Ponto de Cultura
Depoimento de Ângela Diva Esquiabel Majolo
Entrevistada por Cláudia Leonor e Vanuza Ramos
São Paulo, 28/08/2008
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV 145
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Dona ngela, v...Continuar leitura
Ponto de Cultura
Depoimento de
Ângela Diva Esquiabel Majolo
Entrevistada por Cláudia Leonor e Vanuza Ramos
São Paulo, 28/08/2008
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV 145
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Dona
ngela, vou pedir para a senhora repetir o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Doze de agosto de 31. Meu nome é
ngela Diva Esquiabel Majolo e o local onde eu moro? Rua Aspicuelta, 326.
P/1 – A senhora estava falando que recebeu o nome da sua avó, né?
R – É, a minha avó se chamava
ngela, − por parte do meu pai, a mãe do meu pai − eu me chamo
ngela e minha neta se chama
ngela, e está continuando.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – É José Esquiabel e minha mãe é Carmela Moreto Squiabel.
P/1 – E o que a senhora sabe da história deles? Porque eles não nasceram aqui no Brasil, né?
R – Não, nasceram lá na Itália.
P/1 – Então conta pra gente essa história?
R – Eles vieram de navio, vieram as duas famílias.
Minha mãe veio com cinco anos, o meu pai era um pouquinho mais velho. E vieram os dois, vieram trabalhar numa fazenda de café aqui no Brasil, cresceram e se conheceram aqui no Brasil, namoraram e casaram. Eu não sei muito do meu pai, porque eu era muito nova quando ele morreu, mas eu sei que eles tiveram nove filhos e quando eu tinha 15 dias ele morreu. Aí minha mãe ficou lutando sozinha, sozinha e com os filhos mais velhos que ajudavam. Trabalhavam na roça, tinha sítio, porque da fazenda onde eles trabalhavam no café, eles vieram de lá e foram trabalhar de colonos. Aí resolveram comprar um sítio, foram... As duas famílias compraram um sítio. Lá ele desmatava − porque era tudo mato − e levava até uma cidadezinha muito longe, só dava para ir por um trilho assim... Não tinha estrada, não tinha nada para poder com o dinheiro da madeira, eles compravam alimentos até conseguir plantar, e assim foram indo, aí casaram, tiveram filhos.
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa para a senhora: que região eles estavam morando, que era essa fazenda?
R – Essa fazenda, meu Deus! Eu sabia que minha mãe sempre falava, mas agora eu não lembro onde.
P/1 – Perto de algum lugar? Se não lembrar não tem problema.
R – Agora o sítio eu sei.
P/1 – E o sítio era onde?
R – Pertencia a Conchal mesmo, mas era meio retirado, não era muito perto não. Lá era por bairro, cada lugar, cada sítio tinha um nome, então eles compraram lá para plantar café, porque plantaram muito café, plantaram todas... Arroz, feijão, milho, café e lá continuaram a vida.
P/1 – E as famílias, elas eram amigas?
R – Eram amigas lá e vieram da Itália...
P/1 – De Bolonha?
R – É. E aí cresceram, casaram dois irmãos, um e uma irmã com... Trocaram... Da família casaram assim, ficaram mais na família ainda. E foi assim, sempre morando perto, porque compraram o sítio perto, então até eu, quando eu tinha... Que eu me lembro de menina e tudo, morava perto dessa minha tia, do meu tio, porque meu pai morreu e depois eles foram orientando as crianças para trabalhar e tudo. Onde a minha mãe foi criando os filhos.
P/1 – E o que a senhora se lembra da infância da senhora?
R – Olha, eu só lembro que era muito difícil, tinha coisa boa também, eu ainda fui a mais assim... De criança fui mais paparicada, porque eu tinha irmãos, todos mais velhos, eles tinham dó porque eu não tinha pai. Só que lá para estudar era muito difícil, eles aprenderam pouco, coitados. E eu para ir à escola ia a cavalo, porque era longe e não tinha como. Meu irmão foi e arrumou um lugar para deixar o cavalo, eu ia, deixava o cavalo e ia a pé para escola, que era perto, e lá a gente estudava. Era até o terceiro ano só, era tudo junto. Era assim: primeiro ano, segundo ano e terceiro ano, mas tudo numa escola só e uma professora só.
P/1 – A mesma sala?
R – A mesma sala, ela ensinava assim, era só uma professora que ia lá.
P/1 – E como ela organizava a aula?
R – Ela organizava por carteira, assim: primeiro ano punha tudo junto, o segundo punha junto e era assim, o terceiro era outro e ela ia ensinando um pouco de cada um, era difícil, viu? Não era igual agora que tem... Que é muito bom. E era uma dificuldade para ir à escola, o meu marido, por exemplo, coitado, morava em sítio e trabalhava, tinha que trabalhar porque era dos primeiros filhos. Então eles faziam assim: um dia ia um e o outro ia trabalhar e no outro dia o outro ia à escola e o outro ia trabalhar, olha o sacrifício.
P/1 – E dona
ngela, quanto tempo a senhora levava de cavalo para sair de casa e ir até a escola? A senhora lembra?
R – Eu levava, acho que quase uma hora, quer dizer, não matando o cavalo, né? Meu irmão falava: “não vai muito rápido, porque... Vai mais devagar” mas era longinho, depois tinha que pôr o cavalo lá. Mas o cavalo, quando eu saía da escola, ia no pastinho onde ele estava, ele me via e vinha correndo me encontrar, como se dissesse: “é hora de ir embora, né?” No fundo era gostoso, sabe?
P/1 – Era como um companheiro pra senhora, né?
R – Era, porque eu andava muito a cavalo no sítio.
P/1 – Como se chamava esse cavalo?
R – Era... Meu Deus, como chamava? Era um branco grandão, mas...
P/1 – Se a senhora não lembrar, não tem problema.
R – Não lembro agora, não é que eu não lembre, eu sabia bem, mas tem hora que some, a gente passa por tanta coisa, né?
P/1 – A senhora não tinha medo de andar a cavalo?
R – Não, é que eu estava acostumada, eu ia fechar... Aí nessas alturas, graças a Deus, a gente já estava melhor, a fase pior tinha passado e a gente tinha muita vaca de leite, meus irmãos tiravam e mandavam para a cidade. E a noite os outros iam trabalhar na roça e eu era encarregada de fechar todos os bezerros para de manhã tirar o leite. Então eu ia a cavalo trazer as vacas e separar os bezerros e deixar fechadas. As vacas a gente soltava de novo, porque elas de manhã vinham sozinhas, porque o bezerro estava preso.
P/2 – Você tinha quantos anos mais ou menos nessa época?
R – Ah, eu tinha... Eu era nova, eu estava fazendo o primário e já andava a cavalo. Assim, o primeiro ano eu acho que eram uns oito anos que eu tinha, porque naquela época a gente entrava um pouco mais tarde, não era igual aqui que com sete anos já está... Eu tinha uns oito anos quando eu comecei a andar a cavalo, eu fazia todo serviço de... Eles me encarregavam e eu ficava em casa, ia ajudando. Tinha outra pessoa que... Porque minha mãe, coitada, sempre foi meio doente, então a gente... Lá eu vou dizer a verdade, minha mãe era respeitada, até que ela criou os filhos, ela trabalhou muito, mas depois pra gente... Então ela não fazia serviço pesado não, só era mais a outra... Nessa altura meu irmão casou e a mulher dele... Porque lá era assim, casava e ficava morando tudo junto.
P/1 – Não separavam?
R – Não, casava o primeiro filho, ficava junto, o segundo ficava junto, o terceiro ficava junto. Depois vinham os filhos deles e aí começava... Cada um ia arrumando a casinha deles, mas no começo ficavam todos junto com os pais, né?
P/1 – E o que a senhora se lembra dessa casa, da primeira casa de infância da senhora?
R – Ah, eu me lembro da minha casa... Era tão gostosa assim, a minha infância, era uma casa grande com bastante quartos, sala... Só que era bem simples, era casa de sítio, né? Mas era casa de tijolo, não era casa... Agora, a minha (mãe?), quando veio da Itália que ela foi comprar o sítio. Eles foram morar em uma casa que tinha... Que eles faziam de barro, sabe essas casas que a parede não é de tijolo? Era assim. Eu não, na minha infância já era uma casa boa que eu morava.
P/1 – E onde vocês passavam a maior parte do tempo? Tinha uma cozinha grande que as pessoas almoçavam? Como é que era isso?
R – Tinha uma cozinha grande, uma mesa enorme, aquela mesona com aquelas cadeiras, era muito gostoso. E muitas árvores, tinham muitas árvores perto da casa, tinha pé de manga, tinha bastante fruta. Eu tive uma infância boa depois, porque era alimento bom, porque minha mãe fazia pão... Minha mãe não, era mais minha cunhada, mas era ela que orientava. Era pão, matava aqueles porcos, o meu irmão matava um garrote a cada pouco tempo para a gente pegar a carne. Separava... Era assim, para duas ou três famílias “vou matar um boizinho” aí repartia a carne. De porco não, matava porco para fazer linguiça, hoje a gente não faz linguiça, né? Mas a linguiça que meus irmãos faziam lá, era a coisa “mais boa” que... Era muito gostosa, porque era muito temperadinha, era bem boa.
P/1 – Como é que fazia a linguiça? A senhora aprendeu?
R – Moía a carne e moía também um pouco de toucinho, pouquinho o toucinho, não era muito. Misturava e temperava com bastante alho, sal, um pouquinho de pimenta do reino e aí mexia bem essa carne. Pegava... Eles compravam... Tinha uma tripa que fazia a linguiça, aí eles punham numa máquina, ia soltando a carne e enchendo, e amarrava as duas pontas. Eles punham um pau e penduravam tudo para deixar escorrer, porque sempre a linguiça fresquinha, ela escorre. Mas era muito gostosa, muito boa. Aqui a gente compra... Eu sempre falo: “eu quero comer uma linguiça igual tinha”, mas... Meus irmãos ficaram, porque eles tinham açougue e eu mudei para cá. Eu voltava para lá, meus irmãos continuaram fazendo, para vender mesmo. Eles vendiam a carne e vendiam a linguiça, vendiam tudo lá no açougue deles. Hoje morreu todo mundo, sabe quem ficou? Só eu, sobrou só eu.
P/1 – E dona
ngela, tinha fogão à lenha?
R – Fogão à lenha. Tinha forno de fazer pão... Não dentro de casa, porque o fogão à lenha era enorme e eles fizeram um puxado... Tinha um puxado e lá fizeram o forno de fazer pão, assim quando casava uma... O meu casamento também foi todo mundo, eles faziam o jantar e tinha uma tia minha que era cozinheira, é dessas que casaram da família lá... Porque meu avô era cozinheiro.
P/1 – Ah é? Profissional?
R – É. Ele então ensinou essa minha tia e quando ele morreu ela ficou, aí ela fazia... Assava os frangos todos nesse forno, era a coisa mais gostosa a comida que ela fazia para casamento. Os casamentos do pessoal lá, ela ia cozinhar. Mas no forno minha mãe fazia pão doce, fazia pão salgado, tudo feito em casa, não era comprado nada, porque era longe e para ir tinha que ser de cavalo. Então eles compravam a farinha, o ovo tinha, o leite tinha, manteiga tinha − que eles faziam − e então eles faziam tudo em casa.
P/1 – E dona
ngela, tinha comida italiana? Como é que era isso?
R – Ah, era comida italiana mesmo, igual aqui. Macarrão... Era de tudo, e a gente comia menos feijoada, que lá não se fazia muita feijoada não, mas fazia... A comida era bem normal, lasanha, nhoque, tudo que a gente come aqui, nós fazíamos lá também. Só que lá era tudo na mão, abria com rolo bem fininho pra depois... O macarrão era cortado à mão, assim picadinho com a faca, enrolava e aí ia cortando. Hoje em dia tem máquina pra tudo, naquela época não tinha não.
P/2 – E esse avô da senhora veio também para o Brasil? Esse que era cozinheiro?
R – Ele veio, mas eu não sei muita coisa dele não, porque ele morreu logo e também eu era pequeno, quem falava mais era meu pai. Eu falo o que eles me contavam, mas ele veio também, porque veio a família, o pai, a mãe desse meu tio, o pai e a mãe da minha mãe. Então eles vieram todos de lá.
P/1 – E eles falavam por que tinham vindo para o Brasil?
R – Ah, porque diz que lá não dava para viver, estava muito difícil, eles quiseram tentar uma vida melhor. Eles fizeram a vida, mas trabalharam. Tiveram bastante sítio depois, não foi só um que eles compraram, foram trabalhando, trabalhando e foram comprando mais. Então meu tio não aceitava que a gente falasse... Começava a falar em português, tinha que falar em italiano primeiro, ele ensinava a criançada toda a falar italiano − porque em casa a gente falava − e depois ele falava: “na escola vocês aprendem português porque aqui em casa vão aprender italiano.” Então a gente aprendeu, de pequeno, tudo italiano. Agora hoje se você pede para mim, eu não sei nem falar mais, porque parei.
P/1 – Mas em casa, no ambiente familiar, era tudo italiano?
R – Era tudo italiano. E meu marido era italiano, de família italiana também, só que eles falavam um pouco diferente da minha língua, porque eles eram de outro lugar. Eram de pele mais morena, o cabelo castanho, eu não sei falar, porque do meu marido eu não sei muito de onde eles eram, sabe? Os avós dele todos vieram da Itália também... É uma vida meio dura, mas sei lá, a pessoa quando quer trabalhar, trabalha, né?
P/1 – E tinha brincadeiras, dona
ngela? A criançada brincava na rua, na fazenda? Brincava de quê?
R – Brincava de tudo, de roda, de boneca, brincava de tudo. Mas era assim, por exemplo, eu tinha meu irmão, minha irmã e eu, tudo assim numa... E meu tio e minha tia tinham mais três, quase da mesma idade. Quer dizer, éramos seis. A gente ia pescar, a gente ia... Olha, tudo a gente fazia lá no sítio... Balanço: pegava na árvore e punha lá aquelas cordas, fazia balanço e ficava balançando. Era muito bom, sabe? Eu tenho dó das crianças daqui, elas ficam muito presas dentro de casa, a gente não, a gente tinha uma infância boa, brincava, se divertia. Agora as crianças, coitadas, não têm como brincar, né? Ainda mais que moram em apartamento, coitadas ficam presas.
P/1 – Mas vocês faziam artes? Traquinagem, na época?
R – Fazia minha filha, “ih”, de monte.
P/1 – A senhora se lembra de uma traquinagem boa?
R – Eu até não fiz muito, mas eu até hoje eu tenho um dedo que não tem unha.
P/1 – Por quê?
R – Porque na brincadeira... Porque os outros iam brincar naquela tábua − que é uma gangorra − e eu não aceitava, eu falei: “então vocês não me deixam, eu fico no meio” fui no meio assim, do pau, né? Aí subi e pus o pé em baixo, e até hoje eu não tenho mais a unha, nunca mais nasceu a unha do meu dedo. Era demais, a gente fazia muita arte, muito, muito. O meu irmão pegava e ia... Porque no sítio as galinhas põem tudo no meio do mato. Ele ia lá, pegava os ovos e jogava tudo para o alto para ver cair. Então minha mãe ficava louca, porque ele estragava todos os ovos. A gente fazia muita brincadeira, uma porção de criança junto, você já viu, né? Nós não morávamos na mesma casa, morava eu numa casa e a minha tia em outra, mas era tudo junto bem pertinho, então a gente ficava muito... Tanto que as minhas primas... Eu tenho prima viva que é como se fosse irmã para mim, não é prima. Mas a gente se divertia, eu fiz muita arte, meu Deus! Eu fazia muito, uma vez eu e a minha prima, a gente fazia bolinha de... A gente ia lá no rio e tinha um barro vermelho e outro branco, então a gente fazia bolinhas e deixava secar no sol, o meu irmão... Eu não fazia isso, mas o meu irmão com estilingue ia matar passarinho, sabe? Porque ele e os outros meninos eram “tristes”. Aí eu ia atrás da minha tia, dentro de casa. Minha tia ia fazer café e lá a gente fazia café com chaleira, sabe aquela chaleirona de água? Minha tia tirou do fogão e eu correndo atrás da minha prima por causa das benditas bolinhas que nós tínhamos posto para secar, e bati a cabeça na chaleira, caiu em cima de mim, me queimou toda. Disso eu lembro bem, porque eu sofri muito, e você pensa que eles levavam ao médico lá? Era tão longe que eles não iam. Então minha mãe, coitada, punha folha de bananeira, aquela folha bem molinha; ela ia pondo, aquilo esquentava e ela punha outra, mas ficou marcado até, porque era água fervendo. Lá a gente colocava o açúcar na água, porque a gente não usava o açúcar branco, usava aquele mascavo, então punha dentro da água para coar o café e caiu em cima de mim com açúcar. Do jeito que a minha mãe tirou o vestidinho saía toda a pele junto da queimadura. A gente fazia traquinagem, viu? Brincadeira fazia de monte.
P/1 – Nadava no rio?
R – Nadava no rio, pescava também, pescava sabe com o quê? Com peneira. Você pensa que a gente ia assim... É nada, a gente pegava peixe pequeno com aquela peneira. Enfiava em baixo, puxava, e os peixes ficavam na peneira. A gente levava alguma coisinha para jogar pra eles, eles vinham pra... Tinha bastante peixe lá e a gente pegava peixe assim, peixinho, não eram aqueles grandes, eram lambaris bem grandes “assim”, a gente pegava.
P/1 – E levava para comer também?
R - Levava, limpava e fritava. Passava na farinha, salgava bem, passava na farinha e fritava e ficava uma delícia. Ah, eu aprendi a fazer tudo, graças a Deus. Eu sei fazer macarrão, eu faço macarrão em casa, até hoje eu faço em casa, faço lasanha, faço canelone, faço tudo. Tenho a máquina, eu não estico. Aí eu tenho a máquina de macarrão, faço espaguete, talharim, tudo em casa, eu acho muito mais saudável, você põe água e põe essa massa fresca, ela sai branquinha, não sai uma sujeira na água, não sai assim... Parece aquela farinha, né? O macarrão fresco não deixa isso não, o que eu faço.
P/1 – Deve ser uma delícia, né?
R – É muito bom.
P/1 – E o molho de tomate?
R – Ah, o molho de tomate...
P/1 – Você também faz em casa?
R – Faço em casa também. Agora nós não estamos comprando muito, mas nós chegávamos a comprar caixas de tomate fechadas e fazíamos o molho. Guardava no freezer e aí você ia usando.
P/1 – Guardava no freezer, né? E lá na fazenda como guardava aquilo tudo? Não tinha geladeira, né?
R – Lá não, lá nós não guardávamos muito não, porque lá nós não tínhamos nem geladeira, então a gente fazia e não ia guardando. Agora as carnes sim, eram salgadas e guardadas. Por exemplo, como a gente fazia banha também, tudo o que a gente fazia, deixava a banha e guardava coisa para fazer torresmo, coisa para fazer... Toda a carne de porco que a gente guardava, a costelinha, tudo que guardava lá, a gente guardava até na banha.
P/1 – Mas não ficava muito oleoso? Porque eu sempre fiquei pensando nisso, sabe?
R – Não, e você sabe que a gente sempre comeu com banha, e era uma delícia de comida. Fazia bem para todo mundo, ninguém tinha nada, meus irmãos eram cada homão que nossa! Eu falo assim, olha, aqui as minha netas... A gente faz de tudo e são magrinhas, não há meios de... E olha que a gente faz de tudo para elas, tudo que têm vontade de comer, eu faço “você quer isso? Você quer aquilo”? Eu não sei, eu falo, lá remédio a gente não tomava, era só caseiro, tudo. Se você tinha dor de barriga, era uma ervinha lá que minha mãe sabia “aquela faz bem para isso”. Tinha árvore... O outro tinha outra coisa “ah vou pegar aquele lá, porque faz bem para aquilo.” E sabiam tudo o que fazia bem para a doença, e eu acho que era melhor do que aqui... Fazia chá de folha de laranjeira, porque diziam que quando tinha gripe... Você pensa que iam buscar remédio? Iam nada, faziam aquele chá, punham um pauzinho de canela e adoçavam com mel que a gente tinha de abelha porque meus irmãos gostavam, e eles tinham um monte de caixote. Então eles tiravam mel e a gente guardava. Comia e guardava no vidro, e a gente ia usando para essas coisas, e adoçava com mel... Hoje em dia uma coisa não serve... “Ah, criança pequena não pode comer mel” você viu falando outro dia? “Não pode dar mel para criança” e como, se a gente adoçava tudo com mel para criança pequena? Minha mãe sempre adoçou e ninguém teve nada nunca, “ah” eu não entendo isso.
P/1 – E quando a senhora cresceu, além dos primos, da família, tinha amigos?
R – Ah tinha, mas era... Se eu tinha amigo? Ah, eu tinha amigos, tinha amigas que nós brincávamos muito juntas, nós tínhamos até casa, porque a minha vizinha tinha uma casinha, uma casinha mesmo com quartos, sala, cozinha, só pra gente brincar. A gente fazia comidinha, quando criança, mas nós sabíamos fazer, a mulher dava pra nós fazermos doce, doce de abóbora, e a gente ia lá... Ela dava açúcar, dava tudo.
P/1 – Faziam e comiam de verdade?
R – Fazia e comia com a criançada, uma delícia lá. A gente brincou muito e essa minha vizinha tinha aquele engenho de moer cana, mas só que era com os cavalos, sabe? Os cavalos iam rodando, então ela tirava e fazia o açúcar, tirava o melado todo da cana. Então ela dava sempre pra gente também açúcar e coisas pra gente, lá tinha abóbora, tinha goiaba, e a gente fazia doce de goiaba. Cada época tinha uma coisa que a gente... Mamão, tinha mamão verde e a gente fazia doce. Então a gente aprendeu assim a fazer comida, porque éramos novas, mas uma ensinava e a outra ensinava e a gente ia fazendo e ia aprendendo.
P/1 – E não tinha problema mexer com fogo?
R – Não, porque fazia com a lenha mesmo, fogão à lenha.
P/1 – Não tinha perigo colocar fogo na casa?
R – Não, era de lenha e a gente mesmo pegava as lenhas lá no mato, galho seco, ia arrumando lenha, levava lá e fazia. E foi assim até mocinha, elas cresceram, eu também cresci e tudo. Conheci o meu marido, ele morava também em sítio, mas era um pouco mais longe, eu tinha 13 anos. O conheci, comecei a namorar. Casei com 17 e ele com 21, casamos lá e aí que viemos morar pra cá.
P/1 – Pra São Paulo? E como a senhora conheceu o marido da senhora?
R – Ah, em baile, lá tinha muito baile. No fim de semana tinham os bailes nos sítios, o meu sogro mesmo adorava fazer baile lá, ele tinha um terreiro bem grande, então os filhos todos − porque ele tinha 11 filhos, entre filhas e filhos, claro − eles mesmos fechavam, eles fechavam a volta toda, cobriam − porque se chovesse eles não dançavam, né? − aí à noite eles faziam o baile lá, todo mundo ia, tinha gente pra tocar sanfona daquele modo antigo e todo mundo dançava a noite toda, a gente vinha quase de manhã para casa.
P/2 – A senhora era novinha assim e o pai deixava ir? Com 13 anos?
R - Eu não tinha pai, era irmão, mas sabe por quê? Sempre ou meu irmão ou a cunhada ia junto. O meu irmão era casado e às vezes ele não queria ir, a minha cunhada ia, aí... Eu tinha irmão solteiro, eles também iam, então quando o meu irmão solteiro ia, a gente íamos e voltávamos para casa juntos também, mas nunca ia sozinha, porque era tudo meio longe. Não era pertinho e a gente ia a pé, você pensa que a gente ia de carro ou de charrete? Não ia nada, ia a pé mesmo.
P/1 – Ia a pé, dançava a noite inteira e ainda voltava a pé?
R – Voltava a pé. Mas lá tinha muito baile, tinha reza, rezava muito, tinham aquelas capelinhas, aí tinha festa uma vez por ano desse santo, de outro santo, a gente se reunia todo mundo. Aí iam moças, moços, velhos, todo mundo. Eu tinha uma cunhada que era casada, mas ela adorava ir ver o pessoal dançar, ela ia comigo e tinha um filhinho, ela carregava o menino e ia junto comigo, ficava lá a noite toda.
P/1 – E como eram essas coisas das rezas? Tinha festa do santo, tinha missa? Tinha procissão?
R – Tinha festa, missa, procissão, reza do terço. O padre só ia de domingo, mas durante a semana eles faziam rezas, então tinha uma cara que rezava, um cara que sempre rezava lá, e tinha uns moços que ajudavam a cantar a oração e as coisas. Mas todo mundo ia se reunir e rezava, depois cada um ia para casa. Então cada bairro que tinha uma capela... Uma era um santo, outra era outro santo, um era Santo Antônio, outro Sebastião, então para cada um... Ele era o padroeiro daquela capela.
P/2 – A capela era dentro das fazendas?
R – Era dentro de cada sítio.
P/1 – E tinha algum santo que a senhora gostava mais?
R – Ah, o que era perto da minha casa era São Sebastião, agora, tinha o Santo Antônio, onde eu fui batizada, então a minha preferência era por Santo Antônio, porque eu fui batizada lá. Minha mãe sempre frequentava, a minha prima também foi batizada junto, foi lá, então era mais aquela. A gente gostava mais era de Santo Antônio, São Sebastião era a capela do nosso sítio mesmo, porque a pessoa que ajudou a fazer a capela falou: “vamos pôr São Sebastião aqui”, e ficou.
P/1 – Bom, e o casamento da senhora, como foi, dona
ngela? Vocês namoraram quanto tempo?
R – Quatro anos.
P/1 – E como era o namoro naquela época? Era bem diferente de hoje, né?
R – Bem diferente, mas não era também exagerado, porque minha mãe nunca foi uma mãe dessas que pegava muito no pé.
P/1 – Nem os irmãos?
R – Nem meus irmãos nunca pegaram no meu pé, só que era assim... Porque chegou época de nós sermos quatro irmãos, tudo namorando, e lá tinha jeito de namorar, porque era só final de semana, não é igual aqui, não. Lá era só sábado e domingo, sábado a gente às vezes ia nas festas e se encontrava, mas o domingo ficava. Aí não dava para namorar, quatro irmãos, tudo dentro de casa ali. Tinha sala, mas não ia para o quarto, porque minha mãe no quarto não gostava, aí já era mais difícil. Então lá era assim, por exemplo, aquela que era noiva ficava dentro de casa, porque já tinha falado com meu irmão, tinha pedido permissão. Aquele ficava mais dentro e o mais novo, que ainda não tinha pedido permissão... Sabia que namorava e tudo, igual eu, era nova, a minha mãe ficava meio assim, mas depois ela falava: “sabe de uma coisa? Faça o que você quer.” Aí nós namorávamos mais na janela.
P/1 – Ah é? A senhora dentro de casa...
R – Tinha um quarto maior, você acha que nós íamos ficar um fora e um dentro? Então a gente ficava mais fora mesmo.
P/1 – Mas ela permitiu namorar na janela, né?
R – É, ela permitiu que namorasse na janela. Depois minhas irmãs, duas casaram e ficamos só eu e a outra minha irmã. Mas era muito... Lá era muito bom, a gente se encontrava em todo lugar, mas não era assim esse namoro igual antigamente... Tinha umas... Essa minha amiga que morava lá, ela ia namorar, a mãe dela sentava no meio dos dois, a minha mãe nunca fez isso, Deus meu, eu hein! A minha mãe não era assim, mas essa aí hoje, ela ainda vive...
P/1 – Como que ela chama?
R – Essa minha amiga chama Benedita e o marido chama Antônio, mas até hoje... Ele tem 80 anos, era amigo do meu marido. Ele fala, mas se você escutar ele contar do namoro deles você morre de dar risada, porque tudo aonde ia, a mãe... Ele falava assim: “a mãe dela tossia para saber que estava ali perto”, era um namoro duro. Minha mãe nunca foi assim, minha mãe nos deixava mais a vontade. (pausa)
P/1 – E dona
ngela, foram quatro anos de namoro, né? Quando ele pediu em casamento? Quando foi o noivado? Como é que foi isso?
R – Foi assim, eu namorei um bom tempinho sem noivar, depois é que ele falou com meu irmão, acho que foram uns dois anos já. Ele falou com meu irmão, aí namoramos mais dois anos e casamos, mas aí a minha mãe... Eles fizeram festa. Na casa da minha mãe fizeram jantar e na casa do meu sogro fizeram só baile, porque lá era assim: não era convidada uma família inteira... Porque era muito filho também, por exemplo, um jantar, se você convidasse dez pessoas numa casa, não tinha lugar pra todo mundo e também comida não tinha fim, né? Então eles faziam assim: tinham certa... Por exemplo, eu convido da tua casa duas pessoas, três pessoas, o resto pro baile, e no baile só tinha café e mais nada, porque aí não era festa, era baile e só. Então no meu casamento foi o jantar na minha casa e na casa do meu marido só o baile.
P/1 – E foi no mesmo dia? Ou em dias separados?
R – Não, no mesmo dia.
P/1 – E o casamento foi na igreja?
R – Foi na igreja.
P/1 – De São Sebastião?
R – Não, foi na matriz de Conchal, que é São José.
P/1 – Na cidade mesmo?
R – Na cidade. Lá a gente casava no civil e na igreja no mesmo dia, marcava mais cedo e ia lá, casava no civil primeiro, depois ia para a igreja e casava na igreja.
P/1 – E dona
ngela, como foram os preparativos? A senhora fez enxoval? Como é que era enxoval?
R – Ah, eu fiz enxoval sim, eu bordava tanto à mão quanto eu bordava à máquina. Eu bordei todinhos os meus lençóis, fronha, tudo combinando, eu bordava tudo. Antigamente usava também muita toalha, muita coisa, eu bordei todas as minhas toalhas, as minhas coisas em casa, e sabe com o que eu bordava? Com lamparina de querosene. Lá não tinha luz não, na minha casa, onde nós morávamos no sítio não tinha luz, hoje tem, hoje para aqueles lados lá todo mundo tem luz. Na minha casa não, era lamparina e a gente bordava de noite com lamparina, ficava o nariz meio preto, porque o querosene solta uma... Mas era muito bom, nossa!
P/1 – E com quem a senhora aprendeu a bordar? Com a sua mãe?
R – Com a minha mãe e com a minha cunhada. Minha cunhada bordava bem, duas cunhadas minhas, as duas me ensinaram, uma aprendia com a outra lá, eu aprendi crochê com a minha mãe, porque a minha mãe fazia crochê que era uma beleza, eu aprendi bem com ela. O tricô eu aprendi com outra pessoa, uma parente nossa, mas a nossa família, por exemplo, não sabia. E foi assim, bordar aprendi com as minhas cunhadas. Todas elas sabiam fazer crochê, tricô igual tudo... Eu até hoje nos casamentos das minhas netas, quem fez as lembrancinhas foi tudo eu. Fiz lembrancinha para essa última que casou, o saquinho com pérola, com aquela pérola pequena, fazendo crochê e com pérola. Mas ficou tão bonito que uma professora da USP ficou boba, veio perguntar para mim: “onde a senhora aprendeu”? Eu falei: “com a vida”, não foi escola não, foi conversando, pegando receita, olhando outra fazer, igual essa minha cunhada que ainda está viva e mora em... Ainda está viva. Uma morreu, mas a outra está viva e mora em Mogi Mirim, ela sabe fazer muita coisa à mão. Então eu fui lá e ela me mostrou “olha o que eu estou fazendo para a primeira comunhão”, aí eu olhei e falei: “você me dá uma amostrinha que quando eu chegar vou fazer.” Cheguei em casa e a minha filha comprou um cristal bonito, pôs dentro do saquinho... Eu fiz tudo com pérolas branquinhas, pus umas fitas e ficou lindo, o pessoal adorou. Das duas eu fiz, da outra também, que casou, fiz também só que diferente.
P/1 – Mas dona
ngela, naquele tempo era assim: bordava o enxoval todo e lavava, engomava, como é que engomava nessa época?
R – Engomava com polvilho de mandioca, é igual aqui a maisena, né? Aqui eu uso maisena, lá era o polvilho mesmo, era melhor lá o polvilho, é melhor do que a maisena ainda.
P/1 – Coloca na última água? Como é que é?
R – Primeiro você põe a água para ferver, quer dizer, você não pode jogar direto ali, você desmancha e joga na água fervendo, mexe e fica um mingau, aí você põe as peças para ficar engomada. Até hoje eu faço com maisena, porque aqui é mais prático. Agora, a da minha neta, que eu fiz muita, era tudo toalhinha, e dentro ela pôs aquele cristal com os noivinhos, aquele eu comprei uma pasta que passa, fiz 200 toalhinhas e depois passei aquela pasta toda, deixava secar e depois fazia o arranjozinho para dar de lembrança.
P/1 – Mas a maisena também você põe na água fervendo?
R – Tem que fazer na água fervendo também, se você não quer desmanchar ela, você tem que pôr na água fria mesmo, para ele não empelotar. Você dissolve e fica bom... Toalhinha, tudo de crochê a gente engoma. Eu faço toalhinha de bandeja, tenho caixa de toalha de... Sabe, com aquela com florzinha? Ontem eu acabei uma de margarida, a minha filha ficou louca quando eu acabei, porque eu guardo numa caixa ou dou de presente, ou ela dá para as filhas também, ela segura, né? Porque eu pus margarida branca com o miolinho amarelo e fiz toda a volta, eu faço o do pires redondinho e cada rodinha eu ponho uma margarida, fica lindo, fica muito bonito.
P/1 – Mas deve dar um trabalho, né?
R - Dá trabalho, mas eu gosto. Eu não saio nada, porque andar na rua sozinha eu não vou, tenho medo de cair. Então eu fico lá dentro vendo televisão, mas eu faço comida, ainda. Só não faço janta, a janta a minha filha faz, a janta eu já estou cansada.
P/1 – Mas dona
ngela, conta pra gente como é que foi o dia do seu casamento. Como a senhora acordou? Como a senhora se arrumou? Como é que era o vestido da senhora?
R – Ah, o meu vestido... Eu devia ter trazido a fotografia, agora está na moda outra vez, aquele vestido com babado, sabe? Começa o babado “aqui” e vai até em baixo, era aquele tafetá, naquela época usava muito. Não era um tafetá muito duro, então eu fiz de babado até em baixo. Era normal, só que aquela época usava manga, não usava assim sem nada e golinha alta. “Até” ontem eu estava olhando, eu tinha num porta-retrato lá em casa e a minha filha falou: “olha mãe, voltou a época do babado outra vez” eu falei: “olha, depois de tantos anos voltou.” Mas foi muito bom o meu casamento, eu fiquei casada 53 anos e também fiz Bodas de Prata com festinha, tudo que tinha direito: missa, amigos e tudo. E Bodas de Ouro foi em um buffet bem bonito, ficou uma festa linda. Foi até o pai do Thiago, a mãe... Aí entramos com todas as meninas, o Thiago e todo mundo, foi muito bonito, eu agradeço a Deus, porque acho que a idade que eu tenho, eu tenho bastante coisa boa. Teve coisa ruim também, mas a gente... Meu marido teve uma doença de dez anos e eu cuidei dele, sempre junto, dez anos, ele teve derrame e aonde ele ia eu olhava de medo que ele caísse, eu ficava tomando conta, mas eu vivia bem, do resto ele enxergava bem, falava bem, era o que interessava, né? Ele pegou mais foi uma perna e o braço, que não era muito bom. A gente vivendo junto, levava muito bem.
P/1 – E me fala uma coisa, por que vocês resolveram vir para São Paulo?
R – Ah, porque lá no sítio o meu marido não queria mais trabalhar, era muito cansativo. Tinha que preparar a terra... Eles preparavam tudo com trator, plantava, depois colhia e não tinha preço. Então ele falava: “eu vou viver aqui a vida inteira?” Lá eles plantavam mandioca, muita mandioca, e quando dava bem, que tinha uma safra boa mesmo, não tinha preço, aí ia vender “ah, deu bastante, esse ano não teve preço.” Então o meu marido falou: “eu não vou ficar aqui não, aí resolveu... Minha mãe mudou para cá e vendeu o sítio, ela falou: “ah, eu vou vender o sítio e vou mudar...” porque minha mãe tinha um problema na perna que tinha que fazer sempre tratamento, ela então fazia tratamento aqui em São Paulo, porque tinha uma irmã que morava aqui. Ela falou: “eu vou mudar, porque eu faço o tratamento e moro lá” e você acha que eu ia ficar longe da minha mãe? Eu sempre, a vida inteira, dormi junto com a minha mãe. Quando minha mãe falou que ia mudar, eu falei com meu marido e ele topou “vamos embora também”. Viemos para cá numa dureza danada, porque chegamos aqui... Uma pessoa que não sabia fazer nada. Ele, coitado, estudo não tinha quase, né? É duro começar, mas começamos com fé e vontade também e olha, graças a Deus fomos levando a vida bem, só que eu sempre morei com a minha mãe. Minha mãe vendeu o sítio, comprou casa na Wisard, aí na Vila Madalena. Já comprou casa com lugar para mim e para o meu marido, nasceram os meus filhos e eu sempre junto com ela, até ela morrer. Ela morreu com 77 anos, a minha idade.
P/1 – E dona
ngela, que época vocês vieram para cá? O ano, mais ou menos?
R – Aqui para São Paulo? Puxa vida, agora é que...
P/2 – Quando a senhora casou ficou quanto tempo lá?
R – Eu fiquei casada... 53 anos que eu fiquei com meu marido, eu casei e vim para cá, não fiquei nada lá, casei e já vim.
P/2 – Então foi em 48.
R – É 48, eu ia te falar, mas eu fiquei meio assim. Eu vim para cá e aqui a gente foi trabalhando, trabalhando, ele fez um pouco de tudo, trabalhou na praça, trabalhou muito tempo aqui na Rua Macunis mesmo.
P/2 – Ele era taxista?
R – Era. Ele trabalhou muito, aquela escritora... Aquele que era de moda, o Dener eu acho, ele era freguês dele, ficou muito... Tanto que é uma coisa, a pessoa antes de morrer estava na minha casa, tinha um moço que cuidava dele e ele falou assim: “você me leva que eu quero mostrar para você onde eu trabalhei muito tempo” e ele falava mal já, pois veio mostrar onde ele trabalhava. Naquela época tinha ponto de táxi, agora não é muito assim, tem, mas tem menos, naquela época tinha os pontos certos mesmo, e que um não ia pegar o freguês do outro, cada um tinha seu ponto e ficava aí. E ele veio mostrar pro moço onde ele trabalhou muitos anos. Tinha muitas pessoas que ele conhecia e que era de confiança... Aquela que escrevia novela, ele pegava só os papéis e levava, ela nem ia, ela só dava o papel para ele, ele levava e trazia os outros papéis para ela, era tudo freguês assim, né?
P/1 – E tudo na base da confiança também, né?
R – Na base da confiança.
P/1 – E Dona
ngela, como vocês vieram pra São Paulo? De trem?
R – Não, nós viemos de caminhão, porque meu sogro quis que trouxessem as nossas coisinhas. Porque lá era assim, o pai costumava dar, a mãe da noiva dava a cômoda... Lá era assim naquela época. O pai do noivo dava cama, dava outras coisas, desde panela, eles davam. Até hoje eu tenho umas panelinhas que eu guardo, eu não uso muito só porque minha sogra que me deu. Eles dão o começo pro casal, sabe? Então a gente já trouxe, e como minha mãe vinha e tinha minha irmã, ela gostava de trazer galinha. Ela trouxe para a minha irmã ir matando, aí nós viemos de caminhão mesmo, mas até hoje eu não lembro se o caminhão dava para vir três pessoas, − eu, minha mãe e meu marido − acho que meu marido veio em cima e nós duas viemos dentro.
P/2 – E os outros irmãos ficaram lá?
R – Meus irmãos ficaram, todo mundo separou. Um ficou em Conchal − ele tinha açougue − um ficou em Mogi Mirim, ele tinha açougue e um veio para Sumaré, você conhece Sumaré, perto de Campinas? Aí eu tenho sobrinhas que moram lá. Meu irmão tinha chácara, tinha açougue e morava aí até morrer, ele morreu no Sumaré mesmo e o outro... Cada um morreu lá na cidade deles, onde eles estavam. A gente ia muito lá, porque eu passava as férias das crianças, meus irmãos faziam questão que eu fosse lá. Eu levava a minha mãe para ela passar as férias com os filhos e levava minhas crianças também, porque eles adoravam. Eu tinha meu sogro, minha sogra... E eles lá andavam a cavalo, de charrete, eles adoravam, não viam a hora de chegar as férias para ir embora. O pai do Thiago, “como” adorava ficar lá no sítio, pegar fruta no pé, ele gostava muito, sabe?
P/2 – A senhora teve dois filhos?
R – É. O José Luís, que é o pai do Thiago e da Silvia... A minha filha é professora de... Ela é dentista, né? Mas agora é professora de Ortodontia e trabalha em Mogi das Cruzes, só que é só fim de semana, só quinta e sexta.
P/1 – E Dona
ngela, por que vocês escolheram a Vila Madalena?
R – Porque minha irmã morava na Vila Madalena.
P/1 – Ah, ela já morava aqui?
R – Já morava aqui. Aí ficou... Minha irmã tinha comprado lá e era só mato, Vila Madalena não tinha nada. Minha irmã comprou essa casinha e foi aumentando as casas na Vila, mas quando ela comprou... Tanto que acho que a casa tem uns 80 anos, não tem mais. Ela então morava na Vila e a gente veio com ela na casa dela, ficamos aí até arrumar lugar. Aí minha mãe comprou na Wisard uma casa, para ficar perto.
P/1 – A senhora falou que era só mato, né? E tinha riacho? Onde passava o riacho por aqui?
R – Era época do bonde. Ele não subia aqui para cima, parava lá em baixo na Teodoro, na Fradique. Na Fradique tinha uma partezinha assim: ele vinha até aqui e dali mesmo voltava. E para cá não tinha nada, a gente... Todo mundo ia até lá em baixo, nem ônibus não tinha para cá.
P/1 – Tinha que ir a pé mesmo, né?
R – Descia a pé.
P/1 – E iluminação?
R – Ah, era tudo sem luz. Na rua não tinha iluminação, não tinha nada, só nas casas é que tinha, né?
P/2 – E as ruas já eram pavimentadas?
R – Nada, não tinha esgoto, não tinha nada, era terra pura. Agora, nossa Senhora, está tudo bom! Tanto que é uma coisa engraçada: essa minha irmã falou assim para mim... Ela estava meio velha, ela falou assim: “eu vou vender a minha casa, você que comprar?” Eu falei: “não sei”, porque minhas crianças falavam “quando eu sair daqui da casa da vó, eu não quero ir morar em outro lugar”, porque eles frequentavam tudo. Estudaram no Brasílio Machado, estudaram no estadual, não pensa que... Olha, foram as primeiras... Tanto um quanto o outro tiravam as notas em primeiro lugar e estudavam ali. Dali estudaram no MAX e então foram para as faculdades, uma foi para a USP, a menina se formou na USP, e o José Luís na Getúlio Vargas. Eu comprei essa casa da minha irmã, a casa que eu tenho hoje na Aspicuelta, 355. É minha, está alugada para uma loja, a da frente... Tem casinha até no fundo, está tudo alugado, eu deixei e ficou para os dois. Falei: “não, eu moro com a minha filha, eu tenho tudo. Meu filho é bom, me ajuda, ela também me dá tudo que eu quero.” Então eu falei: “para que eu quero casa? Fica praa eles dois” e está tudo alugado.
P/1 – E dona
ngela, antigamente essa casa tinha quintal grande? Tinha árvore? Como é que era?
R – Onde?
P/1 – Aqui, quando a senhora chegou nessa primeira casa?
R – Tinha um quintal grande que tinha até... O quintal era... A casa não era tão grande assim, eu acho que eram três dormitórios, sala, uma copinha e cozinha, mas o quintal era enorme, tinha pé de abacate, tinham coisas lá... Onde meus filhos foram criados, ali brincavam e subiam na árvore, jogavam bola... O terreno tinha 50 metros, então a casa foi feita mais a frente e nos fundo era tudo livre para eles brincarem. Tinha assim uma hortinha, porque tinha um espaço lá.
P/2 – E como era a vida no bairro? Tinha mercado perto?
R – Não tinha, não tinha nada de mercado, supermercado nem tinha, sabe o que tinha? Essas vendinhas, essas coisinhas pequenas em que a gente comprava. Tinha um senhor que tinha um empório, hoje é o Bar da Banana, eu acho que você conhece, o barzinho da Banana lá da esquina da Fidalga, conhece? Não? É onde é uma zoeira à noite... Então, lá era empório, o moço fazia com caderneta ainda, porque as pessoas recebiam por mês. Ele vendia o mês inteiro e ia marcando na caderneta. Chegava no fim do mês, ia lá e acertava a conta. Era o que tinha, não tinha assim padaria... Demorou para ter padaria, supermercado, demorou muito. Não tinha não, tinha o Mercadão de Pinheiros, que eu acho que já existia sim. Meu marido às vezes ia no da Lapa, da Lapa é antigo também, mas eu sei que a vida vai indo, né?
P/1 – Tinha a hípica aqui perto, não tinha?
R – Tinha.
P/1 – Perto do Pão de Açúcar ali?
R – Sei lá, tinha tanta coisa de cavalo aqui, tinha coisa de cabrito... Eles levavam leite de cabra para as pessoas.
P/1 – De porta em porta?
R – De porta em porta.
P/1 – Mas iam com a cabra? Ou não?
R – Eles iam com a cabra.
P/1 – E vendiam na porta?
R – Vendiam. Esse negócio de vaca, cavalo, como tinha na Vila, tinha lugar que tirava leite, tinha lugar que era de cabra que... Eu nunca tirei leite de cabra, porque eu nem gosto muito de leite, quanto mais de cabra, que é forte, mas a minha nora foi criada com leite de cabra, a mãe do Thiago.
P/1 – É mesmo?
R – Porque ela também morava lá, só que ela morava na Fidalga, depois que ela cresceu, casou com meu filho, mas a gente conhecia bem a mãe, a avó dela.
P/1 – Olha, a família toda é da Vila Madalena, né?
R – Tudo da Vila Madalena, a gente conhece muita gente. Essa senhora que eu te falo, ela é muito antiga da Vila, sabe? Eles tiveram padaria − essa que eu te falo de 85 anos – e morreu a mãe, morreram as irmãs e ela está lá na mesma casa, na mesma casa ela mora, mas ela conhece a Vila, nossa Senhora! De ponta a ponta e pessoas... Ela faz aniversário e sabe que ela tem um caderninho que ela marca, ela tem de 200 a 250 pessoas que ligam cumprimentando ela, e ela vai marcando, tem o prazer de marcar nome por nome.
P/1 – Olha, que bonitinho.
R – De quem a cumprimenta.
P/1 – E dona
ngela, tinham assim, outros vendedores de rua que passavam gritando assim “Batata assada”?
R – Tinha. Você acredita que tudo tinha, até quem vendia alumínio, quem vendia colher, garfo e isso tudo, porque quando eu vim para cá, comprei garfo e colher desse homem e até hoje eu tenho, você acredita? São bons e as meninas vão sempre procurar por eles, porque são aqueles garfos pesados, grandes, sabe? Então vendiam nas portas, tudo eles vendiam nas portas, você pagava um pouquinho por mês, ia pagando, porque recebia por mês e não podia tirar todo o dinheiro para pagar, então ia devagarzinho, o pessoal fala que a vida... Não é agora, [que] até as casas vendem a prazo, era diferente, eles vendiam, mas eles falavam: “é tanto. Você me dá tanto por semana ou tanto por mês” era como a gente podia, né? E a pessoa dava assim. Hoje em dia você vai à loja, compra por um preço e quando vai ver, no fim, o quanto pagou, você pagou dobrado. É muito mais caro.
P/1 – Mas tinham lojas aqui ou vocês iam ao centro comprar coisas em lojas?
R – Não tinha loja.
P/1 – Aqui não tinha loja nenhuma?
R – Tinha alguma lojinha daquelas pequenas que vendia linha, elástico e essas coisinhas.
P/1 – Armarinho, né?
R – É, mas loja mesmo não. O que tinha era no Largo de Pinheiros, que a gente ia a pé as vezes que ia comprar um pano, alguma coisa lá tinha alguma loja, mas por aqui não tinha loja não, nem restaurante e nem nada.
P/2 – E o que a senhora fazia de lazer com o marido da senhora aqui em São Paulo? Onde vocês gostavam de ir?
R – Olha, a gente ia a um pouquinho de tudo... Nós frequentávamos muito a igreja também, porque a família toda ia, a gente freqüentava a Igreja do Calvário e outras coisas. A gente fazia um pouco de tudo, eu gostava até... Naquela época não tinha... Tinha o Pacaembu, o Morumbi não, mas a gente ia, até jogo de futebol eu ia com o meu marido. No carnaval a gente ia à cidade − que era aquele carnaval de rua − a gente ia à cidade e viajava. Nós viajávamos, nós íamos... Longe não, é claro que nós não fomos lá fora, nós nunca fomos, mas por aqui perto a gente sempre ia. E cinema algumas vezes, pouco também, não era muito, mas também ia parar quase lá perto do Largo, onde tinha um cinema, porque aqui perto da Vila não tinha nada.
P/1 – E vocês costumavam ir até o centro da cidade?
R – A gente ia muito pouco, tinha que tomar ônibus... Não, tinha que tomar o bonde, e ele trabalhava, eu também sempre trabalhei. Eu não trabalhava assim fora, mas eu sempre fiz minhas coisas para ganhar meu dinheiro, eu nunca fiquei assim “ah não vou...” para os meus gastinhos, para comprar coisas para as minhas crianças, eu sempre trabalhava para ajudar ele. Hoje graças a Deus ele está tão bem, eu falo que meu filho está bem, está bem em tudo. Bem sucedido na vida que eu falo, mas não é que caiu do céu, tudo foi trabalho, trabalho nosso, trabalho deles, porque meus filhos nunca... Eu ensinava assim “a gente está lutando, mas vocês vão me ajudar” o José Luís aprendeu a fazer tudo, porque se hoje você mandar o José Luís a uma cozinha, ele faz melhor do que uma mulher. Ele lava louça, faz comida, faz tudo, mas ele... Ele falava: “pode deixar mãe” eu costurava para um lugar aí e ele... Eu pegava, naquela época eles davam muito para costurar, é boné, calcinha, um monte de coisas. Eu pegava, levava para casa, costurava e entregava. Era assim, eu costurava e ele falava: “pode deixar mãe, eu limpo tudo” ele tinha doze anos. Com quatorze foi trabalhar em um laboratório que tinha aqui na Pedroso, mas até aí ele sempre ajudava, lavava quintal, lavava a louça, ele fazia tudo, não deixava nada. Eu começava a comida e ele falava: “pode deixar que agora eu acabo tudo.” Às vezes eu começava, falava tudo o que eu ia fazer e ele fazia. Minha filha também sempre trabalhou. Então hoje o que eles são, eles devem a eles mesmos, o esforço que... A gente também, que é o que eles sempre falam: “eu sei que estudei em escola boa, mas...” Olha, eles trabalhavam de dia, o meu filho chegava em casa onze e meia, meia noite, e falava: “mãe, nós vamos estudar, dá para descolar alguma comida para os meus colegas?” eu falava: “claro, eu vou na cozinha e descolo já.” Eu arrumava a comida, eles jantavam e continuavam a estudar. Minha filha também, quando eu levantava, achava as meninas deitadas no tapete, as amigas dela, ela levantava e ia trabalhar, mas estudava. Hoje em dia eu não sei, a criançada não quer mais estudar, eu tenho um sobrinho que eu pergunto: “você estudou?” “Eu estudei lá na escola”, mas o que se estuda no meio de um monte de crianças? “Fica quieto aí”, se for com três ou quatro é bom, mas na escola você não estuda não, eles não querem saber, mas sei lá...
P/1 – Muda bastante, né?
R – Muda, muda muito.
P/1 – O que a senhora acha que mais mudou aqui na Vila Madalena?
R – Ah, mudou tudo, mudou muito, tudo mudou, nossa Virgem! Eu olho a Vila Madalena e não acredito que era o que era antigamente.
R – Era como se fosse uma chacrinha.Recolher