Projeto Memórias da Literatura Infanto-Juvenil
Depoimento de Eliardo França
Entrevistado por Thiago Majolo e José Santos
São Paulo, 11/06/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MLIJ_HV012
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Natália D.
e Natália Ártico Tozo
P/1 – Eliardo, bom dia!
R – Bom dia!
P/1 – Agradecemos a sua presença e queria começar a entrevista perguntando seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Eliardo Neves França, 17 de junho, daqui a seis dias eu faço aniversário.
Eu nasci em Santos Dumont, Minas, eu brinco com o pessoal de lá que nasci na terra dos irmãos Wright, eles quase me matam, não é? Mas Santos Dumont, diferente de hoje, era uma cidade bonita, arrumada e, enfim, era uma cidade muito agradável na minha época.
Hoje está meio enfeada, se é que eu posso usar esse termo.
Não sei, houve o aumento da população e o empobrecimento da.
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Porque era uma cidade rural, quer dizer, tinha a cidade, tinha as fazendas, Santos Dumont era uma bacia leiteira muito grande, tinha a indústria de queijo, o famoso Queijo Palmyra, Queijo do Reino, que era muito vendido aqui em São Paulo, no Norte, Nordeste; começou lá, começou exatamente em Santos Dumont, que era o Queijo do Reino, era chamado Queijo do Reino, era o queijo bola, era uma delícia, hoje eu acho que tem umas imitações por aí, mas não é mais aquele queijo, pelo menos pra mim.
P/1 – E Eliardo, qual o nome dos seus pais e qual era a atividade deles?
R – Meu pai é José França Gontijo e minha mãe é Hélia Neves.
Minha mãe era professora, quer dizer, ela nunca exerceu a profissão, mas ela era formada, na época se chamava curso normal, não é? Que eu acho mais interessante que magistério, magistério parece um bicho pré-histórico, magistério, megatério, climatério, e então ela era professora e meu pai era bancário contra a vontade dele.
Ele viveu 35 anos no banco absolutamente infeliz, porque a mãe dele morreu quando ele era muito jovem, muito jovem não, ele era uma criança, ele tinha quatro anos quando a mãe dele morreu.
E ele viveu assim, com os parentes, com o irmão mais velho, depois com a irmã mais velha que o criou, cuidava dele e tal, e quando ele tinha dezoito anos ele quis fazer uma.
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Ele queria fazer o curso Rio Branco, ser diplomata, ele tinha um amigo que era da mesma cidade dele, eles nasceram em Dores do Indaiá, um amigo e vizinho dele que estudava com ele, depois estudaram em Belo Horizonte, que era o (Gutier?), foi embaixador do Brasil na Itália.
Então a intenção deles era fazer o curso de diplomacia, como é que chama esse curso?
P/2 – Não é Instituto Rio Branco?
R – Instituto Rio Branco, mas a minha tia disse que não, ela que cuidava dele, criava; quando ele tinha dezessete anos, ela disse que não, porque o futuro.
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Aquilo não dava em nada, esse negócio de diplomata não era pra ele, porque ela era amiga de um outro conterrâneo deles que tinha um banco, era banqueiro, ela disse: “Não, você vai trabalhar em banco porque a profissão do futuro é ser bancário”.
Então ele foi ser bancário e viveu 35 anos querendo fazer outra coisa, meu pai era meio que artista, ele gostava de desenhar, mas nunca desenvolveu nada disso.
Ele tinha uma habilidade para desenho, mas não desenvolveu, agora era um leitor, sempre foi um leitor e talvez essa coisa minha de gostar de ler e talvez.
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Talvez não venha daí, na minha casa sempre teve livros, sempre convivi com livros, então foi essa a história dos meus pais.
P/1 – E você conheceu seus avós?
R – Maternos eu conheci, e quando eles morreram, quando a minha avó morreu, eu já tinha dezoito anos, meu avô foi bem depois.
P/1 – E qual era a atividade que eles faziam?
R – Meu avô era português e ele tinha laticínio em Santos Dumont, ele tinha uma indústria de queijos, leite e tinha uma fazenda que mantinha essas coisas.
Parte da minha infância também foi passada na fazenda, férias e tal.
P/1 – Conta um pouquinho do que você lembra dessa fazenda.
R – Ah, aquilo era um paraíso, era o paraíso, eu nadava em rio, pescava, tinha cavalo.
Imagina um menino de seis, sete anos ou oito anos, sei lá, e tinha um cavalo, e você podia montar a cavalo, e sair passeando, então foi uma.
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Eu aprendi a nadar em rio, subir em árvore, pegar fruta no pé e essas coisas todas de fazenda.
Foi uma infância muito legal, porque a infância do interior naquela época você não tinha preocupação, você podia.
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Na cidade.
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Santos Dumont era uma cidade pequena e continua sendo, mas era uma cidade pequena que você não tinha bandido, os únicos bandidos éramos nós, que brincávamos de mocinho e bandido, os bandidos que a gente conhecia era o pessoal da turma que brincava pela rua, tinham poucos automóveis e você passava o dia inteiro quando não estava na escola era brincando na rua com a turma, todo mundo conhecido, enfim, foi uma infância muito.
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Eu acho muito enriquecedora.
P/1 – E falando mais da sua infância, você falou que brincava de bandido e mocinho, o que os meninos brincavam na sua época?
R – Primeiro que a gente fazia os nossos próprios brinquedos.
A maioria dos brinquedos a gente fazia, que era o carrinho de rolimã, que a gente andava pelas duas ou três oficinas mecânicas da cidade atrás de rolimã para fazer os nossos carrinhos.
O carrinho de rolimã para quem não sabe é um carrinho que você faz com tábuas e tem aquelas rodinhas de rolimã que você despenca numa descida e vem com tudo, você o dirige com os pés, porque as rodas dianteiras são móveis, então é ali que você dirige.
E você despenca ali e vem com tudo; às vezes tinham arranhões absolutamente saudáveis, sem maiores consequências.
A gente tinha muito a bolinha de gude, no jogo de bolinha de gude, no jogo de botão, tinha um negócio de um finco, o finco era uma haste de metal em que você fazia um.
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Você jogava no chão e aquilo tinha que cair em pé fincado e você ia e fazia um triângulo ali e ia jogando o finco e ia fechando o círculo, vencia quem prendia o outro.
Então você jogava o finco aqui e puxava uma linha, o outro jogava mais a frente e ia te fechando e você tentando e você saindo.
E mais o quê? Ah, tinha.
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Era um aro, você fazia um aro de metal com uma haste de metal que você equilibrava, você ia tocando o aro, a roda, enfim, eram esses os nossos brinquedos, pescar na cachoeira, não é? A gente pescava de guarda chuva lá em Santos Dumont, tinha uma cachoeira em que a gente pescava com guarda chuva, quando a gente fala pescar de guarda chuva, mas como pescar de guarda chuva? É que tem uma época do ano, acho que fevereiro, se não me engano, tem a desova que é uma tremenda de uma sacanagem, hoje eu sei, mas na época a gente não sabia.
E na época da desova ele sobe o rio e quando chega à cachoeira ele salta, o lambari salta para ultrapassar a cachoeira, você põe um guarda chuva ali aberto e ele cai ali e você leva quilos de lambari pra casa, que aquilo frito, passado no fubá, mas tinha que ser fubá de milho, é uma delícia.
P/1 – E Eliardo, você consegue descrever a sua casa da infância?
R – Olha, eu na verdade.
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Eu nasci numa casa muito grande, muito boa, o meu avô era uma pessoa de posse, era um cara rico na cidade, por causa da indústria de queijo que ele tinha, enfim.
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E ao lado tinha a minha casa que era muito menor, a minha casa dos meus pais, mas ela tinha comunicação, éramos vizinhos, praticamente não tinha.
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Tinha uma cerquinha lá para constar, então eu tinha um quintal grande, e a casa dos meus avós era uma casa muito bem estruturada, muito bonita, muito.
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Eles levaram.
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Quando meu avô era jovem que ele voltou à Europa, aí ele comprou uma planta de um engenheiro francês, ele e o irmão dele fizeram essa casa em Santos Dumont, que é uma planta de uma criatura francesa, e o irmão dele fez a mesma casa, igualzinha, em Copacabana, no Rio.
E aí eles importaram tudo, porque na época não tinha, você importava vidros, aqueles vidros coloridos, vidros verdes das bandeiras, das portas e janelas, todos franceses e tal.
Então era uma casa chique, mas na época a gente não estava interessado em casa chique, nos lustres e cristal, a gente estava interessado no quintal e brincar com os cachorros, os nossos amigos cachorros, pegar passarinhos, essas coisas.
P/1 – Pegar passarinho também?
R – Pegar passarinho, eu pegava passarinho, mas eu soltava, eu matei um único passarinho na minha vida sem querer.
A gente tinha atiradeira, que era um outro brinquedo que a gente tinha, era fazer o estilingue, era atiradeira e uma vez eu joguei uma pedra lá e acertou no passarinho sem eu querer, eu não queria matar o passarinho e eu acabei matando um passarinho que me deu uma dor na consciência por muito tempo.
Mas a gente pegava passarinho e soltava, pegava tiziu, canarinho e acabava soltando aquilo.
O prazer era pegar e vê-lo entrar debaixo da arapuca e prendê-lo.
P/1 – E para quem não sabe, como que é o processo aí da arapuca?
R – A arapuca, nós construíamos a arapuca, era uma pirâmide feita com pauzinhos, você fazia primeiro a estrutura e ia colocando pauzinhos até fechar em cima, uma pirâmide mesmo.
Então ali você levantava uma parte dela, colocava um esteio e nesse esteio tinha uma outra transversal, uma outra madeirinha transversal de maneira que o passarinho quando ele pisasse naquele esteio ali, ele derrubava, porque aquilo sustentava a arapuca e ele ficava preso ali embaixo.
E a gente colocava ali fubá, canjiquinha e tal, o passarinho entrava lá para comer, esbarrava naquela haste de madeira e se prendia ali ou então às vezes nessa própria haste a gente colocava uma linha, um fio e quando ele entrava embaixo você puxava e prendia o passarinho, pobre do passarinho, não é? Papagaio, a gente fazia pipa, a gente fazia pipa, nós mesmos fazíamos pipa, cortava o bambu, aparava as varetas e construía a pipa.
Às vezes tinha briga de pipa que o pessoal de uma rua.
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A gente estava soltando, a nossa turma da rua soltava pipa e da outra rua também e elas se cruzavam no ar e a gente passava uma.
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Chamava cerol, que era um grude com caco de vidro na linha próximo da pipa, aí quando vinha a outra você puxava e você cortava a linha do outro e o papagaio do cara ia embora.
Às vezes o nosso ia embora e depois cerol era uma coisa terrível, porque isso era um perigo, isso corta mesmo, mas na época a gente não.
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P/1 – Vocês são quantos irmãos?
R – Somos dois.
É um irmão.
P/1 – Que diferença de idade?
R – Dois anos, sou mais velho dois anos, mas para mim ele já era menino, não entrava na turma não.
P/1 – Ah, a tua infância foi animada, não é?
R – Foi, foi muito animada, até hoje eu tenho amigo daquela época.
P/1 – Ah, é?
R – Amigos de quando eu tinha sete anos, amigos e amigas também, várias meninas que estudaram comigo, que a gente fez o primário junto.
Então até hoje a minha razão para voltar à Santos Dumont é essa, ver essa turma, os amigos.
P/1 – E Eliardo, lá em Santos Dumont, que.
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Como é que você descobre a leitura, os livros, as histórias?
R – Pois é, os livros, eu sempre convivi com eles, então livro era uma coisa que fazia parte do cotidiano, eu não me lembro assim de.
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O que eu me lembro é que o meu presente, quando eu tinha seis anos, foi um livro do Andersen que foi O Patinho Feio, a história do patinho feio, aliás, depois nós precisamos falar sobre isso, que é muito interessante essa coisa do Andersen.
Então eu sempre gostei, eu gosto do cheiro de livro, a memória olfativa é muito forte, é mais forte que tudo, não é? Em termos de memória, então quando você.
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Quando eu sinto o cheiro, quando eu pego o livro, eu sou um cara que cheira livro e quando eu cheiro aquele cheiro de livro eu volto imediatamente à infância.
Tenho uma amiga que vocês já entrevistaram aqui que é uma figura maravilhosa, que é a Tatiana Belinky, e ela fala que ela tem um livro de cheirar e quando ela quer voltar à Rússia, ela pega esse.
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Ela nasceu lá e tal e quando ela quer voltar à Rússia ela dá uma cheirada nesse livro, dá uma cafungada e vai direto pra lá, mas é isso.
Então eu sempre tive essa convivência com livro e hoje uma das minhas diversões prediletas é exatamente essa, a leitura.
P/1 – E você aprendeu a ler sozinho ou na escola?
R – Na escola.
Antes do Grupo Escolar eu tinha uma professora que dava aula para algumas pessoas e eu aprendi a ler com ela, a Dona Miquita Horta fazia um pastel também maravilhoso.
P/2 – E a ilustração, desde pequeno você desenhava? Como que era isso?
R – Ah, já desde menino, eu me lembro até ontem a gente contou isso, não é? A primeira história, o primeiro desenho que eu me lembro de ter feito foi uma história em quadrinho.
Tinha um dever de casa na época que a professora lia uma história e você chegava em casa e o dever de casa era reproduzir essa história, você tinha que escrever essa história em casa, era o que a gente chamava de composição.
E um dia a professora leu a história do rato do campo e o rato da cidade, e eu não escrevi, eu fiz uma história em quadrinhos daquilo.
Então é uma pena, eu perdi não sei onde, mas eu me lembro perfeitamente dos desenhos que eu fiz na época, engraçado isso, não é? Então sempre foi uma convivência e eu sempre soube que eu queria desenhar e que era isso que eu queria fazer da minha vida, sempre soube, nunca tive dúvidas a esse respeito.
P/2 – E qual era a reação dos adultos vendo os seus desenhos?
R – Em princípio todo mundo achava bonitinho, mas quando a coisa ficou séria, aí não podia: “Você não pode fazer isso, como é que você vai viver de desenho? Não dá para você ficar desenhando aí caricatura, garatuja”, eles falavam garatuja, não é? “Garatuja nas costas de caderno não vai te dar camisa, você tem que formar, você tem que ser advogado, você tem que ser médico”, principalmente médico e engenheiro, que era coisa da época, você tinha que ser um doutor.
Mas eu nunca dei bola para aquilo.
Tinha uns primos que formaram, tenho um primo que foi para o ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica] e foi ser engenheiro do ITA, e ele era o exemplo, eu ficava morto de raiva do cara, não é? Tinha vontade de matar esse cara, porque não tinha nada a ver comigo, eu não queria ser médico, ser engenheiro, eu queria desenhar.
E na época de vestibular, eu terminei o curso, hoje oitava série, tinha que fazer vestibular, aí eu fui fazer um vestibular num cursinho de Arquitetura que era a coisa mais próxima que eu achava na minha cabeça, que pelo menos tinha uma prancheta, tinha régua, tinha lápis, você fazia alguma coisa de desenho.
Até que um professor.
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Eu fiz cursinho na Escola de Arquitetura que era uma das melhores do Brasil na época, era em Belo Horizonte, a Escola de Arquitetura de Belo Horizonte.
Aí um professor virou pra mim e falou: “Oh cara, teu desenho não é arquitetura não, você tem que pintar, você tem que desenhar, isso aqui é outra coisa”, e eu agradeci a ele e nunca mais voltei lá, não é? Então terminou aí a minha carreira de arquiteto.
P/2 – Eliardo, voltando no tempo um pouquinho, a gente está em Santos Dumont, você está passando uma infância muito gostosa, livre e você fica morando lá até que idade?
R – Até os dezessete anos, até quando eu terminei o ginasial, aí eu fui estudar em Belo Horizonte porque em Santos Dumont não tinha o curso científico, chamava na época cientifico, eram três anos.
Aí eu fui estudar em Juiz de Fora na Academia de Comércio, depois estava muito apertado lá, eu passei para o Colégio São José que era mais liberal, bem mais liberal.
P/1 – Então quer dizer que você começa então com O Patinho Feio, que outros autores tinham para criança na época?
R – Olha, você tinha o Monteiro Lobato seguramente com toda a obra dele, Reinações de Narizinho, Caçadas de Pedrinho, Matemática de Emília, O poço do Visconde, toda obra dele e um pouquinho mais tarde Os Doze Trabalhos de Hércules, que eram livros maiores e tal, que eram absolutamente fascinantes, eu era apaixonado por essas coisas.
O Monteiro Lobato também fazia, ele escreveu uma peça, na verdade uma peça publicitária, mas que hoje é um clássico, não é? Que é o Jeca Tatuzinho que ele fez, fez isso para o laboratório do Biotônico Fontoura, que era um cara que vivia amarelo e era na roça, era um capiau que vivia descalço até o dia que ele toma o Biotônico Fontoura ele fica alegre, satisfeito, gordo, bonito, rosado e tal.
Era uma coisa maravilhosa, eu acho que tenho esse livro até hoje, era um folhetim, Jeca Tatuzinho de Monteiro Lobato.
P/2 – E um dos livros que te marcou do Monteiro Lobato foi Os Doze Trabalhos, é isso?
R – Foi.
Caçadas de Pedrinho também anteriormente, eu adorava Caçadas de Pedrinho, toda obra de Monteiro Lobato eu gostava muito, era o que a gente tinha, não é? Tinham outros livros que eles diziam que era para criança, a gente era obrigado a ler e que de repente era um desincentivo à leitura, eu me lembro que tinha um conto do Coelho Neto, eu cometi uma injustiça muito grande com Coelho Neto, porque eu achava que ele era chato e tal e depois eu descobri que ele era muito chato foi.
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Então ele tinha um conto que era a história de um menino, uma coisa terrível, o menino estava se afogando, fingia que estava se afogando e gritava socorro, socorro, para a turma ir lá e pegá-lo, a turma ia e pegava ele ria, gozava todo mundo: “Não estou afogando nada, estou gozando vocês”.
Até que um dia ele estava gritando socorro e ninguém foi lá, porque achavam que ele estava gozando e ele estava se afogando mesmo e o moleque morreu e era uma coisa terrível.
E coincidentemente eu tinha um amigo que sentava comigo no ginásio que morreu afogado lá em Santos Dumont numa represa, desenhava bem, eu me lembro dele desenhando uns cavalos, eu ficava com uma inveja danada do cara, era José Antônio o nome dele.
P/1 – Mas então quer dizer que na escola a literatura era uma literatura de autores adultos?
R – É, tinha essa coisa, você tinha essas coisas que diziam que eram contos para criança, contos de exemplo, não é? Mas aí você.
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Eu não me lembro bem, mas você era obrigado a contar essas histórias depois na época e no dia seguinte você tinha que contar a história que você tinha lido.
Isso eu não gostava não, eu acho que era um desincentivo, acho não, tenho certeza que é um grande desincentivo à leitura, não é? Assim como o desenho, eu sempre fui o desenhista da sala, aliás, voltando aos sete anos, eu era o desenhista da sala, então tinha lá um jornal que era uma cartolina e tal e você fazia nas datas o Dia do Índio, o Dia da Árvore, 21 de abril e fazia o desenho da.
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Colava matérias ali, recortava de jornal sobre o dia.
Aí a professora me deu uma cartolina que ela tinha comprado, uma cartolina branquinha, era o Dia da Árvore, para que eu desenhasse uma árvore para fazer o (letrin?) do jornal.
E eu desenhei uma árvore azul e fiquei de castigo por causa disso, porque não existem árvores azuis, as árvores são verdes com o tronco marrom, ela me botou de castigo porque eu tinha estragado a cartolina dela.
P/1 – O que é isso?
R – Se eu não fosse tão cabeça dura era para parar de desenhar ali no ato, nunca mais pegava num lápis, ia ser mesmo engenheiro, médico, cortando os outros aí, mas eu continuei.
Bom, enfim, então hoje eu conto essa história quando a gente vai ao colégio, visitar colégios, eu conto essa história, porque você sabe que existem pessoas assim até hoje, existem pessoas que tem aqueles determinados padrões e que quando o menino faz o desenho, uma coisa, elas.
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Não aqui nos grandes centros, mas por esse interior do Brasil existe muito disso.
P/1 – É uma história exemplar mesmo.
R – Exemplar e mais tarde li uma frase do Picasso que ele dizia que aos doze anos de idade ele desenhava igual ao Rafael Sanches, mentira, ninguém desenha aos doze anos de idade igual ao Rafael Sanches, e que ele levou setenta anos para aprender a desenhar igual criança.
P/1 – E como é que foi essa sua transição de ir de uma cidade pequena, pacata, Santos Dumont, para Juiz de Fora que na época devia ter aí mais de duzentos mil habitantes, não é?
R – É, Juiz de Fora já era uma cidade grande, uma cidade também belíssima, a Avenida Rio Branco era uma avenida toda arborizada, de casarões do século XIX de um lado e de outro e hoje se sabe a importância que Ouro Preto tinha no século XVIII, Juiz de Fora tinha no século XIX, a importância de arquitetura e acabaram com tudo, liberaram geral, porque.
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Na verdade, após a Segunda Guerra Mundial começou a modernização, entre aspas, do Brasil, porque você imita o exemplo dos vencedores, nós éramos vencedores da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos.
Então o modelo que era na época.
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Até então na Segunda Guerra Mundial era francês.
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A Avenida Rio Branco no Rio também era belíssima, com todos aqueles casarões, então era aquele modelo francês e a gente depois da guerra como vencedores, vamos imitar quem mais, não vamos imitar quem perdeu a guerra, não vamos imitar a Europa mais, a Europa é tudo velharia, está toda destruída, nós vamos imitar é Nova York.
Aí começaram os espigões sem nem um sentido, porque o Brasil tinha espaço para crescer na horizontal, então acharam que os espigões era modernidade e aí acabaram com a Avenida Rio Branco.
Teve um prefeito em Juiz de Fora formado em Engenharia com toda turma dele de engenheiros que formaram vários grupos de construtores e o prefeito, como era amigo, liberou geral.
E esse prefeito chamava-se Itamar Franco, se quer dar nome aos bois, está aí, o boi chamado Itamar Franco.
Foi ele que começou uma modernização da cidade, mas tudo bem, era coisa da época.
P/1 – E você chegou lá e foi morar em que bairro?
R – Eu morei no centro, eu morei na.
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Bem no centro, todas as.
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Tinha república, a gente formava uma república de estudantes que vinham de fora, vinham estudar em Juiz de Fora, tinha república.
E depois eu morei em algumas casas de família que alugavam quarto, algumas vezes em ruas até muito legais, hoje, por exemplo, a Rua Osvaldo Cruz que era uma rua também toda de casas até hoje ela é toda de casa.
P/2 – E como era a sua república?
R – Uma zona, como toda república, era uma zona, era um entra e sai de tudo quanto é tipo de gente que você possa imaginar, mas era legal, eu nunca tive problema com os amigos da república não.
E final de semana a gente ia para Santos Dumont, sexta-feira.
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Quando não ia no meio da semana, mas você não podia chegar no meio da semana por causa dos pais, não é? “O que você está fazendo aqui? Devia estar lá estudando”, então a gente sexta-feira ia embora para casa.
P/1 – Eliardo, estamos com você adolescente em Juiz de Fora, então nesse período provavelmente você descobre aí os grandes artistas, pintores, quais são os primeiros que você começa a conhecer?
R – Bom, primeiro os locais, a gente tinha pintores, tinha gente fazendo locais, o Bracher, o Rainer Gonçalves que Deus o tenha, que era um cara que nunca gostou de mostrar o trabalho dele, mas que era um artista fantástico, muito bom, o Paulinho Simões, o Rui Merrepe, meu grande amigo, também já foi, e o Rui além de ser um artista era um intelectual, uma pessoa absolutamente.
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Muito culto, enfim, e era o amigo que você tinha problema com a namorada, você ia contar pra ele: “Rui, como é que eu faço?”, ele te dava as dicas: “Faz assim, faz assado”.
Então primeiro os locais, aí através deles, exatamente através deles e muito através do Rui você começava.
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O Rui sabia tudo de arte, a história da arte inteira, e ele dava as dicas: “Olha, vê isso e aquilo”, mostrava, tinha livros, enfim, através dessa gente é que a gente ficou.
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Você não tinha televisão, pra gente com dezessete, dezoito anos na época a televisão não significava nada.
P/1 – E Juiz de Fora tem uma tradição de ter muito artista plástico, não é?
R – Muito, na época tinha muita gente mesmo, Minas Gerais é um celeiro muito grande, principalmente de desenhista, tem muito desenhista em Minas.
E aí eu comecei a descobrir Guignard, quem era Guignard? Guignard, na época, era década de 1950, final da década de 1950, Guignard era vivo ainda, ele morreu se não me engano em 1961 parece.
Eu até tenho uma história interessante do Guignard, porque tinha um parente em Belo Horizonte que era muito rico, ele tinha uma casa muito grande, ele tinha um porão grande lá na casa dele.
E o Guignard vivia mudando, ele não parava, ele ia para Friburgo, ele ia para Penedo, Mauá, ele vivia por aí e pagava os hotéis dele com quadro e tal.
E depois teve uma época que ele estava se mudando para Ouro Preto e ele tinha uma batelada imensa de quadros, ele pediu para esse parente meu para guardar os quadros: “Ah, você tem um porão grande, me deixa botar esses quadros lá enquanto eu estou mudando, não sei para onde vou levar isso”, aí acho que ele já era professor lá em Belo Horizonte, era professor de Artes lá, e o cara deixou ele botar os quadros lá, é evidente, não é? Mas os quadros ficaram lá um tempão e um dia esse primo ligou pra ele, falou com ele, encontrou com ele, sei lá, e disse: “Olha, você tem que tirar os quadros de lá, porque aquilo é muito úmido, é um porão, aquilo vai mofar e estragar os teus quadros, você tira eles de lá”.
Aí o Guignard já tinha uma casa em Ouro Preto, não sei, e falou: “Está bom, eu vou tirar”, e chegou lá e falou: “Agora você escolhe, eu quero te dar seis quadros”.
P/1 – Seis?
R – Seis, de presente, ele disse: “Não, de jeito nenhum, eu não quero”; “Não, você vai escolher, se você não escolher escolho eu”, e escolheu, acabou escolhendo seis quadros, escolha dele, do Guignard que deu para.
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Inclusive um quadro que eu nunca vi reproduzido por aí, eu vi esse quadro ao vivo, claro que eu vi ao vivo e que era um quadro muito bonito, era um.
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Ouro Preto, as montanhas de Ouro Preto, mas era um quadro todo cinza, com aquela névoa, era um dia cinza meio chuvoso e com umas casinhas brancas, era maravilhoso o quadro, absolutamente maravilhoso.
P/1 – Esses quadros estão lá na casa?
R – Não sei, o cara morreu, ele morreu e você sabe que genro desse tipo de gente passa tudo, cunhado, genro, eles passam tudo no cobre, não é? O negócio deles é.
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Então eu não sei muito bem o que houve com eles não, qual foi o destino dos quadros.
P/1 – E Eliardo, quando é que você conhece a Mary?
R – Eu conheci a Mary em 1963, tem um tempinho, não é? Eu brinco dizendo que eu conheci a Mary num baile fantástico, todo mundo de black tie e longos e champanhe e rosas e violinos.
A verdade não foi essa, eu conheci a Mary num baile de carnaval.
P/1 – De carnaval? Aonde?
R – Em Santos Dumont, porque a gente ia passar o carnaval.
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Eu já morava em Juiz de Fora nessa época, mas a gente ia passar o carnaval, festa e grandes feriados em Santos Dumont e, evidentemente, o carnaval era uma festa na época, a gente esperava carnaval, porque era muito diferente do carnaval de hoje, era carnaval de clube.
Então a gente tinha um clube, tinham os bailes de carnaval no clube com lança perfume que a gente jogava fora, lança perfume, porque a gente.
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O tesão era jogar lança perfume nas costas das meninas, mas tinha todo aquele clima, hoje se eu sentir o cheiro de um lança perfume eu vou voltar imediatamente àqueles carnavais com serpentina, confete, enfim, as grandes marchinhas feitas exatamente para o carnaval que acabaram e ninguém faz mais marchinha de carnaval, não é? Era uma festança muito esperada, tinha gente que ia ao Rio para comprar caixas de uísque, levava e dividia com a turma.
Era a única ocasião em que a gente bebia, porque nós não éramos de beber, pelo menos a minha turma não era.
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Nós não bebíamos nada durante o ano inteiro, mas chegava no carnaval entornava, enchia a lata.
E não me lembro também de grandes porres não, era aquela coisa normal, porque você gastava tudo ali pulando, enfim.
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P/1 – E aí você a conhece nesse baile?
R – Eu a conheci nesse baile, um amigo meu do Rio que estava passando também o carnaval lá falou: “Olha aquela baixinha lá, está olhando para você”, eu falei: “Que baixinha?”, eu estava interessado numa outra menina, numa paulistana, e eu falei: “Não quero saber de baixinha não”; “Mas olha a mulher está lá e está.
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Não tira o olho de cima de você”, aí eu bati o olho nela e: “Vamos experimentar”.
Aí fui pular um pouco com ela, enfim, a gente começou ali um namorinho, isso no carnaval de 1963 e deu no que deu, não é?
P/1 – E ela também.
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Ela estava no carnaval lá, mas morava em.
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R – Também morava em Juiz de Fora, também estava passando o carnaval lá.
Era divertido.
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Esse cara que me mostrou, que me apontou a Mary, ele chama Johny e anos mais tarde.
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Eu perdi o contato com ele, anos mais tarde um amigo no Rio me mostrou uma foto de uma turma de teatro, porque ele fazia teatro no Rio, aí eu bati o olho e falei: “Esse cara é o Johny?”, ele disse: “Como você conhece o Johny?”, eu falei: “Foi ele que me apresentou a Mary”, uma coincidência assim, imensa.
P/1 – E aí o que acontece depois? Você está lá em Juiz de Fora.
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R – Aí foi nessa época que eu estava desistindo de Arquitetura e eu pensei também em fazer Jornalismo, também por causa da coisa de letra de livro, mas também desisti, também não era pra mim e estava naquela coisa de como eu vou começar essa carreira de desenhista, porque eu queria ser.
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Eu sempre quis, não é? E eu queria fazer história em quadrinho e a maior editora talvez da América Latina era a Editora Brasil América no Rio, então eu fiz uma série de desenhos e nessa época eu já estava indo para Belo Horizonte, porque eu morei uma temporada em Belo Horizonte namorando a Mary, todo final de semana, Belo Horizonte, Juiz de Fora.
Mas aí eu fiz umas páginas de história em quadrinho e fui ao Rio, aí levei ao Rio, fui à Editora Brasil América sem avisar, sem telefonar, sem nada.
Bati lá na porta, o editor que era o Adolfo Aines, hoje é uma lenda, foi ele que trouxe a história em quadrinho para o Brasil através do Suplemento Juvenil, naquela época do Jornal A Noite, meio que sócio do Roberto Marinho.
Aí encontrei com ele na porta da editora, ele estava na porta da editora, eu digo: “Senhor Aines, eu quero falar com o senhor, eu quero mostrar um desenho”, olhou pra mim e falou: “Vem cá”, me levou na sala dele, mostrei os desenhos, ele falou: “Você tem jeito, mas história em quadrinho vem pronta dos Estados Unidos, você não tem jeito de concorrer com eles, porque o preço que eu pago.
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Porque já vem um filme que já rodou o mundo inteiro, então é muito pequeno no que eu teria que te pagar, de maneira que já vem pronta, esquece história em quadrinho, o futuro da ilustração, do desenho, são os livros para criança”.
Ele cantou a pedra na época, isso aí década de 1960.
P/1 – Profético, não é?
R – É profético, aí me deu um texto: “Ilustra esse texto aqui, deixa ver como você se sai”, eu fiquei lá uma semana, dez dias depois eu voltei, sei lá, quinze dias, não sei, voltei lá com os desenhos prontos, as ilustrações.
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P/1 – Que era sobre o quê? Você lembra?
R – Chamava Zé e o Jacaré que era do Fernando Oballi, o Fernando Oballi trabalhava lá na editora, escrevia também, ele tinha umas quadrinhas e tal.
Hoje ele tem livros publicados, o Fernando Oballi fez um livro importantíssimo, tudo sobre o Oscar, toda a história do Oscar, de todos os anos até agora, ele faleceu ano passado e até o ano passado ele tinha toda a história do Oscar.
Parece que o filho dele vai continuar agora, porque o filho dele também gosta de cinema, enfim, ele era muito ligado ao cinema, uma figura muito legal.
Bom, aí ele me deu esse texto para ilustrar, eu fiz as ilustrações, levei, ele achou legal, me pagou e nunca publicou, porque não estava bom, mas ele pagou para incentivar.
Anos mais tarde você saca essas coisas, na época você não vê isso, você não enxerga isso.
P/1 – Mas que legal.
R – Foi muito legal, foi uma figura importantíssima na minha vida, muito importante.
E ele encomendou outro texto, fiz as ilustrações, pagou também e na terceira vez ele falou assim: “Tá legal, você vai ilustrar.
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Vou te dar um autor, umas histórias de um autor muito importante que vai ser muito bom para você”, que era o Malba Tahan.
Malba Tahan é uma figura importante na literatura brasileira.
Ele tem um livro que até hoje é muito conhecido que é O homem que calculava, e que também era um dos meus preferidos.
Então Malba Tahan para mim também era um herói, não é? E eu conheci o Malba Tahan.
P/1 – Ah! Você o conheceu?
R – Eu conheci.
Eu achei que ia encontrar aquele árabe de barba, com aquelas roupas tuareg e tal, nada, era o professor Júlio César de Melo e Souza, grande professor de Matemática do Colégio Pedro II no Rio, mas uma figura ótima, também muito engraçado, muito espirituoso, foi um.
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Acho que foi o.
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Assim, eu não sabia o que.
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Perto dele eu não sabia o que eu falava, porque o cara era um herói, eu tinha lido livro dele desde menino.
E aí nós estamos na sala conversando, entra a neta dele, na época ela tinha oito anos e ele fala assim: “Esse aqui vai desenhar um livro do vovô”, ela falou: “Esse cara vai desenhar livro? Ele não sabe desenhar não”, ela não acreditou.
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Autor não é assim não, ela não acreditava que um desenhista estava ali presente, ela achava que era uma entidade, uma coisa que fazia aqueles desenhos.
P/1 – Você era bem novo? Você tinha o quê? Vinte e.
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R – Vinte e cinco ou 26, por aí, eu tive que fazer um desenho ali para mostrar que eu sabia desenhar, imagina, eu não acreditava que eu estava diante de um escritor e ela não acreditava que estava diante de um ilustrador, muito engraçado.
Então aí eu fiz, foram seis livros publicados, é uma coleção chamada Malba Tahan Conta Histórias, hoje está esgotada, porque a Editora Brasil América também terminou aquilo, hoje ela faz pouca coisa, mas não são os mesmos donos, enfim.
Bom, a partir daí eu conheci o Célio Barroso que era um desenhista que estava começando um trabalho na Editora Conquista, e a Editora Conquista também no Rio do Sebastião Oliveira Ersen, o nome do editor que era uma figura também absolutamente fantástica.
Era um cara que queria fazer coisas no Brasil, ele queria fazer livros.
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Ele nunca publicou, tinha uma editora, um dos primeiros livros que ele publicou foi exatamente O homem que calculava, ele publicou toda uma coleção.
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Ele publicou todo princípio.
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Os livros do Malba Tahan foram publicados por ele, os primeiros livros do Malba Tahan.
P/2 – E Eliardo, nessa época qual era o panorama das editoras que estavam publicando então livros para o público jovem?
R – Muito pouca gente estava publicando livro, principalmente para criança, o que a gente tinha era tudo importado, as editoras importavam os fotolitos e se fazia uma adaptação do texto, tinham as histórias clássicas, muitas histórias clássicas, mas muito mal feitas, na verdade muito comerciais, vinham principalmente da Espanha.
A Espanha era a China dos livros infantis, porque eles exportavam toneladas em.
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Eu me lembro de um espanhol que ia lá na Editora Brasil América, ele levava um “malão” cheio de fotolitos e não sei o que de contratos.
E se fazia Chapeuzinho Vermelho, a Branca de Neve, mesmo as histórias do Andersen, mas era tudo adaptado, um desenho cafona.
Enfim, pegava aquelas histórias e alguém fazia uma adaptação daquilo, um texto curto e era isso a maioria das coisas que a gente tinha para criança pequena.
E o Ersen queria fazer da Editora Conquista uma coisa diferente, ele queria fazer uma coisa boa com autores brasileiros, com ilustradores brasileiros, feita no Brasil e tal, ele era um idealista, uma pessoa genial, a gente gostava muito dele como pessoa, como editor, enfim.
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P/1 – Eliardo, isso você já está morando no Rio ou não, você fica no.
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R – Não, a gente estava no ponto de rodoviária e ia e voltava, na época tinha um trem em Juiz de Fora chamado Litorina, era um trem que ia de Juiz de Fora, só não era um trem bala, porque não andava muito veloz como uma bala, mas era muito confortável, com ar refrigerado, tinha “ferromoça”, a “ferromoça” servia biscoitinho e tal no trem e.
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P/1 – Era um nome muito doido, não é?
R – É, “ferromoça”, agora imagina, pobre coitada.
Aí eu ficava indo e vindo, isso aí foi por volta de 1968 e eu comecei a fazer ilustrações para a Conquista.
Agora teve um dia logo no princípio ele falou pra mim assim: “Olha, eu vou te comprar esse desenho, mas eu não tenho.
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Eu tenho que arranjar alguém para escrever um texto para isso, porque eu não tenho quem escreva, agora eu tenho a ilustração, mas não tenho o texto”, eu falei: “Não seja por isso, a gente vai dar um jeito”, e aí eu falei com a Mary: “Escreve, tenta fazer alguma coisa.
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”, porque ela sempre gostou de escrever, ela tinha habilidade para fazer isso.
E ela fez um texto, ele gostou do texto, mas falou assim: “Eu vou colocar uma pessoa de nome, que já tem certo nome junto com ela no texto para ele dar uma mexida aí, porque ajuda a levantar.
E ele chamou o Oranice Franco para fazer um texto junto com ela, que é.
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O Oranice Franco, ele teve uma época que era muito conhecido, ele tinha um programa na Rádio Nacional chamado Histórias do tio Janjão, o Oranice também era mineiro de.
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Ele nasceu em Aiuruoca, a gente tinha que torcer a boca para falar Aiuruoca, mas ele vivia em São João del-Rei naquele tempo, depois se mudou para o Rio.
Então ele fez, junto com a Mary, um texto que é a história do menino que voa, que é a história de Santos Dumont quando criança, porque Santos Dumont era o nosso herói, nosso conterrâneo da qual a gente tem o maior orgulho, não é? E acho até que o Brasil dá pouco valor a isso; os irmãos Wright, você fala deles nos Estados Unidos todo mundo fala: “Inventou o avião”, tem avenidas irmãos Wright, aqui você fala: “Quem foi Santos Dumont?”.
Você entra numa sala aí no interior: “Quem foi Santos Dumont”?, e ninguém sabe quem foi Santos Dumont.
Em São Paulo nem tanto, a gente tem a Avenida Santos Dumont, tem Praça 14 Bis, enfim, tem algumas coisas.
Paris tem, Paris tem mais do que aqui no Brasil.
P/1 – Tem mais dos que no Brasil?
R – Tem uma placa, tem uma fotografia minha embaixo dessa placa na casa que ele morou no Champs-Élysées, na Avenida Champs-Élysées, está lá nessa casa, morou o aeronauta Alberto Santos Dumont, uma placa na casa.
Hoje em Santos Dumont tem o Museu de Cabangu, que é a casa em que ele nasceu, administrada hoje pelo pessoal da Aeronáutica, ainda bem, porque eles cuidam, é super bem cuidada, tem o museu lá e.
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Bom, mas aí nós fizemos um livro do O menino que voa, e foi a primeira história publicada da Mary, foi O menino que voa, eu fiz as ilustrações, claro.
E daí pra frente a coisa foi evoluindo, quer dizer, eu fiquei muito tempo na Conquista e, numa conversa lá com o.
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Na época a gente era solteiro quando fizemos isso, eu queria casar, aí eu falei: “Ô Erson, eu preciso de uma garantia que eu vou continuar tendo trabalho, porque eu vou casar”, aí ele falou: “Então vem cá, tira carteira de trabalho, porque eu vou assinar pra você, você vai ser funcionário da editora”.
Eu era funcionário da editora, mas morava em Minas, quer mamata melhor do que essa? Ele mesmo marcava o meu cartão de ponto lá, eu nunca faltei um dia sequer no trabalho, apesar de morar em Minas.
Mas ele era uma figura maravilhosa, nós ficamos até 1976 lá na editora, foi quando eu comecei a fazer coisas aqui para Editora Ática em São Paulo.
P/1 – Mas então espera aí, antes da Ática vocês casam e mudam para o Rio?
R – Mudamos para o Rio, passamos seis anos no Rio.
P/1 – Vocês foram morar onde?
R – Na Tijuca, nós moramos na Tijuca, e no primeiro, segundo ano, a gente morava numa rua, essa coisa de primeiro e segundo ano eu não sei bem, não, tem uns dois ou três anos, por aí.
A gente morava num apartamento muito legal, um prédio muito familiar, as pessoas se conheciam, era prédio pequeno e depois eu mudei para uma rua que era uma delícia de rua, chama Rua Sabóia Lima, que era uma rua que na época só tinha casas, não tinha.
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Lampiões, aqueles lampiões de ferro e tal, uma coisa bem.
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Também lá mais no alto da Tijuca a rua terminava na subida do Sumaré, que era aquele morro ali e tal, enfim, era um lugar muito agradável; no fundo da casa passava um riacho, que é o Rio Trapicheiros, que foi canalizado.
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Uma parte da Tijuca depois foi.
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O projeto de canalização dele foi todo do Tiradentes, Joaquim José da Silva Xavier, dito o Tiradentes.
Tiradentes fazia coisas incríveis, era polícia rodoviária ali em Barbacena também, entre.
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Para atravessar a Serra da Mantiqueira tinha um posto de guarda ali para evitar o contrabando de ouro e pedras preciosas, não é? Então eu brinco que ele era polícia rodoviária, porque ele ficava tomando conta ali, vigiando quem passava ali, as tropas de burros.
Bom, mas aí voltando ao Rio, nós moramos no Rio até 1976 quando a gente começou a trabalhar para São Paulo, a gente morava no Rio fazendo coisas para São Paulo, eu falei: “O que a gente está fazendo no Rio aqui se a gente tem uma casa.
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”.
Nessas alturas do campeonato eu já tinha construído uma casa em Juiz de Fora, eu falei: “Por que nós vamos pagar aluguel aqui se eu estou trabalhando para São Paulo? A gente pode morar em Juiz de Fora e continuar trabalhando para São Paulo”.
P/1 – Mas Eliardo, então desde cedo vocês viviam já de literatura?
R – Sempre, eu nunca vivi de outra coisa, nunca me deram tempo para trabalhar, não tinha tempo para trabalhar, eu ficava só desenhando, quer coisa melhor que isso? E como dizia o Tom Jobim, ainda tinha um dinheirinho nisso aí.
P/1 – E como é que acontece esse contato com a Editora Ática?
R – A Editora Ática, nós fizemos uma viagem com o pessoal da Editora Conquista, nós fomos visitar o colégio em Fortaleza, Fortaleza tinha um distribuidor muito importante pra Editora Conquista que era o Carlos, o Carlos era um grande imitador de cachorro, ele sabia imitar cachorro, ele ligava para você e começava a latir no telefone.
Bom, então nós fomos a Fortaleza para visitar colégio e depois nós fomos até Belém, fizemos um tour, e o Carlos também era distribuidor da Ática lá no Nordeste, e ele falou assim: “O pessoal da Ática não conhece o seu trabalho”, e eu falei: “Acho que não, não tive nenhuma notícia não”, ele falou: “Eu posso mostrar o seu desenho para o pessoal lá?”; “Pode, é claro”, e ele mostrou o desenho aqui em São Paulo, mandou uns livros da Conquista.
Aí a editora, na época era Regina Mariano, foi uma editora.
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Não sei o que a Regina.
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Se ela está no ramo hoje, mas ela era muito importante na área de literatura infantil, era uma editora importantíssima.
E ela.
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Então ela nos ligou, se apresentou e falou: “Olha, eu vou ao Rio.
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”.
Nessa época nós ainda estávamos morando no Rio, “eu vou ao Rio para conversar com vocês”, e foi lá em casa, falou assim: “Olha, a gente quer uma.
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Nós estamos pensando em fazer uma coleção pra criança que está começando a ser alfabetizada, quer bolar alguma coisa?”.
Aí nós bolamos, fizemos um primeiro livro e ela escreveu uma carta dizendo que o livro estava ótimo, que era aquilo mesmo que ela queria e que ela nem sabia.
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Ela não tinha certeza que esse tipo de livro podia ser feito em língua portuguesa, que foi o primeiro livro da coleção Gato e o Rato, que hoje tem 35 títulos.
Então aí começou.
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Aí nós começamos: “Esse está ótimo e tal”, aí eu conheci o professor Anderson, que era o dono da Ática.
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P/1 – Fala um pouquinho dele, porque ele é uma pessoa importante, não é?
R – É muito importante o Anderson também.
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Eu tive a maior sorte em conhecer essa gente, primeiro o (Aens?), o Ersen da Conquista e o Anderson da Ática.
O Anderson, um cara idealista, ele também gostava das coisas do Brasil, ele queria fazer coisas do Brasil, queria fazer autores brasileiros e então ele deu o maior apoio: “Vocês vão fazer sim, pode ficar por minha conta, vocês vão fazer exclusividade, ficar com exclusividade com a gente.
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”.
P/1 – Exclusividade?
R – É.
“Vocês vão ser nossos autores”, enfim, nós ficamos muitos anos na Ática.
Ficamos lá de 1974 a 1994 eu acho.
P/1 – Se a gente fosse fazer uma cronologia da produção de vocês na Ática, vocês começam com Gato e Rato.
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R – Começamos.
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Foi a primeira coisa que nós fizemos pra Ática, chamava-se O Rabo do Gato, foi o primeiro livro que nós fizemos pra Ática.
P/1 – E vocês lançaram um livro só?
R – Não, o Anderson tinha uma visão.
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Ele sabia tudo de livro, aí ele falava: “Não adianta lançar um livro só, porque vai se perder no mercado, a gente tem que lançar mais, nós vamos lançar quatro títulos”.
Aí nós fizemos quatro títulos e fomos.
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Isso foi em 1974, eles foram lançados na Bienal de 1978 aqui em São Paulo, lá no Ibirapuera e fez o maior sucesso, tinha fila para autografar, eu nunca tinha visto um negócio daquele, fila para eu autografar, quer dizer que eu estou importante.
Mas eu nem pensava nisso não, tinha esse negócio de importante a gente ficava feliz porque todo mundo falava com você: “Parabéns, que maravilha.
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”.
P/1 – Eliardo, você sempre autografou desenhando?
R – Sempre, desde aquela época, desde o primeiro autógrafo eu sempre faço um desenho lá, é um desenho genérico, não é um desenho de grife, é o genérico, é rápido, tem que ser rápido, aliás, a gente aprende isso, ao longo dos anos vai aprendendo isso.
Quando a fila está pequena você capricha, você vai fazendo um desenho e tal para a fila aumentar, aí quando a fila aumenta você manda bala se não o pessoal fica chateado de ficar esperando tanto tempo na fila, tem que ser rápido.
P/2 – E Eliardo, nesse período da Ática vocês também estão presentes nas escolas?
R – Também.
Desde aquela vez, aquela época a gente visitava escola, na época era muito São Paulo, não é? A gente vinha muito aqui, porque os colégios aqui todos usavam o livro para a alfabetização e tal.
Depois viajamos o Brasil inteiro por conta desses livros, visitar colégio e tal.
P/1 – E nesse período vocês já tinham filhos?
R – Já, já sim, tínhamos os quatro filhos já em 1976, 1978, a gente já tinha todo mundo: Augusto, Patrícia, Daniel e Lucas.
P/1 – Que beleza.
Eles nasceram aonde?
R – Todos eles.
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O Lucas nasceu no Rio, o Lucas nasceu em 1974, a gente estava morando no Rio nessa época ainda, então ele nasceu no Rio e não tem sotaque carioca, não.
P/1 – E os outros nasceram em Juiz de Fora?
R – Nasceram, mas eles foram alfabetizados no Rio, eles estudavam no colégio lá no Rio.
Aí depois nós fomos para Juiz de Fora.
P/1 – Aí você construiu uma casa em Juiz de Fora e ficou morando lá?
R – Eu já tinha uma casa que foi ao longo dos anos aumentando, a gente vai sempre acrescentando e hoje é uma casa maior do que devia ser, porque dá um trabalho de cão.
P/1 – E Eliardo, nesse período da Ática tem a Gato e Rato, primeiros livros vão fazendo sucesso e aí o que acontece? O que a editora vai pedindo mais para vocês?
R – Depois o Andersen queria uma coleção de animais brasileiros, aí nós fizemos uma coleção que chama Coleção Corre Cutia, acho que ela tem parece que nove títulos também feitos meio que paralelo com a Gato e Rato, não é? Eu fiz nessa época também da Ática quando a gente tinha.
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Não dava para fazer assim, bateladas em seguida, então eu fiz algumas ilustrações, fiz muita capa de livro didático e fiz algumas ilustrações também para livro didático, para preencher também o tempo, não é? Enquanto a gente naquele período que faz dois, três livros eu tive que dar um espaço para fazer um quarto livre para não tumultuar, enfim, nesse meio tempo a gente fazia outro tipo de coisa, mas sempre pra Editora Ática.
P/2 – Nesse período dos anos 1970, como era o seu processo de desenhar, o seu processo de criação?
R – Antes eu queria voltar um pouquinho ao final da década de 1960, nessa época eu comecei a fazer algumas.
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Eu conheci o Ziraldo e ele falou: “Nós estamos fazendo uma seção na Revista O Cruzeiro”, que era uma revista muito importante na época.
O Cruzeiro era uma revista dos Diários Associados do Chateaubriand e tinha uma divulgação, tinha uma edição com milhares de exemplares que era vendida, distribuída pelo Brasil inteiro.
E estava fazendo uma parte, um caderno no O Cruzeiro que chamava O Centavo, que eram cartuns e eu cheguei a fazer lá, não sei se um ou dois anos, nós fizemos esses cartuns.
Hoje eu vejo assim, acho aquilo muito bobo, os meus, não é? Mas foi uma época que apareceu muita gente que está aí hoje, o Juarez Machado, o Guidate, o Nani, muita gente importante que está aí fazendo coisas até hoje, trabalhando nisso.
Então foi uma época.
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Em 1960 o Jornal do Brasil criou um caderno infantil chamado Caderno I que durou dois ou três anos, e eu fiz muita coisa pra eles, trabalhava com muita coisa para eles.
Conheci pessoas assim, que são minhas amigas até hoje, por exemplo, a Marina Colasanti que é uma pessoa que eu adoro, que é minha amiga, eu gosto muito dela, e o marido Affonso Romano de Sant'Anna e, enfim, fiquei lá uns dois anos fazendo coisas.
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História em quadrinho, tinha uma página só de quadrinho chamada.
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Baseada nesses contos clássicos, Fábulas de Esopo, A Raposa e as Uvas.
Enfim, uma reinterpretação em quadrinhos das fábulas e fazia capas para esses cadernos, foi uma época muito gostosa, época áurea do JB [Jornal do Brasil], o Dines era o editor, enfim, tinha um pessoal lá, Norma Cury.
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P/1 – O Dines é conselheiro do Museu.
R – Ah é? Que legal! Ele é uma figura importante no jornalismo brasileiro.
P/1 – E Eliardo, você podia contar um pouquinho do seu processo de trabalho do desenho, como é que é?
R – Você diz do ponto de vista técnico? Eu tento me libertar do estudo, eu não gosto muito do estudo não, eu sou mais aquela coisa do Picasso, colocar uma tela branca e pensar: “Vamos ver o que vai sair daqui”, mas eu normalmente.
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Na verdade, o meu estudo eu costumo fazer várias vezes uma ilustração de várias maneiras e de várias técnicas, às vezes eu pego uma ilustração que eu fiz e descartei, mas está guardada lá e eu pego essas ilustrações e falo: “Por que eu não usei? Está legal essa aqui”, mas na hora eu achava que não estava legal e eu repetia e fazia de novo, fazia outra coisa completamente diferente.
Então eu gosto muito de variar técnicas, a coleção Gato e Rato, por exemplo, ela tem de tudo, ela tem tinta acrílica, livro ilustrado com acrílico, livros com guache, livros com aquarela, com lápis de cor, só lápis de cor, esse lápis de cor escolar, esse lápis de cor comum, normal.
E agora recentemente a gente esteve na Europa, na Eslováquia, encontrei com um que fez parte lá de um trabalho que a gente estava fazendo e depois a gente fala nisso.
Éramos.
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Fomos jurados juntos, que é o Sipar, o Sipar é um ilustrador eslováquio muito bom e eu conversando com ele sobre materiais ele falou: “Eu só gosto de usar material comum.
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”, porque eu perguntei pra ele: “Onde é que eu compro um lápis assim.
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”, porque a Boêmia, aquela região é grafite, eles têm grafites maravilhosos: “Qual é a loja que eu vou comprar uns lápis geniais aí?”; “Ah, eu não sei”; “Como você não sabe? Você mora aqui”, ele falou: “Eu só uso coisa comum, eu uso papel comum, nada de papéis grandes, tinta comum”, eu falei: “Eu também gosto muito dessa história”, mas já que eu estava lá tinha que comprar uns lápis, não é?
P/1 – Claro, imagina.
E você continua pintando árvores azuis, não é?
R – Continuo pintando árvores azuis graças a Deus, felizmente.
Felizmente.
Eu tenho gatos azuis, Gato e Rato está cheia de gatos azuis, cachorro roxo, enfim, acho que a imaginação.
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A criança não vê essa coisa, quer dizer, ela vê, ela percebe, mas ela entende aquilo muito mais do que o adulto: “Mas pô, gato azul?”.
O adulto questiona, a criança não, aceita aquilo naturalmente, um gato azul, qual é problema de um gato ser azul? Muito menos preconceito.
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Ela não tem preconceito nenhum, depois que a gente cresce é que fica preconceituoso, tem essas bobagens todas aí.
P/1 – E Eliardo, então seguindo a nossa cronologia na Ática, depois dos animais brasileiros vem o quê?
R – Aí depois foram os Pingos, nós criamos os Pingos que são os personagens que hoje, sei lá, com os livros publicados na Ática e com os livros publicados na nossa editora eu acredito que tem uns cinquenta títulos talvez.
Nesse tempo todo, todos os nossos livros publicados, a gente tem segundo o pessoal da Biblioteca Nacional que tem os registros dos títulos, nós temos lá perto de 300 ou mais de 300 títulos.
P/1 – Trezentos títulos? Que beleza!
R – É muita coisa, não é? Ave Maria, eu não sei como eu fiz tanta coisa.
P/1 – Quer dizer, você também criou condições para isso, não é?
R – É, porque a gente vivia por conta disso, eu não tinha que fazer outra coisa, não trabalhava em outra coisa, a gente vivia por conta de fazer livro.
Ainda tem os livros didáticos que a gente ilustrou, que eu ilustrei nesse meio tempo aí, além dos livros lá.
P/1 – E como é que surgiu essa ideia dos Pingos?
R – Olha, fazendo.
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Na Gato e Rato cada título tem os seus personagens, os personagens não se repetem nos títulos.
Então a gente imaginou que devíamos criar uma família de personagens que pudessem aparecer em vários títulos, em várias situações e foi aí que a gente começou a brincar com essa coisa de: “Ah, o que vai ser? Vai ser uma gota? Não, mas a gota.
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Só uma gota de tinta, é, podia ser uma gota colorida”, aí fizemos.
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Aí começou a brincar com a gota, botar olhinho nela, nariz, boca, tem que virar um personagem, e aí nasceram os Pingos, imaginamos as sete cores que são as cores do arco íris, então são sete personagens, sete é um número mágico, é um número atávico, não é? A humanidade tem os sete pecados capitais, as sete emoções do japonês, as sete maravilhas do mundo, enfim, o sete é um número atávico para a humanidade, as sete cores do arco íris.
Então criamos os sete personagens que são absolutamente iguais, mudam só a cor.
Estão vivos até hoje, mas foram criados em 1986.
E foram publicados primeiro pela editora que na época chamava Rio Gráfica e hoje é Editora Globo; a Rio Gráfica era de um grupo lá do Roberto Marinho, mas no Rio Grande do Sul tinha Editora Globo que era do Bertaso, uma editora que publicava o Érico Veríssimo, tinha 2,5 mil títulos da maior importância, Alberto (Camim?), Marcel Proust, toda obra do Érico Veríssimo.
E o Roberto Marinho queria trocar o nome de Rio Gráfica para Editora Globo, mas ele não podia por causa da Editora Globo do Rio Grande do Sul, não é? Então o caminho era comprar a Editora Globo e eles a compraram, com o seu acervo de 2,5 mil títulos que eu não sei, eles não estão publicando, isso tudo é uma pena, porque eles têm coisas fantásticas, obras do Proust, Mario Quintana, enfim.
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P/1 – Mas Eliardo, você não eram exclusivos da Ática?
R – Não, em 1986 teve um intervalo de dois anos, aí foi exatamente em 1986 até 1988, uma época que a gente falou: “Ah, não queremos exclusividade, a gente quer fazer outras coisas”, o Anderson também achou que era melhor dar um tempo.
Aí nós começamos a publicar Os Pingos pela Editora Globo e também começamos a fazer uma coleção para a Editora Mercado Aberto de Porto Alegre.
Quando a gente publicou o primeiro livro pelo Mercado Aberto o Anderson viu o livro e falou: “Não, não vão fazer concorrência”, ligou pra mim e falou: “Vem cá, precisamos conversar, vem de volta”.
Aí chamou a gente de volta e tal, ele era uma pessoa ótima, eu gostava muito dele, e acabamos voltando.
Aí voltamos, fizemos um acordo com ele e voltamos pra Ática.
P/1 – Nesse período é que surge o projeto do Andersen?
R – Foi, foi em 1989, um pouquinho depois, foi um ano depois, surgiu o projeto do Andersen, a gente queria fazer diferente da Gato e o Rato, diferente da Corre Cutia, queria fazer uma coisa para criança que fosse maior um pouquinho, que dominasse a leitura.
Tinha lido a Gato e o Rato, mas já estava na hora de pegar outros livros e tal, e a gente imaginou exatamente por causa dos nossos livros de infância, os meus livros de infância, O Patinho Feio e eu falei: “Vamos fazer, Anderson? Como que a gente vai fazer, Anderson?”; “Ah, vamos para Dinamarca, ver onde o cara morou, enfim, ver como era a vida dele, sentir o clima, sentir o frio”, passamos o inverno lá, ficamos lá não sei quantos meses, quase um ano, oito meses acho.
P/1 – Como é que vocês conseguiram viabilizar o projeto?
R – Bom, o Anderson falou: “Tudo bem, vocês vão para Dinamarca, vocês topam?”.
Mas nesse meio tempo ele morreu, e acabou claro não vendo o processo, ou então está vendo, está sabendo de tudo.
Mas aí a diretoria falou assim: “Tudo bem, ele prometeu e vocês vão, mas nós damos a passagem de um ano”, que é uma passagem mais cara que a passagem de vai e volta.
A gente ficou com a passagem e na época a gente tinha condições, alugamos uma casa muito legal, em um condomínio com cinco casas, condomínio fechado não era bem o termo, porque tinha lá um portão, mas vivia aberto dia e noite lá não tinha esses problemas, pelo menos até então não tinha problema nenhum.
E a gente morou lá esse tempo.
P/1 – Como é que foi essa chegada lá?
R – Fizemos amizade com o nosso senhorio, ficou nosso amigo, ia jantar lá em casa, porque ele namorava uma brasileira.
Ele namorava uma brasileira, a Rosana, e a Rosana tinha um apartamento no centro de Copenhagen, um lugar muito bonito, muito agradável.
E ela não queria mudar pra lá, para esse bairro, então ele foi morar com ela no apartamento dela e a casa dele ficou vazia, nisso a gente alugou a casa dele.
Ele fez baratíssimo, acho que ficou quase que a despesa de condomínio.
P/1 – Que beleza.
E a embaixada ajudou vocês?
R – Ajudou, ajudou a entrar em contato com o pessoal da Universidade de Odense, que é a cidade onde o Andersen nasceu.
E, enfim, se colocou a nossa disposição, porque o dia que nós fomos lá à embaixada, veja como são as coisas, era uma época de eleição no Brasil, era novembro isso, tinha uma eleição qualquer no Brasil, que não me lembro, e a gente tinha que justificar o voto.
Eu fui à embaixada e o embaixador era o Sérgio Rouanet, eu falei com a secretária dele: “Nós queremos conhecer o embaixador, a gente podia dar uma palavrinha com ele na sala?”.
Ela falou assim: “Um momento”, foi lá dentro e daqui a pouco ela voltou e falou: “O embaixador falou que não quer receber vocês aqui, é para você tomar um uísque na casa dele de noite”, porque a filha dele que na época tinha oito anos foi alfabetizada na coleção Gato e Rato.
Aí abriu as portas e fizemos amizade com o Rouanet, fomos lá, tomamos uísque, conversamos bastante.
P/1 – Que beleza! E como é que foi mergulhar nesse universo do Andersen?
R – Olha, fantástico, primeiro porque nós descobrimos que o Andersen é um herói nacional dinamarquês, ele é tratado lá como um grande herói, que a gente tem talvez aqui como o Tiradentes, não como o nosso Monteiro Lobato, não é? Porque o brasileiro já não dá muita bola para a importância de Monteiro Lobato, devia.
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Eles têm lá, uma das principais ruas de Copenhagen é o bulevar lá, hoje o museu dele na cidade, dele em Odense, é a antiga casa dele expandida para um prédio moderno, e tem tudo sobre o Andersen, tudo que foi publicado no mundo sobre o Andersen eles têm.
Tem histórias contadas, narradas, você pega aquele fone de ouvido e você ouve O Patinho Feio contado, por exemplo, por Laurence Olivier, gravado com a voz do cara, gravado com a voz do Michael Hedges Grey, grandes atores do teatro inglês que gravaram vários contos de Andersen.
Então tem a sala de vídeo onde eles passam vídeos feitos pelo mundo afora, principalmente pelos tchecos, os tchecos fizeram muita coisa, e, enfim, eles têm tudo sobre Andersen, todos os livros publicados no mundo inteiro, é um museu fantástico, muito bem organizado e bonito, e tem a casa antiga onde o Andersen nasceu.
P/1 – E Eliardo, que histórias vocês foram escolhendo para trabalhar?
R – Primeiro nós escolhemos as histórias que a gente tinha um amor, tinha um contato pessoal, como O Patinho Feio, O Rouxinol, A Colina dos Elfos, e aquelas histórias que a gente já conhecia daqui e depois com o tempo nós fomos descobrindo outras histórias.
Nós demos uma entrevista para um jornal dinamarquês, o jornal de maior circulação lá na época, e demos o nosso telefone, porque se tivesse alguma pessoa que tivesse alguma coisa sobre Andersen que ligasse pra gente.
Ah, pra quê? Tivemos que instalar secretária eletrônica, se não a gente ia passar o dia inteiro no telefone, não fazia outra coisa a não ser atender telefone.
Aí tinha sempre gente dizendo: “Oh, eu conheço a história assim”; “Tem uma história que é muito pouco publicada que é dessa maneira”; “Ah, eu tenho um livro que eu herdei do meu avô com ilustrações antigas e não sei o quê”, todo mundo queria ajudar, todo mundo queria.
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Não queriam aparecer, não queriam nome de lugar nenhum, eles queriam ajudar a gente no trabalho, porque se tratava do herói deles, eles queriam mostrar mais coisas do Andersen.
E aí a gente conheceu gente, conhecemos o Lace, um dinamarquês que é nosso amigo até hoje, ele mora em Belo Horizonte, era casado com a Julieta, brasileira também.
A gente está sempre achando uma brasileira nessa história, e também é uma moça muito legal e ele falava perfeitamente, por ele ser casado há muitos anos com a Julieta ele falava perfeitamente o português, então ajudou muito a gente na tradução direta do dinamarquês.
Nós fizemos muita amizade lá e foi um período ótimo, descobrimos coisas da vida do Andersen.
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As coisas mais manjadas, mais conhecidas todo mundo sabe, não é? Por exemplo, O Patinho Feio é uma história autobiográfica, a autobiografia dele está ali toda no O Patinho Feio.
Ele era um cara feio, ele se considerava um cara feio, ele não tirava fotografia de jeito nenhum de frente, se ele tivesse dando entrevista para vocês aqui ele estava de lado, porque ele achava que de lado ele era passável e que de frente ele era uma coisa horrorosa, de fato ele era meio feinho mesmo.
Então isso era.
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Ele nunca teve casa dele própria, a única casa própria dele foi a casa que ele nasceu, porque ele vivia viajando e se hospedava sempre na casa de amigos, na casa dos reis da Europa na época.
Ele foi o patinho feio exatamente por isso, ele nasceu feio, pobre e se transformou num belo de um cisne e realmente foi o que aconteceu, ele teve essa glória de viver todo esse sucesso em vida.
Era amigo de pessoas importantíssimas, era amigo, por exemplo, do Charles Dickens, trocava correspondência com o Dickens e, enfim, vivia na Europa e contando histórias para as crianças que estavam ali em volta.
Ele ia contando histórias e fazendo recortes, fazendo silhuetas e os personagens, recortando personagens mostrando, falavam num príncipe e ele recortava a silhueta de um príncipe, dava para a meninada ali, devia ser uma figura muito interessante, não é? E o Andersen tem também muita coisa, claro, criação dele, mas tem muita coisa também baseado em folclore, por exemplo, tem uma história dele que chama Nicolau Pequeno e Nicolau Grande que é ótima a história, mas é uma história de folclore, é uma das aventuras do Pedro Malazarte, porque o Pedro Malazarte foi criado em.
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A primeira notícia que se tem de Malazarte é de 1500 e qualquer coisa.
Então ele pega essa história e reescreve a história com o nome de Nicolau Pequeno e Nicolau Grande.
P/1 – E Eliardo, vocês começam a fazer o trabalho lá ou esse período foi só pesquisa?
R – Não, foi só pesquisa, a maioria pesquisa e como a gente visitava também muito museu, via muita coisa, eu falei assim: “Eu vou começar fazer um pouco.
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Fazer umas coisas maiores”, aí cheguei a pintar uns quadros, foi aí que eu comecei a ter vontade de pintar coisas grandes e, enfim, foi nessa época também.
P/1 – E aí depois o que resultou essa pesquisa toda?
R – Resultou que quando nós voltamos para o Brasil, aí nós.
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A Mary sentou e eu fui fazer as ilustrações, e nessa época a gente já morava aqui em São Paulo e fizemos dois livros de capa dura, quase cem páginas cada um que, posteriormente, foram subdivididos em várias brochuras, cada um com uma história, oito ou dez, não sei quantos livros tem que, também foram.
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Achamos melhor que a gente.
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Também fazer a coisa, inclusive fica mais acessível ao público do que ter dois livros de capa dura, que é um livro de presente, o outro não, o outro pode ser usado pela.
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Ser mais acessível ao público.
P/1 – E o público recebeu bem?
R – Muito bem, tanto o público quanto o pessoal da crítica, enfim, muito bem recebido.
E então essas histórias todas do Andersen.
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Tinha uma coisa engraçada que eu achava, acho uma coisa fantástica, ele tinha uma.
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Ele andava com a mala dele nessas viagens, tinha a mala de roupa dele, tinha uma caixa de cartola, aquela caixa comprida de cartola, um guarda-chuva e um rolo de corda.
Ele sempre andava com um rolo de corda, não separava do rolo de corda de jeito nenhum, porque ele ficava sempre até o segundo andar, ele não ia para o terceiro andar de jeito nenhum.
Quando ele se hospedava numa casa, um castelo, ele ficava no segundo andar que era onde dava a corda se tivesse.
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Pegasse fogo no negócio lá ele saía pela janela, isso é sensacional, eu acho ótima essa história.
P/1 – E qual é a contribuição do Andersen para a literatura infantil?
R – Ah, total, a literatura hoje, sei lá, ela existe e se tornou conhecida eu acho que muito por causa dele, um dos criadores da literatura que a gente entende hoje para jovens e crianças.
Na verdade é para todo mundo, porque aquilo é muito bonito, o texto original dele é maravilhoso.
A gente procurou, a Mary procurou fazer muito dentro do que ele escreveu, por exemplo, quando ele vai descrever que uma coisa é: “Passava um riacho perto”, ele não se limita a falar que é um riacho perto, passava um riacho perto, mas era muito perto, mas era muito perto mesmo, ele descreve assim, desse jeito.
A folha da mulher que escondia a pata de onde nasceu O Patinho Feio, a folha era grande, mas era muito grande, era grande mesmo e, enfim, é um.
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Tem um livro dele também, nós descobrimos depois em Portugal, numa época que ele morou em Portugal.
Ele passou uma temporada em Portugal na casa de uns amigos, e ele tem uma história maravilhosa que ele não fala isso, mas a gente acha que ele escreveu essa história em Portugal por causa do sol, por causa da.
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Um sol que não tem na Dinamarca, chama A Sombra, que é a história de um cara sentado numa varanda e bate o sol e a sombra do cara atravessa a rua e vai na varanda da casa vizinha, é linda a história, maravilhosa a história.
Então por causa desse sol, dessa veemência do sol só pode ter.
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Isso foi feito em Portugal, então essas coisinhas, essas miudezas importantíssimas, não é? A gente descobriu muita coisa dele.
P/2 – E tudo refletiu no trabalho que é um trabalho muito cuidadoso, não é?
R – É.
P/1 – E Eliardo, depois vocês ficam na Ática até 1990, é isso?
R – 1994 ou 1996, não sei, é por aí.
P/1 – E aí é que surge a editora de vocês?
R – Aí é que surge a nossa editora, nós imaginamos que a gente podia.
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Quando a gente terminou, o Anderson já tinha morrido, a gente achou melhor parar com a exclusividade, porque a gente queria fazer outras coisas e resolvemos criar a nossa editora, a nossa própria editora, que está de pé até hoje, com poucos títulos, mas.
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P/1 – Você já tem o quê? Mais de cinquenta títulos?
R – Mais de cinquenta títulos, quer dizer, para uma editora isso ainda é pouco, mas a gente chega lá.
P/1 – Ah, sem dúvida.
E a ideia então da editora é publicar a obra de vocês?
R – É, exatamente, e alguma outra coisa que a gente acha que vale a pena, que é importante, por exemplo, a gente tem livro lá do Elias José, a gente tem livro do Iacyr Freitas que é um poeta maravilhoso e que fez um livro lá que é genial.
Ele viu umas ilustrações que eu tinha feito pra nada, fiz uma série de quadros chamado O Circo, gente de circo, gente fazendo malabarismo, equilibristas.
Eu desafiei: “Ô, Iacyr, por que você não escreve alguma coisa sobre isso?”, ele topou e uma semana depois estava tudo pronto.
P/1 – Uma semana?
R – É uma figura ótima, um grande amigo também.
P/1 – E Eliardo, qual é a diferença entre trabalhar então vinte anos para outras editoras e ter a sua? O que mudou na vida?
R – Mudou que a Mary dá um duro danado, porque eu não me meto nessa história, eu: “Vamos fazer um livro assim?”, eu faço o livro, eu não sou administrador, não quero administrar, mas a Mary toca a coisa direitinho, enfim, a coisa da grana, de pagar, de receber é com ela, ela é ministra das finanças, é o Banco Central e tudo junto, o Ministro da Fazenda, tudo junto, enfim, é com ela.
P/1 – E a participação dos filhos de vocês no processo?
R – Olha, a Patrícia trabalha com a gente, a Patrícia é a pessoa que faz as montagens, faz o texto, faz a diagramação, enfim, ela trabalha efetivamente com a gente lá, agora os outros eles têm a vida deles independentes, mas fazem coisas também pra gente.
O Lucas, por exemplo, é ilustrador e muito bom, diga-se de passagem, porque filho.
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A velha frase: “Não é porque é meu filho”, mas ele é muito bom, dito por outras pessoas, outras editoras.
Um exemplo, ele fez uma coleção para a Editora Nova Dimensão em Belo Horizonte e foi muito bem aceito, eu acho que foi o único livro da Editora Dimensão que foi comprado pelo PNDE [Programa Nacional Biblioteca na Escola], foi um livro ilustrado.
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Um texto da Mary e ilustrado por ele.
P/1 – E ele desde pequeno gostava de desenhar?
R – Sempre, desde pequeno também, o Lucas, ele.
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E ele é muito bom também na coisa gráfica, de computação gráfica, por exemplo, agora ele está desenvolvendo os Pingos em 3D, que a gente pretende também num futuro aí fazer pequenos filmes de animação para internet, celular, é um campo de trabalho aí bem interessante.
O Augusto tem a firma dele lá, ele tem um birô para impressão muito bem montado, aliás, hoje ele está até na Alemanha numa feira de máquinas gráficas.
E o Daniel, ele trabalha com computação também, mas já é uma área técnica, já é outro tipo de coisa, ele fez um trabalho aqui para São Paulo CBTU [Companhia Brasileira de Trens Urbanos], ele trabalha nesse tipo de coisa, planejamento, enfim, nada a ver com desenho, mas também no teclado.
P/1 – Você e a Mary esse ano completam quarenta anos de estrada, não é? Como que é isso?
R – Ah, sei lá cara.
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Olha, eu não sinto esses quarenta anos não, viu? Você vê, eu estou sempre planejando e eu não sou de aposentar, não acho que a gente morre com um lápis na mão, não é? Tal qual um El Cid que desembainha um lápis e ataca.
P/1 – Que legal, um longo trabalho e muita coisa ainda pela frente, não é?
R – O artista não aposenta, não tem jeito, como o artista vai aposentar? Eu posso aposentar, tudo bem, vamos aposentar, mas aí o que eu vou fazer? Eu vou desenhar, já que estou com tempo folgado, estou aposentado mesmo, então vamos desenhar, vamos pintar, é uma coisa muito sem sentido, não é?
P/1 – E Eliardo, nesse tempo todo vocês colecionaram muitas histórias de leitores, de retorno, de professor, você podia contar alguma?
R – Isso é emocionante, é a parte mais emocionante de tudo isso, mais gostoso que prêmios ao longo da carreira, aliás, até tem uma história interessante sobre um prêmio especial, mas hoje você encontra.
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Outro dia, por exemplo, no Rio, nós fomos fazer uma tarde de autógrafos no salão do livro infanto-juvenil que é feito lá pela Fundação Nacional do Livro Infantil [e Juvenil] e que é feito lá no Museu de Arte Moderna.
A gente estava fazendo lá um lançamento, uma tarde de autógrafos, e aí chegou um rapaz, um jovem simpático, bonito, com um filhinho pequeno e emocionado, absolutamente emocionado ele falou: “Eu estou emocionado de falar com você”, eu falei: “Estou vendo”; “Porque eu aprendi a ler nos seus livros e agora eu estou ensinando ele.
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”.
O menino, o filho dele, a ler, eu falei: “Então agora você vai me dar um abraço”, isso é emocionante.
Ontem, por exemplo, aquela menina também falou que aprendeu a ler, a filha do Rouanet.
Uma ocasião a gente estava também no Rio, lá na casa de Rui Barbosa, também fazendo um bate papo com a criançada lá de um morro em frente, uma favela, e a gente estava comentando sobre personagem e tal, falando sobre o personagem, e eu fiz um desenho do Pingo lá.
E eu falei: “Alguém aí sabe que personagem é esse?”.
Silêncio, eu falei: “Pô, eles não conhecem, os livros não chegaram lá”, aí deu aquele silêncio, e aí de repente um menino no meio da.
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Levantou e falou assim: “É o Pingo!”, você chora, cara, o menino lá.
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Aquela coisa mais humilde, ele conhece e gosta.
Nós fizemos um boneco, cortamos na madeira um formato do Pingo e tal, para o Fest Ler, que é uma feira de livros em Juiz de Fora, e a criançada passava e: “Olha lá o Pingo!”, ia lá e abraçava.
P/1 – Vocês tiveram um stand lá?
R – Tivemos um stand lá, mas é isso aí essa história do prêmio, em 1975 eu ganhei um prêmio na.
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Foi uma coisa muito importante, porque foi o primeiro latino americano que ganhou o prêmio na Bienal de Ilustrações de Bratislava, na época era Tchecoslováquia, hoje é Eslováquia, não é? Então aquilo foi.
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Pra gente foi.
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Eu fui lá receber o prêmio, mas eu cheguei lá eu não sabia que tinha um prêmio, mas de qualquer jeito eu iria porque é uma coisa que participavam ilustradores do mundo inteiro.
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P/1 – Ah, você foi convidado, mas não sabia que tinha um prêmio?
R – Não, eu não sabia que tinha um prêmio, eu acho que na época não tinha sido escolhido ainda nesse meio tempo de viagem.
Quando eu cheguei lá é que tinha saído o resultado e foi também muito emocionante, porque eu cheguei lá, me apresentei: “Eu sou fulano de tal”, e o cara olhou na lista lá e falou: “You have a prize”, eu falei: “Eu tenho um prêmio? Tem certeza?”, o cara me mostrou a lista e foi uma coisa também muito emocionante.
E agora recentemente eu voltei lá, uma vez ou duas, conheci ilustradores também fantásticos, tinha gente lá, por exemplo, eu me lembro do Leo Lionni, o Leo Lionni era um ilustrador italiano, mas ele morava em Nova York, era presidente da Associação dos Artistas Gráficos dos Estados Unidos e, enfim, tem um desenho belíssimo também, e o Leo Lionni, nós tomamos uísque, ficamos meio de porre, conversamos muito, sempre gente muito agradável, muito.
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Aí fizemos bastante amizade lá, o diretor lá da feira está lá até hoje e eu encontrei com ele agora e ele falou assim: “Eu lembro quando você foi lá buscar o prêmio”, isso é muito legal.
Mas eu estive lá o ano passado, não mais concorrendo, mas como integrante do júri internacional de Bratislava da Bienal de Ilustração, o que é também, não é? Muito legal.
E tinha gente do mundo inteiro lá, eram nove integrantes do júri, tinha Dinamarca, Rússia, Bulgária, Suíça, Canadá, Bélgica, Irã, nove pessoas do mundo.
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Muito importante também conhecer essa gente toda e.
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P/1 – Eliardo, é uma pena, estamos chegando ao fim da gravação.
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R – É uma pena, passa rápido, quando é bom passa rápido.
P/1 – Aquela clássica pergunta que já te fizeram, que conselho você dá para uma criança que gosta de desenhar?
R – Faça, refaça, torna a fazer, bata o pé, se é isso que você quer vá em frente, dá certo.
P/1 – E como é que você vê essa literatura para crianças que explode aí a partir dos anos 1970 e que vocês participaram desse processo todo?
R – Olha, tem muita coisa nascida na década de 1970, assim, da maior importância que estão aí até hoje, eu não vou citar, porque fatalmente eu vou esquecer alguém, mas foram coisas muito importantes que aconteceram a partir da década de 1970 com a criação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, que deu um up nisso muito grande, também as pessoas.
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Eu não sei, foi um momento mágico em que os editores também se conscientizaram de que era importante fazer coisas no Brasil.
O que tinha, o que vinha de fora não era de boa qualidade, a gente tinha gente e material gráfico para fazer isso.
Hoje você tem livros no Brasil tão bem impressos e tão bem feitos como qualquer parte do mundo, da Europa, Estados Unidos, enfim, nós temos uma qualidade gráfica muito boa.
P/2 – Então o senhor está falando da qualidade gráfica dos nossos livros?
R – Eu acho que a gente hoje tem gente, equipamentos gráficos da mais alta qualidade, nós podemos concorrer graficamente com qualquer editora aí de fora do Brasil.
E pessoas também nós temos, hoje grandes autores, pessoas que são lidas aí no Brasil inteiro e as crianças adoram, não é? Gostam muito, tem muita gente aí fazendo, trabalhando, que bom, não é?
P/1 – Eliardo, e o que foi o seu aprendizado aí com a Mary nessa parceria tão longa?
R – Olha, eu acho que é aquela coisa, eu às vezes brinco que o ilustrador esperto tem que casar com a escritora, não é? Porque você briga em casa, você cria em casa, tudo acontece, então é muito boa essa coisa quando você tem oportunidade de criar um livro juntos, porque no nosso processo de trabalho ela dá opinião sobre o meu desenho e eu faço texto, opino também sobre o texto dela, enfim, a gente cria coisa junto: “Ah, isso não está legal, vamos mudar, quem sabe esse caminho e tal.
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”, às vezes não com tanta calma como eu estou falando: “Mas eu já falei que isso não é assim.
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”, e tem quebra pau, mas é muito legal, não há mágoas, nenhuma mágoa, ao contrário, é muito gostoso, muito gratificante você fazer uma coisa.
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Você ver o seu livro nascer.
P/1 – Então Eliardo, para terminar, o que você achou de participar desse projeto, Memórias da Literatura Infanto-Juvenil?
R – Olha, eu acho importantíssimo, eu acho que é a única coisa que você tem no Brasil pra gente guardar essa memória, esse depoimento das pessoas, eu não conheço nada semelhante ao que está sendo feito, que vocês estão fazendo aqui.
Eu acho que isso aí é um arquivo que, enfim, estão pensando no futuro, estão pensando no futuro, em deixar daqui a 500 anos saber o que a gente pensava hoje, não é? Como é que as pessoas procediam hoje nessa coisa de fazer o livro, na feitura do livro.
P/1 – Eliardo, muito obrigado por mais essa conversa.
R – Obrigado a vocês, a essa turma toda aí, foi muito bom, foi muito gostoso e passou muito rápido.