Projeto Instituto Vladimir Herzog
Depoimento de Gunnar Carioba
Entrevistado por Luiz Egypto e Luis Ludmer
São Paulo, 05/09/19
PCSH_HV802
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
Revisado por Luiz Egypto
P/1 - Bom dia.
P/2 - Gunnar, muito obrigado por ter aceitado o nosso c...Continuar leitura
Projeto Instituto Vladimir Herzog
Depoimento de Gunnar Carioba
Entrevistado por Luiz Egypto e Luis Ludmer
São Paulo, 05/09/19
PCSH_HV802
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
Revisado por Luiz Egypto
P/1 - Bom dia.
P/2 - Gunnar, muito obrigado por ter aceitado o nosso convite. Para começar, eu gostaria que dissesse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Francisco Gunnar Muller Carioba, nasci no dia 26 de março de 1940, no Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
P/1 - Em São Paulo?
R - Em São Paulo.
P/1 - O nome dos seus pais, por favor.
R - Meu pai chama-se Francisco Adolfo Muller Carioba, minha mãe chama-se Grace Mion Isabela Muller Carioba.
P/1 - Grace?
R - Grace. Ela é sueca.
P/1 - O que faziam seus pais?
R - Minha mãe era dona de casa, cuidava da casa, enfim, e gostava muito de orquídeas, de mexer no jardim. A gente tinha uma casa gostosa e ela sempre mexeu muito com as plantas de jardins e cuidava da casa. E meu pai ele era formado em administração, alguma coisa assim, economia talvez, não sei direito. Aí ele trabalhou em várias empresas dentro da área financeira, às vezes fundos de investimento, na época que existia muito, os fundos cresciam de outros fundos e tal, e esse era o trabalho dele.
P/1 - E nessa casa onde vocês viviam, como que era, onde ela era?
R - De início era uma casa no Jardim Paulista, perto da esquina da [avenida] Brasil com a Nove de Julho, a rua Maestro Elias Lobo. E depois, quando minha mãe recebeu uma herança por falecimento dos pais dela, eles construíram uma casa no Brooklin. E aí era uma casa maior, com jardim muito grande e tudo, e era uma casa muito gostosa.
P/1 - Você tem irmãos?
R - Tenho dois irmãos. Mais novos do que eu, Pedro e Johnny.
P/1 - Você é o primogênito.
R - Eu sou.
P/1 - E essa casa que vocês mudaram, para essa casa no Brooklyn, você tinha que idade?
R - Ah, eu tinha 18 anos já.
P/1 - Ah, já. Mas voltando a essa infância primeiro, como ela era? Você pode descrever?
R - Posso. Era uma casa, tinha uma entrada de carro do lado, no fundo tinha um espaço maior, um quintal, atrás desses quintal tinha uma edícula, embaixo tinha garagem, quarto de passar roupa que eu lembro bem, nos fundos, dando a volta, tinha o quarto da empregada, e no andar de cima tinha um apartamento que às vezes era alugado, foi uma época que eu acho que o meu tio morou lá, e depois eu lembro muito bem que ele era alugado por uma francesa, que era professora de francês. Era um apartamento gostoso, em cima tinham dois cômodos, banheiro e uma pequena cozinha.
P/1 - Como era o bairro nessa época?
R - Muito gostoso, muito gostoso. Eu lembro que eu nessa época vivi inclusive a colocação da tubulação de esgoto, e a gente brincava e era um perigo, o pessoal ficar muito preocupado porque andava naqueles andaimes, os buracos lá embaixo, os canos, e a gente passava por cima. Depois fechou tudo e calçou, enfim. Mas desde o começo que eu lembro que era calçada, só que tiveram que arrebentar só o asfalto para colocar a tubulação, ou trocar, eu não sei por que, mas teve que abrir uns buracos enormes na rua.
P/1 - E do que o garoto Gunnar gostava de brincar?
R - O garoto Gunnar gostava de brincar com água. Piscina sempre foi uma coisa muito gostosa para gente, a gente morava ali perto do hoje Clube Harmonia, que na época era um negócio muito familiar, a gente atravessava a rua, atravessa a Nove de Julho a pé, as crianças, eu e meus dois irmãos, e estávamos sempre lá no clube, brincando na piscina e correndo para cima e para baixo, e tinha outros amigos lá, era um negócio... Era um clube muito gostoso na época, porque era um clube bem familiar, diferente do que é hoje, porque faz até tempo que eu não vou lá, não sou mais sócio do Harmonia. Mas era um clube em que a gente passava muito, muito tempo, sempre brincando de piscina e coisas assim.
P/1 - E tinha convivência com a vizinhança?
R - Ah, bom, o pessoal da rua, inclusive brigas. Tinha duas turmas e a gente brigava com estilingue e espingarda de ar comprimido, punha umas frutinhas dentro do cano da espingarda, fazia guerra e brigava, era divertido. Todo mundo se divertia na rua. Era uma coisa de rua, na época. Mas isso na época, de 1950 e pouco, era coisa de rua, a gente estava na rua, brincando todo mundo, o tempo todo, com as outras crianças ali por perto.
P/1 - Deixei passar uma pergunta, você conheceu os seus avós?
R - Conheci os meus avós, vindos do meu pai. Só do lado do meu pai. Os meus avós da Suécia, o meu avô que era sueco morreu cedo, ele já era muito velho quando minha mãe nasceu, e também a minha avó eu nunca conheci. Eu sei que ela esteve no Brasil quando eu nasci, isso porque o meu filho está fazendo um levantamento da família, e ele teve essa informação que ela esteve por aqui, mas eu não lembro deles. Eu lembro dos meus avós paternos, lembro da minha avó, chamava-se Herna e o meu avô, chamava-se Herman. Eu tenho pouca lembrança dele, ele morreu mais cedo, na época de 1940 e poucos, 1950, sei lá, não lembro quando ele morreu. Mas eu tenho muito pouca lembrança dele. Uma coisa ou outra que eu lembro é que eles tinham uma casa em Campos do Jordão. Também eu lembro uma outra situação do meu avô. Lembrei de dele sentado no banco, eu do lado dele, mas ele estava sempre vestido de terno, não sei o quê, eu não lembro. E a minha avó, Herna, ela era a que cuidava da gente também lá em Campos Jordão. A gente estava muito nessa casa chamada Ibitú, chamava-se a casa; foi construída em 1943, na mesma época que o Hotel Toriba, era do lado do Hotel Toriba. E a gente brincava muito por ali. Eu tinha um primo que morava no Rio e tinha os meus primos de São Paulo também, filhos da irmã do meu pai, e era uma folia. Campos Jordão, Ibitú, férias, era a coisa mais gostosa que tinha, a gente ia para cima e para baixo, corria, andava a cavalo pelo meio dos matos e tal. Era uma outra época, né? Era uma outra época.
P/1 - Tem uma família grande?
R - É, uma família grande sim. Meu pai tinha quatro irmãos eu acho, e a irmã dele que tinha os seus três filhos e esses três filhos eram todos já morreram.
P/1 - Havia na família alguma história dos avós, de como eles vieram para o Brasil, alguma ideia?
R - Sim, sim, tem. Tem a história do meu bisavô, que veio para o Brasil, foi para o Rio Grande do Sul, inicialmente. Não sei em que época mais ou menos, eles vieram para São Paulo e se associaram com uns ingleses e justamente compraram essa fábrica de tecidos que chamava-se Fábrica de Tecidos Carioba. “Carioba”, na língua indígena, quer dizer “tecido branco”, da mesma maneira que “carioca” quer dizer “casa branca”, ou “casa de branco”. Então "cari" é branco. E a família estão se fixou em Americana [SP] e desenvolveram, modernizaram a fábrica de tecidos, enfim, até criaram uma usina hidrelétrica para tocar a fábrica. Eu não lembro dessa época, eu era muito, muito pequeno. Eles venderam a fábrica em 1945, qualquer coisa assim, eu realmente não me lembro. Sei que tinha uma piscina, tem algumas fotos que eu lembro de ter visto, vi filmes que eles faziam, e brincadeiras dos irmãos e coisa e tal. E essa fábrica se desenvolveu em Americana e modernizou muito, cuidava dos empregados, e se formou uma comunidade em volta chamada Vila Carioba. Os funcionários todos tinham suas casas e tinha clube, tinha cinema, tudo isso promovido lá pelo pessoal, pela família. Depois eles, na época da guerra, acabaram vendendo a fábrica para os Abdala, aí a coisa toda acabou e eles saíram de Americana.
P/1 - Os Abdala?
R - É, o velho Abdala comprou a fábrica.
P/1 - Você não conheceu essa fábrica?
R - Não, não conheci. Eu não lembro, eu vivi lá, eu tenho foto e coisas assim de lá.
P/1 - E de onde vem a incorporação do Carioba ao nome?
R - Foi justamente nessa época, porque eles eram os Muller, e tinha muitos Muller, e esses eram os Muller de Carioba. E não sei se é exatamente isso que aconteceu ou não, mas um dos irmãos do meu avô era médico. E tinha o doutor Muller, e tinha um outro doutor Muller, e ele era o doutor Muller de Carioba. E ele acabou incorporando o nome Muller Carioba e os irmãos fizeram a mesma coisa. Então é um nome que foi adotado pela família nessa década de 1940 ou 30, sei lá quando.
P/1 - Havia alguma história na sua família sobre a vida dos alemães imigrantes no tempo da guerra? Isso causou algum problema para a família?
R – Talvez, eu acho. Talvez até a venda da fábrica seja em função disso, por causa de perseguição de alemães, essa coisa toda. Não tenho certeza, mas talvez tenha sido isso, uma coisa nesse sentido, na venda da fábrica.
P/1 - Mas não houve nenhum episódio que estivesse ligado à família?
R - Não. Não, não, não, nada. E a família já estava aqui, todos eram brasileiros, o meu avô era brasileiro. Meu bisavô não sei, mas, enfim, eles que entraram lá pelo Rio Grande do Sul. Nunca houve nenhum problema de perseguição nem nada, ou coisa nesse sentido, que eu saiba.
P/1 - Ok. Voltando aqui para a nossa rua de terra, brincadeira de rua e tudo mais, qual foi a sua primeira escola?
R - Jardim Escola São Paulo, na Avenida Paulista. Ficava exatamente em frente ao Colégio São Luís. Era uma avenida pequena e eu lembro que tinha um guarda lá chamado Seu Geraldo, que era o policial que cuidava da gente, de atravessar a rua, essas coisas. A rua era estreia. E era uma escola muito interessante, porque era uma escola que ia da Paulista até a Alameda Santos, ela pegava o quarteirão todo. E era uma escola... não era, vamos dizer, do tipo Waldorf, alguma coisa assim, mas era escola onde já tinha várias atividades, de marcenaria, de jardinagem, porque era um espaço enorme que tinha lá, música... Eu nunca fui de música. Na hora da música, o meu instrumento era tocar pauzinho: era o que eu fazia lá na banda, na orquestra da escola. E era uma escola bem gostosa.
P/1 - E aí você fez o primário lá?
R - O primário lá. Depois o ginásio eu comecei no Colégio Bandeirantes, aí repeti no meu primeiro ano, eu era vagabundo, faltava muito nas aulas, e aí eu fui para o colégio interno. Fui para o ginásio Koelle, em Rio Claro [SP]. E lá na época do Clube Harmonia, eu já nadava lá na piscina deles. Tinha um treinador, o Pereira, que era o instrutor de natação lá, e eu já nadava e cheguei a competir uma vez pelo Clube Harmonia contra o Internacional de Santos. Foi a primeira viagem que eu fiz como nadador, como atleta. Eu devia ter uns 13 anos, alguma coisa assim.
P/1 - E na sua primeira escola teve algum professor ou professora que tivesse te marcado?
R - Não lembro, não lembro. Eu recebi recentemente uma mensagem de uma amiga que justamente mostrou um vídeo de uma professora que foi muito influente na vida dos alunos, e tinha umas conversas dos alunos com essa professora. Aí eu lembrei pouco, mas assim eu não lembro de um professor ou coisa que me influenciou, que eu tenho grandes lembranças, não.
P/1 - E no ginásio também não?
R - No ginásio, também não. O que depois eu pensei foi... Bom, mas eu tive uma pessoa que foi muito importante, que me ensinou coisas, que era justamente o professor Sato.
P/1 - Sato?
R - Sato. Ele era de natação, ele era meu técnico de natação no [Clube] Pinheiros. Depois que eu saí do Ginásio Koelle, quando eu vim para São Paulo, aí eu fui nadar no Pinheiros. E o primeiro técnico de natação que tinha lá era o Sato, uma pessoa fabulosa, bem japonês com os treinamentos, a linguagem dele divertida. Essa é uma pessoa que eu sinto que, enfim, de alguma maneira me deu uma orientação, e mostrou as coisas da vida. Mas não tenho nenhum professor assim que eu me lembro que foi muito importante.
P/1 - Então vamos lá, afinal se contas de tratava de um aluno relapso, não é?
R - Verdade.
P/1 - E o colégio interno foi como se fosse uma punição?
R - Não foi não, porque era um colégio muito divertido, eu gostava do colégio interno. Talvez para me manter na linha, disciplina, coisa assim. Lá era uma coisa rígida, família alemã, os Koelle, e lá eu então acabei me desenvolvendo mais na natação, inclusive. E fiz os quatro anos de ginásio lá. Depois voltei e fui para o Bandeirantes de novo.
P/1 - Foi foi uma coisa, digamos, sem trauma de sair para São Paulo? Deixar a convivência para ir para um colégio fechado?
R - Não. Não foi trauma nenhum. Tinha muita gente lá, era divertido, era gostoso, enfim, tinha a natação, era um colégio muito alegre, com muito espaço. Eu fazia parte da banda da escola, tocava tambor, sempre percussão. Pelo meu tamanho era o primeiro da fila, os três primeiros que tocavam contra-surdo, surdo, ou um desses tambores, não sei o nome... Era gostoso. Tinha um espaço grande, a gente tinha colegas, e brincava, e jogava bolinha de gude, jogava queimada, tinha essas coisas todas e era bem alegre, bem gostoso.
P/1 - E como vocês iam para Rio Claro?
R - De trem. Da [Companhia] Paulista [de Estradas de Ferro], trem da Paulista.
P/1 - Rio Claro era um entroncamento da Paulista?
R - Acho que não, não sei. Sei que pegava o trem da Paulista, aqui na estação da Luz, e ia para Rio Claro.
P/1 - Quanto tempo demorava?
R - Uma hora e meia, duas horas, talvez, uma coisa assim.
P/1 - E o trem, como que era?
R - Ah, o trem era bonito. Era bom. Era gostoso o trem.
P/2 - E seus pais levavam e buscavam?
R - Eles sempre me deixavam na estação e depois, na estação de Rio Claro, eu chegava lá e ia a pé para a escola. Eu tinha já meus 14, 15 anos na época.
P/1 - Havia saídas para a cidade, ir ao cinema, esse tipo de coisas?
R - Tinha, tinha saída. Para o cinema acho que não lembro, mas tinha saída durante o dia. Então íamos passear em alguns lugares, eu lembro muito que a gente ia nadar no rio Corumbataí, e na beira do rio a gente passeava durante a semana. No fim de semana, às vezes ia para os parques, enfim, a vida era boa. E o pessoal era muito simpático, gente gostosa, muitos amigos que eu não vejo mais. Muita gente do Paraná que estava lá, aí eu lembro, inclusive, de alguns com menos dinheiro, então nas férias de julho às vezes nem voltaram para casa no Paraná, ficavam por lá. Mas era uma comunidade, todo mundo se conhecia, gostava, brincava junto. E eu estava sempre com o pessoal da natação, que era importante, então muitas vezes viajava final de semana para competir, para ir nadar em outras cidades, em outros lugares, e eram por aí as coisas.
P/2 - E os seus irmãos estudaram lá?
R - Não. Não, os meus irmãos não. Os meus irmãos ficaram aqui em São Paulo, só eu e meus primos fomos para lá. Meus primos foram para lá porque a mãe deles se separou do marido e então foram para lá, minha prima, era um colégio misto. Lá era gostoso, havia uma convivência, inclusive entre os meninos e as meninas, porque o refeitório era comum. E eu lembro que muitas vezes, principalmente depois do jantar, que era cedo sempre, tinha um pátio grande e a gente fazia um "footing" no jantar, ia para lá e para cá, o diretor da escola também ia junto, o Doutor Paulo. Ele era o "Herr Doktor", e o pessoal chamava ele de “Reboque”.
P/1 - Reboque?
R - Reboque. Herr Doktor, Reboque, e aí ficou. E ele andava lá. "O Muller Carioba chegou, todo mundo chegou", no refeitório. Eu era quase sempre o último a chegar....
P/2 - Nessa época você tinha planos de virar atleta de natação, de competir?
R - Olha, na época não existia essa coisa de profissionalização. Então a gente nadava e eu parei de nadar quando entrei para a faculdade.
P/1 - Qual era a sua modalidade?
R - Nadava “crawl” e nadava distância. Nadava 1.500 metros, 800, 400 enfim, nadava quase tudo, nadava 100 metros também. Eu lembro de uma competição, eu nadava pelo Pinheiros, e eu acho que eu nadei umas quatro ou cinco provas diferentes. Mas eu nadava mais distância, 1.500, fui várias vezes campeão brasileiro dos 1.500 metros. Então nadava bastante. E lá na época também era gostosa estar com o pessoal da natação porque a gente às vezes saía para fazer demonstração de natação ou para competições, ou fazer aqualouco, os trampolins. Eu lembro que a gente foi para inaugurar a piscina de Bragança Paulista, no clube lá, quando fizeram a abertura, inauguração da piscina, convidaram a turma do Koelle, que era uma equipe famosa e boa de natação. Inclusive o Manoel dos Santos nadava lá e foi recordista mundial. Nadamos juntos, ele era daqui da turma.
P/1 - Estava em excelentes companhias então?
R - Estava, era bem gostoso. O colégio [interno] não foi nenhum trauma, não.
P/1 - Manoel dos Santos foi recordista dos 100 metros, não é?
R - 100 metros, é.
P/1 - Quando você voltou para São Paulo, para o Bandeirantes, como era a rotina, você treinava no Pinheiros?
R - Treinava no Pinheiros, às vezes ia de bicicleta para o Pinheiros, treinava e voltava para casa, não tinha outra coisa. E escola.
P/1 - O que esse garoto queria ser quando crescesse?
R - Ah, não sei... Não tinha muita perspectiva ou planejamento do que queria ser quando crescer. Eu comecei de repente, junto com meu pai, trabalhava em alguma coisa, vendi fundo de investimentos, e depois acabei entrando para propaganda.
P/1 - Como foi esse caminho até lá?
R - Como foi esse caminho da Propaganda?
P/2 - Fez faculdade?
R - É, eu tinha terminado a faculdade e trabalhava, durante a faculdade, na Companhia São Paulo de Petróleo, porque eu namorava uma garota e o pai dela me convidou para trabalhar lá com ele. Enfim, trabalhava lá no negócio de petróleo, na área de vendas, de fiscalização dos vendedores, dos postos de gasolina, coisas assim. E aí depois acabei saindo de lá e eu estava uma vez em Paraty, a primeira vez que eu fui para Paraty ou a segunda, alguma coisa assim, e meu pai tinha lá um amigo, chamado Ranking Roberts, e esse amigo era sócio de uma agência de propaganda. E a gente se encontrou, ele frequentava minha casa, eu frequentava a casa dele e tal. Encontrei ele em Paraty, eu estava desempregado, não tinha o que fazer, e ele falou: "Olha, por que você não vai trabalhar em propaganda? Acho que você se daria bem propaganda". E aí eu fui para essa empresa chamada CIN, Companhia Internacional de Negócios, que era uma agência grande na época. Fui para lá e fiquei uma época trabalhando no departamento de cinema e de produção de filmes. E fui assim me ambientando na área de propaganda, em agências, e fiquei quase que toda vida em vários lugares, várias agências. Foi aí que eu conheci a Clarice, minha mulher atual.
P/1 - Como foi a escolha da faculdade que você cursou, que curso você fez?
R - É, eu fiz... eu fui levado. Hoje eu acho que eu fui levado pelo meu primo, Bernardo. Ele era de outubro, eu era de março, quer dizer, ele era uns quatro ou cinco meses mais velho do que eu, e ele estava nessa coisa de Administração de Empresas. E fazia a FGV e me levou para lá também; então, eu fui meio que acompanhado. Eu penso às vezes assim: que decisões eu tomei na minha vida? Eu sempre, mais ou menos, tinha uma oportunidade, e nunca tive assim um foco, de dizer "não, eu quero isso, é isso que eu quero fazer".
P/1 - Planejamento.
R - É, nunca tive esse planejamento, sempre a vida foi me levando e eu fui acompanhando. E era mais ou menos isso.
P/1 - Então você fez administração na FGV, isso?
R - Foi, eu fiz administração FGV, fiz administração na FGV, comecei em agência de propaganda, e fiquei em propaganda até dez ou vinte anos atrás.
P/1 - Como foi o seu caminho na propaganda? Nós estamos falando de um momento no país efervescente, não é?
R - Eu comecei lá na CIN na área de criação, de produção de filmes.
P/1 - Isso foi em que ano?
R - Ah, não sei...
P/2 - Mais ou menos 60?
R - Vamos ver, vamos ver... Setenta. Sessenta e poucos, setenta.
P/2 - Você se formou da faculdade... Você ainda estava na faculdade?
R - É, eu estava na faculdade, terminei a faculdade em 1966. Lembro que trabalhei em alguma outra coisa, mas que eu não lembro muito bem, mas depois fui para propaganda e fui trabalhar nessa área mais de criação e produção de filmes. Depois fui trabalhar numa produtora, como o contato, atendimento da produtora. E depois, eu não sei bem como, mas de repente eu fui atraído e fui levado para uma agência de propaganda chamada Grant Advertising, e nessa Grant, que era muito pequena, eu era o diretor-geral da agência em São Paulo. E a agência basicamente era no Rio de Janeiro, o chefão ficava no Rio de Janeiro e chamava-se Barnett, Thomas Barnett. E uma vez tinha um rapaz que trabalhava lá com a gente, que era redator, e eu não sei por que eu conheci o Roberto Duailibi, aí eu fui lá e falei: "Olha, eu tenho um redator, você não quer contratar ele?". "Não, ele não quero, mas eu quero contratar você, tá bom?". Aí eu fui para a DPZ, trabalhei alguns anos na DPZ, e da DPZ eu fui convidado para ir para o Rio de Janeiro, trabalhar na MPM do Rio, que tinha um amigo que era gerente lá da MPM do Rio e me levou para o Rio de Janeiro. Eu fiquei uns três ou quatro anos no Rio de Janeiro e acabei saindo da agência, fui demitido lá. Houve uns cortes e eu acabei sendo cortado. E aí eu voltei para São Paulo e passei por algumas agências, passei pela Salles e depois eu fui para a Standard, onde eu conheci a Clarice. Estava separado da minha primeira mulher, a mãe dos meus filhos, fui para o Rio de Janeiro, a gente acabou se separando lá, e quando eu vim para São Paulo, alguns anos depois, eu achei a Clarice.
P/2 - Então, essa história do casamento acontece na faculdade, depois da faculdade?
R - Na primeira [vez] na CIN. Inclusive acabei casando com uma menina que era tráfego lá na CIN. E a gente namorou acabamos casando, tivemos um filho, e cinco anos depois a gente estava separando e tivemos mais um filho. Então, eu tenho dois filhos.
P/2 - Como é o nome deles?
R - Um chama-se Teodoro e o outro chama-se Ricardo. Teodoro é o Ted. O Ted chama Teodoro, que é o nome do meu avô, Teodoro, Herman Teodoro, ele chama-se Francisco Teodoro.
P/1 - E nessa trajetória toda sempre na área de produção de TV?
R - Não, não, depois eu fui para área de atendimento de clientes. Na DPZ eu fiz atendimento de clientes, eu cuidava da conta da Nestlé. Fiquei uns dois ou três anos, quatro anos lá na DPZ, não lembro muito bem, e daí eu fui para o Rio e fui cuidar também de contas conta de cigarro, eu acho.
P/1 - E qual era o pulo do gato, assim, de um bom atendimento, de um profissional que faça essa interface de um modo produtivo, qual era o seu segredo?
R - Olha, eu não sei se eu tinha segredo ou não. Mas era estar sempre atencioso, procurando ajudar o cliente, dar uma olhada no que ele precisa, nas campanhas, procurar transmitir bem as necessidades do cliente para o pessoal da criação da agência, administrar essa interface, procurar passar para a agência o que o cliente precisa e o que ele está buscando. Essa é a grande coisa do atendimento. E o acompanhamento das coisas, para que as coisas aconteçam.
P/1 - Nessa volta para São Paulo, foi para a Standard fazer o que, exatamente?
R - Atendimento também, mas antes da volta para São Paulo eu passei pela Castelo Branco e depois eu fui para Salles.
P/2 - Você cruza com o Nemércio [Nogueira] na Salles, não?
R - Sim, sim.
P/2 - Porque ele era atendimento também.
R - É, ele era atendimento. Eu cruzo com o Nemércio na Salles, sim.
P/2 - Vocês foram colegas, você lembra?
R - Sim, fomos colegas, a gente convivia naquela época. E da Salles é que eu fui para a Standard.
P/1 - E como era esse mercado nesse momento econômico do Brasil, com regimes fechados, enfim, um pouco de crescimento artificial, mas havia um mercado em ebulição, na época.
R – Havia, sim. Havia sempre campanhas de verbas altas, e muita produção, e muito material sempre sendo produzido, era bastante agitado. Era uma coisa na época muito charmosa, essa coisa da propaganda, que eu acho que perdeu um pouquinho hoje a graça, não sei, porque eu também estou fora desse mercado faz tempo. Mas tinha toda uma coisa bonita e gostosa da propaganda.
P/1 - Num regime fechado, num regime militar, os publicitários não eram considerados como alienados?
R - Não.
P/1 - Porque houve uma dicotomia entre os engajados e os "porra-loucas", digamos assim.
R - Sim, sim.
P/1 - Isso não chegava de algum modo a impactar o seu dia a dia?
R - Não. Não. Não impactou nada, não.
P/1 - E como foi esse seu encontro com Clarice Herzog?
R - Eu trabalhava na Standard e a Clarice era a chefona da pesquisa lá e eu era um contato, atendimento de contas, cuidava da conta da Lever, eu acho, e... teve duas situações. Uma, tinha uma apresentação que estava sendo feita por um americano, ou alguma coisa assim, que estava lá, não sei se a Clarice estava fazendo a apresentação, o americano, mas eu fiz uma pergunta, eu fiz uma pergunta inadequada para a pessoa errada. E a Clarice ficou brava comigo, deu uma bronca em mim, disse: "Isso aqui é comigo, você não se mete nisso". Está bom, você não se mete no meu espaço. Aí estava lá convivendo e, um dia, teve um aniversário de um amigo, de uma pessoa que trabalhou comigo na DPZ, eu o conheci na DPZ, Antônio Batista. Eu estava separado já da minha mulher, separei quando sai do Rio de Janeiro, da minha primeira mulher, que chamava-se Sandra, então eu tinha me separado da Sandra e estava lá na Standard, e aí o Batista ia fazer aniversário, 40 anos do Batista, e ele ia convidar 40 amigos para uma festa, um aniversário. E eu não fui convidado, mas eu queria ir para a festa porque eu estava de olho na Clarice. Então peguei meus filhos, levei para Jaú, onde mora o meu irmão, deixei os filhos lá com ele, peguei o carro, voltei para São Paulo, trouxe uma garrafa de cachaça de Jaú, e fui à festa. E entrei na festa do Batista. E aí tinha um monte de gente dando em cima da Clarice, e tinha uma menina, uma mulher, que estava interessada em mim, mas eu não estava interessado nela, e a Clarice estava lá, aí a gente foi, saiu, saímos juntos, acabamos nos encontrando e estamos juntos até hoje.
P/1 - Esse primeiro contato se deu quando?
R - Em 1977.
P/1 - E como é que foi carregar toda essa tragédia que veio anteriormente, o caso, o assassinato, como que isso foi resolvido nos seus primeiros contatos com ela?
R - É uma coisa da Clarice e eu respeitava muito isso. Eu sempre ficava por trás, eu não me envolvia. Eu estava ali de guarda-costas, de resguardo, dando o apoio emocional que ela precisava. Até participava às vezes de reuniões com os advogados, mas era uma coisa da Clarice e muito do Fernando [Pacheco] Jordão, que estava muito com ela também. E eu ficava ali do lado. Eu sei que isso às vezes incomodava um pouco a Clarice, de ter o Gunnar lá, nessas situações, mas eu procurava nunca constranger, invadir, nada. Eu sei que era o espaço dela, ela que tinha que resolver isso, e ela, enfim, acabou resolvendo, e eu estava simplesmente como um apoio emocional e mais nada.
P/1 - Antes de conhecê-la, como você acompanhou aquele episódio, todo aquele momento?
R - Como a maioria das pessoas, através de jornais, enfim, a distância. Nunca tive um envolvimento maior.
P/1 - Chegou a se dar conta que aquilo significou uma mudança, um desdobramento que trouxe outros episódios transcendentes, que estão colados no próprio assassinato.
R - Claro, claro, sim, com certeza. Tenho total percepção e consciência disso. O processo estava começando a andar, e a procura dos advogados, essa coisa toda da Clarice; foi mais ou menos nessa época que a gente ficou junto.
P/1 - Eu queria uma definição sua de uma coisa muito bonita que houve entre os casais Vlado e Clarice, e Fernando e Fátima. Houve uma profunda amizade. Como você via a relação desses quatro? Assim, defina um pouco esses elos que juntaram essas quatro pessoas.
R - Eu não convivi [com] isso, eu não vivi essa época. É uma coisa que veio depois. Eu fiquei muito amigo do Fernando também, e convivia com eles, mas era uma coisa que era para trás, eu não tinha envolvimento, não tinha nada a ver com isso aí.
P/1 - Mas de todo modo você meio que desempenhou um papel de garantidor dos movimentos que Clarice assumia nos momentos de enfrentar o Estado...
R - Não, não. Eu dou simplesmente um apoio emocional e estava lá com ela. Mas toda ação, e tudo, era a Clarice que tocava e fazia, e eu dava um apoio emocional.
P/1 - E como era a convivência com os filhos?
R - Muito boa.
P/1 - Com os netos?
R - Muito boa. O “netão”, que é meu neto também, o Lucas, eu vi ele nascer, nos Estados Unidos, então a gente é muito próximo, a gente se gosta muito, sempre conversamos, temos uma boa aproximação. E as netas, as netinhas da Clarice, que moram em Washington, eu sou avô delas também. Elas sempre brincam comigo, e tem uma que pula na minha barriga e gosta. Ela falou assim: "Vovô, you has the biggest belly in the world". Eu me divirto, eu tenho orgulho da minha "big belly".
P/2 - Eu queria só voltar um pouco, de quando vocês começam a namorar, até vocês morarem junto, esse processo é muito rápido?
R - É muito rápido, muito rápido. Porque eu morava na casa de um amigo, morava no quarto de empregada dele. Ele tinha uma edícula e eu morava naquela edícula, no quartinho de empregada dele. E logo estava junto com a Clarice.
P/2 - Como vocês chegaram a essa mudança para a casa da Clarice?
R - Os filhos, claro, tinham uma certa resistência, o Ivo mais do que o André, porque de repente estava lá o... Principalmente o Ivo, que tinha um pouco mais de percepção do pai, da morte do pai, do que o André. O André era muito pequenininho na ocasião, então eu acho que o Ivo sentia um pouco essa invasão.
P/2 - Essa é a história que você escreveu no livro dos 50 anos do Ivo.
R - Exatamente. A gente já estava vivendo junto, e já na segunda casa, ou na terceira. Primeiro a gente morou junto num apartamento que ela tinha lá em Perdizes, aí alugamos uma casinha em Pinheiros, perto da escola das crianças, e depois a Clarice comprou uma casa lá na [rua] Professor Nova Gomes, e foi nessa casa que isso aconteceu, já algum tempo depois que a gente estava junto. Mas o Ivo tinha essa resistência, eu acho, e um dia, na mesa de jantar, a gente tinha uma salinha lá que tinha essa mesa de jantar, o Ivo uma vez falou assim: "Gunnar, você não percebe que você é uma pessoa perfeitamente dispensável nessa casa?". E eu levei a coisa, enfim, nunca fui agressivo nem nada, sempre fui levando as coisas. E o que acontece? Um pouco tempo depois, estávamos na avenida Sumaré, eu acho, e furou o pneu do carro. E ele me ajudou a trocar o pneu, foi lá, mexeu comigo, e aí ficamos companheiros de trocar pneu. E hoje somos muito amigos, tanto do Ivo quanto do André. São pessoas de quem eu gosto e eles gostam de mim, eu sinto, e se preocupam comigo, porque eu tenho certas deficiências, vamos dizer assim, ou certas limitações, principalmente de andar. Eu tenho as pernas meio fracas hoje em dia, os joelhos fracos, em função de uma doença, e eles estão sempre me apoiando, me ajudam. Somos bem amigos, bem próximos.
P/2 - O Ivo já era meticuloso?
R - Sempre, sempre, sempre foi.
P/2 - Além [da história] do carro você lembra de mais coisas?
R - Ah, das coisas dele, de fotografia, que ele gostava de mexer, as coisinhas dele lá.
P/2 - Mas isso vocês tinham em comum, alguma coisa?
R - Não, não. Especificamente, não. Não. Era por aí.
P/2 - Ele lembra dessa história do carro?
R - Acho que talvez. Pode perguntar pra ele, se ele lembra desse negócio do carro, quando furou o pneu e ele me ajudou a trocar. Mas ele tinha uma resistência. A Clarice conta, talvez ela possa contar isso melhor depois. Ele questionou a Clarice e tal: "Mas, e o Gunnar?". "Mas a mamãe precisa de um companheiro, às vezes para ir no cinema, para passear, é bom que eu tenha alguém do meu lado". Você lembra disso, Clarice?
P/1 - O que é uma coisa totalmente natural, não é?
R - É, claro. Então a resistência dele era natural.
P/1 - Vocês continuaram trabalhando juntos? Você e a Clarice, na mesma empresa?
R - Durante um tempo, sim. Durante um tempo trabalhamos juntos na mesma empresa. Ela era a vice-presidente e eu era diretor de atendimento, um contato.
P/1 - E essa convivência extrapolava para o lar, vocês levavam trabalho para casa?
R - Não. Não. Não.
P/1 - E vocês iam juntos, voltavam juntos?
R - Íamos juntos, voltávamos juntos, sim, claro.
P/1 - E a convivência com os filhos nessa época? Vocês chegavam tarde em casa, tinham tempo de se dedicar as crianças durante a semana?
R - Sim. Sim, tinha sempre tempo. A gente sempre foi muito de ficar em casa no fim de semana. Eu lembro, e as crianças lembram também, nessa casa [rua] Nova Gomes, a gente tinha uma espécie de... não era uma lareira, era um negócio de ferro onde põe carvão dentro. Espécie de uma estufa. E a gente às vezes estendia uma toalha e fazia piquenique na frente da lareira. E eu gostava de preparar o bife tartar e eles gostavam, e faziam, sentavam lá, e também estava aí o Rogério [Pacheco Jordão], às vezes estava junto lá também a Bia, que eram bem próximos da gente. O Rogério e a Bia, filhos do Fernando e da Fátima. E as crianças estavam sempre juntas. O Ted [Teodoro, filho do primeiro casamento de Gunnar] teve problema com o Ivo. [São da] mesma idade, o Ivo é um pouco mais velho que o Ted. E havia um conflito, uma resistência. Eles foram morar comigo uma época, porque houve um problema com a mãe deles, que acabou deixando eles em casa, e a gente falou: "Bom, então eles vão ficar por aqui e não vão sair mais". E mudaram e vieram morar com a gente, depois de algum tempo que a gente estava morando junto.
P/1 - Mas de todo modo constituíram uma família de nova qualidade.
R - Sim. Sem dúvida.
P/1 - Gunnar, como você pode avaliar, por exemplo, a constituição de uma entidade como o Instituto Vladimir Herzog? O que isso significa? Para que serve um instituto assim?
R - Eu acho que mais do que a própria memória do Vlado, significa uma abertura e uma procura de conscientizar a sociedade, informar a sociedade sobre diversos assuntos ligados a direitos humanos e às necessidades das pessoas. Acho que isso surgiu muito com a memória do Vlado e do assassinato dele, e isso extrapolou. Hoje eu acho que é muito mais do que isso o Instituto, muito mais.
P/1 - Tem uma coisa importante que é o fato de que não se trata de um saudosismo ou uma fixação na tragédia, mas de uma perspectiva de vida, de pensar no futuro, de ter o legado dele mais como um elemento de vivificador.
R - Sem dúvida. Eu vejo o Ivo nisso aí: cada vez que ele fala, é esse o pensamento dele: a democracia, as pessoas, o bem-estar das pessoas, e a vida de uma maneira geral. E sim, como você falou, a morte do Vlado foi o “start”, o começo para isso aí, a formação do Instituto. Foi a ideia do Ivo fazer essa coisa como preservação da memória e, daí para frente, lutar pelos direitos humanos, pelo direito das pessoas, pela democracia, pela educação, pelo bem-estar do cidadão.
P/1 - Você tem algum projeto prioritário que você acalenta de forma mais carinhosa, que o Instituto tenha desenvolvido e que você goste mais especialmente?
R - Não, não... Não sei, não sei responder.
P/1 - Você participa do Instituto?
R - Não, muito pouco. Recebo as informações e tal, mas não participo do Conselho, das decisões do Instituto, não.
P/1 - E você deixou publicidade exatamente quando e por quê?
R - Deixei a publicidade porque eu estava desempregado e fui trabalhar com a Clarice. A Clarice tem um instituto de pesquisa e eu fui trabalhar na área administrativa dele. Na verdade deixei de trabalhar em agência de propaganda, mas de alguma maneira ligada à propaganda, por causa da Clarice. Eu fui para lá ajudando nessa parte administrativa, principalmente.
P/1 - Aflorou aquele administrador de empresas lá do início?
R - É, é verdade.
P/1 - E aí a rotina mudou muito depois que você começou?
R - Não. Não, a rotina não mudou não. A única coisa que mudou na rotina é que a gente estava mais junto, eu e a Clarice. A gente ia e vinha, estávamos juntos o tempo todo, saía de casa e ia para o escritório, saia do escritório e ia para casa, estava sempre junto, dia e noite.
P/1 - Essa rotina perdura?
R - Essa rotina perdura. Hoje a gente não sai não, somos uma unidade. Onde um está, o outro está. Você vê que a Clarice está aqui hoje, porque é assim que nós somos.
P/1 - Está certo. Um mais um é mais do que dois.
R - Um mais um é mais do que dois. É "umzão".
P/2 - Gunnar, tem o seu prazer de cozinhar também, não é?
R - Ah, é verdade.
P/2 - A gente falou pouco.
R - Falei pouco.
P/2 - Como a culinária entrou na sua vida?
R - Bom, eu sempre gostei de cozinhar. A minha mãe cozinhava em casa, ela que era, enfim, a chefe da cozinha; claro que tinha uma cozinheira que fazia, mas ela muitas vezes me chamava lá da sala: "O que você acha disso, experimenta essa coisa aqui, se está bom ou não está bom". E eu fui me envolvendo nisso por prazer, porque eu gosto. Depois, quando eu saí de casa, fui morar sozinho e tinha que cozinhar as minhas comidas. E fazia as comidas em casa, às vezes convidava as pessoas amigas, e fui assim desenvolvendo isso pelo prazer mesmo. Eu acho a cozinha uma coisa importante, boa, e tenho muito prazer na cozinha. E as pessoas dizem que eu cozinho bem, que a minha comida é boa. Segundo a Clarice, quando alguém fala assim: "Quem vai cozinhar? É o Gunnar? Então eu vou". E gosto. Eu gosto de mexer com a mão, eu gosto de trabalhos manuais. Eu acho que fui para a profissão errada, de ser administrador de empresa, essas coisas. Devia ter feito outra coisa mais sensorial, sei lá... Químico. A Clarice já fez química. Mas [eu] deveria ter feito outra coisa mais interessante, um artesão... Eu sou muito bom em artesanato, eu gosto de mexer com madeira, de marcenaria, esculturinhas e coisas assim que eu gosto de fazer. Tenho essa parte minha que é bem gostosa. E a cozinha também faz parte disso aí: é um negócio manual, artesanal. Eu de vez em quando faço as minhas coisas lá, faço embutidos, faço geleia.
P/1 - Tem alguma especialidade?
R - Não tenho nenhuma especialidade. As pessoas me perguntam: "Qual é a sua especialidade?". Eu não tenho uma especialidade. Eu procuro, me inspiro em livros ou me inspiro... sei lá, assim: “Ah, eu vou fazer isso aqui hoje”. Vou e faço; me meto a fazer as coisas e normalmente dá certo.
P/2 - Você nunca pensou nisso como uma profissão?
R - Eu pensei nisso como profissão. Eu tive uma época um restaurante junto com dois colegas de escola, da faculdade, e que foi um fracasso total. Dois anos de prejuízo, aí acabamos fechando a coisa toda. Também acho que foi mal direcionado. Primeiro que as pessoas deram o meu nome para o restaurante. Os meus amigos lá [decidiram]: “Então vamos chamar ‘Gunnar’, porque o Gunnar é conhecido, conhece comida e tal”. E foi cunhado como um restaurante escandinavo. Na época havia restaurante escandinavos em São Paulo: tinha o do Maksoud, tinha um outro que era o Odin e tinha o meu. E o meu foi considerado o melhor restaurante escandinavo pela revista “Quatro Rodas”. Mas isso não funciona, não dá certo, porque a comida escandinava, não sei, hoje não tem mais nenhum restaurante escandinavo em São Paulo. Eu sei que foi mal posicionamento do restaurante e a coisa que acabou não acontecendo.
P/1 - Mas era uma atividade principal ou tinha a publicidade?
R - Não, não, era uma atividade principal. Era só o restaurante, já tinha terminado a escola, que aí estavam alguns colegas aqui que quiseram fazer sociedade comigo, e entramos e fizemos essa coisa. Que acabou não dando certo. E depois, essa é outra coisa, tem uma instituição, chamada... não me lembro o nome agora, mas que cuidava de gente com Alzheimer. E uma vez um dos diretores estava angariando fundos, tentando vender quadros, uma coisa assim, para os fundos para a instituição. E eu falei: "Olha, quadro eu não quero comprar, eu não tenho por que, não tenho nem onde pôr, mas eu posso fazer o seguinte: eu ofereço um jantar. Eu produzo um jantar e as pessoas compram ingressos, vão lá e fazemos um banquete escandinavo para essas pessoas". E eles gostaram da ideia. E no primeiro desses jantares a gente juntou umas 60 pessoas eu acho, na igreja evangélica da Granja Julieta, naqueles cantos lá. E foi uma coisa bem rústica, porque tive que alugar forno, tive que alugar fogão, essas coisas todas, não tinha muito espaço, mas acabamos fazendo um jantar para umas 60 pessoas e que foi bem, deu resultado para eles. Não sei como surgiu essa coisa, mas o Centro Britânico tem um restaurante lá em cima, no último andar deles, e esse restaurante então eu fui lá falar com as pessoas se a gente podia usar o restaurante para fazer um jantar lá, porque ninguém queria ir para Santo Amaro. Meus amigos todos aqui de Higienópolis e ir para Santo Amaro era difícil. E achamos que ali seria um bom lugar. Aí conversei com a pessoa, ele gostou da ideia, e disse: "Ah, tudo bem, eu cedo o restaurante e cobro só o custo dos garçons, mas não cobro o aluguel do espaço". E aí a gente fez eu acho que uns seis ou mais jantares lá, jantares escandinavos, suecos, banquetes "smörgåsbord", para 100, 120 pessoas. E aí funcionou muito bem. Até que o cara perdeu a concessão do espaço, então a gente não tinha mais onde fazer, porque é complicado: não dá para de repente entrar numa pizzaria... Talvez, hoje em dia, até desse, uma pizzaria dessa daí [como a] do Ivo, para fazer uma coisa como essa, para juntar dinheiro. Mas aí a Toca das Hortênsias, que é essa instituição, também quebrou, parou, fechou, então perdeu o sentido.
P/2 - Foi em que época?
R - Foi em que época isso aí? Acho que faz uns dez anos que parou... Oito anos, talvez.
P/2 - Agora você e a Clarice não cozinham juntos, é você que cozinha?
R - Não, a Clarice está sempre comigo lá. Ajuda, ajuda. "Clarice, mexe aqui um pouquinho, faz isso para mim". Ela diz assim: "O Gunnar cozinha e eu lavo a louça".
P/1 - Dizem que homem quando vai para a cozinha é para ser elogiado.
R - É. Eu gosto, tenho muito prazer em cozinhar, inclusive. Eu sozinho fazer as nossas coisas, comidinhas, pão... eu gosto de fazer pão.
P/1 - Tem um sentido comer junto, né?
R - Tem. É gostoso, é gostoso.
P/1 - É quase que uma celebração?
R - É, eu não sei. É um complemento de um encontro, de uma reunião. Ajuda a agregar.
P/2 - A sua família já tinha a tradição de se juntar à mesa?
R - Não, não. Família se juntava no Natal, nas festas de Natal na casa da minha avó quando a gente era bem pequenininho. E era bem divertida essa coisa de Natal lá porque éramos cinco.... não, seis, seis primos: eu com os meus dois irmãos e os meus três primos filhos da minha tia, irmã do meu pai. E a gente era pequenininho, a cortina ficava fechada, e a gente já de pijaminha, de noite, de repente tocava o sininho e começava a tocar "Noite Feliz". E aí abria a cortina e a gente ia lá, tinha aquela árvore de Natal enorme com os brinquedos e os presentes todos em volta. Isso é o que eu lembro de agregação da família, de estar junto, sempre em época de Natal.
P/1 - A sua avó era uma cozinheira de mão cheia?
R - Era sim, ela cozinhava bem, ela gostava de cozinhar. Às vezes eu estava lá ajudando ela. No final de ano, muitas vezes ela fazia marzipan em casa e eu ia ajudar ela a preparar, moer as amêndoas e preparar as coisas do marzipan. Então às vezes eu estava com ela lá.
P/1 - Gunnar, eu acho que nós podemos encaminhar já para o final porque eu estou satisfeito. Alguma coisa que você gostaria de ter dito e que a gente não tenha estimulado você a dizer?
R - Não, acho que não, falamos sobre tudo. Falamos da vida toda, desde os cinco anos até os 79. É tempo. Mas eu estou satisfeito, gostei.
P/1 - E como você se sentiu dando esse depoimento para nós?
R - É bem gostoso. É uma conversa. Não houve nenhum constrangimento, nem nada, nenhuma preocupação. Foi muito agradável e amigável.
P/1 - E os seus sonhos agora, quais são os seus sonhos?
R - Meu sonho? Hoje em dia meu sonho é viajar com a minha mulher. É o que a gente está fazendo, são os nossos planos. Estamos ambos parados, temos uma reserva suficiente para poder passear, então vamos fazer isso. Agora o meu filho Ricardo vai montar uma exposição em Milão, ele trabalha com arte ultramoderna, com computadores e luzes e imagens e tal, e ele disse que está montando esse negócio lá, que é um negócio incrível, que vai ter vinte projetores e não sei quantas caixas de som. Ele controla tudo pelo computador e vai estar lá no Instituto de Arte Moderna, em Milão. Então a gente vai para lá.
P/1 - Conferir?
R - Conferir. É. Vamos antes passar pela Toscana.
P/1 - Comer?
R – Comer e beber. E achei por acaso, na internet, uma agência de turismo que faz isso, chama-se Cieli di Toscana. E eles estão organizando tudo para a gente. E que é uma coisa fantástica. A gente teve uma experiência parecida na Itália, na Puglia, que tinha uma pessoa que levava a gente para os lugares, e o guia que mostrava tudo. Viagem com guia é muito mais rica do que você ter feito sozinho, ficar olhando as coisas. Então essa viagem para Toscana agora, no meio do caminho, foi muito bem-vinda e a gente vai então passear pela Toscana. E depois vamos para Milão. É isto.
P/1 - E depois seguem viajando?
R - Depois segue viajando. Em novembro nós vamos para os Estados Unidos, [para o] Thanksgiving lá com as menininhas; o ano que vem estamos programando Portugal, e assim a gente vai tocando a nossa vida. Enquanto as pernas aguentarem, a gente vai.
P/1 - Construindo na paz o caminho e a felicidade de vocês.
R - Isso. Isso.
P/1 - Muito obrigado, Gunnar. Foi muito bom ouvir você.
R - Foi um prazer, foi muito gostoso. Me ajudou a lembrar um monte de coisa.
P/2 - São coisas que você não pensa em geral?
R – É. Coisas que eu não penso em geral, que não me vêm à cabeça. Mas assim, estimulando, é bem gostoso. Bem gostoso falar. Lembrar um pouco.
P/2 - Muito obrigado, Gunnar.
R - Muito bem. Obrigado.Recolher