Nesta terça- feira de muito sol em São Paulo eu penso no cinegrafista da Band Santiago Ilídio Andrade, 49 anos, morto atingido por um rojão nas manifestações do Rio de Janeiro. Quanta indignação! Fiz 50 anos o ano passado, poderia ter sido eu ali. Eu digo basta! Basta! Basta! Nossa guerrilha...Continuar leitura
Nesta terça- feira de muito sol em São Paulo eu penso no cinegrafista da Band Santiago Ilídio Andrade, 49 anos, morto atingido por um rojão nas manifestações do Rio de Janeiro. Quanta indignação! Fiz 50 anos o ano passado, poderia ter sido eu ali. Eu digo basta! Basta! Basta! Nossa guerrilha era a palavra, a poesia falada. O meu reino é ainda o das malocas, o das favelas cibernéticas. E nesse reino somos todos bobos da corte.
Devo voltar no tempo, à mesma foto desbotada, nós de mãos dadas no parque do Ibirapuera. Nós em Preto, Branco e Azul Também. Meu pai havia sido assassinado anos atrás, traumatismo craniano, uma paulada na cabeça em uma noite de natal. Minha família desmoronou neste dia. Fiquei um período em Minas. Na volta no trajeto da estação Jabaquara para casa foi que me encontrei com Pedro, Um negrão alto de sorriso largo, amigo meu de tantos anos, Comuniquei-lhe que havíamos marcado uma reunião com poetas que eu havia conhecido por acaso num sarau no centro cultural do nosso bairro. Eu e Pedro tantas vezes voltando da escola, falávamos os nossos poemas um para o outro. Vamos sim, disse Pedro.
Os Gobiras, os primos Henrique e Ailton eu havia conhecido lá no sarau, eles me acompanhariam depois por muito tempo. Eu que já havia sido membro da Academia Juvenil de Letras da biblioteca Monteiro Lobato. Havia escrito: Há pessoas nas calçadas... Pessoas donas de nada...
Estava desempregado, a família desequilibrada pelo assassinato do meu pai. Eu não era dono de nada. Passava o dia à toa, à toa... Que a vida é boa! É boa! Foi em um dos primeiros poemas que escrevi que continha esta frase. Ser poeta não tem escolha, fazer poesia não tem querer.
Apareceram também Marcos e Lucinha, ainda havia a turma da academia Cíntia e a sua irmã que eu não lembro mais o nome. Henrique que chegou com Adriana, lhe proclamando sua musa. E o Moa com seu jeito brejeiro de ser, inteligente, fluente nas palavras. Era uma turma de peso. Paul o mais velho e meu amigo recente se tornaria naturalmente nosso líder. Foi ele que cunhou este nome: Preto, Branco e Azul Também. De teor tão surrealista. Éramos então dadaístas de um novo tempo, tropicalistas dos anos 80, antropofágicos do século XX.
Vou e venho nestes trajetos da memória. Tudo se tornava muito urgente. Era necessário estudar mesmo sem estar na escola. Formamos então uma roda de estudo. Tema principal Poesia: Ezra Pond, Octavio Paz, Pablo Neruda. Torquato Neto, Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski. E tantos outros, e os nossos próprios poemas engatinhando, tomando forma. E as nossas dúvidas tão latejantes.
Um dia resolvemos juntar um monte de sucatas para produzir um som, investigar sonoridades. Compor poemas, canções, colagens, antes e depois fumar um baseado: esta era a regra básica, o que era proibido nos ensaios pelo Paul Marques que se tornara o nosso diretor. Mas neste laboratório, digamos assim, foi aberta uma exceção.
Hoje pela manhã fui a minha casa, cuidar dos meus cachorros: Nina, Beethoven e Mozart.
Noite passada no apartamento da Ana havia me lembrado de alguns fatos. Em casa no ateliê procurei a foto do grupo, e lá estava ela. Ailton Gobira bem à frente, paletó, fitas esvoaçantes na lapela, num gesto grave, e logo atrás o restante do grupo todos de mãos dadas, o público em volta, incluindo crianças, nos observando. Esta era a nossa barricada de palavras falada. Era assim que nos manifestávamos sem o uso de bombas.Recolher