erich, você tinha amigos, eles iam na sua casa? Você falou que às vezes iam, né? Primos.
R1 – Primos, assim, porque no fim de semana a gente pegava um sol ali no quintal, aparecia um primo, tal, mas amigos de escola, até pelo lance da minha casa, de não ter muito... pensava assim, moleque: como eu sempre estudei em escola particular, sempre tinha uma diferença ali. A molecada morava em condomínio, em prédio com térreo, que tinha quadra e tal. Minha mãe falava: “Por que você não chama nenhum amigo pra vir em casa?” Eu falava: “Pra quê?” Ela: “Pra bater papo”. Falei: “Imagina, mãe, bater papo? Criança bate papo? Criança vem na casa do outro pra jogar bola, videogame, fazer alguma coisa assim. Então, chamar moleque pra bater papo? Não existe isso. Mãe, você está por fora”. Então, assim, nunca tive muito amigo em casa e eu sempre tive uma dificuldade de me identificar com essa fase da minha infância, ali. Eu entrei no Magno, nessa escola, acho que na terceira série e fui até a sétima série. E eu nunca tive muita identificação com essa galera. Então, por conta disso, eu tinha muito pouco esse lance dos amigos da escola. Tinha a molecada da classe, eu bagunçava ali, tomava advertência, suspensão, nunca fui muito quieto, sempre fui de falar pra caramba em classe, sempre fui de ter uma ideia melhor pra propor e aí bagunçar o ambiente das coisas. Isso sempre foi um pouco minha característica até bem grande, já, ali, em faculdade. Nunca consegui parar muito. Então, eu tinha um bom relacionamento ali, eu tinha uma figura também de liderança na escola, nunca sofri bullying, nunca tive esse tipo de problema, mas também nunca desenvolvi um relacionamento extraescolar muito significativo. Nunca tive amigos em casa, assim, nunca foi uma coisa muito normal. E senti essa falta, num determinado momento, onde a molecada começa a se juntar, a criar os grupos que fazem as coisas, os pais que se conversam, então as crianças viajam junto e tal. A gente nunca teve muito isso. E aí, quando eu estou ali no primeiro colegial... não, no segundo colegial, com 15 pra 16 anos, eu arrumo um emprego extremamente necessário, já estou no Objetivo nessa hora, com aquele desconto do Di Genio, precisando de grana. Eu arrumo um primeiro emprego e eu tinha autorização pra sair vinte minutos mais cedo da escola, pra dar tempo de chegar no Itaú. Então, eu já começo a misturar prioridades, naquele segundo colegial e aí o meu colégio era assim: a molecada saía, batia o sinal lá no Objetivo, aquela rua ocupada, o pessoal inventando o que fazer, vai ter futebol em tal lugar, vai ter churrasco. Eu nunca participei dessas histórias. Saía mais cedo da aula, era o que saía mais cedo da aula pra trabalhar, no segundo colegial de um colégio particular. Não tinha nada a ver. E aí vai e eu me formo nesse colégio aí.
P1 – Deixa eu só voltar: você não ia na casa dos seus amigos? Você tinha vergonha?
R1 – Não, não tinha. Mas aí que está: era à tarde que rolavam essas coisas. Eu estou falando ali já a partir da oitava série, que eu estou estudando no Objetivo do Morumbi ainda. Nessa época eu não trabalhava, mas era isso: a gente morava super longe. A gente foi estudar no Objetivo do Morumbi, que foi onde a gente conseguiu o desconto, lá no Real Parque. Então era uma escola pequena no Real Parque. Eu morava depois do aeroporto de Congonhas. Então, a gente também não ficava ali, à tarde. Era moleque, oitava série ainda, minha mãe não me deixava ficar ali e tal. Então, também não rolou essa conexão. Acho que não tinha muito essa cultura na nossa casa, na nossa família, de cultivar essas amizades mais de longo prazo, mais de raiz. Eu também sempre mudei de colégio, então amigos que eu tenho hoje, que já eram amigos desde a primeira infância, a molecada que entrou, por exemplo, no Friburgo, um grande amigo meu entrou no Friburgo, se formou no Friburgo. Então, a molecada que eles saem até hoje é a molecada do Friburgo. Eu fui ter uns laços mais significativos de amizade que permanecem até hoje, profundos, na faculdade. Meus amigos são de faculdade.
P1 – Como era na sua casa? Se falava de política?
R1 – Não tenho nenhuma lembrança disso, de política, dessa época, de casa.
P1 – Alguma formação religiosa?
R1 – Minha mãe bem católica, super católica, minha tia é bem católica e tal, mas eu lembro, interessante essa pergunta, porque eu lembro de uma época, não lembro desse catolicismo profundo, bem enraizado. Missa de domingo a gente não fazia. Eu não fiz Primeira Comunhão. Eu fui fazer crisma num pack que minha fez na igreja ali, pra já fazer crisma com Primeira Comunhão, porque eu não tinha, já maior, eu acho que já lá com uns 13 anos de idade, eu acho que foi com essa idade, com 13 anos, mas até então eu não tinha uma referência significativa do catolicismo e tenho uma lembrança dessa época que meus pais ainda são casados e a coisa estava desandada ali e eles num lance do... eu lembro que tinha um tal de um cara chamado Absan, o ‘seu’ Ab, que eu lembro que tinha que buscar umas pedrinhas redondas num rio de tal lugar e aí minha mãe e meu pai catando umas tais de umas pedrinhas que tinha que catar dez cada um e aí eu lembro que, às vezes, em casa, eles queimavam uma tal de uma oração que tinha que fazer. Devia ser um negócio meio oriental, que eu não lembro direito, mas não tinha nada de catolicismo nessa época. Eu acho que é aquela busca por ‘algo tem que me salvar, as coisas estão indo mal no relacionamento, nas finanças pessoais, domésticas, aqui’. Eu lembro dessa história do professor Ab. Depois era professor Ab, professor Ab e aí acho que não deu muito em nada e minha mãe faz um resgate pro catolicismo, isso eu lembro. Ela fala: “Isso aí tudo não tem nada a ver, a gente é católico e a gente vai rezar na igreja, se a gente quiser se reconectar com algo”. Aí, então, eu faço a crisma e aí, quando eu faço a crisma, eu escolho como padrinho de crisma o meu tio Matias, que é primo da minha mãe, casado com minha tia Elisa Helena, que é carola ali. É da igreja, tem a capelinha lá no sítio dela e dá um puta valor pra isso. Eu acho que ela até hoje é too much, pra forma como eu conduzo o meu dia a dia, a minha conexão com o divino, mas é isso: eu escolhi esse meu padrinho, então traz a gente mais próximo dessa parte da família e até hoje minha mãe é uma pessoa super católica, a minha vó vê ali Terço Bizantino à noite ou de manhã, sei lá que horas que passa na TV, porque ela está acamada, mas é super católica. Então, existe essa influência, mas houve um tempo onde a coisa estava meio sem referência. Então, eu lembro dessa coisa sem referência.
P1 – Você se dava bem com seu pai? Como era sua relação com ele? Que lembranças você tem da infância com ele, algum caso, alguma cena.
R1 – Cara, eu tenho várias. Eu admirava demais o meu pai e eu penso muito, eu tenho um filho homem, eu tenho o Emanoel, que tem dez anos de idade e eu me preocupo pra caramba com o relacionamento que eu construo com ele, falo: “Puta, eu dei uma bronca, será que ele vai me interpretar mal, vai falar: ‘O pai é o maior vacilão’”? Aí eu lembro da minha admiração pelo meu pai e falo: “De jeito nenhum, cara”. Moleques tendem a idolatrar demais o pai. Então, meu pai é corintiano, eu super corintiano, o Corinthians foi um elo de ligação e é até hoje com meu pai. Ele me chama pra tomar uma cerveja na casa dele em dia de jogo e assistir lá. Vários eu não consigo ir hoje em dia, mas é um ponto onde: “Vai ter Corinthians, vai vir aqui em casa?” Então, eu aprendi a ser corintiano com meu pai, com oito anos de idade eu vi o Corinthians campeão no estádio, eu era um dos poucos moleques do meu círculo de amizades que ia em estádio. Eu adorava isso, adoro até hoje, adoro futebol, adoro estádio de futebol, adoro ser corintiano, sem grandes fanatismos, mas acho que é um elemento bacana, assim, da cultura e desse link familiar. Então, eu tinha uma baita admiração pelo meu pai e eu lembro muito, assim: meu pai chegava ali, quase que pontualmente às cinco e meia da tarde, em casa, nossa casa tinha um portão de ferro de correr, que entrava na garagem, assim e fechava esse portão. Eu tenho muito presente em mim todos os dias ouvir o carro chegando e sair correndo pra abrir e fechar o portão. Pra mim era um procedimento que tinha que ser meu: abrir e fechar o portão pro meu pai. E eu chego em casa todos os dias, Rô, independente do dia que eu tive, esfuziante. Eu chego em casa, eu abro a porta da minha casa, meus filhos veem, meu, um circo chegando: alegria, sorriso, brincadeira. Minha filha, que é pequenininha, eu faço ainda mais palhaçada ali, tal. Eu quero que a galera tenha a imagem do pai chegando e sendo uma explosão de alegria em casa: “Ainda bem que o pai chegou”. Eu cultivo isso e eu me esforço pra deixar do lado de fora qualquer sentimento que não me leve a uma performance artística na entrada, em casa. E eu acho que eu faço isso justamente porque eu não tinha essa sensação (risos) quando eu fazia toda essa recepção ali pro meu pai, mas beleza, isso eu superei e eu continuava idolatrando e lembro, cara, de um dia ver meus pais discutindo à noite sobre a história de separar e brigando, eu acordei no meio de um sono, ouvindo isso, eu o ouvia: “Então eu vou embora”, tal, aquela coisa, eu falava: “Caraca, é meu pai”. Com 12 anos de idade: ir embora, velho? Senti aquela noite tipo vrummmmmmm, o coração sendo arrancado do peito, sem ele ter ido. Aquela ansiedade, aquela tensão. Então, eu tenho essa lembrança do meu pai corintiano, eu no colo dele no estádio, aquela puta coisa legal, aquela sensação legal, mas tenho também essa coisa e principalmente pós separação da minha mãe, meu pai deu uma bela ausentada, assim. Então, hoje eu vejo meu pai fazendo muito por nós aqui, pela família e tal, por mim, pela minha irmã, hoje ele tem uma condição de fazer mais por nós, mas eu lembro de uma coisa que ele me falou uma vez e que não é exatamente o que ele fez, mas ele me falou que dar dinheiro é muito fácil, basta você ter dinheiro. Dar atenção, carinho e companheirismo, isso tem valor, porque você pode não ter a grana, mas se estiver junto, do lado, você está dando muito mais do que dinheiro. E eu tenho uma coisa emblemática que às vezes eu já joguei na cara do meu pai algumas vezes e tem essa história porque minha mãe também jogava em mim, que era o nó da gravata no dia da minha colação de grau. O nó da minha gravata na colação de grau quem fez foi um cara na calçada, que eu nunca vi na minha vida. E minha mãe levantou isso como um grande ícone da ausência do meu pai e eu também abracei isso. Então, em brigas, eu tive uma briga meio forte com meu pai há uns três anos e eu falei da história do nó da gravata no dia da formatura, na calçada: “Você não deu o nó da minha gravata”. Assim como ele não esteve em vários outros momentos, assim como ele não vai ver um jogo do meu filho, de futebol, mas hoje, se você precisar de mil reais, dois mil reais pra resolver um negócio, ele na hora faz uma transferência e tem o maior orgulho de te mandar a transferência na hora, no celular, mas isso conflita com aquele valor ali que, em tese, ele estava me ensinando, mas não praticou e eu uso nas minhas apresentações, muito, um slide, quando eu estou falando de coleta seletiva, de reciclagem, que é: “Seus filhos seguirão os seus exemplos e não os seus conselhos”. E tem a foto do moleque com brócolis e o pai comendo um X-Salada do lado. E eu lembro muito dessa história, quando eu uso esse slide, várias vezes, que é: temos que ser exemplo. E por isso eu escolhi fazer o que eu faço da minha vida todos os dias.
P1 – Erich, e sua mãe? Como você a via? Como era sua relação com ela?
R1 - Minha mãe sempre foi a mãe do carinho, do carregar no colo. Nunca me bateu, nunca encostou a mão em mim, sempre dentro das dificuldades emocionais dela, dos desafios dela, do se ver num bairro perigoso, desprotegida. Eu percebo tudo isso. Sem o marido, sem nada do que ela tinha imaginado pra vida dela. Ela fala muito disso. A vida dela é totalmente diferente do que ela projetava, hoje. Mas eu vejo essa pessoa do amor, do carinho, é pra ficar com meu filho, porque ele tem uma prova amanhã, eu atendendo um cliente, eu fico com meu filho, porque ele tem uma prova amanhã e ele precisa de apoio psicológico. Minha mãe é isso. E, por isso, ela tem dificuldade financeira. Por isso, ela não consegue fazer engrenar o profissional dela, porque ela não conseguiu priorizar isso a vida inteira. Ela montou a loja dela, trabalhando com roupa fina, de ponta, com cliente rica, vendendo no fundo do quintal, na edícula, porque ela é um talento absurdo com moda. Ela é um puta de um talento. Ela se veste, as pessoas batem palmas. Ela veste as clientes dela, as pessoas: “Meu, onde você comprou essa roupa?” As pessoas com grana não conseguem fazer o que ela consegue fazer sem grana. Minha mãe é uma artista nessa história, mas não consegue se promover, empreender, ganhar seu dinheiro. E ela escolheu trabalhar no fundo de casa, porque ela falou: “Eu tenho que criar meus filhos, tenho que estar do lado dos meus filhos, então vai ser assim”. Então, essa é a imagem que eu tenho da minha mãe, ao mesmo tempo mesclada com essa fragilidade de quem precisou demais, talvez, do que ela teve ali do ponto de vista emocional ou essa é a história dela. Então, até hoje eu colaboro muito com a minha mãe, ali, eu faço a gestão financeira dela, eu tento fazer a gestão emocional, essas coisas.
P1 – Erich, ela fazia roupa ou comprava e revendia?
R1 – Ela comprava e revendia. No cenário moderno ela foi se perceber ali como uma personal stylist, uma consultora de moda. O que minha mãe sabe é pegar e falar: “Não, Rô, essa cor com a sua pele não, isso e isso e não desse jeito, você tem que fazer essa barra, porque isso aqui, esse ombro está zoado e está te deixando com esse aspecto”. E ela pega e dá um puta up na pessoa e a pessoa se sente com uma puta autoestima, liga pra ela e fala: “Bia, puta, você me salvou, estou me vendo na imagem do programa de TV que eu fui e estou me achando ótima. Realmente, a minha postura corrigiu”. Então, minha mãe tem essa coisa de olhar o corpo da pessoa, uma eventual deficiência física que a pessoa tenha, como várias amigas dela que têm e mexer na autoestima da pessoa, deixar a pessoa se perceber bem e ser percebida bem, por um código que é o da vestimenta, né? Então, eu acho que minha mãe manja muito de cultura e arte e não sabe como usar isso e se enrola na história, mas se você falar: “Mãe, espera aí, você precisa ajudar uma amiga minha, que precisa do seu trabalho”, ela vai na sua casa, ela vai fazer, ela não vai saber cobrar, não vai saber receber, não vai saber pôr preço, ela vai ficar sem graça de mandar... é um desastre como empreendedora e gestora. Então, assim, é isso: ela está do lado, estava do lado o tempo todo. Se eu tiver uma dor de barriga agora, como eu tive num dos grandes momentos da Recicleiros, de exposição muito grande da Recicleiros, de muita tensão, num evento que a gente fez em Itu em 2010 e que deu várias coisas erradas e que uma porta caiu sobre um amigo meu, que quebrou o dedo dele, mas poderia tê-lo matado e aí eu estou lá num momento de puta... eu estava pra baixo ali, eu estava arrasado, eu estava sentindo a pressão, eu liguei pra minha mãe, em uma hora ela estava em Itu com um terço, com uma água benta e vamos respirar junto. (choro) Então, minha mãe é essa pessoa aí. Ela aparece. Se precisar, ela aparece e larga tudo e ela vai lá. E a gente é fruto das nossas circunstâncias, das nossas escolhas, né? Então, ela escolheu isso, então ela falou: “Pô, eu poderia ter deslanchado profissionalmente, eu me cobro tanto, eu seria tão satisfeita por isso!”, mas nitidamente ela fez outras escolhas. Nitidamente ela abriu mão.
P1 – E esse seu avô, pai do seu pai? Seus pais se separaram, mas você disse que você convivia muito com esse avô paterno.
R1 – Muito.
P1 – Como era a relação? Que lembranças você tem desse momento que seus pais se separaram? Você ficou mais próximo dele? Como é que foi essa relação?
R1 – Meu vô era aquele cara, meu, austríaco, ali, austero, organizado pra caramba. Vai na padaria, toma um café, volta, abre o caderninho, anota um e quinze, café, dia 27. Austero e que eu tenho, da minha mãe, inclusive, você vê, histórias do meu vô no momento da separação com a minha vó, o cara, em tese, traído, ali, o homem traído, com a mulher indo embora com o amigo dele, que minha mãe fala que um dos maiores exemplos do brio, da honestidade e do caráter do meu avô, ela viu naquele momento, na forma como ele se separou, como ele falou: “Beleza, eu fico com os filhos, metade de tudo é seu, não tem nem o que discutir, isso é seu, isso é seu, o apartamento no Guarujá”. Meu vô conseguiu construir bastante coisa com muito trabalho, do nada. Um cara sem formação. Trabalhador pra caramba, honesto no extremo, organizado, planejado. Eu acho que isso, talvez, desde molequinho eu via, né? A casa do meu avô... meu avô era aquele cara que consertava antes do negócio quebrar. Então, assim, a gente sempre tinha essa visão, que a casa do vô Erich, todas as janelas de ferro corriam que nem um sonho e que todos os parafusos eram bem apertados e que todas as coisas funcionavam. Ele cuidava da casa, ele cuidava do meu pai, ajudava meu pai. Ele era um cara que, dentro das limitações do que ele podia ter ali de conhecimento, talvez até de cultura, de psicologia infantil, um cara ali, trabalhador pra caramba, de repente, com os filhos em casa sem a mulher e se virando. Então, meu vô sempre foi esse cara. No dia que a minha irmã nasceu, em 1980, ele comprou um apartamento no Guarujá, pequenininho, na praia do Tombo, pra gente ter pra onde ir nas férias. Meu vô falou: “Eu vou comprar esse apartamento porque as crianças têm que ter pra onde ir nas férias”. E a gente sempre foi pro Guarujá, se apinhou em um apartamento pequenininho ali, mas sempre foi pro Guarujá. Depois, quando eu tinha uns 12 anos, eu, 14 anos depois, meu vô trocou por um apartamento mais legal, ali na praia do Tombo e aquilo foi pra gente. Então, tudo isso e mais essa coisa de um dia eu resolvi falar: “Eu quero dormir com o vô”. O vô ainda morava em São Paulo, na Vila Mariana, no sobrado que ele construiu e onde cresceu meu pai e minha tia e aí eu peguei e resolvi que eu dormiria na casa do vô na sexta-feira e aí ele ia lá e comprava o café da manhã, com a tortinha, com não sei o que, aquela mesa, só meu avô em casa e agora eu, que era o brother dele, o xará dele ali, começando a construir uma história de nós dois. Isso foi se fortalecendo ao longo da vida, eu passava o fim de semana com meu avô ali, achava o maior legal, ele se sentia acompanhado e aí meu avô resolveu mudar pro Guarujá. Depois de um tempo ele falou: “O que eu estou fazendo aqui? Eu já sou aposentado e tal, vou mudar pro Guarujá”. Vendeu essa casa, que minha tia morava lá, porque minha tia estava separada, já, do ex-marido, então estava morando com meu avô e meu avô querendo cada vez mais estar no Guarujá, resolve vender essa casa, comprar um apartamento, minha tia fica nesse apartamento como moradora oficial e meu vô muda pro apartamento no Guarujá. E aí eu tinha, nessa época, meus 16 anos, eu estava começando no Itaú e o Itaú era na estação Conceição do metrô, ali e aí eu falei: “Cara, da estação Conceição pra Jabaquara de metrô é um, dois, eu pego o ônibus e estou com meu avô na praia”. Isso virou uma rotina pra mim: eu saía do trabalho na sexta-feira, pegava o ônibus, ia pro Guarujá, meu avô me pegava na rodoviária, a gente passava o sábado e o domingo juntos e eu voltava de ônibus pra casa. E aí virou... eu e o vô somos isso. Somos dois e fazemos tudo juntos. E aí o meu avô - foi demais isso, aproveitei a vida com ele – era um cara que sempre apoiava qualquer coisa que eu falasse, mesmo que ela fosse dentro do meu geminianismo aqui, meus dois momentos, falava: “Vô, resolvi que eu vou trabalhar no Itaú, porque daí você constrói uma carreira, né? E lá na frente você vê a tia trabalhando numa grande empresa, tal” “Eu acho que você tem razão, é isso, é importante pra caramba construir, em grandes empresas, a carreira”. Aí, quando eu me enchi dessa história de Itaú, empresa e fui trabalhar numa agência de Publicidade: “Vô, eu estou querendo ir pra uma agência de Publicidade desse tamanho, mas quero experimentar um negócio novo”, ele: “É isso, tem que experimentar negócio novo, porque quem fica parado...”. Aí, quando eu resolvi empreender ou ir pra Austrália, ele falou: “Tem que mudar, mesmo”. Quando eu resolvi empreender: “Tem que empreender, porque você constrói sua autonomia”. Então, meu avô, o que eu falasse, ele estava junto e aquela era a melhor opção, eu tinha chegado realmente na melhor opção. (risos) Então, dava um excesso de confiança. E aí comecei a trabalhar pra caramba, já de volta aqui, em 2006, no Brasil. Café da manhã com meu avô às seis e meia da manhã, pra dar tempo de chegar pra trabalhar às nove, era pelo menos uma vez por semana. Saía de casa super cedo, parava no meu avô, café da manhã com ele e tal e eu fiz isso acontecer até ele morrer. Eu estava em Jericoacoara, que a gente tem um trabalho ali, um projeto que a gente faz, de reciclagem, meu pai me ligou e falou: “O vô está mal”. Aí eu peguei, saí correndo, larguei tudo, peguei um carro, fui até Fortaleza, peguei um avião de última hora lá, caríssimo, vim pra São Paulo, cheguei em São Paulo de manhã cedo, meu vô estava morando com meu pai, já, já era 96 anos, no finzinho ali, 95 anos, meu vô estava mal. Eu cheguei na casa dele, conseguimos voltar, sentou na mesa, tomou um café da manhã comigo, eu tenho a foto desse café da manhã, que eu me liguei que era o último, de lá ele sentou na cama e mais uma semana, ele faleceu. Mas eu fiquei com meu vô ali direto, trocando fralda do meu avô, limpando meu avô, sabendo que aquilo estava matando-o por dentro, porque meu avô, mesmo mal pra caramba, aquilo, pra ele: “Puta, Erich, você precisa passar por isso?” e eu 100% ali e quando ele ________ (01:18:04) (choro) a enfermeira falou: “Meu, eu nunca vi um neto fazer isso pelo avô”. Eu falei: “Então, beleza, valeu”. (choro) Esse eu sinto saudade. (choro)
P1 – Como que foi, pra ele, o suicídio da sua tia?
R1 – Nossa, foi muito impactante, porque ele se cobrou: “Como é que eu não estudei o assunto?” Ele falava: “Como eu não percebi que minha filha sofria de depressão?” Depois ele começou a ver as conexões, falava assim: “Esse comportamento dela, está vendo?” - ele só lia isso – “olha aqui”. Eu chegava na casa dele, tinha uma Veja aberta nas páginas amarelas, com psiquiatra falando sobre depressão, tudo grifado, marcado. Ele não parava de falar disso, de dizer o quanto ele tinha faltado pra minha tia: “Esses anos todos que eu morei no Guarujá e tal, estava na cara que ela não estava legal. Ela deveria ter largado o trabalho e eu não soube dar essa orientação. Ela deveria...”, porque minha tia sempre foi assim: ela foi fazer Direito, ela entrou na USP e na PUC e ela decidiu que ela faria a PUC e do primeiro dia ao último ela foi bolsista, primeira aluna da PUC. Minha tia era aquela pessoa que se cobrava, que precisava ser perfeita, não sei de onde veio isso, da criação do meu avô, sei lá, porque meu vô, esse puta cara maravilhoso como avô, meu pai e minha tia sofreram com ele, com aquela cara que também que acho que tinha muita responsabilidade de não perder a mão de estar com os filhos, tal, então ele foi sempre um cara muito rígido pra eles. Pra mim ele foi só maravilha, foi 100% maravilha. Então, eu acho que minha tia também se cobrou pra caramba e queria ser a melhor advogada do Itaú possível. Isso foi dando pra ela uma carga e, no final da vida, nos últimos anos, nem era uma pessoa divertida, engraçada. Coitada, estava lá naquela roda maluca de quem está sendo esmagado pela pressão de uma corporação e está aceitando isso, né? Sem querer decepcionar um monte de coisa do status quo ali. Então, meu vô se cobrou demais pela morte da minha tia. Eu sei que ele morreu...
P1 – E sua mãe e sua vó?
R1 – Minha vó sofreu pra caramba, perdeu a filha, mas talvez, até por eu não jogar tanta ideia com a minha vó sobre isso, tal, eu não tenha uma percepção tão precisa de como ela se sentiu. Eu consigo dizer que minha vó se sentiu triste. Meu avô se sentiu destruído e culpado, por não ter conseguido resolver aquele problema, antes dele acontecer.
P1 – Desse emprego no Itaú, depois você foi pruma agência de Publicidade e depois que você foi pra Austrália?
R1 – É. Eu fui pra essa agência de Publicidade, eu consegui ali uma... eu ganhava pouco pra caramba no Itaú, pouco pra caramba na Itautec, não sobrava nada, não dava pra fazer nada, mesmo assim eu juntava, no estilo meu avô ali, todo mês, então, quando eu fiz 18 anos, eu consegui comprar um carro ali, um Golzinho usado, eu tinha o meu carro, tal, que era fruto dessa economia desde o primeiro dia de office boy no Itaú, ali, com 15 anos, até fazer 18, mas sempre ganhando pouco pra caramba. De repente, quando eu estou na Itautec, ali, me surge essa história de trabalhar sem CLT, PJ, numa agência. Eu ia ganhar três vezes mais do que eu ganhava. Ganhava mil reais, eu ia ganhar três mil, PJ. Não ia descontar quase nada, dinheiro vindo no bolso, falei: “Meu, estou rico, agora eu vou pra história dessa agência”. Fui pra agência, foi muito bom porque, de fato, eu conheci muita gente diferente, abriu a cabeça pra possibilidades, gastei dinheiro com um monte de bobagem que não precisava, mas tinha dinheiro, estava conhecendo gente nova, umas meninas novas e querendo fazer rolê pra tudo que era lado, tal. Nessa, eu fui fazendo, fiquei nessa agência então, consegui, nessa agência, organizar - apesar dos gastos, na época, ali, que não deveria tanto ter feito – e ter a condição de, vendendo o carro, mais uma ou outra economia ali, conseguir ir pra Austrália. Aí eu fui pra Austrália.
P1 – Me conta um pouco quais eram esses rolês na cidade, que você saía, quem era sua turma, o que você fazia, nessa época?
R1 – Tudo. Nessa época eu estou na PUC, então estou com aquela galera que hoje é meu amigo mesmo, então o pessoal...
P1 – Que curso você fez na PUC?
R1 – Administração de Empresas. Porque é assim: primeiro eu prestei, logo que eu estava com 17 anos, saindo do terceiro colegial, Agronomia, pra Rural do Rio. Passei na Universidade Federal Rural do Rio, em Agronomia e tive, assim como em vários outros momentos da minha vida, zero apoio do meu pai, principalmente: “Puta profissão porcaria, faculdade lá no fim do mundo”. Aí eu desanimei e não fui. Passei e não fui. Aí, nessa de passei e não fui, mas tenho que fazer alguma coisa, seu pai é engenheiro, falei: “Puts, Engenharia?” Aí prestei na Mauá Engenharia, entrei, só prestei na Mauá, assim como Agronomia eu só prestei na Federal do Rio. Prestei Engenharia na Mauá, passei, fui pra lá, passei três bimestres ali, quase três quartos do ano, de um calvário. Aquele ambiente de faculdade que é a Escola de Engenharia da Mauá, sem centro acadêmico direito, aquela coisa careta pra caramba, aquele monte de homem, de cara ‘noia’ de Matemática, todo mundo bom pra caramba de Exatas. Eu não tinha aquilo, não era a minha área, eu abandonei a faculdade. “Você quer trancar?” Eu falei: ‘Não, eu quero cancelar a matrícula e ir embora, não quero nem chance de voltar pra cá”. E nessa época também, que é antes da PUC, eu trabalhava na Itautec, junto com o Paulo Setúbal, ali, como assistente. Eu tinha conseguido esse lugar. E ele me adorava. Isso também influenciou na escolha por Engenharia, porque eu sei que eles amam engenheiros, a família Setúbal, falei: “Pô, meu pai é engenheiro, não sei o que eu faço, vou fazer Engenharia”. Entrei na Mauá, o Paulo pagava, a Itautec pagava 80% da minha faculdade. Não existia isso na Itautec. Então, ao mesmo tempo que isso era muito legal, criou uma expectativa em torno da minha formação como engenheiro e a hora que eu descubro que eu odiava a história da Engenharia, falei: “Puts”. E o Paulo Setúbal sempre foi um cara braaaaaaaaa, não sei se você o conhece, mas ele é um cara que a vida inteira foi famoso pelos gritos e as porradas na mesa e que ninguém consegue falar com ele e, nessa hora, eu falei: “Puta, eu tenho que, depois de um ano do cara pagando a minha faculdade, me vendendo internamente na Itautec como o high potential, que ele falava: “Esse aqui é o high potential da Itautec e vamos bancar essa faculdade, que ele isso”. Me mandava fazer programa de trainee, maior moleque ainda e tal e eu precisava chegar pra ele nesse momento e falar: “Olha, eu estou desistindo dessa faculdade”. Isso foi um puta de um desafio pra mim, eu consegui conduzir isso. Chegou uma hora que eu falei: “Cara, se eu não tiver peito de entrar na sala do Paulo e falar que eu não vou fazer mais Engenharia, eu vou aceitar tudo na minha vida do jeito que está. Então, eu tenho que conseguir vencer essa barreira”. Aí foi um baita momento de superação ali, ele tentou me demover da ideia pra caramba, mas não conseguiu e aí, nesse momento, eu saio da Engenharia, me distancio desse mentor Paulo Setúbal, que poderia representar um monte de oportunidades, vários amigos meus falando: “Você é idiota, você pode ser presidente da Itautec e você vai desencanar, porque você não gosta?” Eu peguei e desencanei, porque eu não gostava. E aí eu entro na PUC, pra fazer Administração. Nesse momento que eu estou falando eu estou ali no segundo, terceiro ano de Administração, eram cinco anos na época e aí estou, então, um cara super bem enturmado, andando com a Ana, que hoje é minha esposa, com todos os moleques ali, meus amigos que hoje jogam bola comigo, frequentam minha casa, fazem trabalho junto comigo, projetos. Então, nesse ano eu me encontro lá como aluno da PUC, enturmado com a galera e aí estou ganhando um pouco melhor, tal, então já conseguia curtir um pouco mais os momentos ali com o pessoal, trabalhando, estudando, aquela coisa de sempre, mas já numa perspectiva um pouco diferente. Aí eu tranco a matrícula nesse terceiro ano e saio da primeira agência que eu trabalhei, pra ir pra Austrália, pra ficar um ano ali e aprender o tal do inglês e ter uma experiência diferente. E aí, depois desse ano então, eu volto, demoro mais uns seis meses...
P1 – Você já namorava sua esposa?
R1 – No finzinho desse terceiro ano da PUC, sim.
P1 – E aí, quando você foi pra Austrália...
R1 – Já volto. Vou ali e já volto.
P1 – Mas você sabia que você ia voltar? Você tinha determinado quanto tempo você ia ficar?
R1 – Tinha, nem sei se eu fiz isso certo, mas me apeguei muito nesse projeto: estou indo pra ficar 12 meses e voltar e reabrir a matrícula da faculdade e me formar, mas eu vou lá, porque agora apareceu o momento, acho que tem que ser agora, quero aprender a língua, que vai fazer uma baita falta e não vou fazer vinte anos de Cultura Inglesa, que eu sei que não vai me levar a lugar nenhum. Então, vou embora e vou aprender esse negócio na raça, ali, que eu acho que vai funcionar mais. E aí, então, eu pego e falo pra Aninha: “Já volto”. Ela, aquariana nata, falou: “Vai embora, você tem que ir. Eu espero aqui, mas sem estresse também. Vai lá, eu estou aqui, na hora que voltar, a gente conversa”. Eu vou pra lá, depois de um ano volto, lógico, com a cabeça super bagunçada, um ano fora do Brasil fazendo e conhecendo um bilhão de coisas diferentes, mas daí eu volto e depois de um tempo a gente reata o namoro ali e depois, nesse mesmo tempo, eu abro a matrícula na PUC, depois de umas outras viagens só de trabalho que eu arrumei na época, também, pra fora.
P1 – E você morava com quem aqui? Você voltou a morar na sua casa?
R1 – Quando eu volto, eu volto morando na minha casa. Mas por muito pouco tempo. Eu volto no comecinho de 2006, aí, em 2007, eu já estou no meu apartamento, onde eu estou saindo agora. Eu saio de casa e a minha mãe, também, pra não ficar sozinha naquela casa, sai de casa e vai morar num apartamento.
P1 – Aí, quando você voltou, você foi trabalhar onde?
R1 – Quando eu voltei, eu voltei duríssimo, eu voltei tão duro, porque eu usei tudo que eu tinha conseguido economizar de dinheiro pra conhecer o sudeste da Ásia. Eu gastei cada centavo que eu tinha, viajando. Comendo e viajando. Só fazendo coisa boa ali. Fiquei dois meses no sudeste da Ásia, sozinho, ali. Então, quando eu volto pra Austrália, eu tenho só quatro dias na Austrália pra juntar minhas malas, como eu tinha trabalhado numa balada como barman, eu fui pra balada, porque eu falei: “Lá eu tenho bebida de graça, amigos, eu não preciso de dinheiro e eu vou me divertir os últimos quatro dias de Austrália”. Faço isso, pego o avião pra ir embora pro Brasil. Eu estava tão duro, Rô, tão duro, que eu estava de Havaianas e calça, na hora que eu estou saindo do voo na Nova Zelândia, pra primeira conexão, um cara de trás pisa no calcanhar da minha Havaiana, estoura minha Havaiana e eu não tenho como comprar chinelo, eu não tinha dinheiro no cartão pra comprar um chinelo. Eu estava vindo ali com uma coisa... cara, eu cheguei em Guarulhos descalço. Quando minha mãe me vê chegando descalço ali, com uma calça tailandesa e me pega ali no aeroporto. Então, eu voltei nessa condição, precisando de dinheiro e era final do ano, começo de dezembro. Eu falei comecinho de 2006, não, era comecinho de dezembro de 2005 e eu pego, vou pra Oscar Freire e arrumo um emprego temporário na _________ (01:31:07), pra fazer venda de Natal. E aí, lá eu faço o dinheiro ali do fim do ano e antes do réveillon eu já saí. Fiquei ali 25 dias trabalhando, só pra fazer esse dinheiro, viajo no réveillon, curto, na volta eu estou ali: “Cara, preciso criar a Recicleiros, essa história que eu não sei muito bem o que é, mas tenho influências aqui, tal”, a coisa patina um pouco, mas daí, na hora que eu me vejo muito apertado...
FALHA NO ÁUDIO
P1 - Deixa eu voltar um pouco. Você fala: “Preciso montar a Recicleiros”. Como nasceu essa ideia? Porque, quando você voltou da Austrália, você tinha um pensamento assim: “Vou fazer tal coisa”? Você tinha algum plano? Ou não?
R1 – Eu tinha uma visão, assim: eu já tinha há algum tempo, em vários outros momentos, sacado que eu gostava muito de histórias com significado. Pra tudo. Eu gostava muito de significado nas coisas. E ações que me fizessem sentir que eu estava fazendo algo mais do que pensando só em mim. Então, eu sempre fui um cara que me amarrei em parar em faixa de pedestre. Eu morro de orgulho de parar o trânsito inteiro pra uma pessoa atravessar e tal. Eu sempre gostava dessas coisas de mobilizar por ações mais de cidadania e tal. O lixo sempre foi um negócio que me incomodou, a história do lixo. Então, eu volto ali de uma Austrália bacana, mais organizada, um pouco mais limpa, eu já tinha ido pra Alemanha uma época, onde eu conheci a história de coleta seletiva, descarte seletivo, de como isso trazia bem estar pras pessoas dentro de casa, nas ruas, falava: “Que doido esse negócio de não sacolinha, a bisnaguinha do catchup do Mac Donalds na Alemanha era vendida e não dada”. A primeira vez que, na Alemanha, eu fui comprar um pão e não achei uma sacola, tive que voltar pra casa, menos 15 graus, pra arrumar uma sacola, pra ir buscar o pão de novo. Então, eu comecei a fazer outras conexões. Isso lá em 1999, 2000. Aí, então, quando eu vou viajar pra Austrália, eu já tinha um mindset voltado mais pra perceber valores dessas coisas. Volto com essa coisa de lixo, por que no Brasil é desse jeito? Vou pra Ásia e vejo uma lixaiada e aí começo a traçar paralelos. Então eu volto pro Brasil já com essa coisa meio: “Puta, se eu conseguisse fazer alguma coisa no Brasil que fosse diferente em relação a lixo, seria muito legal” e me veio o nome Recicleiros em algum momento, que eu nem consigo lembrar quando. Veio assim: Recicleiros e eu me amarro na marca, eu falo: “Pô, Recicleiros parece muito os caras que fazem, né? Tipo o pedreiro, que é o cara que bota, mesmo, a mão na massa e constrói a casa e tal”. Então, eu comecei a ficar com essas coisas na cabeça, mas não sabia nem por onde começar. A hora que aperta o calo da grana, ali, que eu falo: “Puta, eu preciso de um dinheiro”, eu arrumo esse emprego numa agência. Então, a ideia estava só flutuando na cabeça, eu arrumo um emprego numa agência, pra atender Santander, num projeto nenhum pouco glamouroso, eu sem experiência desse tipo de coisa, uma proposta de uma grana que eu nem imaginava ganhar, então eu falei: “Isso aqui eu nem imaginava, porque eu estou voltando pro Brasil sem estar formado”. Eu saio daqui como um cara de uma agência que pouco importava se eu estava formado ou não, volto sem estar formado e fora do mercado, eu falei: “Puta, eu vou ser estagiário, que eu nunca fui na vida, né?” A hora que eu arrumei esse emprego meio encaixado ali, sugerido por um amigo meu, eu entro nesse atendimento de conta do Santander e fico seis meses desesperadores, o Santander tirando o sangue de todo mundo, um relacionamento sem o menor sentido entre todos, sem valor, sem um monte de coisa ali e só pancada. Eu me lembro que eu saía da minha mesa ali, de gerente de atendimento na agência, ia no espelho do banheiro, eu ouvia meu telefone tocar, ia pro banheiro e falava: “Cara, eu quero entrar no ralo, quero fugir desse lugar, desse bando de gente me ligando, uma puta bagunça, me cobrando”. Era domingo, na hora do almoço, tocava o celular pra cobrar coisa. Era uma loucura. Eu falei: “Eu não quero esse ambiente”. Ainda pra fazer trabalho pro Santander! Eu já tinha saído da Itautec pensando: “Meu, pra que eu trabalho?” Quando dá o estopim ali, eu saio da Itautec, já era esse negócio de: “Meu, estou todo dia amarrando essa gravata idiota, sem o menor nexo, andando de metrô num puta calor, pela cidade inteira, pra cruzar da zona sul até a zona leste, com a gravata no pescoço, pra vir trabalhar a troco do que, além desse dinheirinho safado que eu ganho? Mas qual o significado disso tudo?” Naquele momento nada mais fazia sentido. Quando eu venho só por grana e começo a tomar chibatada do Santander, eu falo: “Não, cara. É agora que eu vou empreender. Não sei nem como, mas é agora que nasce a Recicleiros”. Eu tinha conseguido uma vaga pra minha irmã de revisora, que a agência era super desorganizada: “Precisa de uma revisora” “Tem minha irmã” “Contrata sua irmã” E aí minha irmã, também, numa puta pilha, ali, aí no momento cigarro, que eu não fumava, mas minha irmã fumava, eu desço pra fumar um cigarro, entre aspas, com ela e falo disso, ela fala: “Meu, vai fazer esse treco aí que você nem sabe o que é. Isso aqui não vale a pena, é uma loucura”. Eu falei: “Tá bom”. Eu saio, então, dessa história da ______ (01:36:59), da agência e, no quarto, ali, abro a Recicleiros. Minha irmã estava pra casar, então ela ia liberar o quarto dela e aí, então, começa a Recicleiros ali, num notebook velho, dentro do quarto da minha irmã, eu começando a tentar estudar o negócio, montar uma lógicas de: “O que eu vou fazer, pra atender qual objetivo? Qual seria a missão dessa Recicleiros?” Dentro disso aparece uma oportunidade que eu percebo, de botar todos os conceitos que eu estava imaginando de sustentabilidade num produto pra eventos. O Brasil estava bombando ali com a história de eventos e festivais, em 2006. E aí eu consigo criar um negócio muito legal ali, muito maluco, que fez a Recicleiros, sem Cnpj, do dia pra noite, ter um primeiro projeto que gerou caixa. E eu consigo montar isso ali com um amigo, um grande amigo meu que está morando hoje no Texas, o Dani, que o Dani, sim, é o meu amigo mais antigo. O Dani é um amigo que eu conheci na perua escolar, que sempre foi da galera, ali, porque ele não morava no meu bairro, mas estudava na mesma escola que eu e aí tem uma época nessa casa, naquela casa lá que eu nasci, que eu te falei, que a loja da minha mãe não está mais funcionando no fundo e o fundo vira um lugar de festa baile. Aos 14 anos de idade, a gente começou a fazer - 14, 15 anos - festa baile ali. A gente punha um som e convidava uma molecada, aí sim da escola e tal, todo mundo já era um pouco maior e tinha umas festinhas ali no fundo do quintal. Então, o Dani era brother de perua escolar, moleque ali, aí ele foi brother dessas festinhas e aí, quando eu reencontro o Dani na minha vida, ela já estava saindo da Faap, Desenho Industrial, eu nessa história da PUC ali, Recicleiros na cabeça, a gente faz o primeiro trabalho de eventos juntos e ali nasce a Recicleiros. Ali começa.
P1 - __________ (01:39:06)?
R1 – O primeiro, primeiro mesmo foi o Dani que chegou e falou: “Cara, tudo isso que você está falando” – o Dani já era ecodesigner, é até hoje. Trabalhava com Design, formado em Desenho Industrial, mas nessa pegada de sustentabilidade. Eu ali com a história de pagamento por serviço ambiental pra catadores, porque afinal de contas os catadores eram muito vulneráveis, excluídos do mundo e a reciclagem, tal, ele falou: “Cara, tem um amigo meu fazendo uma rave, um festival rave de três dias, em Indaiatuba e precisa, quer pôr um conceito de reciclagem lá. Vamos fazer? A gente recicla o resíduo da festa e a gente bota essa história de contratar catadores pra dentro”. Eu e ele começamos a criar as ideias ali e a gente consegue vender - pra três moleques que trabalhavam ali: um no Banco, o outro numa seguradora e estavam querendo ganhar uma grana com a festa – esse projeto. A festa fica um espetáculo, mas é um desastre financeiro a festa, a gente fica sem receber a grana, parte da grana, porque o comecinho a gente recebeu e pagou todo mundo, não ganhou um centavo, trabalhou que nem uns cavalos, mas aprendeu que lá tinha um produto. Então, isso é 2007, comecinho de 2007 e aí, com essa história, a gente consegue, na sequência, vender essa mesma ideia pro Terra, portal de notícias, que fazia, na época, o Planeta Terra Festival. E a gente conseguiu emplacar com os caras de fazer a reciclagem do evento. No primeiro a gente tomou um calote, no segundo a gente ganhou uma grana boa, deu pra todo mundo pôr um dinheiro no bolso e entramos no mercado, fazendo reciclagem.
P1 – Qual era a lógica? Como era o desenho?
R1 – O desenho era o seguinte, Rô: comecei a ver essa história de festivais que estavam acontecendo e de frequentar, de ir em show, de gostar de música e ver que a galera ia lá, 15, 20 mil pessoas, pra cada cerveja um copo plástico e uma lata, lixo, lixo, lixo, lixo. Vraummmmmmmmm. Só lixo bom. Limpo, reciclável. Tudo amarrado num saco preto. Dezenas de caçambas daquelas de trinta metros cúbicos, indo pro lixo, pro aterro. E nas ruas catadores puxando carroça e tentando revirar saco de lixo na rua, pra achar uma latinha. Eu falei: “Espera aí, cara, os caras precisam de latinha, de plástico, por que esses caras não ficam com esse material? Aliás, por que as pessoas já não descartam separado, se elas tiverem boas lixeiras, com uma sinalização muito bem feita, um elemento que faz o brasileiro de Brasília parar na faixa de pedestre, diferente de todos os outros brasileiros, porque ele tem campanhas de conscientização pra parar na faixa de pedestre? Então, se eu tiver campanha, sinalização, infraestrutura de qualidade pra o público do evento já descartar isso, o catador já vai se beneficiar, mas se o evento paga o cara da limpeza, o cara da segurança, o DJ, por que não paga o catador pra vir aqui reciclar o resíduo do evento? Isso tem valor”. Aí eu descobri que isso se chamava Psau, pagamento por serviços ambientais urbanos. Existia, já, esse conceito. Então, eu falo: “Beleza, então o Terra quer um projeto de reciclagem e sustentabilidade; eu tenho uma empresa, entre aspas, que vai criar esse projeto e vai cobrar pra fazer isso e ainda vai, no meu projeto, a gente paga pra essa história toda acontecer e gera esses recebíveis pro tal do catador, que não vai mais revirar lixeira, ele vai receber o material pré-descartado, pré-selecionado pelo descarte seletivo das pessoas bem informadas, então o evento vai investir numas putas lixeiras legais, bem sinalizadas, que possibilitem a ação qualificada do público e dão infraestrutura de qualidade, esse material vai ser transportado pra um galpão dentro do evento, onde eu vou ter máquina, esteiras de separação, o catador não vai ficar de cócoras mexendo em lixo, ele vai ficar de pé, recebendo pra fazer a triagem dos materiais recicláveis de qualidade, que são descartados”. Então, esse era o contexto que até hoje é a metodologia de trabalho do Recicleiros. Só foi acrescentada regulamentação, porque a gente foi parar nos municípios. Então, a gente constrói regulamentação, infraestrutura, processos e engajamento do público. Com isso, eu hoje construo coleta seletiva de alto impacto social em cidades brasileiras, junto com prefeituras, mas a gente estava criando isso dentro do evento, ali, falando: “Infraestrutura de qualidade, com boa sinalização e comunicação engajadora, eu tenho descarte seletivo das pessoas, que é a responsabilidade deles na lei e aí eu remunero esses catadores, alço esses caras não ao patamar de reviradores de lixeira pra vender um material que não vale nada, mas por trabalhadores remunerados pra prestar um serviço ambiental de alto impacto e de alta importância dentro da cadeia. Então, lá, a gente criou esse conceito, mas o cara que contratava, queria ver a tal da nossa tendinha de reciclagem funcionando, com maquininha enfardando latinha, copinho e tudo bem”. Então, ali, nasceu a história do empreendimento de impacto, que eu fui conhecer, em 2006, num texto da PUC, quando eu volto pra PUC e recebo o case do Muhammad Yunus, com a Danone, em Bangladesh e aquilo faz um puta sentido pra mim, conecta com várias coisas, eu falo: “Cara, isso aqui: empreendedorismo social. Eu não preciso abrir uma ONG que pede e vive de doação. Eu tenho que construir um mecanismo de mercado, só que não pra distribuir lucro, mas pra gerar impacto socioambiental”. Então, a gente sempre não distribuiu lucro, a gente sempre teve essa pegada de não distribuir lucro seria o drive do nosso trabalho, porque lá na raiz a gente acredita que isso tem um poder imenso de transformação e que eu fui beber muito na fonte desse Muhammad Yunus, pra entender a visão dele sobre a história dos sem fins lucrativos, né?
P1 – Como você articulava esses catadores? Como você se conectava com eles?
R1 – No começo, que eu não sabia como fazer, eu andava na rua e começava: “Opa, como é seu nome? Você puxa essa carroça aí, tal e você não está a fim de fazer um trabalho junto? Você tem uns amigos aí, catadores também, pra gente montar um grupo e trabalhar num evento?” Pra você ter uma ideia, um dos episódios foi como resultado: “Cadê o Ailton?” No meio do Planeta Terra Festival, um show com 15 bandas internacionais, vinte mil pessoas ali, eu fui achar o Ailton com uma cerveja, dançando com a camiseta do Recicleiros, na frente do palco, bêbado. Então, assim, sair na rua, catando os mais vulneráveis pra trabalhar e aí ninguém aparecia pra trabalhar. No primeiro evento, aquela dor de barriga, um contingente um terço do que eu tinha imaginado. Aí eu, o meu sócio à época, o Dani, que é esse meu amigo que mora no Texas, cinco noites sem dormir, triando resíduos sozinho, achando que era aquilo que tinha que fazer, porque a gente prometeu reciclar e triar, os catadores não apareceram, a grande maioria, então vamos fazer a gente, porque a gente não pode deixar esse barco afundar. Uns putas de uns amadorismos ali, de quem está começando, só pedrada na cabeça, mas foi nessas calejadas que a gente foi começando a entender como trabalhar. Nessa época a gente entregava nas ruas, aí eu fui descobrir que existiam as cooperativas, os ferros velhos e a gente começou a melhorar a coisa, até que a gente chega num momento ali, mais à frente, lá em 2009, de excelência, já, do que a gente estava fazendo. Mas teve muito tropeço aí.
P1 – Como é que foi essa ponte de evento pra começar a trabalhar com as cidades e política pública?
R1 – Foi o seguinte: a gente descobre esse produto, evento. A Recicleiros é a galera que recicla em eventos, que é um negócio super inovador e vale a pena. E aí essa história começa a ser canibalizada, porque sim, Recicleiros faz um negócio especialista, mas é o seguinte, nessa hora eu já estou falando assim: os catadores têm que chegar aqui, chegam de ônibus, tudo bem, mas você está fazendo um evento noturno, vai terminar às quatro da manhã o trabalho dos caras, não tem ônibus, então tem que ter algum veículo, transporte pra esses caras voltarem pras cooperativas, esses caras vão ter que se alimentar dentro do evento, ter água, uma tenda pra guardarem seus pertences durante o evento, que acontece geralmente nos Jóqueis, nas chácaras dos Jóqueis, no meio de lugares que não têm nenhuma infra e aí, por exemplo, Recicleiros custava cinquenta mil reais pra fazer um evento desses e aí vinha qualquer um que queria os recicláveis e falava: “Imagina, eu venho aqui no final, pego os recicláveis”. Porque a gente falava: “Você vai ter que pôr as lixeiras, que é parte da metodologia, porque parte da metodologia é sensibilizar o público pro descarte seletivo”. Então, no final, os caras comparavam esse custo todo da Recicleiros e as exigências que a Recicleiros fazia pra entregar aquele projeto de impacto socioambiental, que era isso que eu queria que os caras se orgulhassem e vendessem, pra capitalizar em cima e tinha um cara que falava: “Não, eu chego aqui no fim do evento e pego aí o que tiver de reciclável e você vai falar que você reciclou do mesmo jeito, do que com a Recicleiros”. E aí o mercado de eventos, que é muito ruim nesse sentido, muito informal, naquela época mais ainda, em 2007, tal, começa a aceitar isso como uma outra maneira de fazer o mesmo greenwashing: reciclamos 100% do nosso lixo. E a gente, quando os caras falavam, falava: “Não, vocês não reciclaram 100%, nem com a gente. Vocês reciclaram 38,7%, porque pra reciclar 100% é impossível”. A gente não era aquele cara que o cara queria contratar, porque a gente era chato, ortodoxo pra caramba no jeito de fazer, exigia todas as condições ideais e tal e aí, então, o mercado de evento começa a acabar pra gente, mas nesse momento a gente já está fazendo uns projetos que a gente chamava de SGR, Sistema de Gestão de Resíduos, pra shopping center, que também não era tão legal, não deixava a gente empolgado como a gente gostaria de fazer a transformação, que a gente sempre acreditou, que a Recicleiros foi idealizada pra ajudar a construir um Brasil melhor, pro lixo e pra educação ambiental e pros catadores. Essa era a nossa gênese ali. E, de repente, querendo mudar o mundo, você fala: “Espera aí, eu preciso começar, olha que oportunidade de evento, não tem um centavo de dinheiro pra começar essa empresa, tal”. Então vai montando os caminhos das pedras, aí o evento começa a morrer. A gente já tinha feito uns projetos pra loteamentos, umas Itamambucas da vida, que queriam reciclagem, que a gente usava o cérebro lá pra criar um sistema, um desenho de fluxo, estruturas, processos e tal, mas ainda não saía do papel, porque daí o cara não tem dinheiro, que a prefeitura não tem coleta seletiva, então o que adianta fazer um sistema de descarte seletivo super legal em Itamambuca, se Ubatuba não tem pra onde mandar o reciclável? Aí a gente brochava com a história, falava: “Puta, cara, eu estou fazendo um negócio pra uma cidade que nem tem coleta seletiva, pra um país que não tem nem os mecanismos necessários”. E é isso. Gera, num determinado momento, até ali, em 2013, quando o mercado de eventos já era, esses dos empreendimentos a gente não estava a fim, muito e aí começa a rolar umas depressões ali e a gente fala: “Cara, a Recicleiros vai acabar”, não tem grana pra continuar pagando o que a gente tinha, na época: todo mundo ali trabalhando, nove pessoas que eram todo mundo e o aluguel de uma casa e aí tinha altos valores que eu cultivava, achava que todo mundo tinha que comer muito bem na hora do almoço, então não queria que todo mundo saísse na rua caçando fast food pra comer. A gente tinha uma cozinheira na casa da Recicleiros, que fazia o almoço todo dia, fresquinho. O dia do seu aniversário você podia pedir o seu cardápio e ela fazia. Vários valores que a gente tinha: o ambiente da casa com jardim, com cachorro, que desestressava pra caramba, o lance dos cachorros e depois eu ia ler, na Exame e via um cara na Califórnia com uma empresa de produto de limpeza, é a grande tendência, os caras estão numa casa com cachorros, com cozinha interna. Eu falava: “Caraca, isso aqui a gente faz há cinco anos e ninguém veio falar que a gente é tendência”. Mas aí, numa hora, isso fica pesado, a fonte seca e aí eu penso, chamo a galera da Recicleiros e falo: “O negócio vai furar. Não tem mais de onde vir dinheiro, a gente não está conseguindo fazer virar, vamos cada um pra um lado, que eu acho que não vai rolar mais”. E aí cada um começa a se arranjar muito rápido, eu fecho aquele escritório e ligo pro meu pai e falo: “Sabe aquela salinha que sobra do lado da sua sala, ali? Me dá um espaço pra trabalhar lá, que eu vou ter que me virar com alguma coisa”. Daí meu pai já falou: “Pô, vem pra cá trabalhar comigo aqui, avaliar perícias e avaliações de Engenharia” – isso em 2013 ali, pra 2014 – “estou precisando de gente. Essa empresa, se não tiver alguém, vai acabar, só tem eu aqui”. E aí eu entro com aquele puta gás: “Beleza, eu vou fazer isso, vou lá”. Trabalho quase um ano, um pouco menos, com meu pai ali, mas sempre deixando a chama da Recicleiros acesa, recebendo e-mails, atendendo uma galera, fazendo à noite, depois do período de avaliar um ou outro trabalho e de repente eu falo assim: “Cara, eu não vou conseguir trabalhar numa empresa de Engenharia”. Eu já sabia disso, fiz o que eu podia pra ajudar meu pai, melhorei algumas coisas, mas meu coração não bate, eu me sinto cinza fazendo isso e a Recicleiros há de me salvar de algum jeito e aí, nessa hora, eu começo a receber umas ligações do Rafa, que empreendia o Instituto SOS, fazendo coisas muito parecidas com a Recicleiros, numa associação sem fins lucrativos, sozinho do lado de lá, eu sozinho na Recicleiros, o Rafa: “Cara, eu tenho um projeto, vamos discutir pra fazer junto. Eu sei que vocês manjam muito disso, surgiu um projeto com clube e aí traz aí, a gente faz o projeto do Clube Paineiras”. Quase tomo um calote de novo do Clube Paineiras. O Rafa, um puta cara inteligente e tem a causa no sangue, como eu tenho, fala: “Beleza, a gente está fazendo essas porcarias, mas vamos lá, o que a gente quer, mesmo, não é isso, não é?” “Não, não é. A gente quer trabalhar política pública, quer mudar o negócio pela raiz. Então vamos fazer política municipal, planos municipais de coletas seletivas. Vamos tentar”. Começa a ligar pra um, pra outro, tenta fazer, ninguém compra aquela coisa, começa a não dar certo de novo, mas no meio do turbilhão, aparece, por um contato antigo, uma oportunidade assim: “Pessoal, tem um cliente meu que precisa cumprir a tal de política nacional de resíduos sólidos e eu preciso indicar um fornecedor. Vocês querem apresentar uma proposta?” Naquele momento, aquele cliente desse tamanho, mas que representava uma parte do setor empresarial, precisava cumprir política nacional de resíduos sólidos e a gente, de novo, falou: “Cara, vamos fazer do nosso jeito. Ninguém entende muito bem disso, vamos começar a construir aquele caminho que a gente acredita, que é fomentar a base do negócio, cooperativas de catadores, pra prestarem serviço para os municípios”. E a gente começa a usar o dinheiro desse cara, que tinha uma certa liberdade naquele momento, porque a lei estava sendo regulamentada, faz vários testes com o dinheiro desse cliente, vê várias coisas que não funcionavam, corrobora várias teses que a gente tinha e naquele momento a gente começa, então, Recicleiros, a atender o setor empresarial, que precisa fazer logística reversa de embalagens. O normal, naquele momento, era pegar esse dinheiro das empresas e comprar algumas doações, fazer algumas doações pra cooperativas. Doações que não davam em nada: compra uma prensa, doa pra aquela cooperativa e prova pro governo que você gastou dinheiro fazendo isso. Aí a prensa nem tinha um ponto de energia pra ligar no galpão, mas tudo bem, fiz a minha parte, dane-se o que vai acontecer lá na frente. Nesse momento a gente começa a descobrir que a gente tem que fazer advocacy. A gente fala: “Olha que baderna! Espera aí, vamos lá conversar com o governo, porque isso tem que ser cobrado de outro jeito. Vamos falar com as empresas, que eles estão fazendo um negócio que não vai dar em nada e eles vão sofrer com a escassez dessas ações lá na frente”. E aí, então, a gente começa a fundir Recicleiros e Instituto SOS, que o Rafa empreendia o Instituto SOS desde 2011 e eu a Recicleiros desde 2006, a gente criou o Instituto Recicleiros e uma holding social com dois Cnpjs e dois profissionais. A gente já falava que era uma holding social que tinha esses dois Cnpjs e que era fusão dessas duas organizações. E aí, como a gente trabalha duzentas horas por dia, a gente começa a conseguir construir essa realidade naquele momento, descobrir que várias coisas que o mercado fazia não davam certo e começar a formatar um outro jeito de fazer, que foi culminado e hoje é o Programa Cidade+Recicleiros, que é a única coisa que a Recicleiros faz e que hoje a gente consegue falar não pra todas as outras. A gente conseguiu construir a viabilidade disso, taxa, marca, notoriedade no mercado, articular advocacy pra que todo mundo acreditasse nesse modelo e a gente está ainda nessa de criar o futuro que a gente acredita que pode resolver de alguma forma aquele problema que, em 2006, estava incomodando a gente.
P1 – Erich, e qual é esse modelo, hoje? Qual é a lógica desse modelo?
R1 – É que, sim, precisa ter reciclagem nas cidades e que isso só vai acontecer se existir política pública pra isso. Todas as iniciativas que foram feitas pela fonte de dinheiro que hoje a gente tem pra fazer a nossa causa acontecer, que o que a gente fez foi: temos uma causa e o modelo que a gente acredita. Como a gente financia isso? Vamos vender soluções pro setor empresarial que tem dinheiro e precisa cumprir a lei, só que num formato que a gente acredita. Então, primeiro de tudo, a gente não vai fazer investimentos em cooperativas, em pontos de entrega voluntária, em campanhas de conscientização. A gente não vai fazer nada disso isoladamente. A gente vai fazer tudo isso junto, no mesmo projeto, porque só assim vai dar certo. E, pra começar, a gente tem que fazer isso numa cidade, porque todo resíduo gerado no Brasil é gerado numa cidade. Nenhum território brasileiro não é uma cidade. Sempre pertence a algum município. E a Constituição Federal e o Plano Nacional de Saneamento Básico dizem que limpeza pública urbana é responsabilidade dos municípios. Então, primeiro de tudo, a gente precisa olhas pra municípios. E aí, então, está bom, a gente vai trabalhar com municípios, desenvolvendo a base da política pública, que é a lei municipal, a regulamentação municipal, pra que a coleta seletiva se desenvolva. Baita ideia, como chama isso? Isso chama Plano Municipal de Coleta Seletiva. Então a gente começa fazendo planos municipais de coleta seletiva? É. Maravilha! Quanto custa um plano municipal desses pra gente fazer? Noventa mil reais. Barato. Então, vamos fazer. Vamos bater na porta de quais municípios? Aí você imagina a gente indo falar de vender um projeto prum município, no tema lixo, que é um dos grandes pontos de corrupção e desvio de dinheiro no Brasil. Era sempre: “Pô, beleza, mas noventa, não, você vai cobrar duzentos e setenta” “Ih, não, a gente não trabalha desse jeito” “Então está bom, tchau”. E a gente foi tomando várias portadas na cara. Até o momento que a gente descobriu um jeito de fazer isso diferente: a gente foi chamado, no meio dessa descrença de novo, que isso podia dar certo, por uma galera de Jericoacoara, empresários de Jericoacoara, que vivem daquele turismo internacional, ecológico, paraíso ecológico, vendo o lixo ser um puta problema, um amigo nosso estava fazendo festas em Jericoacoara no final do ano e falou: “Cara, minha festa foi um sucesso, mas eu larguei um puta monte de long neck pra trás, que eu não sei como tirar e o empresariado local está louco com isso, vai vetar minha próxima festa. Eu preciso de vocês pra dar uma ajuda, porque lixo preocupa os caras. Me ajuda, eu quero fazer uma doação ali pra Jericoacoara”. A gente falou: “Cara, não faz uma doação, paga pra gente ir pra lá conhecer o problema”. E o cara aceitou pegar os 15 mil reais que ele tinha, que não ia dar pra nada e pagar uma consultoria nossa pra ir pra Jericoacoara conhecer o problema. A gente voltou de Jericoacoara com o tal do diagnóstico falando o seguinte: “Nosso diagnóstico diz que você precisa de um plano. É isso. O problema é gigante, cheio de interfaces, de variáveis, você precisa de um plano pra resolver esse problema. Ou seja: a gente precisa de mais setenta paus pra desenvolver um plano”. O cara: “Puta, setenta paus eu não vou pagar, mas vamos falar pro empresariado” e o empresariado olhou a nossa proposta e entendeu que, com um plano, a gente destravava dinheiro de outros lugares pra o que, de fato, Jericoacoara precisava, que era assessoria técnica de longo prazo, leis pro lixo, máquina, reforma de galpão. Precisava de uma infraestrutura, de comunicação, pra começar a mudar a história do lixo. Então, a gente convenceu que invistam num projeto e esse projeto, então, em Jericoacoara, deu super certo. A gente cobrou do empresariado, o empresariado cotizou: “Eu dou dois mil, eu dou cem, eu dou duzentos, eu dou mil, eu dou cinquenta reais” e pagaram o tal dos setenta mil, a gente fez os setenta mil virar em seiscentos mil reais de logística reversa de empresas que precisavam investir em coleta seletiva e reciclagem. Então, a gente falou: “Olha, se existe um bom projeto, a gente destrava a grana de quem tem que gastar e aí a gente consegue dar resultado, mas esse projeto tem que considerar toda a parte de regulamentação municipal, pra dar segurança pro investimento. Então, o projeto não pode ser um projeto executivo, tem que ser um plano municipal”. Então, a gente formata isso naquele âmbito, na verdade, em Jeri, foi a primeira vez que a gente conseguiu a ideia de fazer um plano dar certo, vira um bom case, uma empresa olha pra isso e fala: “Pô, que legal essa história!” Uma pessoa que estava começando a chegar numa empresa, pra desenvolver sustentabilidade, uma ecologista que se tornou muito amiga nossa hoje e falou: “Pô, eu pago esses planos. A empresa que eu estou paga. Sei lá, dois, três planos desses, pra gente testar em outros ambientes”. E a gente não consegue levar isso pra lugar nenhum. Ela escolhe as cidades, a gente tem o dinheiro pra fazer e a gente não consegue trabalhar, porque a prefeitura não estava nem aí pro negócio. E aí a gente, de novo: “Pô, esse negócio não vai dar em nada”. Veio um clique meu e do Rafa numa madrugada ali e falou: “Cara, duvido que em cinco mil e quinhentos e setenta municípios, não tenham três que gostariam de uma proposta, onde eles ganham de graça uma assessoria técnica, um plano municipal, que pode virar investimento pra cidade. Não é possível. Vamos fazer um edital? Quem quer, em vez de escolher a cidade? Vamos fazer um edital. Se a gente fizer bem feito, deve vir uns trinta, quarenta candidatos, a gente escolhe três”. A gente fez o primeiro edital, vieram seiscentas inscrições, onde o limite eram municípios com até cinquenta mil habitantes, porque a gente queria uma coisa muito pequenininha. Seiscentas inscrições, a gente selecionou os três que a gente entendeu que eram os mais engajados e aí é um sucesso. O relacionamento com o Poder Público excelente, a gente começa a ser notado pela forma de selecionar municípios no mercado, o Ministério do Meio Ambiente vem falando de que empresas, por mais que não queiram, vão ter que trabalhar em sinergia com os municípios, as empresas ouvem isso, falam: “Pô, Recicleiros. São os únicos que enfiam a cara nos municípios e se sujeitam a isso”, que não é um ambiente fácil, não é de pouca complexidade, mas a gente vai ali e começa a criar as bases dos que a gente faz hoje, que é: só trabalha com quem queira muito e você vai ter que provar pra mim que você quer muito. Eu posso fazer em poucos, então eu quero fazer nos melhores. O que é o melhor município? É o cara mais engajado. É o cara que fala: “Eu entendo que é assim que tem que fazer, entendo o modelo de vocês, entendo que a responsabilidade é compartilhada, que eu vou ter que sair da minha mesa, trabalhar, legislar, vamos na Câmara de Vereadores juntos e vamos pôr essas leis de pé, vou ter que fazer licitação séria de coleta, vou obedecer parâmetros técnicos”. Tudo que a gente exigia nos eventos ali e que os eventos falavam: “Sai daqui”, a gente conseguiu criar nos municípios uma visão e não em todos, mas só naqueles que querem e que vêm aqui participar do meu edital. E aí a gente pega, bota a régua lá em cima, escolhe os melhores. No edital de 2019 a gente teve mil municípios participando, pra escolher 12. A gente escolheu municípios de Rondônia, de Goiás, a gente tem Mato Grosso do Sul, a gente tem Rio Grande do Sul, a gente tem Rio de Janeiro, São Paulo, uma porção. Bahia. E a gente começou a fazer isso. Então, você ganhou, município, você vai ganhar um projeto, que é o Plano Municipal de Coleta Seletiva. A gente vai regulamentar esse plano junto, vai criar bases mais saudáveis e sólidas, pra que vocês recebam investimentos e eu vou trazer esse investimento de empresas que precisam cumprir a lei da logística reversa e que confiam na Recicleiros, pra fazer isso. Então, eu tenho um cofre com dinheiro das empresas e eu levo pra executar esses planos nos municípios e gerar transformação com raiz, profundidade e longo prazo.
P1 – Quer dizer: vocês implementam uma política pública e quem financia o trabalho é a iniciativa privada, porque tem que se responsabilizar pela lógica reversa.
R1 - Isso. Mas só na fração que cabe a eles, na nossa leitura da lei federal, porque a própria lei diz que parte da responsabilidade é dos municípios. Então, o que a gente fez foi assim: botar a régua da qualidade dessa história em outro patamar. O Brasil recicla 3% do lixo que produz. Os catadores ganham, em média, no Brasil, cerca de quinhentos e setenta reais por mês. Região norte e nordeste, esses caras trabalham revirando lixão pra tirar cem, cento e cinquenta reais por mês. E aí, esse material que o catador tira do lixão, tomando sol na cabeça, levando cem, duzentos reais pra dentro de casa, chega na indústria recicladora, porque tem um cara que passa de caminhonete lá e vê os catadores fritando no sol e compra deles com dinheiro na mão a valores pífios, esse material reciclável e vai vender com nota fiscal pra indústria recicladora isso e ainda pega essa nota fiscal e todos os ganhos que ele consegue, até levar o material pra reciclagem, fruto do trabalho desses caras revirando o lixão, que ninguém descarta seletivamente no Brasil, a gente não tem cultura de reciclagem, pega isso, essa nota fiscal e ainda vai ao mercado pra falar: “Empresas, vocês precisam comprovar que vocês fizeram logística reversa? Compra essa minha nota, que tem papel de certificado, vale como um certificado e aí você prova pro governo que essas cem toneladas que constam nessa nota são fruto dos seus investimentos”. Isso é regulamentado no Brasil. Isso passa a valer como comprovação de logística reversa, a empresa comprar nota fiscal que não sabe nem de onde veio, não sabe quem está sendo expropriado no meio dessa cadeia, não sabe se tem trabalho infantil, não sabe quanto esse catador está ganhando. Isso deixa a gente absolutamente indignado, porque tem um monte de empresa brasileira fazendo isso. Então, a Recicleiros entende que catador revirando lixão, 3% de reciclagem, 10% de um milhão e meio de catadores que existem no Brasil hoje estão organizados em associações e cooperativas, o que não quer dizer que eles tenham condições mínimas pra trabalhar. Ele pode estar em chão de terra batida, ele pode estar trabalhando 12, 15 horas por dia, com o filho do lado, dormindo no galpão. Isso só quer dizer que ele tem um Cnpj de uma organização de catadores. Exemplar dá pra contar nos dedos de uma mão o que a gente tem no Brasil hoje. E também não adianta pegar todo o dinheiro da empresa, fazer um galpão maravilhoso, com máquinas de ponta e colocar um monte de catadores que nunca foram preparados pra trabalhar de forma cooperativa, fazendo assembleia, tendo governança pra tomar decisões. Quer dizer só que você vai enfiar um monte de gente vulnerável dentro de um galpão, com máquinas que eles não sabem operar, em municípios que amanhã o prefeito vai desistir de fazer coleta seletiva e esses caras vão continuar na mesma miséria, só que num galpão que serviu pra aquela primeira foto que você tirou, pra pôr no seu relatório de sustentabilidade. É sobretudo isso que a gente combate, com sinceridade pra caramba, com números e com chamar as empresas pra falar: “O seu investimento é pouco, o dinheiro que você põe não dá pra resolver o problema. Governo, o jeito que você cobra as empresas de fazer só inibe os investimentos deles e nunca vai dar em nada. Vai ser uma corrida por meia dúzia de notas fiscais, com rastro negro por trás. Qual é o futuro dessa história que a gente quer contar? Qual é a oportunidade que a gente quer dar pra um milhão e meio de catadores e outras três milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza no Brasil, que não têm oportunidade de trabalho digno?” E a catação é historicamente o posto mais inclusivo de trabalho. É historicamente o posto de trabalho mais barato pra ser criado e o mais acessível também. Porque, nas operações que a gente faz, quando a gente faz as construções dos grupos de trabalho nas cidades, a gente dá preferência pro negro, pro analfabeto, pro egresso do sistema carcerário, pro trans, pra esses caras que, por exemplo: a presidente da Cooperativa de Naviraí, que é a Marcela, é uma transexual, que até ser selecionada pra trabalhar na cooperativa e ser, pelo grupo, eleita presidente da cooperativa, era um mulher que só tinha tido oportunidade com a exploração sexual. Mais nada, a vida inteira. Então, assim, que oportunidade a gente vai dar pra esses caras? O que a gente vai construir? Pra esses caras mexerem em lixo descartado na sua casa sem o menor critério? Não. Tem que ter uma lei que fale que o munícipe é obrigado a descartar seletivamente. Tem que ter educação ambiental nas escolas, tem que ter em rádio, tem que ter em TV, tem que ter pedalada da reciclagem, tem que ter a gincana das crianças, tem que ter visita porta a porta, tem que ter longo prazo, tem que ter a perspectiva de poder investir em base no desenvolvimento dessa política pública e tem que ter prazo. Isso a gente advoga no Brasil, nos estados e no governo federal, pra que isso seja possível.
P1 – Erich, em quantos municípios vocês já fizeram o plano?
R1 – A gente tem 17 municípios hoje na plataforma, tem muito mais município pra fazer do que a gente tem dinheiro pra executar, então a captação de recursos, pra gente, é uma condicionante. Desses 17 municípios, a gente tem município em operação há três anos, há um ano, em implantação e, por conta da pandemia, já era pra ter sido inaugurado, mas serão agora. A gente tem cinco sendo inaugurados nesse segundo semestre e a gente tem outros pra fazer o ano que vem, desses 17. A gente tem mais uns seis desses 17 pra executar o ano que vem, a depender da nossa capacidade de captar recursos. Então, a gente construiu um negócio que é viável de ser feito com recurso do setor empresarial, mas eu preciso de muitos clientes e muitos milhões de reais, pra implementar esses projetos. Então, o nosso primeiro objetivo é, até julho do ano que vem, estar com os 17 rodando.
P1 – E você tem uma relação bastante grande, então, com esses catadores e cooperativas?
R1 - Muito. E muito intensa.
P1 – Você tem algumas histórias pra contar... quer dizer: você tem muitas histórias pra contar, mas dessa relação... da história desses catadores?
R1 – Muito.
P1 – Como é que é essa relação?
R1 – Primeiro: a gente tem que conseguir, também, ponderar o nível de envolvimento emocional que a gente tem com todas essas histórias, senão fica muito difícil executar o trabalho, né? Então, a gente tem parâmetros e indicadores sociais que a gente segue e a gente tenta participar dessas histórias, mas tenta manter um certo equilíbrio, porque senão, realmente, emocionalmente, é muito pesado. Agora, os nossos técnicos locais, que são aqueles caras que são contratados do município, pra participar do projeto todos os dias, o tempo todo, é nosso representante no campo, são caras que hoje a gente olha como a gente pode dar apoio psicológico, inclusive, porque esses caras estão com as histórias ali, na cara, todos os dias. Desde a história da Marcela, de superação e garra todos os dias, querendo fazer com que essa oportunidade seja, realmente, a oportunidade da vida dela.
P1 – Como é a história da Marcela? Como você conheceu a Marcela? Como foi?
R1 – Foi assim: o processo seletivo em Naviraí pra criar a cooperativa, o Luzimar, que é um monstro do nosso time aqui, que é nosso especialista do eixo humano, que é um cara que tem uma puta experiência com esse tipo de projeto e que hoje é nosso especialista pra conduzir esse eixo da Recicleiros e que é responsável, inclusive, pela formação desses grupos de catadores, que não é todo catador que funciona pra trabalhar nesse regime. Tem o catador que vai querer morrer com seu cachorro vira-lata, puxando a sua carroça na rua. É uma opção de vida. Então a gente vai, começa a trabalhar na seletiva de Naviraí, mil e setecentos candidatos pra 62 vagas da cooperativa de catador, todos os parâmetros pra tentar identificar os mais vulneráveis, ser justo no processo, os perfis que a gente decidiu que a gente priorizaria com os trans, os egressos do sistema carcerário, pra gente colocar o cara na maior dificuldade, na maior vulnerabilidade social e econômica e aí o grupo de Naviraí formado, que legal, várias dinâmicas importantes, gente de todos os perfis que a gente acha que deveriam estar ali, na eleição do presidente da cooperativa aparece a marcela eleita e o Luzimar fala pra mim: “É uma trans e foi eleita a presidente da cooperativa”. A gente começa a frequentar Naviraí, começa a tomar uma cerveja com a Marcela e com os outros catadores e fazer um churrasco e trabalhar junto e fazer capacitação e vai conhecendo essas histórias, até o ponto que a gente chega a ter intimidade pra ela contar a história de vida dela e mostrar que aquilo, apesar de todas as dificuldades, do trabalho pesado que é, significava o único momento de respeito e dignidade dela, a única oportunidade que ela teve na vida, pra falar de boca cheia o que ela fazia profissionalmente. Sua profissão: “Sou catadora, presidente da cooperativa”. Então, aquilo, a possibilidade de inclusão social naquilo, de desmarginalização de pessoas que ainda são super marginalizadas por serem os catadores da cooperativa, os pobres, os negros, os excluídos, mas que agora o cara tem um trabalho, ele é empreendedor, ele é dono de uma cooperativa de trabalho e renda, mostra o quanto essas pessoas, inclusive, têm um nível de resiliência absurdo, pelas dificuldades do dia a dia. Então, a Marcela tem essa ligação visceral com aquele empreendimento. Vários não aguentam e saem, porque é difícil formar renda lá, é difícil capacitar, pra ser um trabalhador de uma empresa, emitir nota, controlar dados de produção e tal, mas é isso, eles vão fazer isso, é isso que vocês vão se transformar, não é um projeto de assistência social, é de inclusão socioprodutiva. Eles entendem isso. Até, por exemplo, a Juane, que era uma menina ali de Naviraí também, 23 anos, egressa do sistema carcerário. Com 21 anos ela foi traficar droga, porque era a única coisa que ela achou que ela podia fazer pra manter os filhos, que ela teve filho muito cedo e tal, é presa, fica um ano presa, um ano e meia presa e, quando sai, ninguém dá trabalho pra ela. Ela chega pra trabalhar na cooperativa, selecionada nesse mesmo processo seletivo, arrebenta como líder nata do negócio, impressionante a Juane e a gente fala: “Você tem um potencial de liderança, de exemplo de conduzir a galera”. Depois de seis meses a gente perde a Juane, porque ela descobriu, naquele processo, que ela poderia realizar o sonho dela, já que ela tinha todas aquelas qualidades que ela nunca imaginou, que ninguém tinha falado pra ela que ela tinha, ela foi ser professora. Ela foi estudar pra ser professora. Ela falou: “Já que eu tenho esse potencial, eu vou atrás do meu sonho, eu vou continuar me dedicando, vou estudar e ser professora e vou trabalhar part-time ali com faxina, pra caber na agenda, mas eu vou ser professora” e está nessa jornada dela. Então, histórias como essa, até a catadora que não apareceu no dia seguinte e que não aparecia pra trabalhar, ligavam pra ela, pra Meire e ela não aparecia, não atendia, a galera foi na casa dela, ela estava nua, desmaiada na sala e tinha desmaiado de fome, porque a condição era tão precária, econômica, da pessoa, que a grana que ela recebia não estava sendo suficiente pra arcar com as contas e pra comprar comida, porque era o começo da cooperativa. Então, assim, enquanto ela não gera caixa, a gente tem um dinheiro de capital de giro, mas a gente percebe que a pessoa usa esse capital de giro pra pagar umas dívidas antigas e não pra fazer compras em casa, porque está sendo pressionada por outras coisas e aí a gente começa a remodelar, inclusive, a forma como a gente dá a base pra esses caras chegarem ao ponto de equilíbrio, entendendo histórias específicas e particulares de cada um. Então, a complexidade disso é absurda e a gente está construindo também know how, cada vez mais, pra lidar com isso, pra conseguir entregar as soluções porque, no final de contas, quando a gente, na pandemia, para e recomenda suspensão temporária da coleta seletiva no Brasil, porque a gente entende que não existe condição de, num cenário de pandemia, de incerteza, em março, todo mundo olhando pra aquilo e a gente pensando nesses caras sem equipamento de proteção, Brasil afora, sem procedimento de profilaxia, sem essa cultura de profilaxia, tendo que mexer vinte, trinta caras em um único saco de recicláveis que sai da casa de uma pessoa que pode estar contaminada e esses caras vão morar em aglomerações nas favelas, a gente falou: “Ferrou. Se a gente não parar, pra pensar em como retomar, a gente vai fazer com que a coleta seletiva seja um puta vetor do corona vírus Brasil afora”. Então, nesse momento que a gente fala assim: “Beleza, a gente é pela reciclagem, mas acima de tudo a gente é por pessoas. A gente está aqui por quê? Por pessoas. Então, se tiver que perder material reciclável agora, pra salvar pessoas, vidas, é isso que a gente tem que fazer”. E aí, inclusive, a gente começa uma campanha de contingenciamento, pra conseguir fazer com que seja possível pessoas tão pobres e vulneráveis pararem pelo covid, pra adquirirem condições suficientes pra trabalhar. Então a gente faz esse conceito, que eu ouvi da Marina Silva, numa reunião que a gente teve com ela, de pagamento por serviço sanitário. Pagar pra essa pessoa ficar em casa, é pagar com serviço sanitário. Possibilitar que ele não tenha que ir pra rua tentar ganhar a comida de hoje à noite. E aí a gente fez isso e foi um baita sucesso, a gente criou procedimentos de segurança do trabalho, implementamos, retomamos agora em agosto, estamos criando material pro Brasil inteiro, pra ensinar como a gente fez, o que de fato é importante nesse momento. Então, a gente está, de corpo e alma, nessa história de fazer com que a reciclagem aconteça por meio da inclusão socioprodutiva e do desenvolvimento social de quem gera o resíduo e de quem trabalha pra que esse resíduo chegue na reciclagem.
P1 – Erich, o que mudou na sua rotina de trabalho, nesse trabalho também com os catadores, nesse período de pandemia?
R1 – Primeiro, assim: difícil convencer pessoas que às vezes não têm a visão daquilo. Pro cara é tão difícil, é tão sobrevivência o dia inteiro, que falar pro cara: “Para de trabalhar, pra não morrer e não matar os outros”, você vê que é uma coisa que está muito distante ainda do que é entendimento pra esses caras. Essa sinapse, pra falar: “Beleza, eu paro de trabalhar. Tão difícil conquistar um trabalho agora, porque eu posso morrer trabalhando, mas eu já estou acostumado a quase morrer todos os dias, em casa, de fome, de tantas outras coisas, de tantas outras contaminações, esgoto, dengue, malária, leptospirose, fome”. Então, assim, dar significado pras coisas é ir muito dentro da alma de cada um e fazer um exercício de empatia, que eu acho que a gente nem tem a referência pra fazer, pra entender o que é o dia a dia de uma pessoa dessa, de verdade. Quando você acha que, na minha casa, minha mãe desesperada porque estava dura e ia dar arroz com salsicha pros filhos, não era digno, quando a gente tinha um jantar de arroz com salsicha chapeada, que eu achava uma puta delícia aquilo, a gente tinha a comida em cima da mesa. Então, eu não posso nem conseguir fazer um exercício de empatia digno de falar que eu sei o que esses caras passam. Eu não sei o que esses caras passam. Eu teria que passar por muito mais coisa na minha vida, pra conseguir me pôr na pele desses caras, então eu nem me atrevo. Eu nem tento. Eu tento imaginar até onde eu posso e ser o mais sensível possível, pra te ajudar a chegar em lugares que eu nem consigo sentir o cheiro. Do que te motiva, de fato e do que tem significado. Então, a pandemia deu também esse outro choque, do que eu achei que eu já sabia e da galera falar: “Eu não vou parar. Entre morrer ou morrer, eu prefiro ficar aqui”. E a gente não. Então a gente precisa de dinheiro, pra esse cara poder ficar em casa, porque a gente está pensando em algo que vai além desse cara: é a mãe desse cara, é o vizinho desse cara e tal. Então, é muito difícil fazer empatia com esse tipo de gente, exercitar empatia com esse tipo de gente. E mais difícil ainda é fazer uma informação importante... mais difícil ainda não, mas tão difícil quanto, fazer uma informação fundamental chegar pras pessoas quando você não pode estar do lado delas, essa pessoa não tem o celular, não tem a banda larga, esse cara não lê ou não compreende o que ele está lendo, pra ler um manual de instruções de como operar, então a gente está em estúdio amanhã, gravando um vídeo de covid, de como atuar durante a pandemia, vamos gerar um simples vídeo de 13 minutos, mas o que tem de pensamento lá dentro, de tentar fazer o cara se identificar com o ator que apresenta, com a mensagem, com o formato, com a fala, pra tentar fazer o cara ter condições de operar com segurança nessa pandemia ou em outras situações delicadas que virão. Então, acho que a pandemia, primeiro, mostra que a gente tem muita coisa, ainda, pra desenvolver e pra dar a mínima condição de segurança no Brasil. Quando a gente vê a história que o vírus pode se propagar pelo esgoto, como ficam, de novo, as favelas? Distanciamento social, como ficam as favelas? Limpeza das mãos, como ficam as favelas, cara, pra limpar a mão? Como ficam os galpões desses trabalhadores, que nem torneira têm? Do que a gente está falando aqui? Como é que a gente está falando de mecanização da coleta seletiva num país que tem três milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza? Dane-se a mecanização, se ela é mais eficiente. A gente quer trabalho e renda digna pra treze milhões de pessoas, pelo menos. Então, acho que a pandemia deu uma chacoalhada também em que Brasil a gente tem aí na mão, né? A gente está tentando fazer o quê? Então, dá mais um novo choque de realidade e mostra que a discussão está num nível muito basal ainda. A gente tem que discutir a coisa muito na base ainda. Muito na base.
P1 - Nós vamos encaminhar pras perguntas do final. Quer dizer: a gente deu uma pincelada na sua vida, porque tem tanta coisa, né e a memória é seletiva, mesmo. Se a gente fizer essa entrevista outro dia, algumas outras coisas virão, enfim, então eu queria saber como foi pra você essa experiência de contar a sua história de vida, de passar por essa entrevista.
R1 – Eu acho que eu nunca tinha feito, Rô. Foi uma... eu fiquei na dúvida, aqui, se eu estava, às vezes, numa entrevista ou numa sessão de terapia. Você é psicóloga ou não?
P1 – Não, sou historiadora.
R1 – Puts, é muito louco! É também uma regressão, né? Um resgate pra fazer conexões. É muito interessante! Porque a gente também acho que olha com um pouco mais de organização e calma, pro encadeamento dos momentos. Eu queria ter uma mesma conversa como essa com uma psicóloga, eu acho que seria também bem interessante, pra conseguir responder dúvidas que a gente tem, mas eu acho que serve pra olhar e entender que, de fato, assim, as opções que eu fiz na minha vida, têm ligação com vários momentos da minha vida, com várias referências importantes e eu acho assim: mostra que, de fato, cara, a gente está se esforçando pra construir um negócio muito novo, a gente ouve isso, é muito inovador, porque vai muito além do ‘estamos montando um projeto de reciclagem’. Vai mexer, ali, em bases institucionais, em coisas que realmente podem trazer um algo melhor pro país, na linha do que a gente imagina. Então, eu acho que essa história, se a gente conseguir ser bem sucedido nos próximos capítulos dela, acho que vai ser uma história de bastante relevância pro segmento ali de impacto que a gente determinou. Então, eu espero poder contar essa história daqui uns dez anos de novo e ver onde a gente chegou. Por enquanto tem sido muita provação, são só 13 anos, mas já são 13 anos, mas a gente vê que são só 13 anos de Recicleiros. A gente nasceu antes de existir um marco regulatório pra isso e eu vejo que eu poderia ter desistido, em vários momentos, eu quase desisti em vários. Não sei te dizer se eu faria, começaria de novo. Acho que olhando pra trás e vendo o quão difícil é eu, talvez, desanimasse de começar de novo, então ainda bem que eu não preciso começar de novo e mostra que realmente tem um algo que me liga com essa causa, que vai muito além da conveniência. Eu já me peguei várias vezes perguntando: “Cara, a gente está fazendo um negócio difícil, escolhendo o caminho mais difícil”, mas eu acho que eu, também, como um bom geminiano, que mudo muito de ideia e que cada hora quero um negócio diferente, acho que foi a única forma de eu conseguir me manter num foco: tendo uma raiz que vai muito além do que eu quero fazer agora. Mas um lance que me identifica com um propósito que eu quero mostrar de exemplo pros meus filhos, em termos de como encarar a vida, do que a gente de fato precisa, sendo que tantas pessoas ainda precisam de tanto. Então, isso me motiva todos os dias, nas dificuldades e me faz também falar: “Não, agora eu quero vender coco na praia. Não, mas tem algo que precisa de mim, que é muito mais importante do que a minha satisfação de estar relax na praia, vendendo coco, sem tantas preocupações. Eu mereço essas preocupações, eu preciso colaborar um pouco mais profundamente”. Então, acho que resgata um pouco da história e deixa mais claro esses pontos.
P1 – Erich, acho que é isso, uma história super bacana, eu não sei se você quer deixar registrado alguma coisa mais, mas é muito bonita a sua história e em nome do Museu eu queria te agradecer compartilhar sua generosidade, a sua história.
R1 – Rô, eu nem me sinto digno, de verdade, sem pieguice ou sem falsa modéstia, mas cara, no dia a dia, quando o Von falou: “Pô, a Rô vai te entrevistar pro Museu da Pessoa”, eu falei: “Puts, eu, cara? Eu estou aí, mais um, dando os meus pulos, tal”. Gosto de contar história, foi importante pra mim também, eu acho que eu nunca tinha feito isso, então, é um trabalho bacana pra gente também olhar pra si, mas me sinto super honrado de ter a oportunidade de alguém escutando a minha história e, se isso estiver valor pra outras pessoas que vierem a ouvir isso, eu acho que é super honroso e eu realmente exercito essa humildade de achar que eu sou um cara muito privilegiado, assim. De maneira nenhuma, em nenhum momento, tento ver a minha história como um cara sofrido e que sofreu e superou coisas. Eu acho que, diante disso tudo e com quem a gente decidiu trabalhar, a gente está anos-luz em privilégio, à frente de grande parte do nosso país e isso é um negócio que me incomoda demais, porque eu acho que a falta de perspectiva que as pessoas podem ter é desesperador e desastroso porque, pra mim, por mais que em alguns momentos tenha sido duvidoso, difícil, tal, eu sempre tive perspectiva. Eu sempre achei que dava pra fazer alguma coisa. Eu tive uma tia que falou: “Vai lá aprender inglês, você tem um carro. Pra que você precisa de um carro? Você precisa de inglês”. Puta, perspectiva. Caramba, quando eu cheguei no Brasil, a primeira coisa que eu não falei, que eu me esqueci, logo que eu cheguei mesmo, eu falei: “Eu vou vender sanduíche natural. Eu tenho várias ideias, vejo vários sanduíches naturais horrorosos na praia, quero estar na praia, eu vou fazer o meu sanduíche natural, vou testar a minha embalagem, o meu merchandising, o meu marketing e vou vender sanduíche natural”. Cara, a confiança de poder fazer isso, de poder escrever bem uma proposta de um negócio que eu queria fazer, isso já é uma fortuna, né? Já é uma herança que a gente recebe. Eu tenho possibilidade de pensar e criar oportunidades. Quem não tem, quem nunca conseguiu ver além daquele primeiro muro, esses caras são os mais vulneráveis do país. Os que não conseguem ser criativos, não conseguem se enxergar em nada além do que aquela pequena coisa que os envolve todos os dias, aquela pilha de lixo que eles reviram com o filho do lado todos os dias. Então, é isso: eu sou um privilegiado, me sinto honrado de poder ter conversado com você, espero que seja uma história que, de alguma maneira, inspire pessoas, porque eu queria que tivesse mais um milhão de pessoas fazendo o que a gente está fazendo. (risos)
P1 – Obrigada!
R1 – Eu que te agradeço e, se precisar de algum retoque, alguma informação complementar...
P1 – Não, a gente se fala, mas depois eu vou querer bater um papo com você, três assuntos aqui que eu fiquei anotando. Primeiro que eu vou digitalizar meu livro, eu gostaria de te dar. Eu só tenho um exemplar, porque ele esgotou. Nos rastros dos restos, a história do lixo em São Paulo. Eu fui assessora de um vereador aqui em São Paulo, do Adriano Diogo, que escreveu a lei de coleta seletiva aqui de São Paulo.
R1 - Que legal!
P1 – E eu trabalhei no gabinete e, como eu sou historiadora, pra pesquisar, pra fazer ações propositivas, desci na biblioteca da Câmara e pesquisei os anais desde 1600, quando eles chamavam lixo de imundície, aí eu vim traçando uma perspectiva na História que chama Genealogia, uma linha aí de uns teóricos, eu fui pegando pela terminologia da palavra, como foi sendo desapropriado os agentes e cidadãos comuns, manipular o lixo. E como os catadores começaram a ser proibidos de fazer essa separação pelo código sanitário. E como as empresas entram e começam a ganhar dinheiro com isso. E aí eu vim até a gestão da Luiza Erundina, quando ela quase sofreu impeachment, por conta das empresas de lixo, quando ela fez o governo de coalisão, pra se manter no poder. Então, eu vou fazendo uma genealogia, eu estudo vários... eu gostaria de te dar esse livro, ter a honra de algum momento, se você puder ler.
R1 – Claro! Eu vou ler com toda atenção. Uma história dessas...
P1 – Eu vou dar. O livro chamado Rastros dos Restos, mas é uma coisa que eu preciso fazer sempre, há anos. Ele parou, não é um livro atual. Ele parou em 2000, parece, então ele está muito desatualizado. 2000, não, parou em 1998, por aí, há uns vinte anos, mas ele tem um pensamento que eu acho que vale a pena.
R1 – Não, super eu quero conhecer e deixar aqui uma informação, que eu acho que eu não coloquei, do nosso sonho futuro, que a gente quer ser a primeira ONG a operar contratos de lixo no Brasil.
P1 – Maravilhoso! Um momento histórico.
R1 – Então, nosso sonho que não saia do ________ (02:35:50), talvez a gente não chegue lá, mas a primeira sem fins lucrativos a deter contratos de lixo no Brasil.
P1 – Maravilhoso! Eu vou falar com o Von depois, a gente pode tentar ver alguma parceria com o Museu mesmo, porque eu fico pensando se a gente consegue também, nesse projeto, fazer a história de vida dessas pessoas, os catadores e ela entra como um valor de transformação também no projeto, como medição de impacto, pode ser interessante.
R1 - Demais. O Von é meu brother, assim, um cara que...
P1 – Eu tenho mil ideias. Vamos marcas uma conversa eu, você e o Von, depois.
R1 – Vamos, sim. Ele vai adorar. Ele me ligou: “E aí, já falou com a Rô?”
P1 – Ele é ótimo, é um querido, tem um pique ótimo, né?
R1 – Ele é incrível! Ele foi o primeiro cara que, em 2009... eu conheci o Von em 2008 e ele queria de qualquer jeito pôr a gente dentro dos eventos da empresa dele, da época da Reunion. Em 2009 a gente fez um primeiro trabalho importante juntos e ele foi o primeiro cara que falou: “Cara, eu quero investir na Recicleiros”. Eu falei: “Mas como assim, Von, a gente é uma ONG, né? Você quer investir o quê?” Ele falou: “Eu quero investir, porque eu quero ter a sensação que eu ajudei uma empresa dessa a existir um dia”.
P1 – Que bacana!
R1 – E ele pegou e fez um investimento, cara, absolutamente significativo lá, naquele momento.
PARTE 2 – 15:17 A 64:47 = 49:30
P1 – Erich, pra começar, qual é o seu nome, local e data de nascimento.
R1 – Erich Burger Netto, nasci em São Paulo, capital, ali no bairro do Jardim Aeroporto, tenho 38 anos. Sou de 1982.
P1 - Seus pais são de São Paulo?
R1 – Meus pais são de São Paulo também.
P1 – E quanto tempo você morou no Jardim Aeroporto?
R1 – Eu morei ali até os 22 anos, aí fui passar um ano viajando pra fora do Brasil, quando eu retornei fiquei mais uns seis meses ali, me mudei pra Vila Mariana, pra morar sozinho, aí já não morava mais com a minha mãe. Fiquei ali 13 anos, morando nesse apartamento e agora, com essa pandemia, me mudei pro interior, estou aqui em Indaiatuba.
P1 - Erich, e como é que era o bairro lá onde você morava, no Jardim Aeroporto, naquela época?
R1 – Eu nasci num bairro assim... não era um lugar de convívio social intenso. Eu nasci numa casa, não era prédio, então a gente tinha ali os limites do muro mesmo como ambiente de interação. Morava numa avenida, esquina com uma outra avenida, muito perto de uma favela, que é a Favela do Galo e nós não éramos moradores da favela, então a gente já não tinha uma conexão social, ali, com a favela. Morava na frente de um posto de gasolina, vizinho de uma churrascaria e de uma oficina mecânica do outro lado. Então, minha vida, nesse momento ali, de moleque pequeno, foi muito restrita ao quintal. Então, eu tive um convívio relativamente pobre, assim, limitado, social, na minha infância, não brincava na rua, não tinha uma rua, se saísse na rua, você era atropelado pelo ônibus e também não tinha vizinhos e então era uma coisa eu e minha irmã ali, o nosso mundo no quintal.
P1 – Do que vocês brincavam, no quintal?
R1 – Nossa! Puta, de muita coisa! Eu tenho dois anos de diferença pra minha irmã, ela é mais velha dois anos, então a gente tem uma idade bem próxima. Eu sempre fui jogador de futebol, então aquele quintal ali era meu estádio. Quando ela estava no quarto com as bonecas ali era meu estádio, minha performance futebolística aparecia naquele quintal. Mas a gente brincou de tanta coisa, cara! A gente brincava pra caramba de cabana, a gente fazia altas cabanas no quintal. A gente brincava de Ana Raio e Zé Trovão, não sei se vocês lembram da Ana Raio e Zé Trovão, mas a gente tinha um banco de madeira ali que era o cavalo e a gente arrepiava também, brincando disso. Bastante coisa, ali. O quintal, realmente, foi um lugar que a gente até brinca, que eu e minha irmã conversa hoje em dia e lembra das marcas que tinham naqueles cacos, sabe quintal de caco vermelho? E sempre vinha um carimbinho em algumas das pedras ali. Então, a gente olhou tanto pra aquele quintal, que a gente lembra até hoje das formas e quais eram as pedras que tinham o tal do carimbinho. Então, acho que a gente olhou muito pra aquele piso daquele quintal.
P1 – E amigos da escola frequentavam sua casa? Você ia na casa de outros amigos?
R1 – Cara, não frequentava muito, Rô. Foi uma coisa que a gente até se pegou contestando, né, porque a gente não tinha uma vida muito intensa com esses colegas de escola e eu acho que eu tinha um pouco assim: a gente morava numa casa simples, em comparação com as casas dos colegas médios, ali, de escola porque, no aperto de grana ali, meus pais priorizaram muito escola. E muitas vezes, com a ajuda dos meus avós e tal, então conseguiram colocar a gente numa escola que não refletia muito o nosso âmbito social, o nosso status. E eu acho que isso foi também criando uma questão, assim, de puts, não querer exatamente mostrar a nossa casa ou estar com as crianças ali e as conexões também não eram muito... eu nunca me identifiquei muito, pra ser bem sincero, com a escola onde eu estudava. Eu tenho hoje, depois de ter ficado nessa escola uns seis ou sete anos, um amigo até hoje, dessa época, que era basicamente o Beto, que é um amigão meu e que era corintiano, assim como eu e que também não se encaixava muito naquela realidade, então a gente começou a ir pra estádio junto, a frequentar jogo de futebol sozinho. Então, esse cara frequentou a minha casa e que de vez em quando aparecia por lá, mas eu nunca me senti muito à vontade nessa escola em questão, que era chamada Magno. Então, no Magno, eu nunca me identifiquei muito. Daí, na oitava série, eu saí de lá, fui pra outras escolas, comecei a encontrar pessoas que tinham mais a ver comigo, já estava um pouco maior também, já tinha uns 14 anos e então a coisa começou a rolar diferente. Mas a gente nunca teve muita gente frequentando a nossa casa, de amigo de escola, não.
P1 – Seu pai e sua mãe são formados, foram formados, estudaram?
R1 – Meu pai, sim, é formado engenheiro civil, pela Universidade de Mogi das Cruzes; a minha mãe não é formada, minha mãe sempre foi mais artista, assim, nunca foi uma pessoa de uma carreira muito tradicional, então ela trabalha com moda, desde os 17 anos ela abriu a primeira boutique dela e a vida inteira ela foi trabalhando nessa área, se desenvolvendo, é uma pessoa que manja muito do que faz ali, mas não é uma boa empreendedora. Ela é artista, mesmo e não empreendedora. Aí meu pai teve mil coisas. Meu pai é formado engenheiro, mas daí foi ser açougueiro e aí não deu certo, foi ter uma indústria de plásticos, que aí não deu certo, aí foi ser açougueiro de novo e aí não deu certo de novo e aí, em algum momento, ele voltou pra carreira de engenheiro e lá foi onde ele começou a construir uma situação um pouco mais confortável, que ele tem hoje.
P1 – Como era a relação dentro da sua casa? Tinha alguém que exercia autoridade? Seu pai, sua mãe.
R1 – Naturalmente, meu pai sempre foi um cara mais autoritário, assim, acho que meio o padrão, ali, da sociedade, o homem tem essa postura e tal, só que a minha mãe sempre foi aquela que teve mais intimidade com a gente, porque minha mãe fez opções, assim, muito em prol da família, pra criação dos filhos. Então, quando a gente nasceu ali, principalmente depois que eu nasci, ela decidiu que ela teria o empreendimento dela rodando ali, debaixo do bigode dela, pra ter os filhos por perto também e aí ela fez um ambiente na nossa casa, onde ela rodava a boutique dela, as vendas de roupa, tal, mas dentro de casa. Isso foi uma opção. Eu sempre falo que minha mãe, hoje e aí eu aprendo com isso também, a situação financeira dela hoje e várias coisas, são reflexo das opções que ela fez durante a vida. Ela não escolheu ir atrás da carreira dela, ela escolheu estar perto dos filhos, estar presente no nosso dia a dia, nas mínimas coisas que a gente precisava ali e a gente se virou muito bem ali, com os tropeços naturais, mas a gente se virou muito bem nesse formato: eu, minha irmã e ela muito próximos, meu pai trabalhando, estressadão, com vários momentos que a vida não trouxe pra ele o que ele esperava, gera também aquela impotência e aí as atitudes dele... hoje que eu tenho um pouco mais de maturidade pra reconhecer, eram muito dessa pessoa que não conseguia fazer virar o que ele queria pra poder, também, se impor ali dentro de casa ou prover o que ele achou que ele tinha que prover e aí vai minando a autoestima. Então, hoje que eu consigo olhar pra isso, eu vejo muito reflexo dessa história que a gente teve ali. Então, meu pai era o cara que chegava cansado, estressado, no final do dia, na maioria dos casos. A gente teve momentos bacanas ali, mas ele também saiu cedo de casa. Eu acho que eu tinha, talvez, uns 13, 14 anos, quando ele decidiu se separar da minha mãe e aí ficamos nós ali, no nosso aperto, cada vez pior depois que ele também saiu de casa e a gente foi se virando junto. Então, a figura foi essa: minha mãe era a referência principal dentro de casa.
P1 – Erich, ele que saiu de casa? Ou foi comum acordo a separação?
R1 - Não. Ele saiu, minha mãe ficou, ele saiu, mas foi uma constatação ali de que tem que ser por aqui, não está rolando mais e aí decidiram se separar, mas não foi nada fácil, nem pra gente ali, pra mim e pra minha irmã. Eu tinha, apesar de tudo, eu também uso isso hoje na relação que eu construo com os meus filhos, uma relação de admiração com meu pai, como filho homem, a gente tinha esse vínculo no futebol, dessas coisas que vão alimentando nosso imaginário e então não foi nada fácil, assim como não foi pra minha mãe também, que era uma pessoa absolutamente apaixonada e dedicada, tinha sido namorada do meu pai desde os 14 anos de idade, pessoas que conviveram ali na Vila Mariana, então todo mundo se conhecia, a família da minha mãe conhecia a família do meu pai antes dele serem casados, então foi um baque bem grande ali, mas foi isso que aconteceu e acabou, eles acabaram ali em comum briga, decidindo que deveriam se separar e aí meu pai pegou as coisas e saiu fora.
P1 – Erich, e na escola, como você era? Você gostava de estudar?
R1 – Eu sempre fui muito bem, nunca tive dificuldade de aprender, sempre tive facilidade na escola, mas também nunca fui aquele aluno muito quieto, ali, muito obediente no sentido de horários, tal, que é exatamente o que eu vejo meu filho trilhando o mesmo caminho, ali. Eu tento dar uns conselhos pra ele, mas sinto na pele a questão da criança ansiosa, ativa pra caramba. Hoje eu vejo esses movimentos de escola mais modernos e fico muito animado em ver que essas coisas estão evoluindo. Eu não nasci pra ficar sentado lá na cadeira horas olhando pro professor, todo mundo ali, um do lado do outro. Aquilo me incomodava muito. E eu digo o meu filho, porque é aquele moleque que sai pra fazer xixi 29 vezes por aula, porque não aguenta ficar lá e ao mesmo tempo eu não quero repreender, porque eu sinto na pele o que ele sentia. Então, ele também estuda numa escola, até agora estudou, antes da pandemia, numa escola hiper tradicional, o Arquidiocesano, então imagina como era pra ele a rotina ali, nada fácil. Eu sofri muito com essa história, tomei um monte de advertência, de suspensão, cabulei aula e fui pego do lado de fora, aquelas coisas mais tradicionais ali, mas tinha uma certa dificuldade de me manter ali, dentro da aula, mas ia bem, nunca repeti de ano, nunca tive dificuldade, sempre passei nos vestibulares ali com certa facilidade. Então, é mais uma coisa que corrobora minha tese de que não é deixar todo mundo sentado ali de frente pro professor, que vai mudar muita coisa.
P1 – Erich, como se deu a sua escolha profissional? Você teve alguma influência familiar, algum amigo ou aptidão?
R1 – Ao longo das minhas tentativas eu percebo várias influências ali, mas que eu acho que, por falta de referência, você acaba sofrendo alguma influência. É isso que eu percebo. Por que eu digo isso? Porque eu acho que eu não fiz a faculdade que eu deveria ter feito. E também não tive clareza pra identificar meu potencial no momento em que eu deveria. Eu acho que a gente tem que fazer essa escolha muito cedo, afinal de contas, com 17 anos você tem que entrar numa faculdade, quem não repete durante a escola ou quem não tem a sagacidade dos pais de, de repente, falar: “Espera aí, terceiro colegial, agora você vai lavar louça em algum país fora, pra respirar um pouco, pra oxigenar”. Eu acho isso muito positivo, eu vi isso acontecendo quando eu fui viajar e lavar louça pra aprender inglês. Então, não tive, isso eu acho que falta e é o que eu tento dar aqui em casa, que é a questão de: “Tenta identificar o que você gosta, suas potencialidades. O mundo não é Administração, Medicina e Direito”. E, apesar de eu ter 38 anos, na minha época ainda tinha isso muito forte ali, de poucas alternativas e eu sempre fui um cara muito mais artístico, acabei sentindo falta disso, de uma referência, de um impulso pra descobrir as minhas habilidades, a minha vocação. Então, quando eu estava ali no terceiro colegial, eu tinha uma amizade muito forte com o Anderson, que era um cara que eu gostava muito e que tinha fazenda, estava muito no interior e eu acabei...
ENTRADA DA FILHA
R1 - ...no final de contas, como eu não tive essa oportunidade de explorar alternativas, quando eu estava lá no terceiro colegial, convivendo muito no interior ali e às vezes ia de fim de semana pra fazenda, sítio, tal, eu e esse meu amigo decidimos ali: “Vamos fazer Agronomia” e aí fui, prestei na Federal do Rio, acabei entrando, aí eu tive zero apoio do meu pai, principalmente, que sempre foi um cara hiper tradicional e meio durão, ali, me criticou pra caramba, falou: “Isso não é profissão, isso é uma porcaria, você vai ficar a vida inteira andando de Fusca da prefeitura”, ele falava e aí me desanimou, eu estava indo, com 17 anos, morar lá na Seropédica, que é onde fica a Federal Rural do Rio de Janeiro e aí acabei desistindo e meio sem saber o que fazer, consegui uma vaga ali no cursinho da Poli e falei: “Vou fazer Engenharia”. Porque meu pai era engenheiro, acabou caindo essa influência. Aí passei na Mauá, fiz um ano de Mauá, desesperador, achei terrível, falei: “Cara, isso aqui não é o ambiente que eu quero, a matéria que eu quero”. Aí saí da Mauá e acabei indo fazer Administração na PUC, fiz três anos de Administração, bateu de novo, falei: “Puts, adoro o lugar, adoro as pessoas, a PUC é a minha cara, mas Administração... se eu desistir mais uma vez eu não vou me formar nunca” e aí resolvi ir viajar. Eu comecei a trabalhar cedo, com 16 anos eu estava no Itaú, já trabalhando ali de office boy, fazendo aquelas correrias ali de moleque e sempre fui guardando um pouquinho de dinheiro. Então, quando eu fiz 18 anos, eu conseguir comprar um carro, um Golzinho ali, velho, comprei, depois eu o troquei. Quando chegou nesse momento da crise, ali, no terceiro ano de PUC, eram cinco anos de Administração, na época, eu peguei e uma tia minha falou: “Por que você não vai pra fora, aprender a falar inglês?” E, pra mim, era uma coisa, por isso que eu falo da referência pra abrir os horizontes, era inadmissível, eu falei: “Como assim eu ir morar fora?” Pra mim era coisa de gente rica. E aí eu, por força dela, vendi o carro, comprei um curso na Austrália, comprei a passagem, me joguei pra lá com trezentos dólares no bolso, saí lavando louça, pagando meu aluguel, guardando um dinheiro ali e fui abrindo portas de um novo mundo que eu achava que eu nem ia ter acessado durante a minha vida. E quando eu voltei pro Brasil, depois de um ano, aquela coisa de volto ou não pra faculdade, o meu avô, o meu xará, o meu grande brother ali, a minha maior referência, pegou e falou: “Cara, termina logo isso, que é melhor do que você não terminar”. Então me formei administrador de empresas na PUC, mas hoje, por exemplo, eu acho que não seria a minha profissão. Se eu tivesse tido acesso a outras coisas eu estaria muito feliz hoje, por exemplo, como arquiteto, que eu sou um cara que gosto demais de design, de formas, de desenhar e nunca imaginei que estaria numa profissão como essa ou como qualquer outra da área. Então, legal que fiz Administração, mas não é onde eu me encontro muito realizado, assim, em termos de usar as minhas aptidões pro meu dia a dia. Aí fui empreender, porque daí, empreendendo, você faz o que você quiser e aí fui me realizar de outras formas.
P1 – E quando você começou a empreender? Já começou com o Recicleiros? Como é que foi?
R1 – Oficialmente sim. Eu sempre fiz coisas, sempre tive essa ânsia, até porque passei uns apertos de grana ali em casa, então isso te joga mais pra querer logo começar a contribuir, né? Tanto que eu comecei a trabalhar com 16 anos, ali no Itaú. Mas antes disso tentei pra caramba vaga na videolocadora que tinha na frente de casa e aí ninguém dava o emprego, porque eu era muito novo, falava: “Meu, você está maluco”. Aí vendia revista na frente de casa, ali naquela brincadeira de vender no portão. Quando minha mãe tinha loja e as clientes passavam no corredor, eu fazia umas vendinhas na janela do quarto ali, elas compravam uns negócios antes de chegar na loja. Essas coisas assim. Mas eu sempre tive essa veia de tentar criar alguma coisa. Fiz uma marca de sanduíche natural, uma época e vendi num verão, ali no Guarujá, na praia e aí ia testando algumas ideias de marketing, de como vender mais e melhor, tal e aí, quando eu voltei da Austrália, eu voltei meio que sem saber o que fazer, só que sem grana nenhuma, nenhum real no bolso, tinha gastado toda grana que eu fiz, gastei viajando ali, conheci a Ásia, que eu queria muito conhecer e aí, quando eu chego aqui, eu arrumei um emprego, primeiro, na Oscar Freire, vendendo roupa na véspera do Natal, só pra fazer o do final do ano ali, logo que eu cheguei e aí, quando acabou esse dinheiro, eu peguei um emprego numa agência de Publicidade onde trabalhava um amigo meu e precisava de alguém pra atender Santander e aí eu peguei esse emprego e foi terrível, um divisor de águas, porque eu estava numa agência, naquele ritmo maluco de agência, um cliente como o Santander, que era bizarro, de tanto que apertava e consumia todo mundo, todo mundo em desespero e eu já tinha vindo da Austrália com a ideia de uma ONG, com o lance do lixo. Lixo sempre foi um negócio que apareceu muito pra mim. Eu sempre percebi muto lixo nas praias, nas beiras de estrada, a atitude das pessoas. E aí eu tinha essa ideia de lixo, uma ONG. A marca Recicleiros, um dia, apareceu pra mim e eu achei muito bacana, falei: “Caraca, Recicleiros é muito legal, dá pra fazer muita coisa aqui”. Não sabia ainda o que era aquilo, mas nessa crise de estar, ali, atendendo o Santander, minha irmã chegou pra mim e falou: “Cara, sai fora disso e vai fazer qualquer coisa com essa Recicleiros, mas vai. Em alguma coisa isso vai dar e vai ser melhor do que estar aqui, porque aqui é bizarro, não dá pra ficar muito tempo”.
P1 – Como surgiu a marca Recicleiros? Você disse que teve contato com a marca.
R1 – Surgiu porque eu tenho um grande amigo, o Gu, que estudou Administração de Empresas comigo, na PUC, que hoje mora num barco, ali na Austrália, um veleiro e era um cara que trocava muito ideia e a gente, nas teorias de juntar dinheiro ali, começou a criar umas teorias meio malucas ali, de pegar um real de cada pessoa e pepepe, aquelas maluquices de quem está tentando ter alguma ideia e a gente falou: “Cara, se o papelão vale quarenta centavos o quilo e a gente acumular tanto de papelão e bibibi bobobo”. Nessas, essas brincadeiras, começou a surgir a ideia de mexer com isso, transformar impacto ambiental do lixo em receita e aí, cara, nessa história, nesse ínterim, eu tive acesso na faculdade, ali na PUC, ao case do Mohammad Yunus, com o prêmio Nobel da Paz que ele ganhou em 2006 e com o case da Grameen Danone, o banqueiro dos pobres, com o Grameen Bank e a Danone, na França, onde eles fizeram uma parceria e criaram um empreendimento social: uma fábrica de Danone que teria como parte dos seus fornecedores as bangalesas, as aldeãs, as mulheres ali que estavam abaixo da linha da pobreza e o Yunus, com o Grameen Bank, forneceria o tal do microcrédito, pra que elas comprassem vacas e se tornassem fornecedoras de leite dessa fábrica da Danone, que não visava lucro. Visava criar essa cadeia positiva, de demanda, pra essas novas empreendedoras e fornecer iogurte com valor nutritivo muito superior, pra combater a subnutrição das crianças em Bangladesh. Eu falei: “Pô, que animal! O cara tem um salário, porque ele é um diretor fabril, um diretor de marketing dessa empresa, mas essa empresa está lá pra remunerar as pessoas e pra gerar impacto positivo”. E aí, então, com a ideia da história do papelão e do empreendimento social, tal, surgiu a ideia da Recicleiros e a marca veio ali, por inspiração. Recicleiros soa legal, pode virar sinônimo de gênero, pode ser bacana trabalhar com isso. Então, Recicleiros, a marca, existiu antes de uma estrutura se seria uma ONG ou não e atuaria fazendo o que. Só que as coisas foram acontecendo: criei a marca, apareceu uma oportunidade de trabalho. Hoje, quando eu olho o que a gente fez naquela época, 13, 14 anos atrás, é bem impressionante a quantidade de elementos que existiam ali e que permanecem até hoje, no que a gente faz, num ambiente muito mais estruturado, num modelo de negócio muito mais estruturado, mas o que a gente usa de metodologia hoje estava naquele primeiro evento de música eletrônica onde eu montei uma estação de reciclagem e contratei catadores e paguei pelos serviços desses catadores e criei estruturas pra interação com o público, pra desenvolvimento da percepção, da sensibilização do público e a gente fez lá o que a gente faz hoje, em outras proporções, mas os elementos que compõe a metodologia estavam ali, sem eu nem saber, por uma questão realmente de inspiração e é por isso que eu acho que eu estou onde eu deveria estar e eu estou fazendo, talvez, o que eu tenha nascido pra fazer porque, de verdade, assim, teve pouco momento acadêmico pra criação daquilo, teve pouca consultoria, aceleração, tudo isso que a gente vê as startups hoje se submetendo, lá foi uma dose de inspiração. Então, é aí que eu olho pra o que eu faço hoje e falo: “Acho que eu não poderia estar fazendo outra coisa”. Talvez tenha sido por isso que não fiz Arquitetura, que eu fui pra os lugares que eu fui, convivi com as pessoas que eu convivi, porque a gente conseguiu criar algo absolutamente inovador, um negócio que hoje induz regulamentação no Brasil, induz práticas das empresas e que foi criado ali, cara, na inspiração, mesmo.
P1 – Como que você começou a trabalhar e identificar catadores e catadoras pra fazer esse trabalho? Como é a relação com eles?
R1 – Quando a gente fez o primeiro projeto, nesse festival de música eletrônica pequenininho, ali em Ibiúna, interior de São Paulo, a gente entendeu o que a gente queria fazer. Eu já sabia que existiam - por ter estudado, por ter cases e tal – os catadores. A vida inteira em São Paulo viu gente puxando carroça pra catar papelão, garrafa e tal. Então, esse sempre foi o foco da nossa tese de impacto. Naquele momento da minha tese de impacto, a gente está aqui pra reduzir o impacto do lixo, pra melhorar a condição de vida dessas pessoas. Então, isso é fato, né? E aí tinha um outro grande amigo, que é o Dani, que mora hoje também lá nos Estados Unidos, que é ecodesigner, que era meu parceiro ali, o único vizinho que eu tinha ali, ainda que distante, mas que estava mais ou menos no bairro e que a gente interagia e aí, batendo papo, o cara já tinha essa pegada também, de impacto social e ambiental, a gente começou a construir essa ideia no âmbito do evento, primeiro evento que a gente foi trabalhar, de falar: “Espera aí, tem esses catadores que estão aqui no nosso bairro, puxando carroça e a gente sabe que a gente pode formatar um serviço como esse e levar...”. Era um momento muito... 2006, ali, a história era tudo sustentabilidade: era propaganda na TV, era o Banco sustentável, era o sabão em pó sustentável, tudo era sustentável ou queria ser sustentável e aí rolou essa percepção de que o que a gente está querendo fazer aqui, de reciclagem gerar impacto social pra essas pessoas, a gente pode empacotar dentro de uma solução, os eventos estavam querendo coisas novas nessa pegada de sustentabilidade e a gente falou: “Cara, vamos montar, então, uma central que recebe resíduos coletados seletivamente, que o público vai descartar seletivamente, então os caras não vão ter que mexer no lixo. Esse é o nosso conceito. A gente vai pôr altas lixeiras, super bem comunicadas, a gente vai induzir a mudança de atitude das pessoas e, a partir do momento que elas descartam separado o reciclável, a gente leva pra dentro de uma infra bacana dentro do que era possível naquele momento, pra esses caras separarem o material que eles tanto querem e que sobrevivem disso. Mas todo mundo lá dentro do evento está sendo pago: o segurança, o cara do bar. Então, se isso tem valor pra marca que está promovendo o evento, vamos dar um jeito desses caras também serem pagos”. E aí a gente conseguiu, então, batendo na porta dos catadores ali da nossa região, que a gente via os caras circulando nas ruas e sabia que eles vendiam material, conseguiu levar essa proposta: “Vocês querem prestar um serviço pra gente, dentro de um evento? Quero contratar vocês pra prestarem um serviço. Parte desse serviço eu vou pagar vocês em dinheiro, pelo serviço e vocês ainda vão ficar com o material que vocês conseguirem salvar aí, desviar o lixo. Ou seja: separar pra reciclagem”. E aí então aquilo deu ultra certo, muito certo, a gente entendeu que a gente estava fazendo o que hoje a gente chama de pagamento por serviço ambiental, que ainda é um pleito para os catadores, ainda não conquistado. A gente estava fazendo sensibilização e engajamento do público pra mudança de atitude, quando a gente interagia e não era: “Joga tudo no lixo que eu separo depois”, era: “Não, descarta seletivamente, de maneira adequada, no contentor certo” e a gente estava olhando pra processos produtivos, que é o que a gente faz todos os dias aqui: como é que eu faço esse cara conseguir separar maior quantidade possível de reciclável com o mínimo esforço? E aí, então, foi isso que a gente testou primeiro ali naquele festival de música eletrônica que eu falei, em Ibiúna, deu certo e a gente levou um contato que a gente tinha numa agência de eventos, pra dentro de um grande evento, o primeiro grande evento, que era o Planeta Terra Festival, do portal Terra. Vinham 15 bandas por ano tocar no Brasil e fazer esse festival e a gente começou a montar, então, essas operações de reciclagem lá dentro e acabamos, naquele momento, ficando famoso pela exposição midiática que isso dava, o quanto isso reverberava com o público. Fizemos vários disso, até que a gente começou a se desanimar com a história de eventos e foi, então, pivotando pra coisas mais sólidas, de impacto menos transitório. Primeiro falando de empreendimentos, loteamentos residenciais, com escolas e aí hoje fazendo o que a gente faz, que é levar exatamente aquele conceito, mas pra municípios. É ajudar a implantar coleta seletiva e reciclagem de impacto social e ambiental em cidades brasileiras, por meio do fomento da política pública da reciclagem. É isso que a gente faz hoje.
P1 – Qual foi o primeiro município que vocês conseguiram implementar esse trabalho e como é que foi? Conta como é que você conseguiu, nos detalhes.
R1 – Foi assim: na real, a solução nasceu também de uma maneira muito empírica. No mercado de eventos, na época de eventos, a gente conhecia um cara que foi fazer uma festa de final de ano em Jericoacoara, uma festa de réveillon. Foi super bem sucedido, ganhou uma grana ali, mas acabou deixando pra trás um rastro de lixo dentro da Vila de Jericoacoara, garrafas long neck pra caramba, tal. E aí a sociedade empresarial e o Conselho Comunitário local de Jericoacoara levantou a mão e falou: “Cara, você está de brincadeira. Vocês vêm aqui, ganham grana e largam lixo num parque estadual como é o parque de Jericoacoara? Não tem a menor condição”. E começaram a pressionar os caras e querer vetar os próximos eventos deles. E aí esse cara lembrou de mim e falou: “Meu, eu estou com uma crise ambiental ali no lugar onde eu quero empreender, quero ganhar a grana, que está dando certo e o fato de eu ter deixado o lixo pra trás, eu preciso fazer alguma coisa pra compensar isso”. Aí ele queria comprar, doar uma lixeira, fazer alguma coisa assim e eu o convenci e falei assim: “Cara, leva a gente pra lá, pra eu dar uma olhada o que está acontecendo ali e te dizer o que você deve fazer. O dinheiro que você tem é pouco pra fazer alguma coisa substancial, então acho que você deveria investir em inteligência. Leva a gente pra lá e a gente pensa no que pode ser feito”. Ele topou, levou o Rafa, que é meu sócio na Recicleiros e eu, pra Jericoacoara, a gente conheceu a vila, as vulnerabilidades e lá a gente entendeu, já conectando com conhecimento que a gente já tinha, que estávamos empreendendo na área já há alguns anos, a gente pegou e falou assim: “Isso aqui só vai dar certo se a gente conseguir construir uma política pública pra isso. Se a gente não construir a base, a regulamentação em nível municipal, tiver um plano, qualquer coisa que a gente fizer vai durar dois, três meses, um ano e não vai dar nada em nada depois”. E aí, então, a gente fez essa visita, criou um plano e propôs pra galera de lá, de Jericoacoara, pra esse empreendedor e pra vila como um todo, o Conselho Empresarial, que Jericoacoara deveria investir em desenvolvimento de um plano de coleta seletiva e, com esse plano em mãos, a gente conseguiria trazer dinheiro pra implementar. Fizemos isso, deu certo, a gente implementou a coleta seletiva num dos lugares mais improváveis do Brasil, porque Jericoacoara é uma vila além duna, então a logística é muito complicada, a viabilidade econômica é muito baixa, mas com esses elementos a gente conseguiu mostrar que era possível fazer; que, se a gente tivesse um projeto com essas características, a gente atrairia recursos do setor empresarial, recurso privado, pra implementar e que aí estaria um elemento que todos estavam buscando há algum tempo, que é a cooperação entre poder público e poder privado, na solução do problema dos resíduos no Brasil e que é previsto em lei que a responsabilidade é compartilhada. Então, a gente acabou criando uma solução de implementação de uma política pública de economia circular ali em Jericoacoara e isso trouxe uma grande exposição pra Recicleiros, empresas começaram a olhar pro nosso método e jeito de fazer e dizer: “Quero ajudar vocês a levarem isso pra outros lugares”. De lá pra cá, eu estou falando de três anos, a gente está em 16 cidades agora, nas cinco regiões do Brasil, da região norte a região sul. Muito mais do que a quantidade de cidades, a maturidade que hoje o projeto se encontra e o poder de escala e de replicabilidade que ele tem, o poder que a gente tem por ser uma ONG, uma organização sem fins lucrativos, de compartilhar esse conhecimento com outras organizações e é pra isso que a gente se dedica todos os dias aqui: a produzir conhecimento que realmente possa gerar uma mudança de cenário no nosso país. Mudança do cenário da inclusão socioprodutiva dos catadores, da qualificação da gestão pública, que faz isso muito mal no país ainda. Existem interesses muito escusos dentro da gestão de resíduos no país. Existe uma ineficiência gigantesca ainda. O trabalho do catador é expropriado. Os caras trabalham pra bancar externalidades que não competem a eles. Então, existe um cenário ainda muito rudimentar e os modelos que a gente desenvolve, muito mais do que falar: “De cinco mil e quinhentos e setenta municípios, a Recicleiros está em 17”, não é essa a questão, né? A gente está desenvolvendo modelos resilientes, a gente está atuando muito forte em advocacy, em nível federal, estadual, municipal, pra criar condições pra que, aí, esse modelo seja replicado. Então, a nossa batalha diária é essa, é convencer as empresas que têm que fazer logística reversa, que elas não têm que pensar no dia de amanhã apenas e fazer investimentos tão de curto prazo e tão pontuais. Então, a gente precisa pensar nisso de uma maneira sistêmica, a gente precisa pensar em economia circular de verdade e propiciar a circularidade dessa economia. Então, a gente está dedicado a isso. Somos ainda uma startup, apesar de 13 anos, a gente está sempre em versão beta, tentando criar o novo e a gente tem visto bastante do que a gente faz ser replicado por ali, acho que esse é o melhor indicador de que a gente está indo bem no caminho que a gente se propôs.
P1 – Você tem algum caso pra contar, assim, de uma relação com algum catador ou catadora? Lembro que na outra entrevista você chegou a falar.
R1 – A gente tem algumas várias, em diferentes âmbitos ali, desde gente como o ‘seu’ José Angélico, ali do Mato Grosso do Sul, que era um cara de vinte anos de catação nas ruas e lixões e que se tornou coordenador de produção da planta de Naviraí, no momento que ele teve a oportunidade de mostrar o trabalho dele e de também evoluir em âmbitos, conhecimentos que ele nunca tinha tido. O cara tem filhos catadores por admirarem o trabalho do pai ao longo da vida. E que aí estavam vendo o cara trabalhar em um lugar digno, com outro reconhecimento. A gente tem casos, aí eu não vou citar nomes aqui, mas de uma catadora que era egressa do sistema carcerário, que ali, com vinte e poucos anos, meio que não tendo oportunidade... é muito importante a gente pensar nisso. É muito fácil a gente recriminar as pessoas, fazer como o nosso presidente se promove, né, com o fim da criminalidade e a criminalidade é tirar o moleque do farol, que rouba correntinha de ouro ou um furto como esse, achar que isso é combater a criminalidade. Só quando você se põe do lado ou dentro da história de uma pessoa que não tem perspectiva, porque mais do que não ter grana, como eu passei momento de aperto na minha vida, mas sempre tive perspectiva. Eu sempre tive acesso a oportunidade de sonhar onde eu poderia chegar e isso acalma qualquer coração. Quando você não tem, você tem vinte anos e tem filho pra alimentar dentro de casa e você vê que você não vai sair daquele lugar, é muito fácil tomar decisões que você não tomaria em outras condições. E aí é o caso dessa menina, que acabou participando de tráfico de drogas, foi pega, foi presa e aí, por conta disso, ela nunca mais arrumava emprego, porque você é egresso do sistema carcerário. A gente tem treze milhões de desempregados, por que eu vou dar emprego pra uma pessoa que foi presa? O mercado é muito preconceituoso e esse é o bacana das organizações de catadores, porque são postos de trabalho muito inclusivos. Ali a gente consegue ter representantes das minorias que realmente sofrem a exclusão social no país. Eu estou falando de todas essas minorias: do egresso do sistema carcerário, do transexual, do negro, do idoso, do negro idoso, da negra idosa, mulher negra idosa, tudo isso que você começa a imaginar o quanto é difícil pra uma pessoa dessa ter trabalho, ter renda. Então, nesse caso, voltando ao caso da menina, dessa catadora, ela não só arrumou emprego, como foi identificada como uma liderança incrível lá dentro da cooperativa e o potencial dela todo dia sendo reconhecido por nós, pelos colegas catadores, fez com que ela simplesmente caísse num momento de reflexão e falasse: “Espera aí, eu estou percebendo que eu sou muito mais do que aquilo que eu acreditava que eu poderia ser” e ela saiu da cooperativa, pra se dedicar à carreira de professora, voltar a estudar e realizar o sonho de ser professora, que ela achou que ela não tinha capacidade de fazer isso. A gente tem um outro caso de uma presidente de cooperativa transexual que nunca tinha tido oportunidade de trabalho formal, então trabalhou com o comércio do sexo, naquela região ali fronteira do Paraguai com o Brasil e tal e que, no nosso processo seletivo, com as premissas e parâmetros que a gente adota, pra montar o grupo de trabalho, o fato dela ser quem ela era não era um impeditivo. Ela foi incluída no grupo, ela é presidente da cooperativa, tem um orgulho gigante, tem aquela cooperativa no coração e é isso, tem as suas limitações de formação, de hard e soft skills, mas cara, põe o coração na frente da bala por aquele grupo de catadores e vem se qualificando, aprendendo, treinando e a gente consegue fazer com que a mobilidade social dessas pessoas aconteça de uma maneira efetiva. Acho que são algumas das histórias representativas, além de tantas outras, como a própria história do Cris, ali da Recifavela, que eu espero que vocês conheçam, mas que é um baita líder comunitário, um cara absolutamente comprometido com aquela comunidade e também já passou por barras pesadas ali e conseguiu ser um bom presidente de cooperativa, um bom representante, como vocês vão conhecer. Então, são muitas histórias. Eu poderia contar mais umas 15, 20, aqui, se a gente tivesse tempo pra isso.
P1 – Conta mais uma.
R1 – Contar mais uma? Puts, vou contar, então, aqui, acho que uma história bacana que a gente tem, também... quer dizer: bacana, né? Eu contei algumas de superação, mas vou contar outras de dificuldades aqui, de uma outra catadora que, nesse processo seletivo, a gente busca sempre identificar aquelas pessoas mais vulneráveis nos territórios, que mais precisam de trabalho e renda, mas que sejam pessoas que tenham as mínimas condições de desempenhar as atividades que, afinal de contas, é uma fábrica, é uma planta produtiva, então a gente precisa identificar algumas dessas capacidades. E aí a gente teve uma dessas pessoas, a Meire, que ia bem ali, mas a gente percebia que tinha alguma questão que ia além do ambiente de trabalho e que ela não falava, que ela não se expressava, não se comunicava. A gente via o reflexo de alguns desses indícios no trabalho do dia a dia e aí, um certo dia, ela não apareceu pra trabalhar, ninguém sabia dela, onde ela foi parar, tal, será que ela está em casa? Liga pra ela. Pô, mas o telefone não toca etc e tal. Pô, vamos até a casa dela, então, vamos ver se está tudo bem, porque ela não costuma faltar. Absolutamente comprometida. E aí, quando chegaram ali na casa dela, a encontraram desmaiada no chão do banheiro, nua, naquela situação super delicada e vulnerável e aí, o que o pessoal foi constatar depois, aprofundando um pouco mais, trocando um pouco mais de ideia, é que a falta de comida era tão grande dentro de casa, que naquele dia a Meire desmaiou de fraqueza, porque como o lanche era de manhã, na cooperativa, naquele dia talvez não tenha jantado no dia anterior ou sabe-se lá há quanto tempo ela estava se alimentando mal e aí, quando ela foi fazer exames, a gente viu que ela estava numa situação muito delicada de saúde, muito frágil. E eu conto essa história porque ela serve pra gente ver quem são as pessoas vulneráveis do Brasil de verdade, né? Pessoas que não estão comendo ou não estão comendo direito ou que deixa de comer pro filho comer e a gente fala disso, a gente olha pra isso, ao mesmo tempo que a gente faz o difícil exercício aqui de não se posicionar e não atuar como uma organização de assistência social, com viés assistencialista. A gente engole isso seco, cria condições, mas de inclusão socioprodutiva e desenvolvimento profissional dessas pessoas. A gente tem um modelo que não é de assistência social. A gente dá suporte social pro desenvolvimento dessas pessoas, mas a gente tem muito forte essa questão que as pessoas precisam ser capacitadas e precisam ter autonomia pra exercer as funções que elas precisam exercer, senão a gente não faz o impacto que a gente se predispõe a fazer aqui. Só assistir pessoas não é o que a gente quer. A gente quer criar perspectiva e essa é a nossa preocupação. Também não é criar um galpão, colocar um monte de catador ali dentro, pra ficarem dez, vinte anos ali, vivendo a mesma rotina todos os dias. Então, a gente vai no limite da vulnerabilidade e da fragilidade dessas pessoas, pra tentar criar um caminho, pra que elas possam chegar num outro patamar social, num outro patamar de segurança do que elas têm hoje. Então, acho que essa é uma outra história que reflete muito o tamanho do desafio que a gente tem ali na ponta, como é difícil fazer com que isso seja um empreendimento, que atinja metas, que tenha segurança operativa, que tenha governança, sendo que no final de contas, a gente está fazendo isso para o público mais vulnerável e a gente tem que lidar com essa condição. Então, eu acho que isso, ao mesmo tempo que estimula, é um desafio gigantesco e acho que é por isso que estimula tanto, porque é muito difícil, não é nada fácil.
P1 – Eu acho que deu conta, Erich, porque como a gente tem a sua entrevista na íntegra, eu acho que já vai dar pra editar um vídeo e daqui dá pra editar, está registrado também.
R1 – Legal.
P1 – Mas é incrível, que é uma coisa que a gente sempre fala no Museu: se você demorar um mês pra contar sua história... certamente isso aqui, outro tempo, você vai lembrar de outras questões.
R1 – Com certeza. A gente não faz um roteiro, né? Então, a gente vai soltando o que vem na mente, no coração, naquela hora.
P1 – Memória seletiva. Olha, Erich, super obrigada! Eu vou falar com o Von hoje mesmo e aí, de qualquer maneira, essa documentação, a autorização a gente precisa pro Museu...
F1 – Já assinei, está assinado, está com ela.
P1 – Então ok. Pode ficar tranquilo que não vai acontecer nada sem a gente te consultar, só vai pra Colgate com o seu consentimento, mediante as condições que você já colocou.
R1 – Beleza, Rô, então fico à disposição, qualquer coisa que eu possa ser útil, me dá um toque e a gente se fala em breve.
P1 – Pode deixar. Foi super legal! E pode deixar que, se a gente conseguir alguma coisa em relação a sua entrevista, vai conseguir pros outros dois que você está indicando.
R1 – Massa. Legal demais.
P1 – Se derem depoimento, claro.
R1 - Tá bom, valeu, obrigado, parabéns pelo trabalho e um beijão pra vocês!
P1 – Obrigada, querido! Obrigada!
R1 – Um grande abraço.
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