Entrevista de Rafael Luis Cavalcante dos Santos
Entrevistado por Bruna Oliveira e Ane Alves
São Paulo, 30/09/2021
Projeto Comunidade Zaki Narchi - Instituto Center Norte
Entrevista número PCSH_HV1046
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Rafael, para começar, eu queria que você dissesse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Rafael Luis Cavalcante dos Santos, eu nasci em São Paulo, eu nasci dia 23 de janeiro de 1989.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R - Maria da Penha da Cunha Cavalcante e Severino Luís dos Santos.
P/1 – E o que eles faziam?
R - Minha mãe sempre foi faxineira e meu pai era comerciante, vendia pipoca ali no Carandiru.
P/1 – E como você descreveria o seu pai e a sua mãe?
R – Então, a minha mãe e o meu pai conviveram até os meus três anos. A partir daí já foi o meu padrasto, que eu tenho como pai também. Aí já tem outra figura.
P/1 – Como era o nome dele?
R - João Batista Mendonça da Silva.
P/1 – E como era a sua relação, tanto com a sua mãe, quanto com o seu padrasto?
R – Ah, era super tranquila, boa. Só não tinha aquele negócio de pai para filho, que acho que era normal, mas era super tranquila. Ele era primo da minha mãe, são primos. E nasceu a minha irmã, do casamento deles.
P/1 - E você sabe como o seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Ele tinha vindo da Paraíba para cá também, quando minha mãe se separou e minha mãe estava solteira. Ele tinha vindo para cá para poder trabalhar, como todo nordestino fez naquela época. Aí ele veio para cá, acho que ele ficou um tempo na casa da minha mãe ou começou a sair com a minha mãe. Aí foi mais ou menos assim. Já eram primos. A minha avó, na verdade, é tia dele, irmã da mãe dele, então já se conheciam, já tinham proximidade.
P/1 – E você sabe a história do seu nome, por que Rafael?
R - Era para ser Jeferson, só que meu pai não sabia falar...
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Entrevistado por Bruna Oliveira e Ane Alves
São Paulo, 30/09/2021
Projeto Comunidade Zaki Narchi - Instituto Center Norte
Entrevista número PCSH_HV1046
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Rafael, para começar, eu queria que você dissesse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Rafael Luis Cavalcante dos Santos, eu nasci em São Paulo, eu nasci dia 23 de janeiro de 1989.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R - Maria da Penha da Cunha Cavalcante e Severino Luís dos Santos.
P/1 – E o que eles faziam?
R - Minha mãe sempre foi faxineira e meu pai era comerciante, vendia pipoca ali no Carandiru.
P/1 – E como você descreveria o seu pai e a sua mãe?
R – Então, a minha mãe e o meu pai conviveram até os meus três anos. A partir daí já foi o meu padrasto, que eu tenho como pai também. Aí já tem outra figura.
P/1 – Como era o nome dele?
R - João Batista Mendonça da Silva.
P/1 – E como era a sua relação, tanto com a sua mãe, quanto com o seu padrasto?
R – Ah, era super tranquila, boa. Só não tinha aquele negócio de pai para filho, que acho que era normal, mas era super tranquila. Ele era primo da minha mãe, são primos. E nasceu a minha irmã, do casamento deles.
P/1 - E você sabe como o seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Ele tinha vindo da Paraíba para cá também, quando minha mãe se separou e minha mãe estava solteira. Ele tinha vindo para cá para poder trabalhar, como todo nordestino fez naquela época. Aí ele veio para cá, acho que ele ficou um tempo na casa da minha mãe ou começou a sair com a minha mãe. Aí foi mais ou menos assim. Já eram primos. A minha avó, na verdade, é tia dele, irmã da mãe dele, então já se conheciam, já tinham proximidade.
P/1 – E você sabe a história do seu nome, por que Rafael?
R - Era para ser Jeferson, só que meu pai não sabia falar Jeferson, ele falava errado, ele falava “Jefson”, aí minha tia foi e falou: “Então coloca Rafael”. Aí ficou Rafael.
P/1 – E você lembra do dia do seu nascimento?
R – Não, minha mãe nunca entrou nesses detalhes. Não sei, não.
P/1 – E como é a sua relação com a sua irmã?
R – Bem, boa, super boa. Super boa, de irmão para irmão, de irmão protetor, de irmão mais velho. Sempre com aquele olhar de protegê-la, sempre foi assim.
P/1 – E você sabe a história dos seus avós? Você conheceu?
R – Não, só as minhas avós, os meus avôs não. Eles faleceram antes de eu nascer. Provavelmente, se o pai da minha mãe estivesse vivo, minha família não teria vindo da Paraíba para São Paulo. E aí eu não tenho... eu sei que ele era mecânico, lá na Paraíba e ele foi assassinado por um rapaz lá. Aí, depois desse assassinato dele, a minha avó veio para cá. Aí foi morar lá no Jardim Filhos da Terra, para aqueles lado ali do Tremembé. E ela vendia bolo e café aqui na rodoviária. Aí depois ela conseguiu um terreninho para cá e conseguiu construir. A minha avó é a matriarca da minha família, ela que foi conseguindo tudo, os apartamentos da minha família todos foi ela que conseguiu aqui. Ela que instalou a nossa família aqui.
P/1 – E como é o nome dela?
R - A Carminha, a Maria do Carmo, vocês vão entrevistá-la.
P/2 – Ela te conta como era aqui, quando ela chegou?
R - Ah, conta, ela e todo mundo. Eu sempre tive essa relação com os mais velhos, de curiosidade também. Algumas poucas lembranças que eu tenho também, de criança. Aqui era tudo barraco, de bico, de terra batida mesmo, de pedra, de entulho, tudo barraco de madeira estreito, tudo desse jeito. Com o córrego aqui no meio, tinha um rio no meio. Era desse jeito aqui.
P/1 – E desde que você nasceu você mora aqui?
R – Desde que eu nasci, desde que eu nasci.
P/1 – E quando você era bem pequeno, bem pequenininho, tinha algum costume, algum cheiro, alguma festa comemorativa da sua família, que você lembra?
R – Ah, as festas de final de ano. Festas de final de ano sempre foram as mais marcantes, tanto na alegria, quanto na tristeza. Festas de final de ano sempre foram as mais marcantes, que era onde a gente se juntava, para ir para a praia, aí ia um monte de carro, ia todo mundo, conhecido, vizinho, a família inteira. Sempre na festa de final de ano.
P/1 – E para onde vocês iam?
R - Para a Praia Grande, Mongaguá, essas praias.
P/1 – E você lembra da primeira casa que você morou?
R - Lembro da segunda que minha mãe morou, provavelmente foi a segunda, que a primeira não lembro. Eu lembro que minha mãe fala que era um barraco, que era metade no barranco e metade dentro do rio, o barraco (risos). Aí esse barraco eu não lembro, que eu era muito pequeno. Mas a casa que ela morou com meu pai eu também não tenho muita recordação. Mas a casa que a gente morou depois, que era da separação e tudo, aí já me recordo mais, que era aqui na avenida, que acho que só na avenida tinha casa de bloco, aqui no meio era tudo de madeira. Aí minha avó tinha conseguido comprar uma casa na avenida, com um espaço de garagem. Aí minha mãe foi e fez esse espaço de garagem o barraco dela. Essa daí eu lembro.
P/1 – E como era a disposição da casa?
R – Ah, era apertado. Bem apertado, só um cômodo. Eu dormia no chão e minha mãe na cama (risos). Era bem apertado. Não tinha banheiro, eu tinha que usar o banheiro da minha avó. Minha mãe saía de manhã para trabalhar e minha avó todo dia vinha e me soltava, vinha me pegar de manhã, depois, quando eu acordava. Aí era desse jeito. Tinha um quintalzinho pequenininho, tinha um tanque para minha avó lavar a roupa dela e a casinha dela já bem colada. Era desse jeito.
P/1 – E como foi passar a infância aqui na Zaki Narchi?
R - Ah, foi boa, porque acho que é a infância que todo garoto quer. Solto. Minha infância foi ‘solto’, sempre fui livre. Então, tive relação com todos os lados do submundo e do mundo. Para mim foi tranquilo, foi boa, porque pude aprender bastante, com tudo.
P/1 – E o que você gostava de brincar, quando você era pequeno?
R - Gostava mais de andar de bicicleta, brincar de esconde-esconde, a gente brincava muito de esconde-esconde, eu e os meus amigos.
P/2 – E a sua irmã participava com você, nessas brincadeiras?
R – Não, não. Eu tenho outra irmã também, que é por parte de pai, que mora no bloco do lado que eu morava, quando eu era moleque. Mas elas não participavam, eu era sempre o mais velho, eu brincava só com os moleques.
P/2 – São duas irmãs e você?
R – Não. Por parte de mãe eu tenho uma irmã e um irmão. E por parte de pai eu tenho seis irmãos. Uma mora aqui em São Paulo, mora aqui na Zaki Narchi também. O outro morava, que é um pequenininho, caçula, não mora mais. Aí eu tenho uma no Rio de Janeiro, uma no Rio Grande do Norte e o que está trabalhando em Santos, em Cubatão.
P/1 – E como é o nome deles?
R - E tem um outro na Paraíba. O que está trabalhando em Santos é o Inácio. A que mora no Rio Grande do Norte é a Denise. A que mora no Rio de Janeiro é a ngela. A que mora aqui na Zaki Narchi é a Ariane. O Eduardo, o pequenininho, é o que mora lá no Jaguaré agora. E o Nilo, que eu não conheço, é o que mora na Paraíba, que é o mais velho de todos, por parte de pai. E por parte da minha mãe eu sou o primogênito, eu sou o mais velho.
P/1 – E o irmão por parte de mãe?
R - É de outro relacionamento da minha mãe, minha mãe foi danada, ele teve três filhos, cada um de um relacionamento (risos). Cada um de um pai. Ah, é tranquilo também. Também minha relação com ele sempre foi boa. Minha relação com os meus irmãos sempre foi boa, com todos eles, nunca tive nenhum problema, nenhum atrito. Só aquelas briguinhas de irmão mesmo, de birra de irmão mesmo, caso contrário, nada mais que isso.
P/1 – E você tinha bastante amigo aqui?
R – Ah, tinha bastante. Todos nós aqui, sempre teve bastante, porque a gente sempre foi muito solto aqui, todo mundo brincava com todo mundo. Eu ainda um pouco mais que, quando eu morava na avenida, eu já vinha mais aqui para trás, que aí alguns moleques da avenida não vinham aqui para trás, que a mãe não deixava ou alguns tinham um pouco de medo ou receio, que os moleques daqui de trás eram mais folgados. Mas eu vinha, sempre vinha, porque meu padrasto, que é o que eu considero como pai, já era envolvido aí no mundo do crime, já tinha aquele peito um pouco mais para frente.
P/1 – E como era, na sua infância? Você tinha um sonho de ter alguma profissão, de ser alguma coisa? Você tinha um sonho de infância?
R - Ah, a gente sempre quis ser jogador de futebol. Mas aí o talento não ajudou muito. Aí, quando fui crescendo um pouco mais, já quis ser bombeiro, queria ser bombeiro um tempo, porque acho que pegava muito fogo aqui na favela, aí ficava doido, já tinha que correr toda hora, para pegar as coisas nos barracos. Aí sempre teve aquela vontade de ajudar, aí ser bombeiro acho que era uma profissão que eu sempre quis.
P/2 – Queria só voltar um pouquinho. Queria que você contasse essas lembranças dessas viagens que você fazia com a sua família. Você lembra de alguma, que vocês iam para a Praia Grande?
R – Lembro, lembro.
P/2 – Conta um pouquinho pra gente. Ia só a família ou vocês juntavam e iam mais pessoas daqui?
R – Não, ia bastante gente, iam amigos, vizinhos, iam em torno de nove a onze carros. Isso perua, Caravan, naquela época ia tudo cheio, ia no colo, as crianças iam no colo, os adultos iam sentados, então ia bastante gente. Aí sempre no final de ano. Teve uma que a gente foi e teve uma Kombi do amigo nosso, do vizinho nosso, que não conseguiu subir uma subida, aí teve que voltar. E, nossa, nesse dia meu padrasto arrumou até uma confusão no trânsito. Ele foi atrás do cara e o cara conseguiu virar uma direita lá, daqui a pouco ele: “Nossa, se eu não tivesse com vocês eu ia atrás desse cara, ia agora” e eu pivete, ficava vendo aquilo, nossa, assustado, ele com o carro cheio de gente. Teve outra também que a gente sofreu um acidente, um carro com três jovens, na época era um Gol, aquele GTI, bem antigo. Aí ele veio e bateu atrás do Chevettinho, que era da minha avó, mas só que estava com o meu padrasto, que ele que cuidava do Chevette. Bateu atrás do Chevetinho, Chevettinho Hatch, bateu atrás e o Chevette quase capota, com a gente dentro. Aí os caras estavam meio bêbados, todo mundo bêbado e eu era pivetinho. Aí um amigo nosso também estava bêbado no outro carro, que já parou, já queria arrumar confusão. Aí esse dia também foi bem marcante. Algumas foram mais ou menos nesse... fora as alegrias de cachaça, esses negócios que os adultos ficavam, a gente era criança, ficava com as brincadeiras deles, todas essas coisas. A gente só ficava vendo e dando risada.
P/2 – Vocês alugavam casa?
R – Nada, ficava lá, bate-volta, era a turma da farofa, mesmo (risos). Batia e voltava com o carro cheio de gente, voltava cheio de gente e de coisa e voltava todo mundo depois, todo mundo queimado. Carro vazio, bêbado, um por cima do outro, dormindo, de ressaca, era desse jeito. Porque já virava, era na ‘virada’. Aproveitava a ‘virada’ já, aí já ficava por lá mesmo. Era desse jeito, assim.
P/1 – E quais as lembranças que você tem quando pequeno, do fogo, que você comentou?
R – Ah, do fogo teve bastante incêndio aqui no morro, teve bastante. Teve uma vez que a minha avó morava na casa de alvenaria, a gente já morava nos apartamentos, nessa época já existia o apartamento, fazia pouco tempo. Aí começou a pegar fogo, aí eu lembro que eu já saí correndo de lá de onde eu estava, da avenida, já subi lá para onde minha avó estava, o fogo estava um pouco distante. A gente já começou a tirar as coisas, começou a tirar bujão, começa a tirar, procurar documento, o que dá para tirar. Aí a gente, eu e mais alguns amigos, sempre gostava de estar ajudando, então a gente ia, direcionava o bombeiro, ajudava no manuseio das mangueiras, chegava mais próximo do fogo. E era mais ou menos desse jeito.
P/1 – E como que foi? Eu sei que você era pequeno, quando começou a mudar pros apartamentos, mas você tem lembrança?
R – Sim. Quando começou a destruir aqui, construiu um alojamento lá no estacionamento que tem ali, próximo do Center Norte. Aí, desse alojamento, conforme iam tirando a parte dos barracos e já construindo os prédios e entregando, aí iam remanejando. Aí a gente foi e morou lá nesse alojamento também, que é bem aqui nessa rua, na feira de domingo. Aí eu morei acho que no N-23, acho que era isso. E o banheiro era coletivo (risos).
P/1 – Como é que era?
R - Ah, era num banheirinho... era um corredor, eram vários blocos, vários conjuntos de alojamento. Aí tinha um espaço, assim, lateral que tinham vários... como se fosse aqueles banheiros de vestiário mesmo, era um banheiro. E ali era banheiro coletivo.
P/1 – E como era morar lá?
R – Ah, era bom também, né? Criança é sempre bom tudo, criança não tem nada de ruim.
P/1 – E eu vou direcionar agora, um pouco, as perguntas para a escola. Você lembra a sua primeira lembrança da escola?
R - Do ‘prézinho’ em diante?
P/1 – É, a primeira lembrança que você tem da escola.
R – Ah, tem bastante. Eu tenho uma do ‘prézinho’, a minha professora do ‘prézinho’ até a minha oitava série, eu sempre a via e a gente sempre se cumprimentava, a gente sempre se beijava, ela sempre me abraçava. Então, ela foi uma das professoras que mais marcou, foi a do ‘prézinho’, a minha primeira professora. Que eu estudei sempre na mesma escola, do primeiro... do ‘prézinho’ ao oitavo, no Oliva Irene, sempre estudei lá. Aí, de lá eu fui para o Buenos. Aí eu sempre a via, de vez em quando, toda vez que eu a via, me abraçava, me beijava. Então, a professora me marcou bastante também.
P/2 – Você lembra o nome dela?
R - Agora não (risos). Agora não, não lembro, mas era Maria alguma coisa.
P/1 – Como ela era?
R – Era branca, do cabelo meio ‘Chanel’. Aquela cara meio de professora de cinema, mesmo (risos). Bem bacana.
P/1 – E como você ia para escola?
R - Do ‘prézinho’ até a segunda, terceira série, se eu não me engano, eu ia com uma pessoa que me levava. Acho que era a Vânia, que era a minha vizinha, minha mãe pedia para ela me levar. Aí tinha ela e a prima dela também, quando minha mãe trabalhava minha mãe pagava para elas me levarem no ‘prézinho’ e eu ia com elas. Aí depois eu já começava a ir sozinho, ia com os amigos, com os outros moleques, com as meninas. Às vezes ia de ônibus, de carona, que aqui passava o ônibus e a gente descia lá perto da escola. Aí tinha motorista que já ficava frequente, já abria a porta de trás, aí entrava um monte de moleque. Era assim que eu ia.
P/1 - E teve outra professora, professor, que foi marcante?
R - A professora Vera também foi uma que marcou, que depois ela virou diretora. Ela foi minha professora na segunda série, a Dona Vera. O professor Vivaldo foi um professor de Educação Artística também, foi um professor que marcou, porque eu bagunçava bastante na aula dele (risos). E a escola inteira gostava dele. Foram os professores que marcaram. Professor Ortega, de Geografia. Foram pessoas que marcaram, no Oliva Irene.
P/1 – E como foi, como que seguiu a sua vida na escola, quando você foi crescendo?
R - Eu sempre fui bagunceiro. Eu sempre fui… dos meus amigos mais próximos, eu sempre fui o mais atentado de todos eles, acho que de nós três, que é, por exemplo: eu, o Diogo e o Robson, que a gente cresceu junto. De nós três eu sempre fui o mais atentado, o mais bagunceiro, em tudo. Que sempre teve... que já dava sintomas que não ia dar certo alguma coisa.
P/1 – E você lembra alguma história marcante dessa época, na escola?
R – Na época de escola?
P/2 – Alguma bagunça que você aprontava, lembra de alguma?
R - Ah, tem bastante. Teve uma que a gente rasgou a cortina, a professora fez a gente costurar, falou para a gente levar agulha e linha, no outro dia. Aí, antes dela chegar, a gente colocou as meninas para costurar para nós, que a gente não sabia. Isso já foi eu e o Maílson, amigo meu que mora no Rio de Janeiro. A gente também bagunçava bastante. Tem essa. Tem uma que teve um dia que eu tomei três advertências no mesmo dia. Três advertências gera uma convocação. E para chamar a minha mãe? Minha mãe chegava lá, os professores falavam que eu era chefe de quadrilha, que eu era muito bagunceiro (risos). Eu era terrível, terrível mesmo. Era desse jeito.
P/1 - E quando sua mãe ia lá, como você se sentia?
R – Ah, procurava um buraco para colocar a cara e não achava, né? Já vinha tomando uns puxões de orelha, no meio do caminho, uns tapas, uns ‘pedala’. Já era desse jeito (risos). Tentava esconder, às vezes, a convocação, mas às vezes não dava, tinha vez que não dava. Às vezes eu tentava ludibriar sobre as professoras ou a diretora, para não convocar, mas às vezes não dava, às vezes a Dona Maria tinha que ir lá.
P/1 - E quando você foi crescendo, como era sua relação com os amigos? Vocês saíam, como era?
R - A gente saía, quando a gente começou a sair, nessa fase de sair, a gente ia para show, a gente ia para show na Portuguesa, para baladinha. A gente ia ali para a Avenida Nova, a gente fazia essas coisas assim.
P/2 – Você tinha quantos anos, mais ou menos?
R - Comecei a sair, na verdade, com meus amigos, acho que uns quatorze anos. Com uns quatorze anos já comecei a sair.
P/2 - E com a sua mãe e seu pai era ‘de boa’ para você sair?
R – Ah, era, né? Eu sempre tive essa liberdade. Meu padrasto, com quatorze anos ele já aprontou comigo, já me levou para sair com ele (risos). Aí, quando eu cheguei também, minha mãe me deu uma surra. Minha mãe já era separada dele, nessa época. Eu gostava de estar onde ele estava. Eu sempre gostei dele. Mesmo depois da separação dele e da minha mãe, eu sempre gostava de estar onde ele estava. E ele era viciado em jogo, essas coisas, ele ficava jogando baralho. Então, eu com treze, quatorze anos, onde ele estava, eu ficava lá perto dele, que aí eu tomava uma Coca-Cola, às vezes dava umas ‘bicadas’ no copo de cerveja dele, tomava um pouco de cerveja, aí pegava a chave da moto.
P/1 – Você estava contando quando você saía com o seu padrasto.
R – Sim. Então, onde ele estava, eu sempre queria estar. Porque eu o tinha muito como uma figura paterna. Como foi ele que, depois da separação da minha mãe com o meu pai, ele sempre estava presente, me dava educação. Nunca me bateu, nunca precisou me bater, mas sempre me mostrou o certo, sempre mostrou o errado, sempre me deu direção de tudo que fazia bem, tudo que fazia mal. E me dava carinho, assim que necessário. E sempre, mesmo depois da separação da minha mãe, onde ele estava eu queria estar. Aí ele estava jogando baralho, eu pegava a chave do carro, falava: “João, vou dar uma volta”, o chamava de João. Mas eu sempre tive muita consideração como pai mesmo, quem me perguntava eu falava que era pai. Até hoje mesmo eu falo que é meu pai. Eu costumo dizer que eu tive o prazer de ter dois pais e não ter nenhum (risos). Porque ele já é falecido, e meu pai mora na Paraíba. Então, essa figura paterna não tive muito presente na minha vida. Aí, sempre que eu podia, eu estava com ele, sempre que ele estava na rua, eu estava com ele. Quando ele não estava preso, eu estava aqui com ele, onde ele estava, se ele estava bebendo no forró um pouco mais tarde, eu estava lá perto. Era sempre assim.
P/1 - E como foi para você, quando ele faleceu?
R – Ah, foi horrível, porque eu estava perto. Eu estava perto, a gente estava junto. Foi no mesmo dia que a mãe dele faleceu, que é a minha vó, costumo dizer que é minha avó. Ela faleceu de tarde, no Rio de Janeiro, problema de saúde, ela teve câncer de mama. E em decorrência do câncer agravou a saúde dela e acho que teve uma parada, não me recordo ao certo, ela veio a falecer. E ele estava preso na época, só que ele vinha de dia, para poder trabalhar. Ele trabalhava aqui de dia e voltava à noite, para dormir no presídio, lá em Franco da Rocha. Aí, quando eu cheguei da Vila Maria, eu estava com a moto dele, eu tinha ido ver uma amiga, na Vila Maria. Quando eu cheguei na Vila Maria com a moto dele, aí ele me chamou na casa dele. Na hora que eu o vi estava chorando, ele falou: “A mãe morreu”. Falei: “Como assim?!” Ele falou: “Minha mãe morreu”. Falei: “Não, você é louco?”. Falou: “É, vou ver se consigo ir lá ver, para mandar o corpo para velar”. Na Paraíba, né? Aí ele ligou no presídio, aí o diretor disse que não podia autorizar, por conta de ser um outro estado. Que, se fosse aqui em São Paulo, o diretor até o autorizava velar e enterrar, mas por conta de ser outro estado, ele não podia ir. Aí até ele queria ficar foragido, queria ficar foragido nesse dia. Mas aí, como já faltava pouco tempo para ele vir embora de vez, para ele já poder ficar de liberdade, aí ele ficava naquele impasse, ficou naquele impasse, naquele nervosismo, que sempre foi uma pessoa muito nervosa, muito explosiva, muito hiperativa e muito brava. Aí ele ficou naquele nervosismo, minha avó conversou com ele, falou: “Falta pouco para você vir embora, para você cuidar das suas filhas, para você cuidar da sua família, tudo. Sabe que tudo que acontece é na permissão de Deus”, ela conversou bastante com ele. Aí acho que deu um pouco de direção nesse dia, para ele. Mas acho também que, se ele tivesse ficado foragido e tivesse ido prisioneiro, provavelmente ele teria falecido em outra ocasião. Não nessa, né? Perder o pai e a avó de consideração, no mesmo dia. Para a minha avó, então, foi um baque, que era a irmã dela e o sobrinho. Aí, quando a gente desceu da casa dele, minha avó estava se preparando para ir para o Rio de Janeiro, com uma prima nossa que morava na Vila Maria, aí a gente veio aqui para trás, a gente veio dar uma volta, tomar um refrigerante, ver alguns amigos. Aí já estava dando o horário dele tomar banho, para ele retornar, isso era umas cinco e pouco da tarde. Aí ele falou: “Rafa, vou lá em casa tomar um banho, para voltar para aquele inferno”, foi assim que ele falou. Falei: “Ah, tá bom”, até bati na barriga dele, assim, peguei o refrigerante dele e continuei conversando com os amigos. Falei: “Não, tá zoadão que a mãe dele morreu hoje lá no Rio e tal”. Aí estava meio abatido, que ele sempre foi uma pessoa bem alerta, até por conta do passado dele, ele sempre andou bem alerta, bem de cabeça erguida. Aí, quando ele veio para a avenida, acho que ele deve ter encontrado com a pessoa, aí ele deve ter tentado correr. Quando ele chegou na avenida, na frente do bloco 28, ele tomou quatro tiros. Aí, um dos tiros pegou aqui no pescoço dele, pegou a aorta. Aí esse tiro foi o que o matou. Ele veio a falecer umas oito e pouco da noite, lá no Mandaqui. Aí, nisso, minha avó estava indo para o Rio de Janeiro, a gente ligou para a minha avó, para avisar o que tinha acontecido, minha avó desesperada, voltou no meio da estrada, para ir para o hospital. Chegou no hospital minha avó já não podia fazer mais nada também, só vir com notícia triste. A minha avó teve que desenrolar, que ela sempre foi essa…
P/1 – Você estava contando daquele dia, como foi para a sua avó.
R – Então, aí ela teve que vir no meio da estrada, ela vinha para cá, foi lá para o Mandaqui. Quando ela chegou no Mandaqui, eu estava lá no andar da UTI, bem apreensivo também. Estava com a ‘cruzinha’ dele, que ele tinha, de prata, no pescoço. E como pegou no pescoço, eu acho que quebrou a corrente. Aí um rapaz tinha achado, um amigo nosso tinha achado, ele falou: “Rafa, isso aqui era do Batista, não é não?” Aí eu peguei. Aí conforme ele foi resgatado, eu fiquei com esse crucifixo na mão, a ‘cruzinha’ pequena, fiquei com ela na mão, fiquei orando, pedindo. E ele ficou lutando ainda, lutando, ele tomou o tiro acho que era umas cinco e meia, cinco e quarenta. Aí ficou lutando, ele foi aqui para o PS, daqui ele foi para o Mandaqui. Aí no Mandaqui ele não resistiu, aí o médico veio com a notícia. Primeiro o médico perguntou o que ele fazia da vida, o que ele era e tal. Eu falei: “Ele trabalha, ele é trabalhador, só tem um problema na Justiça, mas ele é trabalhador. Por quê?”. Ele falou: “Não, porque a gente tentou fazer tudo que a gente pode”, mas eu senti que eu houve um pouco de... sabe quando você tem aquela sensação de que, assim, que ele já tinha tatuagem, o rosto dele não negava. Aí você se sentia assim: “Ah, a gente até que tentou, mas como não tinha muito suporte, não deu para fazer muita coisa”. Aí foi aonde que meu mundo desabou ali, que ele era uma pessoa que eu tinha como coluna, como um espelho mesmo, tinha como referência. Então, ali foi uma perda muito forte para mim.
P/1 - E quantos anos você tinha?
R - Eu tinha 21.
P/1 - E como foi para você e para sua família?
R – Ah, foi muito ruim, foi muito pesado. Se eu te falar que ele foi velado aqui onde a gente está, você acredita? Então, para a gente foi muito ruim, porque ele era coluna para a família inteira. Ele sempre foi referência para a família inteira, foi um baque para todo mundo, ainda mais da forma que foi.
P/1 - P/1 - E como foi seguir em frente?
R – Ah, foi difícil, né?
(Risos) É, então, foi mais ou menos essa... foi difícil para todos nós, tanto para os amigos, quanto para a família. Porque até mesmo no velório e no enterro dele, ficou um clima muito tenso. Os amigos dele não sabiam o que tinha acontecido, então era um clima meio tenso mesmo, de verdade, alguns amigos até armados. Então, foi uma perda muito forte e um clima muito tenso. Não teve para ter aquele sentimento mesmo de dor, era um sentimento de dor misturado com preocupação, que tipo: o que pode acontecer? Foi mais ou menos assim.
P/1 - E nessa época você estava saindo da sua adolescência. Você teve algum namoro?
R – Tive alguns namoros (risos). Tive um na adolescência, que foi o que mais durou. Tive dois na adolescência, e dois duradouros, na adolescência. Um acho que um ano e pouquinho... os dois de um ano e pouco, foram os mais duradouros, na adolescência.
P/1 – E quais foram, tirando essa parte triste, as lembranças mais marcantes da sua adolescência?
R – Ah, as mais marcantes foram quando eu comecei a aprender a dirigir. Moto, carro. Moto principalmente, que no dia que eu estava aprendendo a dirigir moto, quando eu consegui sair com a moto, a polícia me parou (risos). Estava eu e meu tio, que foi aqui na rua da feira. Eu estava lá tentando, tentando com a XLX, acho que era uma XLR, aquelas motos altas, antigas, tentando e não conseguindo, meu tio já perdendo a paciência: “Calma, é só soltar devagar!”, eu: “Tá, tá”. Tinha treze anos, eu acho. Aí, quando eu consegui sair, passou a viatura da corregedoria, uma Ipanema. Aí eles passaram pela rua, viu eu o meu tio e voltaram. E quando eu consegui jogar a segunda na moto, aí já parou. Falou: “Para”. Aí começou a falar, aí eu fiquei com medo quando o policial falou que ia me levar para a Febem e o meu tio para a delegacia (risos). Aí eu fiquei com medo, mas era só para pôr uma pressão mesmo, aí veio todo mundo, veio meu tio, minha família inteira. Aquela coisa de comunidade, quando a pessoa é abordada já vai encostando uma ‘pá’ de gente, já vem um monte de gente ali. Aí ficou lá com a gente um pouquinho de tempo, depois pediu para voltar e já era. E de carro também. De carro, quando comecei aprender na Brasília e no Fusca, acho que para mim foram as melhores épocas da infância, quando a gente começa aprender a dirigir, que é algo que a gente gostava muito, eu e meus amigos. A gente gostava muito de carro, desde criança, brincava de carro no tapete, tinha aquelas coleções de carrinho, de carretinha, então a gente sempre gostava. A gente ficava sentado na avenida, vendo os carros passarem, ficava olhando os modelos de carro, ficava conversando, comentando sobre os carros que passavam. Então, como a gente gostava muito de carro e futebol, então acho que o que mais marcou na minha infância foi isso daí, foi aprender a dirigir e fazer o que eu mais gosto, que é dirigir.
P/1 - E qual a sensação que você tinha quando estava dirigindo?
R – Ah, se sentia o Lewis Hamilton! (risos) Era bom, muito bom. Como a gente trabalhava em lava-rápido também, né? Eu trabalhei em lava-rápido, todo o carro a gente queria manobrar, para falar que manobrou aquele carro, para falar que dirigiu aquele carro. Era desse jeito. Tudo que era envolvendo carro, a gente queria fazer. Tinha meus amigos que trabalhavam em loja de carro, eu trabalhei em loja de carro também, como lavador. Então, tudo que envolvia carro na minha infância, eu gostava bastante.
P/1 - E como… qual foi o seu primeiro trabalho?
R - Meu primeiro trabalho foi no lava-rápido. Foi no lava-rápido do meu padrasto, depois foi no lava-rápido do Ed Carlos. Não, foi no lava-rápido do meu tio e depois eu trabalhei no lava-rápido do Ed Carlos, que é o Ed. Depois trabalhei na loja de carro onde meu tio trabalhava, na Vila Guilherme. Aí, de lá eu trabalhei na transportadora, aí já foi para outra história.
P/1 - E como foi essa primeira experiência trabalhando?
R – No lava-rápido foi bom, porque eu já gostava de carro, então já trabalhando com carro ali e ganhando dinheiro, então para mim foi bom. A gente já começa a ficar independente, já começa a ter aquela sensação de que não está mais precisando da minha mãe para tudo e tal. Para mim foi bom.
P/1 – Você lembra o que você fez com seu primeiro salário?
R – Não (risos). Provavelmente eu devo ter comprado doce (risos). Porque eu tinha uns doze anos no meu primeiro lava-rápido, então eu provavelmente comprei doce. Acho que foi um ou dois reais que eu ganhei, na época. Meu pai que me pagou! Meu dia foi dois reais.
P/1 – E como que foi isso, como seguiu o seus trabalhos? Conta um pouco.
R – Ah, segui até meus vinte, meus dezenove, trabalhando. Trabalhei no lava- rápido, depois fui para a loja de carros. Aí trabalhei na transportadora, depois da transportadora saí, aí eu fui preso, depois de um tempo eu fui preso. Aí, depois que eu saí da prisão, arrumei um serviço em aplicativo, na 99. Aí, da 99 já trabalhei com... hoje eu sou ajudante de jardinagem, terceirizado da prefeitura. Mas já trabalhei de... a gente trabalhou acho que com zeladoria também, da terceirizada na prefeitura, eu e o Aquiles. Já trabalhei... como que fala? De motorista. Eu trabalhei... deixa eu ver outro, que eu não me recordo, mas eu fiz algumas coisinhas (risos). E atualmente eu tô no aplicativo e como ajudante de jardinagem, pela prefeitura.
P/1 - E como foi esse período preso? Você quer contar?
R – Ah, eu conto, para mim não tem problema nenhum. Para mim foi difícil, né? Que, como eu sempre fui um moleque muito solto, muito ‘rueiro’, então para mim foi muito difícil, porque tinha momentos que não suportava, então você queria estar na rua. Tinha noite que você queria estar na rua, tinha dias que você queria, porque queria estar perto da família. Então, foi o momento mais difícil da minha vida, foi aquele momento que você para pra refletir. Mesmo você refletindo, ainda você sai, você comete erros, porque o sistema não regenera ninguém. O sistema te denomina como “reeducando”, só que ele não reeduca ninguém. Então, você se reeduca, por vontade própria, por vontade da sua família, pelas pessoas que estão ao seu redor. Então, isso te regenera, porque o sistema não regenera ninguém.
P/1 - Rafa, você lembra o momento em que você foi preso?
R – Sim, lembro. Diversas vezes eu passo por ele (risos). Pelo mesmo local. Eu fui preso em frente ao Playcenter, na Marginal, bem na pista local. Eu estava dirigindo um caminhão com carga roubada, aí estava eu e mais um rapaz. Aí o amigo conseguiu correr, o amigo correu e na hora que eu pulei para correr, o polícia já estava atrás de mim, ele já falou: “Ladrão, se você correr, vou te matar”. Falei: “Calma, senhor, já era, perdi”. Falou: “Então deita. O caminhão está cheio de moto?” Falei: “Tá cheio de moto”. Aí, como ele era policial civil, que essa ocorrência caiu para o rádio da Polícia Civil, então estava o Garra e a 5ª Roubo a Bancos aqui do Deic, aqui atrás de nós, atrás do caminhão que eu estava. Aí, na hora que ele me abordou, que eu deitei, estava ele num carro descaracterizado, num Gol vermelho, tinha um Siena Preto e uma Blazer preta. Aí fecharam a Marginal, na frente do Playcenter. Aí saiu uma viatura, assim, da escolta, da Tropa de Choque, como os policiais viram, assim, uns caras tudo descaracterizados, armados, o caminhão parado, com as portas abertas, aí os caras vieram na contramão, a polícia falou: “Aqui é polícia, ali é ladrão”. Aí ele foi, pisou em mim, já me algemou, tentou colocar eu de joelho, falei: “Não, o joelho está dando câimbra!” Eu fiquei de pé, aí nesse momento, na hora que eu parei, que eu olhei assim, falei: “Nossa, tô preso na frente do Playcenter”. Aí o polícia perguntou se estava cheio de moto, já abriu o caminhão, se tinha mais alguma coisa. Esse foi o momento da minha prisão.
P/1 - E quanto tempo você ficou?
R – Eu fiquei três anos e cinco meses, numa pena de nove anos e onze meses.
P/1 - E como foi sair?
R – Ah, sair foi a melhor coisa, né? Foi a melhor parte. Já sabia quando eu ia sair, fiquei sabendo com antecedência, uma amiga minha puxava o meu processo pelo computador. Aí quando chegava a liberdade no sistema que eu estava, no semiaberto, já aparecia no sistema digital do TJ, do Tribunal de Justiça. Aí aparecia uma mensagem: “Autos conclusos, mesa do diretor”, o processo. Aí apareceu o meu acho que no dia seis. Apareceu o meu, só que aí eu não saí no dia seis, eu tive que sair no dia sete. Eu dormi do dia seis para o dia sete, sabendo que eu ia embora, aí então foi muita ansiedade. Aí nisso daí eu já tinha doado tudo, tinha doado minhas roupas, coberta nova, minha televisão, eu que tinha comprado. Então, como lá onde eu morava tinha duas, aí eu doei uma, porque só podia ficar com uma, uma por barraco. Aí eu doei uma para um amigo que tinha acabado de chegar lá, que é daqui também. Falei: “Ó, pega a televisão, pega algumas coisas”, aí já doei tudo. E, no dia que eu saí eu fui trabalhar, que lá todo mundo era obrigado a trabalhar. Quem não fosse do setor, que é o setor que organiza a cadeia, que é a faxina, que paga a alimentação, que faz a entrega de medicamentos, essas coisas. Aí eu trabalhava numa fábrica de brinquedos, ficava separando ali uns ‘Legozinhos’, colocava numa sacola, colocava em outra. Aí eu fui trabalhar no período da manhã, quando foi no período um pouco antes do almoço, me chamaram no atendimento do diretor, aí eu já sabia que era a liberdade, aí já fui embora.
P/1 – E por que “Rafa Professor”?
R – Porque, quando eu saí do crime, quando eu parei de fazer essas coisas erradas, (risos) eu comecei ajudar o Gugu, que é o Aquiles, com os treinos aqui na escolinha, de manhãzinha, isso em 2016, 2017, eu acho. Aí eu comecei a ajudá-lo com os treinos, aí a gente foi, foi, a gente ficou um longo período, deu uma evoluída em algumas coisas e ficou aí o “Rafa Professor”, por conta disso. E hoje bastante criança, os adolescentes, a molecada me chama de professor, por conta do período que eu fiquei na escolinha, no projeto social, na associação e nessas coisas aí.
P/1 - E como foi essa época?
R - Foi uma fase nova, porque essa integração com o social, assim, eu sempre tive. Tanto que no sistema na penitenciária eu era o ‘Disciplina’, então era o raio inteiro sob a minha responsabilidade, em todos os raios que eu passei na penitenciária eu fui o ‘Disciplina’. Então, essa flexibilidade com o social assim, a gente já tinha, né? Aí, quando eu parei, quando eu parei com as coisas erradas, quando eu parei com tudo, aí o Gugu me chamou. Aí eu fui, aí comecei a ir, a gente começou a ir, eu tive a ideia de fazer o Instagram da escolinha, eu que manuseava o Instagram. A gente começou a ter um pouco mais de evolução nos treinos, eu comecei a assistir um pouco mais de treino, comecei a me interessar um pouco mais pelo assunto, pelo tema também. Aí a gente foi indo e a gente foi evoluindo um pouquinho também.
P/1 - E o que é? Conta para a gente, o que é o ‘Disciplina’?
R - O ‘Disciplina’, no caso, é como se fosse aquela pessoa que resolvesse tudo no raio. Sobre tudo, tudo sobre o olhar dele, nada pode sair dos parâmetros das regras. Se alguma coisa sair da regra, tem que chegar nos conhecimentos dele, para ele poder, vamos dizer, medir a situação, entendeu? Caso aconteça alguma coisa no barraco onde você mora, alguma discussão, alguma briga, algo de errado aconteceu, aí você tem que chegar na Faxina, no setor que é a Faxina. Aí tem um corpo de membros dos faxineiros, tem o ‘Boieiro’, tem o ‘Disciplina’, tem o apoio do ‘Disciplina’, aí vai chegar e vai resolver a situação.
P/1 - E quem decide?
R - Um quadro. Tem um quadro geral, que no caso tem o ‘Jet’, que é o cara que manda na cadeia inteira. Aí, desse quadro tem ele, o apoio dele e tinha mais dois membros. Aí, desse quadro, eles montavam o quadro da Faxina. Aí vai seguindo uma hierarquia: você começa como faxineiro, eu comecei como faxineiro, depois eu virei encarregado da faxina. Aí, como o ‘Disciplina’ mudou de raio, foi para o raio de semiaberto, aí eu era o encarregado da faxina, no automático, na hierarquia eu já subia de cargo. Aí como eu já tinha virado ‘Disciplina’, no raio que eu chegasse, também já poderia assumir a ‘Disciplina’. Já era dessa forma.
P/1 – E como foi voltar para a Zaki Narchi?
R - De ‘saidinha’? A primeira ‘saidinha’ foi difícil, eu fiquei doente, eu fiquei muito ansioso. Como eu tenho bronquite, aí eu tive uma crise de bronquite. Eu estava acho que quase três anos sem ver a rua, sem ver nada da rua, aí eu tive uma crise de ansiedade. Eu acho que foi uma crise de ansiedade, que me deu uma crise de bronquite muito forte, muito forte. Aí eu fui medicado, tive que sair do raio durante a madrugada, tive que pedir atendimento do PS, que é Pronto Socorro. Aí o funcionário veio, me tirou do raio, me atendeu na enfermaria, eu não melhorei, aí eu voltei para o raio. Aí cheguei no raio, eu passei mal novamente dentro da cela. Quando solicitou atendimento do PS novamente, eu fui medicado novamente, um pouco mais de medicação, um pouco mais forte, não consegui, não melhorei. Ainda nisso o funcionário perguntou: “Ladrão, está acontecendo alguma coisa dentro do raio?”. Falei: “Lógico que não, senhor”. Porque, às vezes, quando alguém não quer ficar dentro do raio, porque tem algum tipo de problema, de dívida, algum tipo de briga, de _______ com alguém, não quer ficar dentro do raio, aí pede atendimento da Enfermaria e fala para o funcionário que não quer retornar para o raio, depois o funcionário só pede as coisas da pessoa e já era. Aí ele me perguntou: “Ladrão, está acontecendo alguma coisa, está tranquilo?” Eu falei: “Lógico que está, senhor, não está vendo que tô zoado, que eu tô morrendo? Você não está vendo que eu tô doente, eu tenho bronquite, mano!” Aí eu fui para o raio, voltei para o raio, passei mal novamente, mais forte ainda, aí eu tive que sair de maca do raio, não estava conseguindo andar. Aí fiquei lá na Enfermaria, de observação, tomando remédio, tomando remédio toda hora. Aí, de manhã, no primeiro horário, foi solicitado um atendimento no hospital da rua, aí eu fui para o Hospital Geral de Bauru. Aí, chegando no Hospital de Bauru, quando saiu da unidade prisional, meu pulmão já deu ‘abrida’, falei: “Nossa!”. Já deu uns 10% de melhora na respiração. Aí, quando a gente chegou no Hospital Geral de Bauru, estava algemado o pé e a mão. E preso tem atendimento prioritário, aí aquilo ali foi o que me envergonhou bastante também, de eu chegar no hospital e chamar a atenção de todo mundo, eu estar todo algemado, todo mundo olhar para mim e se afastar. Aquilo foi o que me deu um pouco mais de choque de realidade também. Aí eu fui atendido, tomei a medicação, fiz alguns exames de raio-x, aí tomei medicação na veia, que é a medicação mais forte que tinha lá, aí foi quando eu consegui melhorar um pouquinho também. Eu lembro que tinha uma moça jogando, assim, um joguinho naqueles telefones novos Samsung, acho que era o J5, tinha acabado de sair, eu acho, em 2013. Aí eu fiquei assim ‘curiosão’, olhando, que eu não tinha visto ainda, tinha acabado de lançar. Fiquei ‘curiosão’ assim, me chamou a atenção. Teve uma vez, um momento também, quando eu estava indo fazer o raio-x, aí eu estava no corredor, indo para o raio-x, os dois funcionários me acompanhando. Aí veio uma criança e a mãe. Aí, quando a criança e a mãe me viram, os dois meio que assustaram assim, foram para o canto da parede, só que eu estava algemado o pé e a mão, não vou fazer nada com ninguém (risos). Então, para você ver o olhar da sociedade, como que é. Então, uns negócios que marcaram, assim, nessa ida do hospital.
P/1 – E como você se sentia, com esses olhares?
R – Ah, me sentia envergonhado, né? Porque você fica envergonhado, querendo ou não. Porque ninguém gosta de ser julgado, ninguém ali sabe o porquê eu tô ali. Ninguém sabe o que eu passei para estar ali. Então, quais foram as oportunidades, o que foi necessário eu fazer, para poder estar ali. Julgar é muito fácil, então é ruim por conta disso.
P/1 - Eu fiquei pensando: aqui no entorno é super cheio de polícia, né?
R – Sim.
P/1 - Como foi voltar para cá, não só pelo seu passado, mas vivendo aqui, estando tão militarizado? Como é?
R – Ah, a gente já foi acostumado, a gente cresceu acostumado com o Depatri, que antes era Depatri. Aí tinha a Casa de Detenção, tinha um batalhão dentro da Casa de Detenção, que tinha um projeto social, que a gente jogava bola dentro do batalhão da Polícia Militar. Tinha outro batalhão ali em cima, tinha a penitenciária do Estado, tinha a penitenciária feminina, tem a GCM. Então, tudo sempre foi muito policiado e a gente já cresceu acostumado com esse policiamento todo. Então, a gente sempre teve jogo de cintura para saber quem é policial e quem não é. Então, já tem aquele, também, pré-conceito de saber quem é morador e quem não é morador. Então, a gente sempre teve essa facilidade, por conta disso.
P/1 - E pensando de quando você era pequeno, até hoje, o que você acha que mudou mais, na Zaki Narchi?
R - Ah, tudo, mudou tudo. A população, tudo. Mudou tudo, praticamente tudo. Mudou tudo, de verdade, como se a gente tivesse evoluído e retrocedido, ao mesmo tempo. Que muitos reclamam de como era: “Ah, se fosse antigamente". Mas a gente vive os tempos de hoje, como se fosse os tempos de antigamente. Se não formos nós aqui, se a gente não tiver o nosso empenho, um dedicado ao outro, um ajudando o outro, um se preocupando em ter a melhora sem pisar no pescoço do outro, poder ganhar o seu, sem pisar no outro, se a gente não tiver isso, a gente não tem suporte nenhum.
P/1 - Quais desafios você acha que você enfrentou, aqui?
R - Ah…
P/1 – E que a comunidade enfrentou também, não precisa ser só você.
R - O desafio de portas abertas, né? A gente sempre teve dificuldade de arrumar emprego, aqui por perto. Quando você falava que morava na Zaki Narchi, as pessoas fechavam as portas. Então, isso foi um dos fatores que eu acho que foram bem primordiais aqui, a falta de oportunidade. Acho que a falta de oportunidade gerou muita família com pessoas envolvidas no crime, muito isso, porque, se tivesse mais oportunidade, você tendo mais emprego, você não cria bandido.
P/1 – Eu ia te perguntar exatamente isso: você sente olhares?
R – Sempre, sempre senti, em todos os lugares. Quando eu falo que sou ex-presidiário, quando eu falo que moro na favela. Às vezes as pessoas acham que eu não moro na favela hoje, pela condição que eu tenho, por eu estar um pouco melhor vestido, por eu ter um carro legal hoje. Então, no meu trabalho, às vezes as pessoas não me julgam como um favelado. Mas, a partir do momento que a pessoa sabe de onde eu vim e quem eu fui, aí já gera um preconceito. Eu sofro bastante isso daí. No elevador, é tanta coisa. Acho que por ser homem também, acho que as mulheres também sofrem muito assédio, muita coisa. Às vezes você passa, assim, no elevador, em algum lugar, as pessoas te julgam, de certa forma.
P/1 - E como você se sente?
R – Ah, eu procuro relevar da melhor forma possível. Porque, se ela está me julgando, aí se eu for julgar ela, que ela está me julgando, aí vão ser dois julgamentos. Vão ser duas pessoas querendo saber da personalidade da... então, algumas coisas eu já nem ligo mais.
P/1 - E quais aprendizados que morar aqui te trouxeram?
R – Ah, bastante, aprendi muito. Aprendi como criar um filho. Eu não tenho filho, mas como criar um filho, porque para criar um filho aqui dentro da comunidade, é muito difícil. A gente tem amigos meus aqui que hoje moram em Londres, trabalham em Londres. Então, assim, para você criar um filho aqui e para ele poder chegar, estudar, ir para fora e conseguir um trabalho na Europa, então assim, é muito difícil, é muito difícil. Então, é um aprendizado que acho que todos os moradores deveriam ter, mas a maioria não tem.
P/1 - E pensando em tudo que você passou aqui, quais foram os acontecimentos que mais te marcaram, dentro da Zaki Narchi?
R - A morte do meu pai foi um deles, por ele ter sido quem ele foi. Acho que eu nunca imaginei que ele fosse ser morto aqui, da forma que foi. Alguns incêndios que tiveram no morro, alguns protestos que foram feitos na avenida. Algumas mortes. A maioria são coisas tristes, né? Em de coisas boas, a volta, por exemplo, do Ricardo Oliveira, depois de vinte anos aqui na comunidade, por meio do projeto social também, da escolinha, do trabalho que a gente fez no Instagram. Por ele mesmo acompanhar, ele mesmo divulgar algumas publicações. Então, isso foi algo que marcou bastante, porque foi algo que o fruto foi colhido depois de muito tempo plantado. A gente começou, se vocês forem ver as fotos do Instagram, o começo das fotos, a quadra era cimentada. Agora, atualmente, das últimas fotos já é com iluminação, já é pintada, então teve toda essa evolução. E a vinda dele para cá foi marcante, porque até o emocionou muito, porque depois de vinte anos, depois de tudo que aconteceu com ele também. Ele sofreu o sequestro da irmã dele aqui. Então, foram coisas que me marcaram muito.
P/1 - Eu vou perguntar: você continua ajudando na escolinha?
R - Hoje não mais. Hoje não mais, eu saí. Saí já faz alguns meses, justamente para poder me especializar um pouco mais no assunto, eu quero fazer Educação Física. Então, assim: não tem como eu juntar o meu tempo de estudo, trabalho e projeto social, fica muito... e família também, né? Aí teria que ter 36 horas no dia, então não dá. Aí eu decidi abrir mão por enquanto, decidi abrir mão do trabalho do projeto, para poder focar nos estudos. Só que, com a pandemia, a gente achou que ia passar: “Vai ser rápido, daqui a pouco passa, daqui a pouco passa”, aí foi estendendo, se estendendo. Mas a minha prioridade, o meu intuito é de fazer a Educação Física, para poder me especializar no tema.
P/1 - E nessa época que você dava aula na escolinha, você dava aula para qual tamanho de criança?
R – Categoria?
P/1 – É.
R – Eu dava aula de onze a dezoito anos.
P/1 - E como era a relação com os alunos?
R – Ah, era super tranquila, era bem tranquila, porque eu sou bem brincalhão. Às vezes eu sou muito duro, sou muito sério também, às vezes eu sou um pouco ignorante. Mas é muito tranquilo, era super boa. E tinha que ser muito flexível também, porque dos onze aos quatorze é um temperamento, aí dos quatorze aos dezoito, já é um outro temperamento, já é a rapaziada mais velha, que já tem um pouco mais de malícia, já entende um pouco mais de tudo da vida. Então, a gente tinha que ter essa flexibilidade e eu tinha. Eu tinha. Tanto é que quando eu falei que ia sair, a molecada ficou enchendo o saco para eu voltar. Até hoje eles falam para eu voltar. Se eu falo que vou dar um treino ou um jogo para eles, vixi, já ficam doidos, já ficam me perturbando, para querer que eu faça logo. É muito gratificante. Para mim, o melhor disso tudo é esse reconhecimento das crianças. De chegar mãe, de chegar pai e me falar assim: “Nossa, por que você saiu? Meu filho fala, meu filho ficou muito triste, porque você saiu”. Então, para mim, o melhor disso tudo foi isso.
P/1 - E da Casinha Amarela, como é a sua relação? Você atua aqui também ou só na escolinha?
R – Não, também não, também abri mão da associação. Eu era o primeiro secretário do Ed, o Ed Carlos. Aí eu abri mão também, por conta disso tudo. Eu falei para ele: “Ó, vou dar um tempo e tal”. Acho que foi no momento certo também porque, no começo, era só o Aquiles e o Ed Carlos. Aí ficou o Aquiles, o Ed Carlos e eu. E o Vagner depois veio também. Então, ficou a gente, nós quatro. Aí foi se expandindo, o projeto se expandiu, veio a pandemia, o pessoal começou a ajudar, aí foi quando a gente expandiu mais ainda a associação. Que na escolinha só estava eu, o Ed, o Gugu e o Vagner. Então, tipo, a gente tinha que tratar de escolinha e às vezes ficavam muitas coisas sobrecarregadas para as meninas que davam uma força para gente. Aí, conforme foi chegando a pandemia, foi chegando bastante coisa, o trabalho foi evoluindo, aí foi chegando mais pessoas para ajudar, o corpo foi crescendo. Então aí foi quando eu vi que, conforme estava tudo bem encaminhado, aí eu falei: “Chegou o momento certo, então, de eu sair”. Então foi nesse momento que eu decidi dar um breque.
P/1 - E você tem vontade de voltar?
R – Ah, vontade a gente... igual dizia a avó: “Vontade vai e passa” (risos). Vontade a gente tem, mas a gente está focado em querer alcançar os objetivos. Então, se eu voltar, pode ser que eu me amarre mais algum tempo, aí eu não faço o que eu quero. Mas voltar para o projeto social, sim, aí eu tenho muita vontade, depois da formação eu quero voltar, eu pretendo.
P/1 – E, pensando, você acha que teve um impacto da Casinha Amarela nesses últimos anos, para a Zaki Narchi?
R - Teve bastante. No momento da pandemia foi crucial. Foi crucial, acho que, se não fossemos nós e os colaboradores que vieram com as doações, acho que teria sido bem pior o índice de contágio e de morte, aqui. A gente atuou na linha de frente realmente, de porta em porta, de casa em casa, de pessoa em pessoa. E, assim, ninguém contraiu o vírus, a gente teve um índice muito baixo de morte, na comunidade. Então, a gente exigia que a pessoa não saísse de casa, que a cesta básica iria chegar até ela. O kit de higiene, de produtos de higiene e de limpeza, ia chegar até ela. Então, a gente, acho que a Casinha Amarela foi crucial nesses últimos tempos, para a comunidade.
P/1 - E para você, como foi a covid? Como impactou na sua vida?
R – Cara, eu fiquei muito com medo, porque eu tenho bronquite. Então, quando falaram que se pegar em pessoas que têm doença crônica, é fatal, aí foi onde eu fiquei com mais medo ainda. Então, eu dei muita credibilidade para a doença, dei muita credibilidade para a fatalidade que ela causa. Me cuidei, usei máscara. Óbvio que teve diversos momentos que me descuidei, a gente não era acostumado a andar de máscara frequentemente, de estar passando álcool em gel. Só que um hábito que eu já tenho é de lavar as mãos frequentemente, por conta que as minhas mãos soam muito, então frequentemente estou lavando. Então, esse hábito eu já tinha, então aumentou mais ainda esse hábito. De usar a máscara era fato porque, se eu pegasse, eu sabia que eu ficaria, no mínimo mal, no mínimo entubado, então eu tinha que me cuidar. E minha mulher é enfermeira, então eu tinha que me cuidar mesmo. Aí eu chegava em casa, já lavava a mão, já tirava máscara, já fazia o que tinha que fazer. Então, começou a covid, começou essa pandemia, começou essa loucura de morte, começou a morrer um monte de gente, a gente começou a se cuidar, a gente começou a se cuidar sim, de verdade.
P/1 - E você acabou de falar que você está num relacionamento.
R - Sim.
P/1 - E como vocês se conheceram?
R - A gente se conheceu depois que eu saí. Fazia um mês e pouco que eu estava na rua. Aí um amigo meu estava aqui na Zaki Narchi, ele ia descer para a praia, tinha alugado uma casa. Tipo, acho que quinze dias, eu acho, bastante dias. Ia levar um carro, uma pickup que tinha um som e ele ia com outro carro dele, com a filha e com a mãe e tal. E, como eu estava de bobeira, era no Ano Novo, eu falei: “No Ano Novo eu vou”. Eu passo o Natal com a família, no Ano Novo é sempre bagunça, né? Falei: “Passo o Natal com a família, no Ano Novo eu vou”. Avisei minha mãe, tudo e tal. Aí fui levar o carro, levar essa Montana. Aí levei, deixei, a gente ficou lá, se divertiu todos esses tempos, os dias todos. Aí pessoal foi voltando, dia dois já voltaram uns, dia três voltaram outros. Aí, quando foi no dia quatro, ficou só eu e mais dois amigos, ficou só eu, o Juninho e o Danilo. Aí, olhou um para a cara do outro, ninguém sabia cozinhar, ninguém sabia fazer nada. “Ah, lá, vamos lá na beira da praia ver se nós arrumamos umas ‘minas’ e vai que elas cozinham para nós?” (risos). Aí a gente foi pra orla da praia. Aí, chegando na orla da praia, a gente estava andando de carro e tal, aí o Juninho foi, mexeu com elas, estava a minha esposa, duas amigas dela e uma criança lá, que eles estavam. É, estava a minha esposa e duas amigas dela. Aí o Juninho é muito palhaço, então ele passava mexendo com todo mundo, aí diz ele que elas deram tchau. “Volta, volta, volta, volta, elas deram tchau, não sei o quê”. Aí, antes disso, na casa, minha esposa tem dois filhos, antes disso na casa eu falei: ”Vamos aí, então, mano. Hoje eu vou arrumar uma mulher com filho”. Aí a gente saiu, nessa volta, o Juninho falou: “Volta, volta, volta, as meninas deram tchau”. Aí, quando a gente voltou, a gente foi, desceu, foi lá na direção delas, para conhecê-las, todo tímido e tal. Conhecemos e tal: “Vocês sabem onde tem uma pizzaria aqui, não? Para nós comprarmos uma pizza, um telefone de uma pizzaria?” Ela falou: “Ah, tem uma pizzaria ali, eu te dou o telefone”, ela toda educada e simpática, foi e arrumou o telefone da pizzaria. A gente: “Onde tem um lugar aqui para nós sairmos, se divertir, uma bagunça, tal?” “Ah, lá para baixo, lá perto do...” - esqueci o nome do lugar lá na praia. “A gente vai lá comer a pizza, depois a gente volta”. Aí, beleza, quando a gente voltou, elas não estavam mais lá na frente (risos). Meu amigo desceu, interfonou lá no prédio dela, no apartamento que ela morava, falando que era eu. Aí fez ela descer, a gente ficou conversando lá na beira da praia, conversando, conversando. Aí eu contei um pouco da minha história de vida, ela contou um pouco da dela. A gente ficou só nós dois conversando e a gente ficou. Aí, depois daí, não se largou mais (risos). Subiu a serra o amor. Aí já vou para quase sete anos.
P/1 – E como é o nome dela?
R – Regiane.
P/2 - Ela morava lá?
R – Não. Ela tinha um apartamento lá, ela morava aqui também. Ela estava passando o final de ano lá também, aí a gente foi, se conheceu, no melhor momento das nossas vidas, eu acho.
P/1 - E como é a sua relação com ela e com os filhos dela?
R – Então, com os filhos dela é super tranquilo, que os dois são um casal, já é ‘de maior’. Uma menina tem 21 e o rapaz tem 25. E a menina já tem até uma nenêzinha, uma netinha. Com a menina é super tranquila, com o menino também é super tranquilo. No começo teve um pouco de resistência da parte da menina. Como a minha esposa era viúva, então, por parte da menina ela ficava um pouco meio que tendo aquele ciúmes, teve um pouco de relutância da parte dela. Mas depois que ela viu que era o melhor para mãe dela, aí ela já ficou tranquila.
P/1 - Rafa, como é o seu dia a dia?
R – Bom, antes das férias, eu trabalho com poda de árvore para a prefeitura, de manhãzinha, cinco horas da manhã já acordo, já vou buscar minha esposa no serviço dela. Aí eu a deixo aqui, ela descansa, fica descansando e eu vou para o meu. Vou para o meu lá na Vila Maria, chegando lá a gente já tem, a nossa engenheira agrônoma já tem a relação das árvores que precisam de poda, de limpeza. Aí a gente já vai e já vai fazendo, durante o dia. Quando eu volto, no final da tarde, ou geralmente eu descanso um pouco, aí vou levar minha esposa no outro serviço dela, que ela tem dois pacientes. Aí vou levá-la no serviço dela e, de lá, ou vou trabalhar no aplicativo, ou senão eu volto para casa, por enquanto, porque a minha vontade, daqui para frente, é de ficar só no aplicativo mesmo, trabalhar só com o aplicativo. E estudar.
P/1 - E o que a Zaki Narchi representa, na sua história?
R – Ah, a Zaki Narchi é a minha vida. Aqui são 32 anos, praticamente, da minha vida aqui. Fora os anos que eu fiquei privado e um ano e pouquinho que eu morei fora com a minha esposa, de resto foi tudo na Zaki Narchi (risos). Praticamente é a minha vida, minha história toda, minha raiz. A gente costuma dizer que a gente pode sair da favela, mas a favela nunca vai sair do lado da gente. A gente pode sair da Zaki Narchi, só que a minha referência, tudo, de onde eu vim, a minha origem sempre vai ser aqui. Então, para mim a Zaki Narchi... como fala? É isso daí (risos).
P/1 – O que representa?
R – Representa isso daí.
P/1 – E, de tudo que você já viveu e que você espera para o futuro, quais são os seus sonhos, hoje?
R – Ah, o meu sonho é estudar, me formar e arrumar um emprego na minha função, de educador físico, esse é meu sonho, provavelmente.
P/1 - Rafa, a gente já está chegando no final, eu tenho só mais duas perguntas para você: a primeira que eu queria te perguntar se você queria contar alguma história que eu não perguntei, se você quer deixar alguma mensagem...
R - Ah, mensagem é de que a gente tem que ter mais empatia. Igual, hoje eu estava conversando com um cliente aqui, um passageiro que perdeu muito o amor com o próximo, um com o outro. A gente discute muito, hoje em dia. Você vê com mais frequência essas tragédias entre famílias. Antigamente, se a gente falar que não tem, é óbvio que tinha, existia, só que não tão, com tanta frequência. Você vê pai matando filho, filho matando pai. Esse amor do ser humano, acho que está faltando mais amor. É o amor que precisa, o amor e a empatia. Precisava ter mais isso. Daqui uns vinte, trinta, cinquenta anos, quem sabe se o ser humano não melhorou mais no amor, um com o outro? (risos)
P/1 - E o que você achou de ter contato um recorte da sua história hoje, para a gente?
R – É, foi acho que só um quarto, de tudo que eu achei que eu ia falar (risos). Acho que foi bacana, gostei de poder compartilhar. Pena que foi só um pouquinho mesmo, que eu não pude entrar em muitos detalhes, fiquei um pouco com vergonha de entrar em alguns detalhes, mas eu gostei.
P/1 - Mas se você quiser contar alguma coisa que a gente não tenha perguntado.
R – Ah, acho que não falta (risos) nada de especial. Acho que o resumo se resume a isso.
P/1 – Então, muito obrigada!
R - Obrigado você.
P/1 – Agradeço muito, foi muito legal!
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