Projeto Memória da Literatura Infanto Juvenil
Entrevista de Ricardo José Duff Azevedo
Entrevistado por José Santos e Charles
Rio de Janeiro, 24/04/2004.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MLIJ_HV017
Transcrito por Denise Yonamine
Revisado por Gustavo Kazuo
P/1 – Então, Ricardo, queria começar a entrevista perguntando seu nome completo, data e local de nascimento?
R – Então, meu nome é Ricardo José, eu devo olhar pra câmera?
P/1 – Não, conversando com a gente.
R – À vontade, né? Meu nome é Ricardo José Duff Azevedo, nasci em São Paulo, paulistano, né, 13 de outubro de 1949.
P/1 – Ricardo você podia falar o nome dos seus pais e contar um pouco a atividade que eles exerciam?
R – Claro. Meu pai já é falecido, os dois são falecidos, já, né, meu pai chamava Aroldo Azevedo, ele era professor de Geografia, autor de livros, quer dizer, um cara que teve uma, depois eu vou falar isso melhor, mas obviamente que acabou tendo uma influência no meu trabalho e tal, né? Ele era professor da USP e foi autor de muitos livros didáticos, quer dizer, teve todo um monte de gerações aí, eu mesmo estudei nos livros do meu pai. E a minha mãe, Maria Gertrudes Azevedo, ela que é o Duff, né, Maria Gertrudes Duff Azevedo, ela era filha, o pai dela era inglês, por isso esse nome. E ela era dona de casa, na verdade, tive... somos em cinco irmãos, né, eu sou o penúltimo, então tem a Regina, mais velha, o Luís Antônio, João Roberto, eu e o Alberto Luís, o caçula.
P/1 – E os seus avós? Você conheceu os seus avós? Teve contato?
R – Não conheci, meus avós morreram antes de eu nascer, então o que eu posso dizer são informações, né, que eu tenho familiares, né, o meu avô, pra começar pelo paterno, o meu avô são Azevedos, pessoal do Vale do Paraíba, tá. Então meu bisavô, tataravô, sei lá o quê, tinham fazenda lá, tinha uma fazenda lá e o meu avô foi político, Arnoldo Azevedo, né, ele foi político, isso na...
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Entrevista de Ricardo José Duff Azevedo
Entrevistado por José Santos e Charles
Rio de Janeiro, 24/04/2004.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MLIJ_HV017
Transcrito por Denise Yonamine
Revisado por Gustavo Kazuo
P/1 – Então, Ricardo, queria começar a entrevista perguntando seu nome completo, data e local de nascimento?
R – Então, meu nome é Ricardo José, eu devo olhar pra câmera?
P/1 – Não, conversando com a gente.
R – À vontade, né? Meu nome é Ricardo José Duff Azevedo, nasci em São Paulo, paulistano, né, 13 de outubro de 1949.
P/1 – Ricardo você podia falar o nome dos seus pais e contar um pouco a atividade que eles exerciam?
R – Claro. Meu pai já é falecido, os dois são falecidos, já, né, meu pai chamava Aroldo Azevedo, ele era professor de Geografia, autor de livros, quer dizer, um cara que teve uma, depois eu vou falar isso melhor, mas obviamente que acabou tendo uma influência no meu trabalho e tal, né? Ele era professor da USP e foi autor de muitos livros didáticos, quer dizer, teve todo um monte de gerações aí, eu mesmo estudei nos livros do meu pai. E a minha mãe, Maria Gertrudes Azevedo, ela que é o Duff, né, Maria Gertrudes Duff Azevedo, ela era filha, o pai dela era inglês, por isso esse nome. E ela era dona de casa, na verdade, tive... somos em cinco irmãos, né, eu sou o penúltimo, então tem a Regina, mais velha, o Luís Antônio, João Roberto, eu e o Alberto Luís, o caçula.
P/1 – E os seus avós? Você conheceu os seus avós? Teve contato?
R – Não conheci, meus avós morreram antes de eu nascer, então o que eu posso dizer são informações, né, que eu tenho familiares, né, o meu avô, pra começar pelo paterno, o meu avô são Azevedos, pessoal do Vale do Paraíba, tá. Então meu bisavô, tataravô, sei lá o quê, tinham fazenda lá, tinha uma fazenda lá e o meu avô foi político, Arnoldo Azevedo, né, ele foi político, isso na década de, sei lá, até 1930. Quer dizer, quando Getúlio assumiu o poder no Brasil, justamente a época que o meu avô, por exemplo, sai porque ele era de uma política anterior, né? Ele era do tempo do Washington Luís e tal, ele foi presidente da Câmara. E a minha avó chamava Dulce (Cocraine?), mulher dele, né, e era que eu saiba dona de casa, tal, etc e tal, né? Meu avô materno, Arthur Patrick Duff, era inglês, a minha avó chamava-se Maria Isabel (Hasselman?) família brasileira, baiana, na verdade, mas descendente de alemães, né, mas viveram, acho que estavam há muito tempo no Brasil. A minha avó estudava na Europa e lá conheceu esse Duff, esse Arthur, e os dois mexiam com música, quer dizer, ele trabalhava num banco na verdade, mas tocava violino, piano, esse tipo de coisa e ela também cantava, eles se conheceram assim e se casaram e acabaram depois vindo pro Brasil, muito tempo depois acabaram vindo pro Brasil. A minha mãe mesmo nasceu na França, na verdade eles moravam na França, né, ela estudava na França e ele trabalhava no Banco de Londres em Paris, e é isso.
P/1 – E Ricardo qual é a lembrança mais antiga de infância que você tem?
R – Olha, provavelmente da minha eu não tenho uma lembrança assim, alguma coisa, um episodio que eu possa me lembrar, mas eu nasci numa casa no Pacaembu, né, nasci lá, até a minha mãe morrer ela morou lá, quer dizer, toda a vida, saí de lá pra me casar na verdade. Então a lembrança mais antiga provavelmente é de lá, desse tempo, da minha infância é muito pequena, né, três, quatro anos, a gente teve uma... talvez as lembranças assim que eu possa agora ativando um pouco a cabeça aqui, né, o meu pai tinha um sítio, que hoje em dia é dentro da cidade, né, na verdade, mas é entre Arujá e Itaquaquecetuba, fica a 40 km de São Paulo, pra zona leste. Mas o meu pai comprou esse sítio em 1941, eu nasci em 1949, aconteceu o seguinte, o meu pai fez o doutorado dele sobre essa região de São Paulo, que na época era um matagal na verdade, né, então tinha pequenos sítios etc e tal, os japoneses estavam plantando, foi um dos lugares onde os japoneses que vieram pra São Paulo fizeram as suas plantações pra vender na feira aqui em São Paulo etc e tal. Tinha um monte de sítio, pequenos sítios, né, e o meu pai achou muito bonita a região e acabou comprando um sítio lá que era baratíssimo, né, imagina, né, em 1951. Tinha uma casa lá, ele reformou, construiu e o meu pai nasceu em fazenda, isso em Lorena, né? Então eu acho que ele tinha uma nostalgia muito grande disso sabe? Ele nasceu na fazenda e estudou, inclusive, a fazenda tinha uma pequena escola, então ele saiu da fazenda só acho que pra fazer o ginásio ou coisa assim, né? E ele tinha uma nostalgia disso, então ele reconstituiu um pouco coisas da fazenda, então ele fez uma capela, olha, é uma experiência muito forte. Então eu tenho não só lembranças muito pequeno lá no sítio, que pra mim era um lugar assim imenso, não era tão grande, tinha cinco alqueires e depois até ele vendeu umas partes, mas tinha cinco alqueires. Agora, então eu tenho lembranças dele andando lá no jardim e tal, né? Agora preciso contar isso, vou aproveitar e já contar já, o meu pai ele fez um centro ali fantástico, ele construiu uma escola, meu pai não era um homem rico, era um professor universitário, tá? Eu acho que os professores na época ganhavam mais do que ganham hoje.
P/1 – Ah, provavelmente.
R – Então ele tinha, ele era uma classe média mais pra alta assim, digamos assim, mas não era classe média alta, nada disso, era um cara que tinha uma vida confortável, né? Nós sempre tivemos uma vida confortável. Mas, então, ele não tinha grana, nada disso, mas ele construiu uma escola, chegou, porque não tinha escola, as crianças que moravam naquela região elas não tinham, eram analfabetas, estavam condenadas ao analfabetismo, tá, porque a única escola que tinha era muito longe, não tinha condição do cara andar 20 km, 10 km por dia pra ir na escola, que era ou em Itaqua ou em Arujá, né, Itaquaquecetuba, né? Meu pai construiu um prédio, tipo aquela escola mista, né, que na mesma classe de primeira a quarta série, chegou na prefeitura de Itaquaquecetuba e falou “olha, eu construí o prédio, com dois banheirinhos, tudo direitinho, e vocês assumam, né?” os caras assumiram, essa escola chamava ‘Escolinha do Corredor’, essa escolinha pra você ter uma ideia há pouco tempo atrás eu tive em Itaquaquecetuba, eu tive na prefeitura pra ver não sei o quê lá, encontrei uma senhora japonesa ela falou “você é filho do professor Aroldo?”, a mulher ficou com os olhos cheios de lágrimas, ela falou “eu sou uma funcionária pública, me formei na universidade e eu fui alfabetizada graças ao seu pai!”, porque simplesmente aquelas pessoas que estavam lá não tinham condições, entendeu, de estudar em outro lugar. Me lembro que a professora vinha a pé, era uma coisa fantástica, meu pai arrumou um médico aqui em São Paulo, chamado Dr. Gentil Pacheco, uma grande figura, já aposentado e ele se dispôs a ir todo sábado, a gente ia sábado e domingo no sítio, né? Ele ia junto, todo sábado eu não digo, acho que eram dois sábados por mês e gente ia de manhã cedo, o pessoal daquela região já sabia e fazia fila, meu pai conversava com os médicos, todo mundo arrumava remédio de graça, tudo de graça! Isso era absolutamente de graça, né? E ele, o Dr. Gentil, então clinicava mulher grávida, problema, doença etc e tal, aquela fila de pessoas, ele atendia todo mundo, então virou uma espécie de centro comunitário na verdade. E com um detalhe também muito legal que é o seguinte, meu pai fazia festas, as festas juninas, como tinha a igreja era um negócio importantíssimo! Meu pai levava padre de São Paulo e todo domingo tinha missa e tocava o sininho, que era o sino que o meu pai trouxe da fazenda, da igreja da fazenda, tocava lá o sino, vinha o pessoal, tocava, vamos supor oito e meia, pá, tocava o sino, nove horas chegava, meu pai era muito católico, meu pai, minha mãe eram muito católicos. Então aquele pessoal se batizava, casava, era a igrejinha, era um centro comunitário mesmo, né? E essas festas juninas que o meu pai patrocinava lá na verdade, mas não é que ele patrocinava, todo mundo contribuía na verdade, então vinha moçambiqueiro, grupos folclóricos, tinha pau de sebo e era uma festa do povo mesmo! Meu pai cedia o espaço, convidava amigos etc e tal, né, mas tinha quermesse, tudo o que você possa imaginar tinha, era fantástico! E não saía, não era propriamente, não é que meu pai gastasse muito dinheiro nisso acho, tá? Era, porque ele abria, as pessoas contribuíam e, simplesmente ele cedia o espaço, tinha missa, né, e depois era uma festa popular, né?
P/1 – Ricardo você podia contar pra uma criança aí que vai ler esse seu texto, como é que era uma festa junina da época, como é que ela estava organizada?
R – Olha, eu era uma criança, né, nesse tempo então eu participava ativamente da festa, o que eu me lembro é o seguinte, que tinha missa, era fundamental, então começava com uma missa, tá? A partir daí tinha comida de graça, né, que tinha putas comes e bebes, vinham... o meu pai organizava brincadeiras com as crianças, então tinha pau de sebo, corrida de saco, corridas com, por exemplo, andar engatinhando no chão com copo d’água nas costas, então o cara que era gordinho, por exemplo, levava vantagem (risos) Gordo desse tamanho e tal, o cara parecia uma mesa (risos), e o cara ganhava, brincadeiras desse tipo, os grupos folclóricos se apresentavam e era isso, fogos, né. Então tinha uma hora que era soltação de fogos, então rojões terríveis, então os caras vinham, os caipiras que moravam na região, a população da região trazia aqueles uns baitas de uns foguetões, pé, brum, aquele negócio, né? Coisa que eu nunca mais vi, uns foguetes com pau assim, que você solta e saía que nem um torpedo, não era tanto esses, eram fogos feitos lá, bombinhas feitas lá, não era caramuru, esse tipo de coisa, soltava um balão também, era isso, entendeu! Eram foguedos na verdade, que eu... e o pau de sebo era muito importante, havia um determinado momento que tinha o raio do pau de sebo, eu mesmo participei várias vezes, né, e você fazia o pau de sebo, era muito alto, pau de sebo que o pessoal fazia lá, então era de dupla, não dava pra você subir sozinho no pau de sebo, então você fazia, você passava areia no corpo, eu fazia isso pelo menos, todo mundo fazia, tirava a camisa, se enchia de areia aí subia, aí o cara ia por cima de você, você ajudava e aí ia um ajudando o outro de dupla e chegava lá, eu me lembro que uma vez eu ganhei, eu e o meu parceiro, o Antônio Henrique, um amigo meu, nós ganhamos e tal, né?
P/1 – Vocês ganharam que prêmio?
R – Não, era balas, tinha bala, preminho assim, era um saco de bala tinha lá, né, e o meu amigo demagogicamente distribuiu a bala, quando eu vi “cadê a minha bala? Pô, como você distribuiu?” (risos).
P/1 – Ricardo, tem alguma outra lembrança marcante no sítio?
R – Não, no sítio foi muito marcante, quer dizer, eu passei a minha vida toda, o sítio existe até hoje. Hoje em dia, quem toma conta, quem é o dono do sítio, foi dividido depois que o meu pai morreu etc e tal e ficou com o Luis Antônio, justamente o que foi entrevistado aqui por vocês, né? Eu vou pouco lá, mas é, quer dizer, poderia ir e tal, né, por uma questão da minha vida, meus filhos, inclusive a minha filha vai até esse domingo lá, vai tá com o meu irmão lá e tal. Agora eu passava as minhas férias lá, todas as férias, né, vinham primos do Rio de Janeiro que moravam que eram filhos da irmã da minha mãe, então era delicioso, eles mesmos têm, até hoje quando eu encontro os meus primos “puxa, o sítio, né?”. Depois quando eu cresci, mesmo antes da faculdade, no tempo do colégio, do colegial, por exemplo, eu ía pra lá com, eu levava amigos do colégio, tá, e bom, pingue pongue, era um lugar assim delicioso pra gente brincar e tal.
P/1 – Do que vocês brincavam? Quais eram as brincadeiras?
R – Então, era andar a cavalo, tinham uns cavalinhos, era um sítio pequeno, né, então tinha assim, vamos supor, quatro cavalos, pangarés total assim! Era uns cavalos que... o cavalo ficava comendo a semana inteira, a gente chegava no domingo, eles olhavam pra gente, botavam a mão na cabeça assim (risos), porque era a hora de trabalhar, né, da gente andar. Tinha um burro e uns três cavalos, uma vaca, uma coisa pequena assim, mas era muito divertido! Tinha lago, então, tipo, cacei rã, muito legal, foi uma vivência. Eu tive muito contato também com, na verdade, digamos nos fins de semana normais, ia só a família, não vinham primos e tal, coisa assim, né, então eu brincava com os meninos, filho do caseiro, menino lá do vizinho que era da mesma idade que eu, né? Então eu tive um contato social assim com a diferença social muito forte, eu tenho certeza que muito diferente das crianças que os meus colegas da escola de São Paulo, por exemplo, eu tinha, ou talvez de muitos deles, não todos, né, não digo todos, mas eu tinha um contato com a pobreza total, eram crianças absolutamente pobres, né? Criança assim, sabe criança sem dente, ou criança com feridas na perna que, por exemplo, eu ia toda semana lá o cara tava com a mesma ferida piorando, né, no fim eu falava com o meu pai, meu pai ia lá, minha mãe ia lá ver e o diabo e tal, né? E aí tentava arrumar o remédio ou custava pra perceber também, né, porque eu era moleque, brincava com o cara, meus pais não estavam vendo e o cara com uma ferida gangrenando já, o moleque de dez anos de idade e ninguém cuidando, sabe, uma mosca, um troço assim, né? Eu tive muito contato com essas crianças, tive uma experiência marcante também dessa época que foi o suicídio de um desses meninos, era um menino japonês que jogava bola com a gente, porque eu jogava bola, jogava bolinha de gude, esse tipo de brincadeira, né, pegar coquinho, atirar estilingada em passarinho, esse tipo de brincadeira, pescar, pescar, pescava muito, era uns peixinhos desse tamanho, mas a brincadeira era pescar, né? Agora esse menino, o lance dele era o seguinte, os pais dele, ali eram japoneses assim quase analfabetos, que tinham vindo pro Brasil, japoneses mesmo, né, e que muito ignorantes assim na verdade, e, ao mesmo tempo, muito cultos até onde eu pude entender, muito cultos a respeito do trabalho, era uma diferença total ver as hortas dos japoneses e dos caipiras, vamos chamar de caipiras locais, assim, pô, esses eram pobres e muito pobres e os japoneses só prosperavam, porque os caras trabalhavam que nem gente grande e conheciam a terra, sabiam trabalhar. Então logo, logo, você via que o cara plantava, trabalhava, trabalhava, trabalhava, de repente já tinha um caminhãozinho, de repente já ia aumentando, comprava terra do lado, os caras, é impressionante isso, eu vi assim com os meus próprios olhos. Mas quando eu era pequeno muitos eram pobres ainda, eles estavam, provavelmente tudo esses caras hoje em dia estão, pertencem a uma classe social alta, porque todos eles cresceram, agora esse Sérgio, se não me engano ele chamava Sérgio, era um menino meio quietão, muitos japoneses eram naquela época, eram japoneses, cara fechado e tal, um sistema familiar hierárquico muito forte, quer dizer, o pai mandava mesmo, né? E o pai dele não queria que ele estudasse, queria que ele trabalhasse, que os caras pequenininhos tudo trabalhava, né, trabalho full time, de noite todo mundo trabalhando e esse cara que pediu, falou pro pai que queria estudar, inclusive na escolinha mesmo, né, e o pai não queria, houve esse debate etc e tal entre a família, coisa que eu não sabia nada disso, só sei que um dia ele tomou formicida e se matou. Foi a primeira vez que eu ouvi falar em suicídio, nem sabia que existia isso, entendeu, só pra você ter uma ideia, nessa época nove anos, sei lá quantos anos, oito, nove anos, eu me lembro que eu perguntei pro meu pai falei “pô, mas como?”, porque o meu pai contou, chegou uma hora contou, pô, aliás se não contasse eu saberia por outra forma, né? E um cara desse se você, não sei se você já teve essa experiência, né, ou se vocês já tiveram essa experiência de morar no interior, eu não morei, né, mas convivi, né, o cara sabe tudo a respeito disso, quer dizer, o sujeito que se mata, um menino paulista aqui da cidade que tome um veneno pode ser que ele esteja no mundo da lua, mas um menino daqueles que toma formicida, ele sabe exatamente, ou veneno de rato, acho que ele tomou formicida, ele sabe exatamente o efeito que faz, porque eles convivem com a morte o tempo todo, matando bichos, caçando bichos, matando rato, matando formiga, com a sexualidade, com a morte isso é uma coisa comum no interior, né, na vida rural, é muito forte isso, né, a força da natureza e a morte. Então o moleque se matou mesmo, entendeu? Diante da ordem paterna que ele achou que era divina, quer dizer, ele não cogitou falar vou dar um tempo e me mandar (risos), cuidar da minha vida e fazer outra vida, não, ele pegou e se matou. Isso foi uma experiência marcante pra mim, sabe, porque apesar dele nem ser um amigo tão próximo, era um menino que eu jogava bola num final de semana, mas depois quando eu virei escritor muitos e muitos anos depois a imagem de infância pra mim sempre foi uma imagem de infância marcada entre outras coisas por essa vivência, por esse suicídio desse cara, né? Porque eu pensava comigo assim, os caras falavam, não, isso não é coisa pra criança e eu pensava comigo, o que é uma criança? Entendeu? O que é exatamente que as pessoas estão falando, até baseado em mim mesmo como ser humano olhando as coisas, né, e me vendo um ser emocional e um ser complexo e me lembrando de um cara que chegou a fazer isso, né? Então é uma lembrança forte que eu tenho do tempo do sítio entre muitas outras, né? E muitas prazerosas também, de passar férias, de jogar etc e tal, jogar baralho a noite inteira, pingue pongue, pebolim tudo o que vocês possam imaginar assim, né?
P/1 – Então Ricardo, saindo do sítio vindo pro Pacaembu você podia descrever como era essa casa que você passou aí toda a sua infância e adolescência?
R – Então, meu pai construiu uma casa muito legal, meu pai, ele construiu uma vida dificultosa, mas eu não vivi isso, porque o meu pai era um pai, eu preciso dizer isso, meu pai era um pai mais velho do que os pais dos meus colegas, meu pai nasceu em 1910, a minha mãe em 1913, então quando eu nasci em 1949, ele tinha trinta e nove anos, e eu já era o penúltimo filho, só nasceu um filho dois anos depois, em 1951 que foi o Alberto, então eu tinha um pai velho ou relativamente velho em relação aos meus colegas, certo? Quando eu tinha dez anos o meu pai já tinha cinquenta anos, né, e eu tinha colegas que os pais tinham trinta, trinta e cinco, coisa assim, né? Então o meu pai teve uma trajetória apesar do meu avô ser fazendeiro, meu bisavô ser fazendeiro e o meu avô ter sido um político até importante no Brasil num dado momento, foi presidente da câmara dos deputados, né, mas não eram pessoas ricas, eram pessoas assim de uma certa aristocracia decadente se eu usasse uma palavra, talvez, mas não ricos. E o meu pai foi um professor a vida inteira na verdade, então ele batalhou, ele morou em casas alugadas, em pequenas casas, foi indo, mas ele foi crescendo e eu peguei uma fase legal já, quer dizer, quando eu nasci em 1949 ele já tinha uma casa no Pacaembu que era um bairro, digamos assim, bom e não era tão bom na época, mas depois, hoje em dia é um bairro, né, hoje em dia até tá meio decadente, mas foi um bairro, eu vivi uma infância num bairro nobre de São Paulo, na verdade, super confortável, uma casa muito boa, muito grande, tinha um escritório imenso do meu pai, todo mundo com o seu quarto, uma casa muito legal, tive um padrão de vida muito bom, né? Os irmãos bem mais velhos que eu, fora o Alberto e o João que tinha quatro anos a mais, os outros irmãos eram o Luís, tem uns treze anos a mais que eu, uma coisa assim, e a Regina, quinze anos, então quer dizer, quanto tinha vinte anos eu tinha dez ou menos, né? Eu estudei... então eu tinha uma vida assim confortável, gostosa, familiar, na verdade, brinquei muito na rua, brincava diariamente na rua, desde que eu me lembre por gente, né?
P/1 – Qual era a sua rua?
R – A minha rua era Rua Ferdinando Laboriau, número 93, né? Então vizinhos ali, né, e a gente jogava bola todo santo dia, eu joguei futebol e a brincadeira assim de rua mesmo era futebol e botão e carrinho de rolemã, andei bastante também na verdade, mas basicamente essas três coisas, principalmente, futebol e botão. Pra você ter uma ideia tinha campeonato de futebol, nós fizemos, eu tinha um amigo que tinha um campinho em casa, pequeno, mas dava pra jogar, a gente era pequeno também, então dava pra enganar bem. Era um campinho mesmo, legal assim, mas digamos era menor do que uma quadra de futebol de salão, de grama, mas razoável pra jogar, e depois nós fizemos campos na rua também, tinha um terreno baldio, nós, os caras tentaram... era uma obra que não se configurou, sabe, eles começaram a fazer a obra, planaram, mas depois abandonaram, ali nós fizemos um campo de futebol, jogava todo santo dia! Até chegamos a ter um uniformezinho e tal.
P/1 – Ah, tinha uniforme?
R – É, um vagabundo, mas tinha. Eu, bom, futebol eu joguei depois quando eu entrei na faculdade, nós alugamos uma quadra de futebol de salão, sempre futebol de salão eu joguei, uma quadra aqui no (Marítimos?) que é aqui na, onde tem aquele circo, ali na Cidade Jardim...
P/1 – Sei, sei.
R – Então, ali tem vários campos de várzea, né, e tem uma quadra ali, eu aluguei essa quadra, eu parei de jogar futebol há dez anos atrás mais ou menos que eu me quebrei todo assim, falei não, chega de me quebrar assim. Mas eu joguei muitos e muitos anos, tinha uma turma, então futebol é marcante pra mim assim, é uma atividade que eu tive e gostei muito de jogar bola e gosto ainda, só que não tenho jogado, né? O que mais? Estudei, eu me lembro que eu estudei num colégio chamado Dona Baratinha, que era um colégio pra crianças bem pequenas, tenho umas vagas recordações, depois estudei no Elvira Brandão, estudei um ou dois anos lá, também acho que, era jardim de infância e primeiro ano, uma coisa assim, depois estudei no colégio Santa Terezinha um ano, que era um colégio aqui dos terezianos aqui na Rua Maranhão e depois estudei no Porto Seguro, colégio Visconde de Porto Seguro, que eu estudei todo o tempo, digamos assim do terceiro ano primário até o colegial. Não gostei de ter estudado lá, preciso ser claro, foi uma experiência muito difícil pra mim, era um colégio alemão, um colégio muito rigoroso, muito rígido, não me adaptei a escola, quer dizer, acho que o bom teria sido, não é uma crítica, entendeu, assim a escola. Hoje olhando eu falo pô, eu acho que houve uma inadaptação cultural inclusive, eu era um cara que eu não vinha de uma casa tão autoritária e ali era um autoritarismo sufocante, né? Eu estudei ainda no Porto Seguro no tempo da Praça Roosevelt, né, que hoje em dia é no Morumbi essa escola, mas eu estudei na Praça Roosevelt, todo o tempo lá. Uma escola tradicional, muito boa, meu pai colocou os filhos lá, na verdade, só o João, os mais velhos não, o Luís estudou lá também um tempo, foi até expulso da escola, só pra você ter uma ideia, eu não cheguei a ser expulso, mas me estrepei, fui... quer dizer, eu fiquei com uma autoimagem e, graças muito ao Porto Seguro, uma autoimagem de um cara transgressor que na verdade eu não era, eu tinha uma autoimagem, eu sai do Porto Seguro com uma autoimagem minha equivocada, entendeu, porque no colégio devido ao rigor e ao autoritarismo da escola eu acabei gerando uma autoimagem de um cara, entendeu, muito mais transgressivo, vamos usar essa palavra, do que realmente eu era, eu era simplesmente um cara que dava a minha opinião, ou tinha senso crítico, e falava as coisas, era um cara expressivo, né? Então foi uma experiência que eu, sei lá, eu tive, eu tenho amigos até hoje do Porto Seguro entre colegas, eu fiz muitos colegas, e muitas amizades e nesse sentido foi ótimo, né, mas a experiência com o colégio não, eu acho que foi um colégio, pelo menos o Porto Seguro que eu estudei, um colégio extremamente autoritário. E autoritarismo é uma coisa que implica em não diálogo, né, quer dizer, implica em alguém que sabe e alguém que não sabe, é unilateral, entendeu, é alguém que despeja no outro, o outro fica lá, eu acho isso... quer dizer, é justamente o que eu acho que uma escola não deve ser, eu acho, eu acredito que uma escola é uma escola que tem que ensinar o diálogo, e tem que ensinar as pessoas a aprenderem a se expressar, não era o que o Porto Seguro fez, definitivamente, no meu tempo, né? Não sei como a escola é hoje, provavelmente é outra, no meu tempo, definitivamente não foi o que ele fez.
P/1 – Ricardo, eu queria voltar um pouquinho no tempo, então a gente ainda está pegando essas memórias da primeira infância, como é que era essa coisa de contar histórias pra você na hora de dormir? Alguém contava? Era o seu pai, era a sua mãe?
R – É, olha, eu não tive muito isso, não, agora o meu pai ele era um cara que contava, o meu pai tinha umas coisas interessantes. O meu pai trabalhava muito, tá, e era um cara meio fechadão assim, quer dizer, ele tinha coisa dele no escritório e ficava muito no escritório, né? Ele tinha um escritório no andar de cima da casa, era uma casa grande a minha casa, a parte de cima, digamos, inteira da casa era, tinha um quarto que era dos meus irmãos mais velhos, e o resto era um escritório! Era um baita de um escritório, tinha sei lá quantos mil livros ali, sete, oito mil livros, era uma coisa assim imensa e ele ali ficava, ele ou tava na USP ou tava no escritório, estudando, lendo, ele era, vivia uma vida muito ligada ao estudo e tal, né? Agora ele era um cara que de vez em quando, por exemplo, ele pegava, ele contava histórias, principalmente no sítio ele contava histórias e sempre histórias populares. Então hoje em dia eu sou um cara que eu mexo com folclore etc e tal, né, agora eu aprendi, digamos, a valorizar isso com o meu pai, sem dúvida que eu aprendi, desde pequeno ouvia algumas histórias que ele contava, inclusive eu reconto uma das histórias que é o “Gaspar é o Caio” que é uma história popular, né, eu aprendi com o meu pai essa história.
P/1 – Ah, é?
R – É. Agora fora isso ele fazia umas coisas interessantes também que era o seguinte, ele pegava a gente, principalmente esses três filhos que tinham mais ou menos a mesma idade, o Alberto, eu e o João ele fazia uns jograis em casa com um gravadorzinho, que ele tinha uma Geloso até, um gravador chamado Geloso, pequeno...
P/1 – De rolo?
R – De rolo, ainda no tempo de rolo, desse tamanho assim, né, então, por exemplo, trovas populares, poemas de Castro Alves, Gonçalves Dias e Juca Pirama, vários poemas que ele gostava, Vicente de Carvalho, o quê que ele fazia? Ele fazia jograis com a gente, ele participava também, e dava uma parte pra cada um, eu lembro de Juca Pirama, agora talvez eu não saiba recitar, mas eu sabia de cor o canto do guerreiro, por exemplo, né? Eu sabia de cor, isso aí até pouco tempo atrás, talvez até aqui se eu fizesse um exercício eu lembrasse de muitas partes, né? E era bacana! Era um negócio fantástico, né, a gente fazer isso, gravar depois ouvia e se divertia horrores, né, com isso, com essas gravações e tal, então foi uma experiência muito forte. Agora eu tinha, como eu disse, eu tinha muito livro em casa e eu nasci no meio de livros, entendeu, o andar de cima da casa eram livros e o meu pai nunca, nem o meu pai, nem a minha mãe foram, eram leitores, os dois eram leitores, mas não eram pessoas de indicar livros. Tá? Não era, o espírito da coisa não era esse, era o seguinte, os livros estão aí, era como se fosse um pomar na verdade assim sabe, que você ia lá e pegava a fruta, experimentava, gostava, cuspia, se não gostava, cuspia, senão você usava, era essa a sensação que eu tinha. Então livros eu lembro de primeiro brincar com livros muito, brinquei muito com livros, sem ler, porque eu não sabia ler, então a minha infância primeira, você me perguntou de uma lembrança, né, era a lembrança de eu ir subir lá na parte de cima, com dificuldade, que eu achava uma escada, era longe lá em cima, né, eu subia, tanto que a escada era uma escada que tinha um portãozinho no andar de cima pra criança não cair. Então o pessoal subia, fechava lá a porta pra criança não descer correndo e cair quando a gente era pequeno, né, e o quê que eu fazia? Tirava os livros das estantes e brincava de carrinho, fazia umas casinhas, fazia uns castelos com os livros, né, e brincava, era muito legal. Depois aos poucos fui descobrindo aqueles livros, era muito livro! Então era muito bacana, entendeu, eu me lembro de um livro que era o seguinte, o meu pai não sei de onde que ele tirou isso, né, era coisa muito antiga, devia ser um livro didático antigo do começo do século, que deve ter vindo ou através da família do meu pai mesmo ou da minha mãe, mas que ele pegou e encadernou. Ele deu o nome de livro de gravuras, não tinha, eram páginas impressa só de um lado, do outro lado, era mais ou menos desse tamanho, impresso só de um lado e eu acho que aquilo era usado pra você botar na classe e as crianças verem imagens, era... é fantástico, eu tenho até hoje esse livro, eu guardei o livro, né? E eu me lembro que eu ficava fascinado, eu não sabia ler ainda, eu adorava esse livro, eu pegava, via as imagens, tinha tudo do mundo! Tinha assim os instrumentos musicais, tinha as flores, só que, né, quer dizer, instrumentos musicais, armas, os meios de transporte, um livro dessa grossura assim, tudo que você possa imaginar em imagens! E eu, nossa, me lembro, né, ficava olhando... e animais por, por exemplo, os mamíferos, não sei o que, peixes, cobras, eu olhava aquelas cobras, eram desenhos muito bem feitos, até hoje eu acho fantástico os desenhos, um realismo legal, com cores bonitas, né? Sem dúvida um livro marcante pra mim, né? Inclusive no meu interesse em ser desenhista, porque eu olhava aquelas imagens e achava fantástico como é que um cara pode desenhar tão bem, entendeu? Então é isso.
P/1 – E você tem lembrança assim depois... bem, você se alfabetiza, antes tenho que perguntar isso, em relação a alfabetizar. Você foi alfabetizado em casa, pela sua mãe ou na escola?
R – Não, na escola. Eu queria até contar uma coisa que eu lembrei de livros, eu até já contei isso num artigo, mas foi uma experiência bacana. Eu me lembro que o meu pai ficava fora de casa e minha mãe em casa trabalhando, imagina cinco filhos, quer dizer, era uma pauleira, né? E eu subi numa estante um dia, tava lá sozinho, isso já com uns oito anos, sei lá quantos anos eu tinha, eu subi e fui fuçar os livros lá no alto, porque eu devo ter percebido que meu pai lá no alto botava outros livros, entendeu? E eu achei um livrinho, nunca mais vou me esquecer disso, um livrinho magrinho assim que chamava assim “Jamais esqueceremos” e era um livro sobre o holocausto, sobre campos de concentração na verdade. Era uma publicação, depois eu voltei a ver isso mais tarde, né, então era o seguinte, era uma publicação feita durante a guerra ou após a guerra pelos Estados Unidos, em português, com fotografias do campo de concentração, uma coisa política e de propaganda mesmo assim contra o nazismo etc e tal. Mas gente, eram fotos chocantes! Chocantes total! Imagina aqueles homens, aquela gente, gente, mortos empilhados, gente magérrima, né, e eu falei “puta o quê que é isso, né?” aí eu guardei o livro, quando o meu pai chegou em casa eu perguntei pra ele, né, o quê que era, daí que ele me falou, foi um contato que eu tive, a primeira vez que eu tive contato com o que era o nazismo e essa perseguição ao judeus e uma catástrofe, né? E foi um livro marcante também assim, porque eu acho que eu percebi assim a força das imagens, sabe, até hoje quando eu vejo um filme de guerra eu me lembro desse livro, esse livro foi muito mais forte pra mim do que qualquer filme de guerra, qualquer soldado Ryan aí que aparece hoje em dia, esse é um livro marcante e a força das imagens, porque eu não lia, eu lia tão mal nessa época, eu lia tão pouco que eu não era pelo texto, foram as imagens é que ficaram, definitivamente, gravadas em mim, né? Com poder informativo, porque eles me deram uma informação concreta, pô, seres humanos fazem isso, são capazes disso, né?
P/1 – E você começa a desenhar quando?
R – Desenho acho que desde muito pequeno, né, quer dizer, como toda criança na verdade desenhando, né, e eu acho que acesso a texto assim eu lembro muito do Tesouro da Juventude, eu tinha, a gente tinha a coleção lá em casa e eu tenho até hoje essa coleção, guardei a coleção comigo, né? E nossa, eu era um ‘habitué’ do Tesouro da Juventude, diariamente, eu tinha aquela coleção outra O Mundo da Criança também vermelho, uma coleção vermelha, também uma coleção de alguns volumes, mas não é tão boa essa coleção porque ela tinha, só os três primeiros me interessavam, os três primeiros volumes que era o que tinha literatura. Um era poesia pra crianças, outro era uns contos, alguma coisa assim, esses eu li muito também, li tudo, esses eu li várias e várias vezes. E o Tesouro da Juventude me interessava, particularmente, aliás, só me interessava pelos contos que tinha contos populares, que tinham em todos os volumes, como eram dezoito volumes e tinha, cada um tinha uns dez ou doze contos, pô, era uma festa, né? Eu sempre pegava um volume qualquer, abria lá, ia direto nos contos, lia, né, isso foi uma leitura muito importante pra mim, né? Então é isso, acho que a minha aproximação com livros se deu, também no sítio, se deu porque era o seguinte, no sítio não tinha nada o que fazer a noite, então chegava a noite os meus pais levaram pro sítio livros velhos assim que não cabia na biblioteca, então seleções, aquelas... uns textos resumidos das seleções, antigamente as seleções fazia isso, tinha uns romances reduzidos, mais fáceis de ler e alguns até interessantes e livros assim, livro policial, uma literatura meio fragmentada assim, né, ficava no sítio. Então a noite era jogar baralho e depois antes de dormir ler, era o programa diário, então fim de semana e durante as férias inteiras ler de noite, né? Então foi importante, porque em casa tinha mais coisas pra fazer, né?
P/1 – E Ricardo então a sua casa...
(troca de fita)
P/1 – Então, Ricardo, continuando, a gente podia falar um pouquinho da escola, como foi a sua chegada na escola? Seu primeiro ano? Os professores? Colegas?
R – Então, olha, quer dizer, a minha experiência foi essa experiência de escolas bem pequenas, né, quer dizer, quando eu era bem pequeno, quer dizer, que era essa Dona Baratinha que eu mal me lembro, na verdade. E foi, sei lá, eu me lembro de ir pra escola e ser como as outras crianças iam, me botavam lá num carro, me levavam, despejavam lá, me lembro disso assim, né? Eu lembro que no Elvira Brandão assim eu tive, que eu fiz justamente, eu fiz o jardim da infância e o primeiro ano e eu me lembro que foi a primeira vez que eu me apaixonei na minha vida. Então tinha uma menina loirinha, me lembro assim vagamente dela até hoje assim, né? E ela, eu fiquei encantado com essa menina, pra você ter uma ideia eu era tão pequeno que quando chegou no meio do ano, teve as férias de julho, né, me levaram pra casa, eu falei, pô, nunca mais vou ver a menina, eu não sabia que tinha férias! (risos) Não sabia, de repente me levaram lá, voltei e começou tudo de novo! (risos) Daí ela tava lá e falei ótimo, né? (riso) E eu tive já uma experiência tragicômica que foi o seguinte, eu gosto muito de música, toco piano, sou um cara que tem uma musicalidade forte, a minha família toda tem isso. Já o meu avô compunha, eu toco música do meu avô, por exemplo, esse avô que eu nem conheci, né, e eu tenho um lance com música, né? E aí o que aconteceu, chegou a professora e falou nós vamos fazer uma festa de fim de ano e a menina tocava violão, o raio da menina lá, isso no jardim da infância, a menina tinha já umas manhas, tocava violão, né, e ela, só que precisava de um parceiro, ela ia cantar uma música caipira e eu falei pô, é comigo mesmo, entendeu? (risos) Vou... porque ela entrava na classe, putz, eu falava meu, todo dia eu ficava esperando ela entrar na classe, né, eu nunca falei com ela assim na verdade, imagine, no jardim da infância. Aí eu falei eu vou me candidatar pra fazer a dupla com ela de música caipira, nem me lembro que música era, essas músicas conhecidas caipiras, né, e passei no teste, fui afinado e tal, né? O meu objetivo era só ficar perto dela, entendeu, mas acontece o seguinte por causa dessa paixão assim, né, eu me esqueci completamente do evento em si, eu ensaiei com ela, tudo bem, tava tudo ótimo, mas eu me esqueci que iria haver uma apresentação, esse detalhe simplesmente que me passou totalmente, né? Quando chegou na hora eu fiquei apavorado, entendeu, quer dizer, de repente eu desloquei o meu olhar da menina pra realidade, quer dizer, pais sentados, um monte de gente, aquela coisa, resultado: eu esqueci da letra (risos). E eu lembro da menina olhando pra mim, porque ela queria brilhar, né, menina tudo pequena, ela tocava violão, pô, ela queria... e eu estraguei o show dela na verdade, então me dei mal assim na minha, nessa primeira aproximação feminina assim.
P/1 – Branco total?
R – Deu branco, eu esqueci partes, a menina, embaralhei, eu fiquei apavorado de cantar em público ali, né? Aí o que acontece, eu era mal aluno, eu fui péssimo aluno, preciso confessar isso de cara, fui péssimo aluno! Sempre, desde que eu me lembro por gente, em todas as escolas que eu participei, que eu estudei eu fui mal aluno, sendo que no Porto Seguro eu brilhei como mal aluno assim, né? Então foi uma marca assim, eu era muito, muito dispersivo e ficava prestando atenção em outros assuntos, entendeu, então eu tinha dificuldade de concentração, enfim.
P/1 - E as suas redações, os seus professores gostavam?
R – Então, isso foi, então falando do Porto Seguro, né, porque eu fiz redação só no Porto Seguro, eu entrei no Porto Seguro no terceiro ano primário, tá? Isso foi uma coisa muito legal que eu recebi do Porto Seguro na verdade, que foi o seguinte, eu era execrado no Porto Seguro, eu era aquele mau aluno, pra você ter uma ideia, eu tive experiência, você vê como era difícil pra mim, né? No quinto ano primário me lembro de um professor, (Helmant?) chamava o professor, ele entrou na classe, nunca tinha visto esse cara na vida, quinto ano Primário! Ele entrou na classe e falou assim “quem é o Ricardo?” eu falei “pô, eu, né?” “olha, tô de olho em você já desde já. Já fui avisado” eu falava meu, inacreditável! Eu ficava apavorado com isso entendeu? E outra coisa, eram muito violentos, então havia o seguinte no Porto Seguro que eu preciso contar que era o seguinte, havia pais, isso eu descobri depois, né? Havia pais que autorizavam que os professores batessem nos alunos, tá, pais alemães na verdade, porque era uma disciplina outra, mais rígida, sei lá o quê, né? Então acontecia o seguinte, no Primário no Porto Seguro eram carteiras duplas, então eu sentava, por exemplo, com um cara chamado Walter (Hegel?), nunca mais me esqueço do cara, Walter (Hegel?) chamava esse cara e eu sentava aqui e o cara aqui. Eu e ele aprontávamos, porque criança que não apronta praticamente não existe isso, quer dizer, os caras brincavam, fazia bobagem, jogava coisa pra cima, sabe, eu me lembro que uma brincadeira era pegar a caneta Bic, né, tirava a carga, botava mata borrão, ainda existia esse troço, tinha mata borrão, porque usava a Bic, mas usava a caneta tinteiro também, então que a gente fazia, pegava o mata borrão, botava cola e, fuu, jogava no teto, aquilo ficava mal preso no teto e caía, então jogava tudo no lugar do professor obviamente (risos), então ficava caindo aquele troço e o cara ficava uma arara, então ele ficava tentando descobrir quem jogava esses troços lá. Brincadeiras assim! O Walter apanhou várias vezes na minha frente, tapa na cara!
P/1 – Tapa?
R – Tapa, o cara pá! Na cara dele assim, entendeu, vários professores batiam no cara e eu ninguém me batia, e eu não entendia o quê que era isso, entendeu, porque eles não diziam, olha, nós temos autorização pra bater nele e não em você, a maioria não apanhava, mas alguns caras apanhavam e muitos apanhavam. Então era um ambiente de terror! Você imagina, eu não estava habituado com isso, ver cara apanhar na sua frente, levantar pelo colarinho, um negócio violento mesmo, sabe, horrível, horrível! Eu tenho, realmente, péssimas recordações e isso não ajudou em nada, se eu já era bagunceiro, piorou, porque você diante de uma situação de violência ou você se... abaixa a cabeça e fica travado ou você fica inquieto, eu fiquei inquieto, pelo meu tipo de temperamento eu ficava desafiando, era uma forma de eu me defender, aprontar, então foi muito difícil, né? Acontece o seguinte, justamente eu me senti um zero a esquerda, um transgressor, por todas essas coisas, né? Quando chegou mais ou menos na terceira série, do Ginásio, que era assim, antigamente tinha primeira a quinta série, que era o Primário, na quinta você fazia o exame de admissão e aí tinham mais quatro anos, primeira, segunda, terceira e quarta série do Ginásio, eram nove anos no total, tá? Eu repeti de ano duas vezes, uma no quarto ano Primário e outra no colegial, por conta desse ambiente, tá? Hoje eu vejo claramente, né? Mas aí o que acontece, os professores de alguma forma eles começaram a me apoiar nas redações, então eu fazia redações e os caras falavam “poxa, essa redação boa”, de vez em quando liam as redações na classe, isso pra mim, gente foi importantíssimo, porque o meu ego tava lá embaixo, na verdade. Então, de repente eu que era um bandidinho lá, um cara desprezível, um transgressor, de repente, tem a honra de ter a sua redação lida, isso me fez muito bem como pessoa, eu falei “puxa, tenho algum valor pelo menos”, né? E me fez pensar logo cedo em talvez seguir... ser um jornalista, não sei, não pensei em ser um escritor como eu sou hoje assim, eu não pensei em nada na verdade, eu pensei que talvez eu pudesse usar textos pra seguir numa profissão qualquer que eu não sabia qual era, né? E outro ponto muito importante que eu tocava piano e tocava bem piano, e toco bem, toco até hoje piano, né, e violão e tal, toco, sou muito ligado a música, né? E isso também foi muito importante, falando do ponto de vista da autoestima, né, porque de repente descobriram que eu tocava piano e eu tocava bem piano, então os caras, pô, o cara tem alguns talentos, então eu toquei, por exemplo, quando eu tava na terceira série eu toquei no show dos alunos da quarta série que foi um show muito legal que fizeram um show de formatura e, pô, deu super certo, toquei bem com um cara tocando bateria comigo, fizemos lá, foi um sucesso assim, né? Na verdade esses alunos eram os alunos da minha classe, porque eu repeti de ano, né, no primário, lá atrás, né, no quarto ano Primário, então eu conhecia alguns deles, eles me convidaram e ficaram surpresos com o jeito que eu tocava, né? Pra mim, isso que eu quero contar, quer dizer, me fez muito bem do ponto de vista humano, do ponto de vista da autoestima, que andava baixa naquele momento, né? Por outro lado, paradoxalmente, o fato de eu ter sido tão criticado e ter sido, eu era suspenso, entendeu, eu, putz, e eu aprontava mesmo, quer dizer, eu acabava sendo um aluno ranheta, fazia coisas erradas e tal...
P/1 – O quê que você aprontava assim?
R – Ah, eu aprontava, sabe, eu, puta, era indisciplinado, não estudava, eu era um bagunceiro. Sabe aquele aluno, era muito comum o professor entrar na classe e falar o Ricardo vai ter que sentar aqui na frente, na minha aula você não senta aí atrás, jogava xadrez na aula. Eu me lembro que uma vez, por exemplo, eu... mas eram coisas pequenas, entendeu, eu acho que era uma inabilidade da escola total, entendeu, em lidar com o aluno. Por exemplo, eu me lembro que eu tava no Ginásio o professor esqueceu de falar, pulou um aluno na chamada eu falei pro, era o Tico até um colega meu, eu falei pra ele “o Tico, mete a mão na cara dele!”, o negócio, entendeu? No Porto Seguro você fazer um troço desses, ou então eu ia pra fora da classe e ia tocar piano, o colégio era grande, né, então o sujeito me mandou pra fora da classe, eu invés de ficar do lado de fora da classe, que eu fui várias vezes pra fora da classe, por mil razões, né, o quê que eu fiz? Eu fui embora, fui lá pro salão nobre, o chamado salão nobre, que era em outro lugar, muito longe, fiquei tocando piano, obviamente que transgressivo total, quer dizer, quando os caras descobriram, primeiro que eu tinha sumido e, depois, que eu tava tocando piano quando tinha sido mandado pra fora da classe, ficaram indignados etc e tal, né? Mas nada, hoje olhando eu não fazia nada, eu não era nem um bandido, não usava drogas, não fazia nada de errado dentro da escola, entendeu, ou coisas transgressivas mesmo, pesada, era apenas um moleque irrequieto e irreverente, digamos assim, né? Mas isso foi tratado com muita dureza na escola, agora o que eu quero dizer é o seguinte, justamente, por eu ter sido tão criticado na escola e me sentir tão criticado, isso foi bom pra mim, isso teve um lado positivo, que foi o seguinte, eu muito cedo percebi os meus talentos, digamos assim, enquanto outras crianças demoram pra descobrir, né, é difícil você descobrir o caminho, na verdade os seus caminhos, é uma coisa que você demora anos, às vezes, né? Pra mim foi muito rápido, eu saí do colégio eu já sabia que eu tinha jeito pra escrever, jeito pra desenhar e jeito pra música, então eu tinha que decidir entre esses três jeitos, o quê que eu ia fazer, mas era por aí a minha vida. Então isso foi um facilitador total, eu não tinha outra ideia de fazer mais nada a não ser alguma coisa com texto, alguma coisa com imagem ou com música. Bom, isso foi, me livrou de um monte, sabe, Direito ou Engenharia, nada, nada disso pra mim existia, entendeu? Tava decidido o que ia fazer e tava claro mesmo e foi bom.
P/1 - Ricardo você lembra de alguns temas dessas suas redações?
R – Olha, eu lembro que o quê que eu fiz foi o seguinte, eu rapidamente percebi que eu tinha facilidade, eu saía dos temas, entendeu? Eu percebi que eu tinha habilidade pra sair do tema e fazer uma coisa que surpreendesse de alguma forma e isso eu tirava boas notas, então foi uma coisa meio mecânica. Como eu lia, então eu preciso dizer isso, eu comecei a ler muito cedo e eu não lia muitos livros pra criança, eu, na verdade, eu pulei do Tesouro da Juventude pra livros pra adultos, eu com onze anos eu já lia livro pra, eu não li livros pra criança, entendeu, praticamente,né? Então às vezes as pessoas falam assim, né, os filhos do Monteiro Lobato esse negócio, eu não sou um filho do Monteiro Lobato, certamente eu li, mas pouco e rápido, eu fui direto pra livros pra adultos, então eu com doze anos de idade já lia livros... isso influenciou meu texto, eu li muito...
P/1 – Que livros?
R – Então eu vou dizer, por exemplo, literatura brasileira eu li muito os cronistas Rubem Braga, Fernando Sabino, que na época estavam em evidência, Paulo Mendes Campos, esses autores são autores que eu li Stanislaw Ponte Preta, todos esses autores que eram caras que eu lia inclusive nas revistas na época, que saía Cruzeiro e Manchete eles escreviam lá, né? E Fernando Sabino, por exemplo, eram autores que eu, puxa, achava muito bacana o jeito deles escreverem. Nessa época eu li também o Mário de Andrade, os contos do Mário de Andrade, não o Macunaíma, mas os contos, Macunaíma eu li um pouco depois. Agora eu tive acesso a John Steinbeck, Aldous Huxley, esses autores que eram autores na época, acho eu que, o Kafka eu li, por exemplo, ainda no Ginásio, no fim do Ginásio, Franz Kafka, que eram livros que tinham na minha casa e que eu fui chegando, fui lendo muito olhando orelha de livros, sabe, e eu lembro que eu queria ler livros bons, então eu olhava na orelha o cara falava assim, por exemplo, Thomas Mann que é um autor legal, o cara lá, Thomas Mann dizia o seguinte na orelha, nunca vou me esquecer eu li Tonio Kröger, aí na orelha do livro dizia assim Thomas Mann é um grande autor, tá no mesmo nível de James Joyce e Kafka, falei quem é James Joyce e Kafka? (risos) Eu nunca ouvi falar, mas na orelha dizia, aí eu fui atrás. Eu me lembro que eu comprei, com quinze anos de idade, eu me lembro até onde eu comprei, eu nunca mais vou me esquecer disso, eu comprei o Ulysses de James Joyce numa livraria na Rua Augusta, que nem existe mais, meu Deus, assim, eu me lembro que eu entrei na loja e tinha lá James Joyce que eu tinha lido lá na orelha, né? Aí eu comprei o livro, eu me lembro que tinha um senhor do lado ele olhou “você vai ler esse livro aí?” eu todo orgulhoso falei “vou”, né, o cara falou “esse livro aí você vai se quebrar hein? Esse livro não é pra sua idade não e, além do mais, é difícil de ler, né?” eu comprei e não li, cheguei em casa e vi que não tinha a menor chance (risos), não entendi nada, assim, né? Guardei e tenho até hoje esse exemplar, mas outros eu li, Kafka, por exemplo, eu gostei, eu achei muito interessante e eram textos mais curtos, né? Por exemplo, eu tinha o meu, eu comecei pela Colônia Penal que eram contos curtos, na verdade, né? Eram traduções ainda daquele, como é que chamava o cara meu Deus? Era... esqueci o nome do tradutor, era um tradutor que fez pela, ele traduziu do francês, ele não traduziu direto do alemão, só agora, recentemente a Companhia das Letras fez, publicou as traduções direto do alemão. Eu achei fantástico, fantástico assim! Eu achei inacreditável o estranhamento daqueles textos, meus onze filhos, gente, eu falava, meu, não sei se vocês conhecem é muito legal, né, é uma literatura fascinante e o poder da literatura, né, acho que o Kafka foi um autor assim que me mostrou o poder da literatura, quer dizer, o poder de você fazer um texto e ser inesperado e diferente de tudo e, ao mesmo tempo, simples, fácil de ler, né? Quer dizer, era uma coisa muito forte e, nossa, o John Steinbeck que eu li vários e vários livros, adorava o John Steinbeck, Ratos e Homens, A Leste do Éden eu li todos. Pra você ter uma ideia eu me lembro do A Leste do Éden, aliás, também foi uma coisa importante, eu li no sítio uma redução do A Leste do Éden que, eu não sabia que era uma redução, uma condensação das seleções e eu li A Leste do Éden e eu achei ótimo, isso eu tinha uns doze anos de idade, vamos supor, né? Achei excelente, li nas férias, né? Aí eu fui em São Paulo e eu tinha hábito de pegar ônibus e ir pra cidade e ir na livraria, livro é uma coisa muito ligada, entendeu, a minha vida, né? E o quê que eu fazia, eu pegava o ônibus ia pra cidade, ia na livraria Brasiliense ali na, perto da... como é que chama? Barão de Itapetininga, né, eu era fuceiro, eu ia lá fuçar, comprava um livro e tal, acho que o meu pai dava uma graninha, vivia comprando livro. Aí eu chego lá, tinha A Leste do Éden um calhamaço desse tamanho, eu tinha lido o meu era um negocinho assim, era dentro de um livro tinha quatro e um deles era A Leste do Éden, eu falei, pô, mas o quê que é isso, né? Aí que eu saquei que aquilo que eu tinha lido era uma condensação, por exemplo, metade do, simplesmente eles cortaram metade do livro! Tinha um personagem inteiro, que é um chinês, que aparece na segunda parte de A Leste do Éden que desaparece, aí eu nunca mais li seleções, né? (risos) Falei não, né, esse troço aqui é um lixo! Esse troço aqui é uma enganação total! Mas foi importante pra mim, ter lido primeiro, porque eu cheguei, por exemplo, num John Steinbeck que é um ótimo autor, considero um grande autor e, segundo, me possibilitou diferenciar, né, pô, uma coisa é uma condensação, outra coisa é o original, pô, então não tinha essa noção, aprendi através dessa experiência. Então quando eu fazia as redações na escola, isso no terceiro ano do Ginásio eu já tinha um certo traquejo como leitor, eu tinha uma noção do que era um texto, que eu aprendi lendo, na verdade, de texto pra texto, né? E isso fazia uma diferença, quer dizer, eu fazia umas redações que os caras, pô, que legal! Tinha todas essas influências e pequenas coisas que eu fazia, mas já com uma certa consistência que talvez os outros alunos não tivessem, né, e isso resultou favoravelmente pra mim, quer dizer eu tirava boas notas, tirava dez, né, e tal era muito bom.
P/1 – E você teve essa educação do texto, né, e a educação da imagem, do traço?
R – Zero, a imagem foi o seguinte, eu tive zero educação de imagem, meus pais, na minha casa não havia a tradição de imagem na verdade. Tinha livros com, mas só isso, ninguém falava nada e no Porto Seguro, também, era desprezado imagem, artista visual sempre foi desprezado, ou sempre foi desprezado, pelo menos nos meus ambientes, quer dizer, falava ah, isso é coisa menor, entendeu? Coisa, deseinho! Mas eu desenhava, eu era aquela criança que o caderno era cheio de desenhos, o professor, inclusive vivia me dando bronca, porque o meu caderno era todo desenhado, né? E o resultado, quando eu fui fazer cursinho, eu terminei o Porto Seguro e eu fui fazer cursinho e o cursinho eu fui fazer pra comunicações, porque eu queria fazer alguma coisa ligada a texto, só que na época só existia uma faculdade que tinha noturno, curso noturno, que eu queria fazer o noturno, tá, era a FAAP [Fundação Armando Álvares Penteado]. E a FAAP era pertinho da minha casa que eu morava no Pacaembu e eles fizeram um cursinho dentro da própria faculdade, eu me inscrevi nesse cursinho, tá, e lá eu fiz grandes amigos no cursinho que, infelizmente, dos meus melhores amigos que eu fiz nesse cursinho que foram amigos, depois morreram, por azares da vida assim, cada um morreu de um jeito, mas morreram, né? Era o Artur e o (Tunas?) foram grandes amigos meus, queridíssimos amigos e eu conheci esses caras no cursinho e o Artur era um cara que desenhava e todos fazendo comunicações, cursinho de comunicações, tá? E eu olhava o cara, porque ele tinha um outro nível de desenho, era uma coisa, eu era desenhista de Bic, desenhista de caderno assim, e ele não, ele já tinha umas manhas, porque a irmã dele fazia Artes Plásticas. E eu olhava, tanto que eu fiquei amigo dele, porque todo dia eu sentava atrás dele e falava, pô, ele puxava umas canetinhas que eu não conhecia, umas canetinhas Oxford, né? Aquela canetinha (nanquim?) ficava desenhando durante a aula e era exatamente o que eu fazia, porque eu prestava atenção desenhando, os professores me davam bronca, mas eu prestava atenção, aí que eu não prestava atenção mesmo, levava bronca, mas na verdade eu consigo desenhar e prestar atenção e ele fazia a mesma coisa. Aí eu puxei assunto com o cara, pô, que caneta é essa aí, né, pô, ficou um grande amigo meu e aí chegamos no fim do ano, chegamos a conclusão que aquela faculdade era um lixo, pelo cursinho, como o cursinho era dentro nós acompanhávamos, era uma coisa muito incipiente, isso eu tô falando em 1970, Faculdade de Comunicações era um lixo, entendeu, a da FAAP, né? E Artes Plásticas não, ela era uma faculdade estruturada já, antiga, anterior e pequena, só tinha alunos que realmente queriam fazer Artes Plásticas e a irmã do Artur que era estudante falou muito bem, aí nós fomos assistir uma aula, que era lá dentro do prédio mesmo, eu adorei, fora que tinha modelos nuas, mulherada nua (risos), falei pô é comigo mesmo! Desenhar mulher nua, eu achei ótimo isso aí! Aí eu falei pro Artur, pô, eu vou fazer Artes Plásticas! Ele falou vamos fazer, fizemos o vestibular, era facílimo entrar, eu tinha jeito pra desenhar, ele já desenhava, desenhava muito bem, entramos os dois e foi uma revolução na minha vida. Meu pai, eu lembro que meu pai olhava e falava “tem certeza, né?” meu pai não era de dar palpite, ele era um cara, eu falei pra ele decidi em novembro fazer Artes Plásticas, pra você ter uma ideia, o vestibular é em dezembro, comuniquei pro meu pai ele falou “vai fundo!”.
P/1 – Ricardo deixa só eu dar uma pausa um segundinho?
(interrupção)
(continuação da entrevista)
P/1 – Então, Ricardo, a gente vai terminar esse primeiro tempo aí da nossa entrevista e eu queria ver se tem algum aspecto ainda da sua infância que você queira finalizar.
R – Olha, eu tava falando de faculdade, então não é infância, mas eu queria só contar isso pra fechar esse depoimento que eu dei até agora, né? Pra mim a FAAP, entrar numa faculdade de Artes Plásticas, pra quem vinha do Porto Seguro que era um ambiente, na minha leitura, sufocante, muito, muito autoritário, foi assim entrar no céu. Você imagina entrar numa faculdade de Artes Plásticas, onde primeiro, os professores chegavam e falavam assim, não tinha chamada, não tinha nenhuma autoridade, o professor dava aula e quem quiser assiste, quem não quiser dane-se, a responsabilidade era nossa, eu fui um excelente aluno, ia todo dia na aula entendeu? Então eu era um cara super ligado, mas, ao mesmo tempo, eu decidia isso, não era alguém que... uma autoridade superior dizendo o que você tem que fazer, o que você não tem que fazer, um ambiente absolutamente livre, ótimos professores, eu tive uma chance assim de ter excelentes professores tive aulas com (Vile ______?) , por exemplo...
P/1 – Ah, é?
R – Nossa eu tive aula com ele dois anos! Tive aulas com caras assim Duschenes, Herbert Duschenes, professor de História da Arte, Mário Ishikawa que é um artista, um grande professor e um grande artista, gente, eu tive uma... então foi assim um universo novo que eu entrei, porque eu não tinha preparo nenhum pra Artes Plásticas, mas por outro lado um universo competente, o Raphael Buongermino, que já faleceu inclusive, um grande professor também. Resumindo, pra mim foi assim entrar num caminho muito bom, muito novo, mas muito bom pra mim e, que aquilo foi uma riqueza na minha vida, né? Foi uma, em todos os níveis, pessoal, nível pessoal também de eu entrar num ambiente, poxa, criativo e livre! Sabe, sem autoridade, gente que tinha coragem de dizer o que pensava e era isso que se queria, que se dissesse o que se pensava e lembrando que eu estudei num ambiente por fora a política tava braba, isso eu posso depois contar da outra vez, que foi difícil isso, foi complexo assim. Então é isso.
P/1 – Então tá, Ricardo, muito obrigado pela sua entrevista.
R – Legal.
(Fim da primeira parte)
São Paulo, 23/07/2008.
P/1 – Então, Ricardo, vamos para o segundo tempo da nossa entrevista, a gente parou com você contando dessa felicidade que você teve, quando jovem, de acompanhar o seu time do coração do lado de casa.
R- Eu morei perto do Estádio do Pacaembu. Então, assisti muito jogo lá. Quando eu comecei a me interessar por futebol, deve ter sido lá por volta de 1957, 58, com a seleção brasileira. Pelo menos na minha casa, que meu pai não ligava pra futebol, mas a coisa da Copa do Mundo foi uma divulgação do futebol muito grande. E aí, eu comecei a me interessar. E o Pelé e o Santos Futebol Clube estavam naquele momento de ascensão total, que foi durante anos. E em geral, moleque quando escolhe o time ele escolhe, assim: ou é uma coisa da família, que é família corinthiana, família isso e aquilo ou, então, o cara escolhe o time que está num momento de glória. E era o caso do Santos. E eu tive, então, essa injeção de ânimo ou injeção de torcida, pelo fato de eu poder ir ao Pacaembú volta e meia. Eu morava ali do lado e ia a pé. Assisti muitos jogos do Santos e outros também. Então, eu assisti essa fase da década de 60, eu fui muito ao estádio e assisti a memóráveis jogos de futebol.
P/1 – Tem algum jogo memorável que você se lembre?
R – Olha, eu acho que futebol é uma verdadeira aula. Aula de vida, assim, entendeu? Quer dizer, eu assisti muitas coisas, muitas cenas. Eu vou contar uma cena que eu assisti, por exemplo. Vou contar duas. Uma vez eu estava assistindo o jogo Santos e Portuguesa, Santos com o Pelé, Coutinho e companhia. Ah, estava duro o jogo, mas o Santos estava dominando. Estava um a zero pro Santos, se não me engano. Quando chegou no finzinho do primeiro tempo o Pelé e o Coutinho fizeram uma tabelinha, se não me engano o goleiro era o Félix, que jogava na Portuguesa, e eles fizeram uma tabelinha infernal, entraram na área, e, de repente, ficou a seguinte situação: todo mundo caído no chão, o goleiro e etc. e o Pelé e o Coutinho na linha do gol parados com a bola. Aí, eles fizeram uma brincadeira tipo “chuta você”. Eu não lembro mais quem chutou. Não gostei daquilo, sabe quando você fala: “Meu”. Eu era criança, eu falei: “Pô, isso aí não vai ser legal”. O Santos perdeu. Perdeu, porque aquilo não se faz, foi uma humilhação, na verdade, foi uma brincadeira. Eu pressenti. Quando eu vi aquilo, falei: “Puxa.” O que aconteceu? A hora que terminou o primeiro tempo, a Portuguesa voltou babando, babando. E foram pra cima do Santos e ganharam o jogo, acho que três a dois ou coisa do gênero. Viraram. Tinha Nair, aquele Evair, um cara que jogava bem, um negro magrinho, muito bom jogador e eles se superaram. E isso acontece no futebol, você pode ter um time maravilhoso, cracões e, de repente, se você não tiver um time tecnicamente inferior, esse time cresce, ganha uma energia extraordinária. Quem está no campo, então, fica impressionado, é uma eletricidade que aparece lá, e, os caras viram o jogo, e viraram. E outra vez, num jogo que eu nunca mais vou me esquecer, que foi no Morumbi, Santos e Corinthians. E estava naquela fase que o Corinthians queria quebrar o tabu, como acabou quebrando. Mas não nesse jogo. E aconteceu o seguinte, o Corinthians, acho que já tinha feito um a zero, então aquele desespero dos corinthianos porque podia até ganhar. O Morumbi, aquele baita estádio, e o goleiro do Corinthians bateu o tiro de meta, bola alta, no meio de campo o Coutinho mata a bola no peito. Eu nunca vi isso na minha vida, a bola veio alta, forte, e ele matou e colocou no chão. Pô! O Santos ganhou. O Corinthians murchou diante daquela jogada, foi uma jogada tão extraordinária, uma coisa de técnica. O cara jogava muito, esse Coutinho. E aí, o Santos cresceu e o Corinthians mais uma vez fracassou.
P/1 – Como era o Pacaembu, quer dizer, o ritual de assistir jogo daquela época, é diferente do de hoje?
R – Ah, eu acho completamente diferente, eu não tenho ido aos jogos, mas eu fui com o meu filho, por exemplo, que hoje em dia está com trinta anos. E quando ele era menor, muitas vezes eu fui com ele ao estádio, e já era uma agressividade, uma violência, o cara urinando lá de cima nos caras que estão embaixo. Eu, na minha época, ia sozinho ao jogo, às vezes, com um amigo, mas muitas vezes eu fui sozinho.
P/1 – Com quantos anos isso?
R – Com doze anos, treze anos de idade. Eu ia sozinho! Sozinho! E outras crianças. Ou então ia com amigos. Na maior parte das vezes íamos na geral ou na arquibancada. Não era de numerada, não, era ou arquibancada, se eu tinha um dinheirinho a mais, ou na geral mesmo, e nunca vi nada, não acontecia absolutamente nada. Então, você vê que naquele momento as pessoas, de alguma forma, estavam mais apaziguadas interiormente, quer dizer, havia mil problemas sociais já, é óbvio. Hoje em dia eu acho que tem uma energia interna não boa muito forte, que as razões são várias. Eu não vou entrar aqui no mérito disso, mas não era assim, as pessoas eram um pouquinho mais tranquilas, saíam com mais calma. Mesmo perdendo, mesmo ganhando, saíam do estádio com mais calma. Eu lembro das saídas, por exemplo, que saída e entrada é um momento crucial. É que nem o avião quando desce no aeroporto e sobe. Quer dizer, é um momento que tá todo mundo junto, ali, aquela massa de gente entrando e saindo. Nossa, eu lembro a tranquilidade das pessoas. Eu saía, terminava o jogo onze e meia. Nossa, eu ia a pé pra casa. Eu morava, vamos supor, coisa de um quilômetro do estádio. Tranquilamente, onze e meia da noite, eu ia pra lá sozinho. Tudo deserto. Porque pra região que eu ia era deserto, e eu ia a pé. Nunca me passou pela cabeça que pudesse acontecer alguma coisa, como de fato jamais aconteceu nada. Outros tempos.
P/1 – Ricardo, tem mais alguma coisa que você queira lembrar sobre você e o Santos?
R – Não, não.
P/1 – Então, vamos subir a ladeira e ir para a FAAP.
R – Eu tive uma vivência difícil no colégio. Eu não me adaptei ao colégio, que eu estudei. Então, a entrada na FAAP pra mim foi extraordinária, eu, de repente, me vi numa escola completamente diferente, é uma escola de artes, ótimos professores. A FAAP, no tempo que eu estudei, era uma escola que, quem ia fazer artes plásticas naquela época, era porque estava interessado em artes plásticas realmente, era uma escola que tinha sentido. Ninguém ia pra enriquecer ou seguir uma profissão da moda, nada disso! Eram pessoas que gostavam de arte e queriam ser artistas de alguma forma. E estavam interessadas naquele assunto. E uma liberdade total, e eu estava acostumado numa escola rigidíssima. Eu escolhi de última hora fazer artes plásticas. A minha tradição caseira era uma tradição de texto na verdade. Eu mesmo já escrevia e não desenhava, eu desenhava muito pouco, eu era aquela criança que desenhava só na beira do caderno. Mas acontece o seguinte: eu pretendia fazer comunicações, e o cursinho era na FAAP, tinha um cursinho dentro da própria FAAP. E que eu percebi, então que a faculdade de comunicações era fraca, estava começando na verdade, e a USP, que era outra alternativa que eu tinha, não tinha curso noturno e eu queria trabalhar, eu queria fazer o curso noturno. Então, eu entrei, mas não cursei a comunicações na ECA. E a FAAP eu desisti, eu comecei a fazer o cursinho e eu comecei a perceber o que era uma, porque as aulas do cursinho eram juntas, eram misturadas com a faculdade, então dava pra sentir a coisa. Eu tinha um amigo, que eu fiz vários amigos no cursinho, que depois ficaram meus amigos pra sempre, e um deles, o Artur, falou: “A minha irmã estuda artes plásticas, vamos dar uma olhada?”. E a gente foi, era tudo ali mesmo. E fomos assistir a algumas aulas na faculdade. Adoramos. Achamos um ambiente legal. Ele desenhava também, o Artur, e eu também desenhava, mas era uma coisa que eu não levava a sério, eu levava a sério o texto. Decidimos, fizemos o vestibular, a gente estava mais ou menos preparados, porque, afinal, nós fizemos o cursinho de comunicações. E entramos. Nós abandonamos comunicações e fomos. Em vez de fazer o vestibular de comunicações, fizemos o de artes plásticas, e eu entrei, os amigos lá entraram também. E foi fantástico. Eu acho que foi uma sorte que eu tive. Eu tive contato, então, primeiro, com o desenho e, de repente, eu vi que eu gostava muito mais do que eu mesmo sabia. Então, eu fui aprender a fazer isso, eu fui estudar, eu fui desenhar, bárbaro! Depois, aulas de teoria da arte, coisa que eu desconhecia completamente - estética, história da arte - foram umas questões muito interessantes. Foi bárbaro! Eu tive aulas, por exemplo, com um cara chamado Vilém Flusser. Um baita de um filósofo. Era uma figurassa, foi um privilégio ter aula com um cara desses. Eu não sabia, ninguém sabia quem era esse cara. Na época, ele era um cara, inclusive, muito criticado. Quando eu entrei, eu tive aula dois anos com ele, aula de filosofia da comunicação, e as informações eram desencontradas a respeito dele. Uns diziam que ele era um filósofo de salão, outros diziam que ele era um cara de direita. Na época, isso era complexo, eu estou falando de 1971. Então, era um ambiente político muito forte, uns diziam que ele era um cara comprometido com a direita, e outros falavam bem dele. A gente era moleque, estava entrando na faculdade. E no primeiro dia de aula ele entrou, ele era careca, usava uma gravata borboleta, meio baixinho, chegou, falou: “Olha, eu queria...” A classe cheia de gente, alunos que não eram da classe lá. Coisa que, também, achei estranho, ele tinham ido assistir a aula do cara, invadindo a nossa sala. Ele chegou, entrou, falou: “Boa noite e tal. Eu queria dar uma boa e uma má notícia. A boa notícia: todo mundo passou de ano com nota sete...” “E presença?”. “Não, presença já está dada, pode ir embora, quem quiser vai com Deus”. Eu fiquei, pô, eu estava acostumado no Porto Seguro, aquela rigidez, eu falei: “Quem é esse cara?”. E a segunda, ele puxou uma chavinha do bolso e falou o seguinte: “Eu não gosto que gente entre enquanto eu estou falando. Então, é o seguinte: quem tiver que fazer xixi, essas coisas, sai e hoje não vai assistir aula, e quando vierem pra minha aula ninguém sai e ninguém entra”. Bum! Trancou a porta, quem estava lá dentro. Então, ficava gente pela janela tentando, batendo na porta durante um tempo, e depois desistiam. Porque ele trancava, ele entrava e trancava a porta. Ele falava duas horas sem parar, sem nenhum programa, pelo menos compreensivo pra nós. Nada, cada aula era fantástica. Era uma coisa extraordinária, eu nunca tinha visto uma pessoa daquelas e nem do nível dela. Então, ele falava sobre mil assuntos, não tocava no assunto de política, mas era um pensamento crítico extraordinário, uma coisa que até hoje eu vejo que eu tenho marcas disso, da abordagem dele, da maneira, da agudeza, o relativismo dele. Por exemplo, como ele mostrava pra gente coisas por todos os pontos de vista, alguns proibidos até de você pensar, ele pegava e colocava. Foi um privilégio. E muitos outros professores que eu tive, lá, muito bons professores, e instigantes, Carelli, por exemplo, de desenho, era um cara muito bom, Antônio Carelli, enfim, o Duchennes da história da arte. O Duchennes, por exemplo, era um cara que já era um arquiteto aposentado, e ele era fascinado por história da arte, porque tinha um bom conhecimento de história da arte. Só que tinha o seguinte: ele, provavelmente, tinha grana, e viajava todo ano pra Europa e fazia uma espécie de circuito, pelo o que eu entendia. Por exemplo, ele ia na Bienal de Veneza, ele ia na Documenta de Kassel na Alemanha, ele via todas as exposições importantes em artes, ele ia pros Estados Unidos e tal. E, naquela época, tinha o super-8, ele era excelente, ele sabia tudo de super-8, era um ótimo cineasta, ele filmava como manda o figurino - levava tripé, etc e tal e preparava o documentário. Você via que ele gostava de fazer isso, então ele preparava um documentário sobre, por exemplo, a Bienal de Veneza, botava trilha sonora das músicas que ele achava compatíveis com aquelas obras, em geral músicas de vanguarda ou do Duchaufour ou do Stockhausen, aqueles caras que estavam fazendo música eletroacústica; ou se fosse uma coisa na Ásia, porque, às vezes, ele ia pra Ásia, ele botava a música correspondente. Só que acontece o seguinte, não dava pra ele mostrar tudo isso na aula, não tinha tempo, então, alguns alunos que ele gostou mais, e tive a sorte de ser um deles, ele começou a fazer reuniões na casa dele. Ele dava, por exemplo, duas vezes por mês, de noite no domingo. Das oito à meia noite ele passava filmes, e a gente tinha um contato, digamos, intelectual. Pô, extraordinário. Agora, o que eu quero contar é o seguinte, isso foi interpretado como uma coisa subversiva, porque nós estávamos em 71, 72, por aí. Então, simplesmente a diretoria da faculdade chamou o cara e falou o seguinte: “Olha, a gente não quer que você faça mais essas reuniões, dizem que essas reuniões são subversivas e é complicado, pode melar pro seu lado, inclusive.” Sabe o que ele fez? Ele chamou a gente na reunião na casa, não na escola. Chamou um dia a gente, lá, num domingo daqueles, chegou: “O negócio é o seguinte, eu estou recebendo essa pressão do diretor da faculdade pra parar com essas reuniões. Nós não estamos fazendo subversão, nós estamos discutindo sobre arte aqui. O que vocês acham?”. A gente olhou: “Pô, sei lá, a gente, não sei, a casa é sua”. Ele morava no Sumaré até. Ele falou: “Não, por mim tudo bem, entendeu? Se vocês quiserem vir, a gente vai continuar, e se a polícia vier a gente manda entrar, pô!”. Eu falei: “Bom”. Na época eu achei bacana da parte dele, falei: “Bom, o cara é corajoso, um pouco.” A gente também tinha um pouco de coragem de ir, mas, eu não sabia o quanto isso era perigoso ou não. Pô, era perigoso! Pode ter certeza que era perigoso e a casa dele, por exemplo, tinha um monte de livros, Marx, etc. Ele era um cara culto. São exemplos que eu nunca mais vou me esquecer.
P/1 – Então você viveu, realmente, um momento de efervescência intelectual?
R – Vivi, vivi. Ele levava artistas pra conversar com a gente, amigos dele, artistas legais, pessoas interessantíssimas, muito bacana.
P/1 – E como é que foi essa coisa de você ir percebendo que gostava mais de desenhar do que de escrever?
R – Não, não houve essa percepção. O que acontece é o seguinte, eu continuei escrevendo. O que aconteceu foi que passou a haver dentro da minha vida espaço pra desenho, além do texto - e eu continuei escrevendo todo esse tempo, normalmente, eu continuei fazendo as minhas coisas, escrevendo. Eu mexo com música, sou um músico amador. E, na época, eu estava fazendo muita música, e eu fazia as letras de música, e, aquilo era um exercício fantástico. Durante anos eu fiz letra de música. E uma maneira de usar o texto. E tenho certeza que essa época da minha vida marcou muito, depois o meu trabalho com texto lá na frente, quando eu fui publicar os meus livros. Agora, o que eu quero dizer é que eu acho que a FAAP abriu uma janela mesmo pra mim, uma nova janela que era a possibilidade para eu desenhar, para eu ilustrar os meus próprios livros. Quer dizer, que não existiam ainda, mas que iriam existir lá na frente, eu não sabia bem o que ia acontecer na verdade, mas eu falei: “Puxa, eu gosto de desenhar, acho interessante, vejo possibilidades muito bacanas com as imagens.” E via, evidentemente. Percebi que unir texto e imagem dá samba. É muito interessante, que se possa fazer, por exemplo, uma imagem que não tem nada a ver com o texto e, de repente, esse texto e essa imagem criarem uma terceira coisa interessantíssima; se pode escrever uma coisa, escrever outra e dizer aquilo através de imagens. Têm mil possibilidades, eu vi isso, estava na cara. Qualquer um que conheça um pouco de cinema sabe disso. Então, a FAAP pra mim teve muito esse sentido de abrir uma janela expressiva, uma linguagem nova fantástica.
P/1 – Ricardo, você estudava de noite?
R – Eu estudava de noite.
P/1 – E você já estava começando a trabalhar?
R – Durante o dia fazendo estágio. Nessa época, eu arrumei um estágio numa agência de propaganda e era interessante. Eu queria fazer estágio na arte e na redação, aí o cara olhava pra mim como se eu fosse um cara pretencioso, um moleque. “Pô, que arte e redação, nada!”, e me mandava embora, eu falei: “Pô, essa minha estratégia está errada.” Então, eu entendi como é que eu tinha que fazer. Eu fui lá nessa benção onde eu fiz o estágio de um ano, eu cheguei lá e falei: “Eu quero fazer na arte, porque eu faço artes plásticas”. Daí era coerente, o cara falou: “Legal”. Me arrumaram. Aí, eu lá na arte, assim que passou um mês que eu já conhecia o pessoal mais ou menos, o diretor de arte, que era muito boa gente por sinal - ele chamava Manoel Vinagre, português o cara - cheguei pra ele e falei assim: “Bandarra...” - na verdade, o nome dele era Manoel Vinagre, mas ele era conhecido como Manoel Bandarra - cheguei pra ele e falei: “Vem cá, eu escrevo”. Então, mostrei umas coisas pra ele, e ele falou: “Não tem problema”. Então, eu fazia estágio de manhã na arte e a tarde na redação. Então, foi ótimo pra mim, foi uma coisa bacana essa experiência como publicitário. Depois eu acabei trabalhando na Pirelli mais pra frente. Eu fiquei sete anos na Pirelli trabalhando numa agência interna, e lá eu fazia texto e imagem. Eu não fazia desenho, eu fiz poucos desenhos, fiz desenhos também, mas poucos, eu fazia direção de arte, na verdade. Contratava fotógrafos, fazia criação de certas peças, que não era publicidade grande, no sentido de televisão, essa coisa eu não mexia, mas, por exemplo, folhetos, cartazes, coisas que iam pro ponto de venda. Tudo dentro da Pirelli. Durante sete anos eu fiz isso e todos os textos e todas as peças. Aquilo foi uma verdadeira escola, porque você escrever um texto de publicidade tem que ter clareza, porque ninguém lê. Então, você tem que ter uma chamada que seja legível, que chame a atenção, e se virar em poucas palavras e dizer alguma coisa. Então, aquilo foi muito útil pra mim. E eu lembro, depois que eu deixei de ser publicitário, quando eu larguei o meu emprego em 83, eu falei: “Nunca mais eu quero ser publicitário na minha vida, entendeu?”. Eu estava meio com ojeriza disso. Mas passado uns anos, até, por questão de dinheiro também, por falta de grana ou coisas assim, de repente, pintou um freelance muito bom e eu falei: “Poxa, eu vou pegar esse trabalho.”. Aí é que eu me dei conta de uma coisa extraordinária, que eu me lembro que era um folheto pra Promon, e eu fiz tudo na verdade, eu fiz o trabalho completo. A Promon funcionava aqui na Marginal Pinheiros, um baita de um prédio, mas a ideia deles era fazer eles ocuparem um ou dois andares, e os outros eles teriam empresas também. E eu vendi, tem um teatro embaixo, um negócio chique até. Mas aí, eu. Isso foi em, digamos, em 85, 86, eu já tinha vários livros, eu já estava muito treinado e muito habituado a escrever todo dia textos de ficção, e nunca mais tinha feito textos de publicidade. Quando eu comecei a escrever aquele texto, que era um texto que se tivesse três laudas era muito, quase que o meu cérebro se desmancha. Eu falei: “Pôxa, que esforço que é você escrever pra publicidade”. Coisa que antes eu não percebia, eu estava, lá, mergulhado até as tampas. Então, uma coisa é você escrever algo que você está envolvido emocionalmente, que a tua criatividade está toda voltada em sinergia com as tuas emoções. É uma riqueza, você cansa, mas você cresce e se enriquece. Mas você usar só a sua cabeça, você tirar todo o resto... Eu tinha que ser racional, fazer aquele texto bem feito, porque eu não tinha um comprometimento emocional com a Promon. Era um texto que tinha que ser criativo, num certo limite, e competente. Inteligente e objetivo. Difícil. Aí que eu percebi a energia que se gasta quando a gente não está com a emoção junto.
P/2 – Ricardo, mas esses textos anteriores à primeira agência de publicidade, eram textos literários, eram o que, ensaios de textos?
R – Eu escrevia pequenos contos até eu escrever o meu primeiro livro. Eu escrevi vários textos que eu acabei, depois, publicando. Por exemplo, O Peixe Que Podia Cantar, eu escrevi uns três anos antes de publicar. Eu tive uma ideia e escrevi aquele texto, era um conto, pra mim era um conto. Fiz também muita letra de música, durante todo esse período e fui escrevendo, porque eu comecei a trabalhar em publicidade, então era uma atividade constante. Fazia os meus textos em casa, na verdade, o tempo todo eu escrevi mais do que qualquer outra coisa, mas eu trabalhava, e em geral eu trabalhava ligado à imagem, também, porque em publicidade imagem e texto é uma coisa que está muito próxima.
P/1 – Esses textos ficavam guardados na sua casa?
R – Em 79, eu fui no aniversário de uma amiga minha, que é amiga até hoje por sinal, e a irmã dela chegou pra mim e falou - porque os meus amigos sabiam que eu escrevia - e falaram: “Eu tenho uma amiga que é amiga de alguém na Melhoramentos”. Uma coisa assim: “Eles estão procurando novos autores de literatura infantil”. É a Suca, a minha amiga que me deu essa dica. Ela é pintora. E aí, eu falei: “Pô, legal”. Ela falou: “Você tem vários textos aí.” Aí, eu peguei e escolhi um dos meus textos, que foi O Peixe Que Podia Cantar. Como eu sabia desenhar, a essas alturas eu já tinha feito desenhos pra publicidade, eu já tinha uma técnica, um conhecimento, digamos, meio geral, eu estudei um formato possível de livro, fui numa livraria ver o formato, fiz três desenhos pra mostrar, caprichadíssimos. Eu me matei pra fazer os raios dos desenhos, pra mostrar que eu sabia desenhar. E, aliás, os três desenhos já foram aproveitados no livro. Então, levei o texto. Marquei a reunião com Paulo Condini, que era o editor na época. Uma grande figura, e levei, então, o texto datilografado, que nessa época não existia computador ainda. E três desenhos, três aquarelas, super já bem feitas pra, se possível, serem publicadas, como foram. O cara gostou dos desenhos de cara, falou: “Pô, adorei esses desenhos. Eu vou ler o texto e aí a gente conversa”. Isso foi, vamos supor, outubro de 79. No comecinho de janeiro, em janeiro mesmo do ano seguinte, em 1980, ele me ligou: “Nós vamos publicar o seu livro”. Aí eu fiz o projeto gráfico do livro, ele me deu o formato. Por sorte eu tinha feito os desenhos de uma forma que se encaixavam mais ou menos nos formatos existentes por ali. Então, se encaixou quase direitinho, eu tive que fazer umas adaptações lá, mas deu certo. E foi isso, eu publiquei em 1980 o meu primeiro livro. Eu já tinha textos prontos, o próprio Paulo pediu, eu já dei outro texto pra ele no ano seguinte e já saiu. Daí, pelo fato de ser ilustrador, eu poderia ilustrar livros de outras pessoas. Quando eu percebi isso, eu vi que dava pra eu largar o meu emprego. Eu tenho três filhos. E, na época, eram pequenos, era complicada essa coisa de largar o emprego. Mas eu falei: “Trabalhando muito e com um pouco de coragem, dá, porque eu tenho capacidade de produzir os meus textos. Eu já tenho textos prontos e tenho capacidade de produzir outros, e, eu tenho capacidade de fazer desenhos pros meus livros”. Eu ganhava e ganho em separado, quando eu ilustro um livro meu eu ganho, porque se não for eu que ilustre, vai ser você que vai ilustrar ou outra pessoa, e alguém vai ganhar. Então, essa remuneração, ganho eu. Eu falei: “Poxa, quer dizer, os meus livros, mais a remuneração pelas ilustrações e, mais eventuais livros de outras pessoas que eu possa ilustrar, dá pra eu viver, mesmo trabalhando muito.” Foi o que eu fiz.
P/1 – Eu só queria voltar um pouquinho. Antes de você publicar o primeiro livro em 80, você já conhecia essa produção dessa geração dos anos 70 infanto-juvenil?
R – Eu não conhecia, eu vivia em outro universo. É o seguinte: o meu pai recebia uma revista de intercâmbio cultural Brasil e Alemanha, chamada Revista Humboldt, fantástica a revista. Nessa revista os textos de autores de língua alemã, tanto alemães como os suíços, e coisas do gênero, eram traduzidos pro português, e textos de autores maravilhosos, tanto portugueses como o Fernado Pessoa, por exemplo, como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, eram traduzidos pro alemão. E tinha artigos também, sobre artes, uma revista extraordinária, com uma fotografia de artistas, com obras. E eu nunca tinha visto, aquilo pra mim era maravilhoso; expressionistas alemães muito bacanas, que eu não conhecia. Isso foi antes de entrar na faculdade. Bem antes, uns três, quatro anos antes. Como eu era um cara já ligado a essa coisa de artes, de texto e tal, meu pai dava uma olhada e dava a revista pra mim, que meu pai era geográfo, então, ele dava uma olhada geral, mas não era a área dele aquilo. Mas era a minha. Ele sabia que eu gostava. E uma vez numa dessas revistas que, aliás, várias eu tenho até hoje guardadas, e eu tenho essa, especificamente, que essa foi muito marcante pra mim, tinha lá: Três Contos Para Crianças, de um autor chamado Peter Bichsel, que, depois, eu vim a saber que ele era um autor suíço e que só tem um livro pra crianças, que é esse que se chama Contos Infantis, que, na verdade, são sete contos. Eu adorei ler esses contos, eu achei esses contos maravilhosos, muito interessantes. Primeiro, porque eram pra crianças e não eram. Eram contos que tinham uma abrangência, qualquer pessoa lê aquilo e se interessa. É muito interessante a linguagem do cara, a abordagem dele, interessantíssimo. Eu fiquei fascinado com aquilo. Eu lembro que eu fiz um trabalho de escola no Porto Seguro e lemos. Eu fiz uma trilha sonora, lemos um dos contos do cara, eu fiquei fascinado com aquilo. Eu falei: “Pô, eu vou escrever um conto”. Eu fiquei com vontade de escrever uma história, e a história que eu escrevi é O Homem No Sótão, livro que eu publiquei com 32 anos de idade, muitos anos depois. Eu tenho até hoje esse original, escrito à máquina, que eu escrevi com uns dezessete, dezoito anos após a leitura do Peter Bichsel. Na verdade, não tem nada a ver com Bischel, mas pra mim tem, dentro de mim, tem. Eu pude escrever aquela história, porque eu li o Bichsel e aquilo mexeu comigo de alguma forma e me emocionou. O patamar que ele escrevia era um patamar que me interessou muito, e eu esccrevi essa história. Então, isso foi a minha grande referência na verdade; depois, indo um pouco pra trás, outras coisas: O Tesouro Da Juventude, eu li muito, eu tinha essa coleção de dezoito volumes e era dividido por livros. Então, por exemplo, tinha livro de perguntas, livro dos porques, livro de ciências, livro disso e livro daquilo, livro dos contos, então, em cada volume desses tinham uns dez contos populares recontados. Uma beleza. Eu pegava, e eu amava esses contos, e eu contei vários desses contos que eu li lá. Depois eu pesquisei, achei outras versões e contei em livros meus esses livros de cultura popular. E uma terceira leitura que eu acho que foi muito marcante nessa época foram os cronistas, Rubem Braga, Stanislaw Ponte Preta, o Sérgio Porto, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, que, na época, eles estavam muito em evidência, esses caras tinham aquela editora Sabiá, que, aliás, era do Fernando Sabino, se não me engano. Esses caras escreviam em jornal, em revista. A maioria na Revista Manchete e Cruzeiro. E essa Editora Sabiá, eu acho, eu tenho impressão que foi isso que aconteceu, ela começou a reunir as melhores crônicas desses caras. E, era muito legal, porque eles eram bons escritores, ótimos escritores, e uma linguagem muito acessível, muito bacana, uma linguagem próxima da oralidade. E eu me interessava por isso de alguma forma, isso é uma coisa que tem a ver comigo. Então, eu li esses autores, li um monte desses livros. E eu me lembro que aquilo me influenciava, por exemplo, a fazer redações escolares. Eu tinha a influência dessa maneira de escrever coloquial desses autores, isso no tempo da escola ainda. E fora outros livros, porque eu vim de uma casa que tinha muito livro. Tinha uma biblioteca grande. Obviamente que eu li um monte de livros nesse período. E livros que me marcaram.
P/1 – O seu início aconteceu com uma pessoa que te fala da Melhoramentos, você vai lá com a cara e com a coragem, com o material e...?
R – Me arrumaram o telefone da Melhoramentos, eu liguei pro Paulo Condini, eu fui lá um dia e marquei uma reunião. Levei três desenhos, levei o texto datilografado, ele ficou e em janeiro ele me ligou e eu publiquei o meu primeiro livro.
P/1 – Como é que foi a repercurssão desse primeiro livro?
R – Foi um livro que foi bem. Houve um convite pra expor os desenhos numa exposição no Japão, então eu comecei com o pé direito, assim. Aquilo me abriu a porta mesmo. A própria editora manisfestou interesse em publicar mais coisas minhas, eu já tinha alguns textos e eu já me dispus a escrever outros. O que aconteceu foi o seguinte: eu entrei numa crise física, porque eu trabalhava o dia inteiro. Eu ainda estava na Pirelli nessa época. E era pauleira lá, era um monte de coisa que eu tinha que fazer, eu viajava pra lá e pra cá, mil lugares. Era um trabalho puxado pra mim. Eu era casado, com três filhos. Os livros eu comecei a fazer de noite, quando eu tinha tempo pra fazer, é óbvio. Pra você ter uma ideia, O Homem No Sótão, o texto eu já tinha escrito há muito tempo atrás, mas eu mexi no texto até eu achar que ele estava redondo e mandei pra Melhoramentos. Aí, foi aprovado, o cara adorou o texto, o Paulo. E aí, as ilustrações, o que eu fiz? Eu tirei férias pra fazer esses desenhos! Eu me lembro que eu terminei os desenhos, porque são trabalhosos os desenhos, e eu terminei e logo no dia seguinte eu fui trabalhar. Tive um treco no trabalho. Tive que voltar pra casa: Porque eu estava exausto, tinha trabalhado direto, desesperadamente, pra terminar os desenhos do livro. Então, eu vi que não ia dar, Fisicamente, eu não iria conseguir trabalhar na Pirelli, porque tinha muito trabalho e muita responsabilidade. E era um trabalho que exigia muito de mim, e fazer os livros que era o que eu gostava. Era ali que estava a coisa que eu gostaria de fazer mesmo. Então, eu larguei o meu emprego em 83. Eu perdi onze quilos nesse processo, demorou um ano essa brincadeira até largar mesmo. Foi duro. É uma decisão que eu me lembro, meu irmão falava: “Não faça isso, a inflação, etc...”. Eu já tinha alguns livros publicados, porque eu publiquei em 80 e no ano seguinte eu já publiquei dois de uma vez só, aí a coisa foi indo. E O Homem No Sótão ganhou um prêmio do Banco Noroeste, que era uma espécie de um prêmio do melhor texto infantil dado na Bienal do livro. Era uma coisa legal, assim. Eu falei: “É agora ou nunca”. Então, eu larguei o emprego. Foi muito bom eu ter trabalhado lá durante sete anos, porque durante sete anos você acaba estabelecendo um modo operante de trabalho. Então, eu acabei aprendendo muita coisa, foi muito útil, tanto como escritor, escrevendo os textos, como o cara de artes gráficas. Eu sou um cara trabalhdador, eu acordo cedo e gosto de trabalhar, e, de repente, eu me vi em casa, livre. É inacreditável ter o dia inteiro livre só pra eu poder trabalhar em paz. Pô, aí eu fiz um monte de coisas. Quer dizer, esse monte de livro.
P/1 – Como é um dia seu de trabalho? Você acorda, o quê, seis da manhã?
R – Eu acordo cinco e meia, tomo um café super com calma, numa boa, leio o jornal, eu assino o Estado e a Folha, então, eu dou uma boa lida de jornal, às sete e meia eu vou pro meu escritório. Eu tenho um escritório atrás da casa. Eu saio da casa, ando um pouquinho e vou lá pro meu escritório. Aí, eu trabalho direto até o meio dia, almoço, volto uma e meia, duas horas, e eu vou até as cinco e meia, mais ou menos. Aí eu corro no fim da tarde e depois nem vou mais no escritório, porque se eu for no escritório sempre acabo fazendo alguma.
P/1 – Como é que era a sua fase pré-computador, em termos, assim, de rotina de trabalho?
R – Eu guardo a máquina que eu usei muito, foi uma máquina que pertenceu ao meu pai, meu pai morreu em 74, e ele tinha uma máquina boa, Hamilton, uma máquina legal, macia, gostosa de escrever. Eu me apropriei da máquina dele. E usava em casa pra fazer freelance de texto, ou pra fazer os meus textos mesmo. E eu usei essa máquina até o computador, eu custei pra entrar no computador, eu lembro que eu adorava escrever na máquina. Eu acho que o primeiro livro que eu escrevi com o computador foi o Coração Maltrapilho, que é um livro de 92. Foi fantástico. Foi quando eu vi o que era o computador na verdade. Porque eu estava acostumado há anos escrevendo com máquina, aí eu nunca mais usei a máquina, simplesmente a máquina virou museu. O computador é uma diferença tão grande, porque pra você fazer uma revisão num texto datilografado era um exercício e tanto. As revisões eram super complicadas, você tinha que fazer pestape pra não ter que copiar tudo de novo. Então, você pegava um parágrafo, escrevia de novo e colava, era uma coisa infernal. Eu gostava, porque eu não estava acostumado. Olha, eu vou dizer um negócio, é impossível fazer essa conta, mas eu acho que a minha capacidade de trabalho dobrou depois do computador, eu passei a produzir muito mais, muito mais textos, pela agilidade que o computador te permite.
P/1 – Ricardo, qual é a relação da sua família, sua esposa e seus filhos, com o seu trabalho?
R – Eu sempre tive muito apoio da minha mulher, é uma companheira muito boa que eu tenho, é uma sorte que eu tenho. Eu sou casado há muitos anos, mas não é uma relação de interferência no meu trabalho. Por exemplo, eu faço um texto e quando eu acho que o texto está pronto, ou perto de pronto, ela muitas vezes lê; os meus filhos, também quando eram crianças liam e, hoje em dia lêem menos, porque estão ocupados, cada um trabalha. Mas eu, às vezes, mostrava pra minha mulher, eu acho que em geral eu mostrava o texto e ela fazia um comentário ou outro, mas não de interferência. A minha mulher sempre acreditou no meu trabalho, sempre estava junto, mesmo na saída da Pirelli, por exemplo, que foi uma coisa traumática pra mim. Ela sempre falou: “Não, vamos lá”. Ela nunca colocou dúvida nenhuma, o que foi bom pra mim. Porque se ela tivesse medo, aí, complicava. Seria mais um peso pra eu carregar, porque todo mundo dizia pra eu não fazer isso, inclusive os caras da Pirelli. Então, era complicado, eu falei: “Pô, será que vai dar certo?”. Mas são passos que você tem que dar.
P/1 – Ricardo, me corrija se eu estiver errado, mas depois que se publica o primeiro livro não se cria uma certa: “Vou procurar o que eu estou fazendo com mais calma. Quem é a geração que eu estou me envolvendo, como é que é a fala num livro infantil?”. Não cria uma confiabilidade? Como é que se faz a pesquisa desse complemento?
R – Eu me vi na seguinte situação: com três filhos, um certo padrão de vida que eu pretendia manter, uma escola que meus filhos estudavam, que não era barata, nem nada disso. Então, o que eu fiz foi o seguinte, eu fui trabalhar. É lógico que eu olhei outras coisas, eu olhei o que estava se fazendo, mas eu não olhei muito, não, confesso que não olhei por falta de tempo. Porque eu me dediquei totalmente, eu mergulhei de cabeça no caminho que eu peguei. E como eu tinha ideias, e tinha muita coisa que eu queria fazer, eu fui mandando bala, agora. Mas isso aconteceu de fato, e é uma coisa importante, é que quando eu publiquei o meu primeiro livro, eu não sabia nada sobre o universo da literatura infantil e, muito menos, que livros eram vendidos pra escolas. Eu não tinha ideia que funcionava assim, eu achava que livros eram vendidos na livraria, e nem existe livraria no Brasil. Eu acho que duas mil livrarias no Brasil inteiro, três mil no máximo. Eu não sabia de nada disso, eu fiquei chocado quando eu me dei conta da realidade onde eu estava entrando, que, na verdade, os livros que eu escrevia, se não houvessem as escolas, é, seriam impraticáveis. Esse contato com a escola foi chocante pra mim, porque eu me vi diante de uma realidade outra, complexa, eu percebi que as pessoas usavam mal aqueles livros, porque não era aquele livro, não era uma literatura, eles didatizavam os livros. Por outro lado, essas pessoas, imediatamente, começaram a adotar os meus livros e me chamar na escola pra falar com as crianças. Então, eu percebia muitos erros, crassos erros a respeito da utilização dos livros, mas, também, comecei a entrar em contato com as professoras. E dar palestra pra professores, às vezes me chamavam pra palestras. Desse primeiro momento de choque, de achar tudo meio ruim, eu comecei a me envolver com aquilo, eu comecei a ver que aquelas professoras eram pessoas muito legais, pessoas muito honestas e, muitas vezes, pessoas muito boas que estavam lutando pra fazer o trabalho delas. E, às vezes, com uma má formação e uma série de problemas. E eu comecei a sentir muito o peso dessa responsabilidade, eu sentia demais isso, de, de repente, você ser convocado, ser convidado pra dar uma palestra com setecentos professores na sua frente, e eu, lá: “Quem sou eu pra falar pra essa gente toda?”. São pessoas carentes de informação, pessoas honestas, querendo de alguma forma se reciclar, me colocando num espaço que eu não me sentia merecedor. Eu era jovem e inexperiente. E, de repente, por ser escritor, eu passava a ter uma palavra com um peso exagerado, eu sentia muito isso na pele. Eu vi: “Pô, esse troço está errado”. Aí, eu resolvi estudar de novo, então, eu fui fazer mestrado, acabei fazendo mestrado e doutorado. É muito por conta disso, o início pelo menos, só, que, depois, eu acabei ficando tão fascinado com as coisas que eu estava estudando que pro doutorado já foi uma coisa que foi natural, porque eu estva num assunto que eu queria entender melhor. Aí eu fui estudar mesmo e mergulhei de cabeça de novo, um outro tipo de mergulho, diferente do da saída da Pirelli, mas análogo de certa forma. Só que o mestrado foi assim, eu falei: “Eu preciso estudar literatura, eu preciso conhecer melhor certas coisas pra poder falar com mais competência, com mais segurança”. Eu tinha uma informação teórica boa até, da FAAP, sobre a arte. Isso me ajudou muito e era uma formação correta. Eu adaptei, intuitivamente pra literatura, e deu certo. Na verdade, depois, quando eu fui estudar, eu vi que o que eu tinha falado antes estava certo, porque eu tinha a base da FAAP. Mas foi importantíssimo, pra mim, ter voltado a estudar, a fazer o mestrado. Eu estudei, por exemplo, a relação entre os contos populares e a literatura infantil. Contos de fantasia. Contos de encantamento. Pô, foi um estudásso, eu estudei pra mim mesmo. Porque eu não sou professor nem nada, então, eu estudei pra mim. Eu fui fundo, estudei mesmo, gastei a minha energia nesse estudo e, depois, continuei estudando, porque a questão do popular passou a ser uma coisa que eu foquei muito, e no doutorado eu continuei nessa direção.
P/1 – E refletiu muito no seu trabalho.
R – Refletiu na minha vida, se você quer saber, em tudo. Foi uma coisa profunda. Eu comecei como aluno especial, é tudo uma coisa lenta, aí fiz todos aqueles cursos, depois, escrevi, etc e tal, não lembro, mas acho que foi em 97 que eu defendi o mestrado. Aí, eu dei um tempinho de uns seis meses e já fui pro doutorado, que eu defendi a tese em 2004. E eu estou estudando até hoje, porque você não pára mais de estudar. Eu estou tão comprometido com as coisas que eu estudei, que me interessam até hoje, que eu continuei estudando. Agora eu compro livros, os livros que saem a respeito do assunto, e continuo lendo, e estudando as novas coisas que saem.
P/1 – Ricardo, qual é o primeiro livro que sai depois desse seu mergulho na cultura popular?
R – O meu primeiro livro de cultura popular, o primeiro trabalho que eu fiz sobre cultura popular foi em 81. Eu lancei o livro em 80, foi um trabalho que eu fiz pra Folha de São Paulo e que até hoje tem escolas, essas escolas mais pobres, que guardam esse troço e usam. Porque é o seguinte, eles fizeram o mês do folclore e eu fiz uma página dupla da Folhinha com, dezoito monstrengos, que eu chamo de monstrengos, por exemplo, Lobisomem, Saci, etc e tal. Acho que o Saci eu nem botei, mas botei outros. Era bacana, eram duas páginas, então, tinha o texto curto e um desenho de cada um desses seres fantásticos brasileiros. Aquilo foi muito legal. Logo na sequência eu publiquei, acho que em 83, eu publiquei pela FTD, seis livros, com contos populares, quadras populares, adivinhas e etc. Esses livros, depois, eu tirei da FTD, acrescentei mais algumas coisas e se transformaram no Meu Livro De Folclore, então, esse livro é uma reunião de seis livros da FTD, com acréscimos. Então, aquilo já vinha antes. Isso foi tudo antes do mestrado, e chegou uma hora que eu falei: “Pôxa, eu preciso compreender melhor isso.” Então, quando eu fui fazer o mestrado, eu queria conhecer um pouco de teoria literária, que eu não tinha uma formação nessa direção, e aproveitar pra estudar o conto popular. Eu vou colocar a questão de uma forma simples: você pega, por exemplo, um conto, A Branca De Neve. Um conto que todo mundo conhece, ele é um conto popular, ou seja, isso significa que ele não é um conto para crianças, contos populares são contos pra todo mundo. Como o Carnaval. Carnaval é pra todo mundo, esse negócio de faixa etária não tem nada a ver com o povo, as pessoas contam histórias de noite e aquelas histórias são contadas. Isso significa o seguinte, que os assuntos que esses contos trazem não são assuntos infantis. Aliás, o que é assunto infantil? Na verdade, também é uma outra questão. Chupeta?! Eu não sei. A Branca De Neve traz a seguinte história: é uma mulher muito bonita, tem uma filha e ela tem um espelho e o espelho diz que ela é a mulher mais bonita; quando essa filha cresce, o espelho diz que agora ela não é a mais bonita, a filha é que é e ela manda matar a filha. Essa é a história. E isso é um tema que existe na vida das pessoas mesmo, é a luta do velho contra o novo, é um tema arcaico. Na verdade, quando você tem modernidade e tradição, por exemplo, esse tema aflora de novo. Quando você tem eleições políticas, a oposição é a situação, mais uma vez o tema aparece, é um tema da cultura humana, arcaico, na verdade, e interessa a todos nós, porque todos nós estamos envelhecendo e todos nós temos esse conflito do novo. Por exemplo, eu sou o escritor, mas, de repente, podem surgir textos que contrariam a obra que eu fiz, e isso é o que fascina nos seres humanos. Então, eu comecei a falar: “Pô, mas espera aí! Os contos populares trazem temas dessa ordem. E a literatura infantil? Então, como é isso, por que a literatura infantil não pode, também, trazer? Por que ela pode trazer temas dessa ordem e as crianças engolirem essa pílula? Porque seriam temas pra adulto, teoricamente, nesse mundo abstrato aí”. Que pra mim é uma bobagem. Então, eu queria entender isso, e o meu mestrado é sobre esse assunto. Eu trouxe o Peter Bichsel de volta, eu falo sobre ele, eu mostro algumas histórias infantis como o Pinóquio, por exemplo, que são claramente marcadas pelas tradições populares, é uma história mítica. O Pinóquio, se você for ver é uma história mítica, é como se fosse um herói daqueles heróis culturais. Ele passa por uma série de testes, é inacreditável, é uma história mítica. Tem esse tipo de história que é claramente marcada pela tradição popular, e outras não tanto, mas mesmo assim, elas têm uma série de características que remontam a tradição do conto popular. Quando eu falo conto popular eu sempre falo conto maravilhoso. Enfim, num resumo é muito isso. E eu mesmo me situei, eu consegui compreender melhor o meu trabalho, foi bárbaro pra mim. E também a literatura. Porque pra falar tudo isso eu tinha que saber um pouco o que era a literatura, afinal. O que era o popular, e muitas questões.
P/1 – E no seu trabalho plástico, como é que foi esse encontro seu com a xilogravura?
R – Durante anos, durante esse período de antes de virar escritor, eu dei aula na FAAP. Assim que eu me formei, eu fui convidado pra ser professor na FAAP, eu virei professor de comunicação visual do terceiro ano, que era projeto de comunicação visual. Na verdade, porque eu já trabalhava com publicidade, e nesse meio tempo que eu comecei a trabalhar com publicidade, eu tinha uma experiência profissional e os caras acabaram me chamando. E essa coisa do interesse por cultura popular é antigo, acho que desde a minha casa de infância, por isso que eu contei do Tesouro da Juventude, que eu ia. Eu comecei a sugerir aos alunos, então, assim: “Pôxa, por que que vocês não pegam os artistas de xilogravura? Vão pegar um conto popular, por exemplo. Um desses do Câmara Cascudo, não é?”. Era um dos trabalhos que eu dava, eu falava: “Então, vocês vão fazer um projeto gráfico de um livro inteiro com esse texto, e as ilustrações. As ilustrações, por que vocês não usam como referência a xilogravura?” Ninguém fez isso, inclusive uma aluna roubou o meu livro. O livro que eu tinha com umas xilogravuras, eu falei: “Pô, ela nunca mais me devolveu”. Ninguém fez. E eu queria fazer, mas eu não tinha tempo pra fazer, porque eu trabalhava e dava aula, era impossível, a minha vida era muito corrida. Mas eu falava: “Puxa, isso é uma pesquisa interessante”. Nessa época saiu o trabalho do Jô de Oliveira. O Jô de Oliveira tem uma revista em quadrinhos muito legal que saiu por essa época aí, 75, por aí, e eu falei: “Puxa, olha aqui, ó! Esse cara fez isso, ele olhou a xilogravura popular e fez uma linguagem dele a partir daqueles recursos da xilogravura, já com nanquim.” Eu falei: “Pô, é por aí.” Aí, eu fiquei lá dando aula na FAAP, eu dei de 78 a 88, durante dez anos eu dei aula na FAAP. Aí, logo que eu publiquei os meus primeiros livros, em 81, 82, outras editoras começaram a me chamar pra ilustrar, e a Moderna me chamou pra fazer os desenhos de um livro de um autor chamado Jair Vitoria, o livro dele chamava Vavá, Entre O Medo E A Coragem, e era uma história que se passava no nordeste, é uma saga nordestina assim, eu falei: “Pô, é comigo mesmo, é hoje que eu vou fazer. Aquilo que eu sempre falei pros meus alunos, eu vou fazer”. Então, eu peguei as xilogravuras que não me roubaram, e todas as referências que eu pude, e ilustrei esse livro. Foi o primeiro livro que eu usei essa linguagem. Eu vi que, puxa, tinha tudo a ver comigo. Eu adorei fazer aquilo, eu falei: “Puxa, eu me sinto em casa com essa linguagem”. Parecia que era uma coisa que me expressava mesmo. Aí, quando eu fui ilustrar os meus contos, eu fui experimentando. Se você for ver os livros da FTD, você vai ver que ali tem muitas sementes de coisas que, depois, eu desenvolvi de outra forma. Mas ali está a semente das ilustrações. Elas ali são ainda embrionárias dessa linguagem que, depois, eu fui desenvolver nos outros livros, mas foram muito importantes pra mim.
P/2 – Quais são os seus marcos, faça uma trajetória pessoal com marcos, prêmios, com as coisas que te marcaram?
R – Dentro do meu trabalho, por uma série de razões que eu não saberia dizer agora quais, o meu primeiro livro foi marcante, porque o Peixe Que Podia Cantar é um livro que tem todas as minhas questões, questões. É impressionante, porque agora ele está publicado pela SM, e eu revi o texto, mexi um pouco, refiz os desenhos, porque tem agora outro formato. Mas você sabe que eu fiquei impressionado de rever esse texto, esse livro, porque esse livro tem todas as questões que eu trato em todos os meus livros, inclusive a questão da cultura popular. A história é sobre cultura popular. Olha que interessante! Eu não fiz isso conscientemente, de forma alguma, é uma história que surgiu na minha cabeça e eu escrevi, mas ela é uma história sobre o problema da cultura popular. Muito louco. Agora, não só por isso esse livro é importante, aliás, eu diria que, até, não é por isso. Ele é importante porque ele abriu realmente uma porta pra mim. Graças a esse livro, eu pude fazer os outros livros, porque era uma coisa concreta que eu tinha, então, eu podia mostrar que eu sabia escrever e sabia desenhar. Imediatamente, a própria Melhoramentos me pediu novos trabalhos, outras editoras se interessaram, tudo começou com esse livro. Eu sou muito grato a ele, é um livro muito importante, eu diria que é o livro mais importante meu. Mas, depois, tem: O Homem No Sótão, que é um livro que ganhou prêmios. Ah, eu queria contar uma história eu já contei uma vez, mas é raro eu contar essa história, só que pra mim foi muito importante. Quando eu estava no conflito total pra largar o emprego, um dia eu cheguei em casa de noite, e eu tinha pedido demissão e eles aumentaram o meu salário. Foi muito traumático pra mim, porque eu fiquei confuso com isso. Não era o que eu queria, mas aquilo complicou. E acontece que eu não podia largar, eu não podia receber o aumento e largar. Então, foi muito complexo, eu tive que fazer toda uma coisa, eu acabei não recebendo o aumento, porque o aumento vinha, eles falaram: “Nós vamos fazer um aumento bacana, mas daqui a tantos meses”. Esse período foi o período que eu fiquei louco, porque eu falei assim: “Se eu pegar, aí eu vou ficar preso aqui, eu não vou poder sair, eu vou ter que esperar um ano a mais pra sair”. E, ao mesmo tempo, tinha aquela possibilidade de uma situação melhor. Enfim, foi complicado. E um dia eu cheguei de noite péssimo, você vê que eu emagreci onze quilos. Pô, onze quilos não é fácil, eu não era gordo, eu não sou gordo e não era, era mais magro do que eu sou hoje. Eu cheguei em casa e a minha mulher não estava e nem os meus filhos. Estavam eu não sei aonde, eu não lembro mais, e daí eu cheguei em casa e fui ver televisão. Isso era tarde, já era umas dez horas da noite. Liguei a televisão e fui passando de canal em canal, e estava o Ziraldo sendo entrevistado, e foi uma excelente entrevista do Ziraldo por sinal, porque era uma entrevista longa, aquele programa do Rio de Janeiro, TVE, sei lá o quê. Pô, deram espaço, ele falou pra caramba, falou um monte de coisas muito interessantes, eu adorei a entrevista. E eu estava lá na minha. Estava, lá, sentado vendo o Ziraldo, aí, chega no fim da entrevista e a última pergunta foi o seguinte: “Vem cá, o que você me diz da nova literatura que está surgindo por aí?” Ele virou: “Olha, tem umas coisas legais, por exemplo, tem aquele menino que botou o peixe em cima da árvore”. Aí, eu “Pô, mas sou eu”. Aí, terminou o programa. O único livro que ele citou foi o meu, que era O Peixe Que Podia Cantar. Isso foi muito importante pra mim, porque deu força. Foi uma coisa vital. Eu já falei isso pra ele, inclusive ele ficou todo contente. O Ziraldo é uma figura, mas é uma grande figura, eu admiro muito o Ziraldo, não só o trabalho dele, mas a figura humana dele, com toda a complexidade que ele é, porque uma figura humana tem que ser complexa. É óbvio que ele é uma figura complexa, mas é fantástico, criativo, inteligente, corajoso, o cara tem muitas qualidades. E aquilo foi o sinal e foi muito importante. Esse sinal e o prêmio de O Homem No Sótão. Então, O Homem No Sótão, pra mim, é um livro que eu gosto. Eu escrevi com uns dezoito anos de idade. Depois eu mexi no texto, mas é a mesma história, só o final que eu mudei um pouco. É um autor se questionando a respeito do que é escrever. E é interessantíssimo, porque é o primeiro texto que eu escrevi pensando no público infantil, lá atrás, molecão ainda. Eu pensei: “Mas o que é escrever?” Então, tem uma série de questões que são muito importantes pra mim, questões éticas. Questões que pra mim são básicas, entendeu? Todo o meu trabalho e mesmo a minha vida pessoal. Eu acho que tem alguns valores éticos que você tem que tentar entender e tentar seguir, não é qualquer coisa. E O Homem No Sótão se questiona a respeito disso, os personagens dele questionam. Tinha um nome quando eu escrevi, que era Um Autor De Contos Para Crianças. Eu escrevi na segunda pessoa, eu escrevi tudo no “tu” porque a minha grande referência era O Tesouro Da Juventude, que era tudo em “tu”, segunda pessoa, e o livro do Bichsel também era, porque era tradução portuguesa. Então, pra mim os livros para criança na segunda pessoa. Olha só, eu tive que mudar tudo depois. Então, O Peixe Que Podia Cantar, sem dúvida, é um livro importante pra mim. O Homem No Sótão também. O Armazém Do Folclore, apesar de eu ter reunido as coisas antes no Meu Livro De Folclore, que é um livro, também, muito importante, eu fico na dúvida entre esses dois, mas eu acho que o Armazém Do Folclore é um livro mais maduro. Ali eu tive a calma e algum conhecimento de colocar toda a minha experiência nesse universo popular. Eu realmente entendia, fazendo esse livro, o que significava ilustrar pra um livro com material popular. Por exemplo, botei receitas culinárias, eu ampliei a minha visão do repertório que eu poderia trabalhar, foi muito importante. Então, os outros livros que podem, até, serem melhores ou não, isso não importa. Um outro livro que pra mim foi uma experiência muito rica foi o Lúcio Vira Bicho, o livro da Companhia das Letras. É um livro que eu fiquei três anos fazendo, então, me deu muto trabalho. Um livro que não tem desenhos, e a história é fascinante. Quando eu estava fazendo o mestrado, um autor que me chamou muito a atenção, e que eu acabei lendo tudo que tinha, pelo menos traduzido aqui, é o Mikhail Bakhtin, que é um autor extraordinário, pra quem quer conhecer cultura popular eu acho que ele é básico Aliás, tudo, porque o cara é um gênio, o cara deu tiro pra todo lado e com sabedoria em todos os tiros que ele deu. O cara é totalmente erudito, é uma pessoa totalmente especial. E numa das obras dele, ele falava muito no Asno de Ouro de Apuleio, ele citava como exemplo de trajetória do herói, etc e tal. Aí, eu peguei e comprei o livro, tinha editado pela Ediouro e depois comprei também uma tradução portuguesa desse livro, é escrito no ano 100 o Apuleio. E eu li e fiquei fascinado com o livro, além do mais, eu já tinha tido uma aulinha do Bakhtin. Então, o Bakhtin tinha colocado certos pontos importantes ali, que ele considera típicos de uma marca do discurso popular. É, então, coisas vistas de um ângulo estranho, a ficção, a fantasia como forma de experimentar a verdade, uma série de questões muito importantes, eu acho. E eu li aquilo e fiquei fascinado pelo livro. E aquilo ficou na minha cabeça. Eu nem tinha que ler o livro, na verdade, eu li porque eu quis, porque não era uma coisa que eu estava, eu estava estudando o Bakhtin. Aí, de repente, eu falei: “Pôxa, eu vou reescrever esse livro”. E o Lúcio, tanto que o autor chama-se Lucio Apoleio, e o meu livro chama Lúcio Vira Bicho. E o personagem do Asno De Ouro chama-se Lucio também, quer dizer, o Apoleio usou o próprio nome no personagem dele, porque é falado na primeira pessoa o Asno De Ouro. E é a história de um sujeito arrogante, jovem, e que se acha o máximo e que se transforma num burro, o Asno de Ouro. E aí, ele passa por uma série de experiências, só vocês lendo pra vocês verem que tipo de experiência que ele passa, todas que vocês possam imaginar e mais algumas, é muito legal. E o livro tem um caráter religioso, na verdade. No final, ele consegue se transformar em pessoa de novo, O Lucio do Apoleio, graças a fé que ele tinha em Ísis, é uma coisa religiosa, porque o Apoleio era uma pessoa religiosa e um mago, ele era considerado um mago. Ele foi acusado quando ele era velho de ter seduzido e casado com uma mulher rica e moça graças aos poderes mágicos dele, e ele fez a própria defesa, porque ele foi julgado, quase que enforcaram o cara, e ele fez uma brilhante defesa e conseguiu se safar. E essa defesa dele é um dos primeiros documentos jurídicos que existem. Muito interessante. Tem esse lado, também: além de tudo ele era bom de bico. Não só por ter conquistado a mulher, mas como por ter se defendido. Bom, o que eu fiz? Então, eu reescrevi à partir do Apoleio, eu reinventei toda a história. Mas com essa ideia de um jovem arrogante do tempo de hoje. Que acha qu pode fazer coisas, de moto. Eu tenho moto, então, eu conheço a motocicleta. Sei bem como é. Ele faz vestibular, não sabe se entrou ou não, e ele sai pra uma viagem pelo Vale do Paraíba, que é um lugar que eu conheço e, por razões loucas, porque tinha que ter isso, ele se transforma num cachorro e passa a ter experiências do arco da velha. Só que ele se transforma não através de um meio religioso, mas através de uma outra coisa lá, através de uma mulher, Alzira. E ele não consegue falar, porque ele é um cachorro. E ela é muda, e quando ele vai morar na casa dela, ele desistiu de ser gente, que ele não conseguiu se transformar em gente. Então, ele pensa assim: “Eu não sou gente, na verdade. Isso foi um delírio meu, eu sempre fui cachorro.” E ele se concentra em ser cachorro, totalmente. Mas na casa dela tem um livro do Asno de Ouro e ele começa a ler, porque ele tem momentos de tédio. Ser cachorro é chato, e ele de vez em quando começa a ler o livro e ela percebe que ele pega o livro e leva num cantinho e ela fala: “Pô, o que está acontecendo?” E ela é muda, os dois têm um problema com a voz. Ela por ser muda e ele por ser coisa, e eu não vou contar o livro, mas é bonito esse, é uma das coisas que eu tenho orgulho de ter escrito. É bem legal, porque ela tem uma razão por ela ter perdido a voz. Uma razão trágica. Então, esse livro é um livro que eu considero um livro legal, e que me deu muito trabalho, eu me coloquei muito nele. E tem o Pobre Corinthiano Careca. Eu sou uma pessoa muito vinculada aos meus livros, eu estou sendo até injusto em citar esses, porque cada livro meu, se eu for pensar bem, ele tem uma parte minha. Mas aconteceu o seguinte: o caso desse livro, só pra vocês terem uma ideia de como é que é a vida do escritor... Eu fui pra Blumenau e eu estava lá conversando com as crianças numa escola imensa, tinha um monte de gente, aquela criançada toda. Então, um menino levantou a mão e falou: “Ricardo...” Era um menino catarinense. Era loirinho, de óculos, eu nunca mais vou me esquecer, ele falou: “Eu tenho uma sugestão pro título de um futuro livro seu”. Eu falei: “Qual é a sugestão?” “O Meu Marido Careca”. Olhei pro cara e falei: “Mas esse cara está brincando.” Tudo bem, então, eu falei pra ele: “Eu achei boa a sua sugestão, eu vou pensar no seu caso.” Eu gostei, na verdade, eu achei: “Por que o cara falou isso?” Eu, até, hoje não entendi. Mas o Meu Marido Careca foi a sugestão que ele deu. Eu saí de lá e fiquei pensando: “Pô, eu vou escrever um livro e me colocar no ponto de vista da mulher desse cara” E eu imaginei uma coisa óbvia: o cara era cabeludo, perdeu o cabelo... mas a ideia não vingou. Isso foi cinco, seis anos antes e ficou aquilo na minha cabeça. Eu fiz uma anotação e ficou aquela ideia do Meu Marido Careca. Um dia eu estou de carro, aqui, em São Paulo, inverno, um dia muito frio, aqui, na [alameda] Gabriel Monteiro da Silva, já na esquina com a [avenida] Brasil, lá no fim da Gabriel Monteiro da Silva. Parei o carro no final e aí, aparece um menino com a camiseta do Corinthians, nariz, uma meleca de nariz. Um frio de rachar, você não via as perninhas, porque a camiseta era grande pra ele, parecia uma saia. Ele estava pedindo esmola. Eu olhei pro cara, falei: “Meu, que ferrado, coitado.” Dei lá, um dinheiro, uma coisa, assim, mas fiquei olhando. Ao mesmo tempo, o cara estava bem, eu senti que ele estava, tinha força aquele menino, apesar da situação dele estar dramática. E pensei comigo: “Pô, esse cara...” Eu me emociono com coisas de pobreza, uma coisa que, eu não engulo. Mas, enfim, eu saí pensando assim: “Pô, esse cara só pode ter essa energia porque é corinthiano.” Aí, juntei tudo e fiz o Pobre Corinthiano Careca.
P/1 – Então, Ricardo, você contou do corinthiano, eu queria que você falasse um pouquinho sobre os seus livros de poesia, que você tem muitos livros de poesia, você sempre fez poesia?
R – A poesia vem muito do tempo das músicas, de fazendo as músicas. E, também, do meu pai, ele gostava de poesia. E na minha infância, muita vezes, o meu pai, pegava os filhos e fazia uns jograis. Pegava uns livros de poesia que ele tinha, pegava um poema, dividia, então: “Oh, o Ricardo fala isso, o João fala isso, o Alberto fala isso.” Em geral, eram esses três irmãos, porque os dois irmãos são mais velhos, o Luiz e a Regina não estavam junto com a gente, eles já estavam numa outra etapa da vida. E aquilo foi muito gostoso, a gente fez muito isso. Trovas populares do Afrânio Peixoto, a gente recitava e gravava, fazia umas brincadeiras. E, também, o meu pai tinha os discos daquela gravadora A Festa, e tinham vários jograis de São Paulo, era maravilhoso, com Armando Bógus, Rubens de Falco, eram uns atores muito bons. E essa A Festa, acho que era A Festa, publicou, por exemplo, discos do Carlos Drummond de Andrade recitando os seus poemas, o Manuel Bandeira, e meu pai ouvia e eu ouvia também, a gente ouvia lá em casa isso. Eu ficava fascinado com isso. Dos poemas, eu lembro o Caso do Vestido, por exemplo, do Carlos Drummond de Andrade, uma coisa maravilhosa, inesquecível na voz dele. Nossa, era lindo, era espetacular, e os jograis de São Paulo também. Então, poesia é uma coisa que eu ouvia desde criança, eu estava acostumado a ouvir em casa. E tudo isso me marcou, obviamente. Então, quando eu fui fazer os textos, quando eu comecei a mexer com poesia, já publicando livros, veio um pouco dessa experiência, tanto de fazer letra de música como daquelas quadras populares lá de trás, sempre gostei de quadras. Tanto, que nos meus livros de folclore, eu adoro essa maneira de falar, tanto que as adivinhas, por exemplo, que eu uso, todas elas eu recrio, eu pego o mote da adivinha que é o mote popular, e eu transformo numa quadra, porque eu acho que aquilo é muito mais fácil de decorar. É uma pergunta só, e eu transformo numa quadra, na verdade, com versos de sete sílabas. Porque aquilo é que faz memorizar, se não você não consegue memorizar a adivinha, e eu acho importante que seja memorizada. Então, é isso. Eu considero o meu primeiro livro de poesia o Dezenove Poemas Desengonçados, apesar de eu ter publicado vários poemas antes. Mas eram livrinhos pequenos, soltos. Mas naquele livro eu juntei uma série de coisas que eu considero o meu primeiro livro de poemas pra crianças. Depois, eu fiz vários outros.
P/1 – Você toca o quê? Violão?
R – Eu toco piano e violão. Já houve uma mescla, é um livro não que não é pra uma criança pequena, mas tem alguns poemas que remetem um pouco mais pra infância, e outros pra um jovem leitor. Eu lancei um livro chamado Feito bala perdida, esses poemas não pra crianças. E tem umas letras de música também, pouca, mas tem, porque letra de música é difícil segurar sozinha, é difícil separar, porque eu lia ouvindo a música na minha cabeça, então, pra mim segurava, mas depois eu percebi que não funcionava. As outras pessoas liam sem a música não dava certo, mas algumas seguraram, então, eu mantive.
P/1 – Ricardo, então, pra quem vai assistir depois essa entrevista e que não entende bem essa relação autor, editora, como é que é no seu caso a sua relação com os editores?
R – A relação é boa, eu acho. Eu sempre me dei bem com os editores, eu sou uma pessoa que trabalha com facilidade. Eu sou uma pessoa meio fechada. A editora nunca sabe o que eu estou fazendo, eu não digo pra eles, nunca houve uma relação comigo entre eu e a editora dela pedir. Não é uma postura intelectual, um princípio, não é isso, eu não sei trabalhar dessa forma. Eu não sei bem o que eu vou fazer, na verdade, antes de eu fazer. O meu trabalho é muito intuitivo, tem um lado que eu faço e eu nunca sei como vai terminar, eu não sei nada. Então, eu não trabalho dessa forma, eu trabalho em casa. Eu prefiro trabalhar dessa forma, correndo o risco de, de repente, não aceitarem. Então, eu tenho uma relação muito boa. Eu levo um trabalho meio fechado, mas gosto da leitura crítica que é feita, surgem sugestões que eu acato quando eu acho que vale a pena. Quando não, não acato.
P/1 – Ricardo, você está fazendo há 28 anos, já, desde o seu primeiro livro. Então, você já tem uma geração de leitores aí.
R – Louco isso.
P/1 – E esses retornos? Você podia contar alguma coisa da sua relação com os seus leitores com o passar do tempo?
R – Outro dia eu participei de um encontro aqui no Sesc, eu fiz uma palestra sobre cultura popular, aí veio uma professora, que eles vieram aqui com o projeto Vagalume, eles trouxeram professores do Acre, do Maranhão. Era do Maranhão essa mullher, uma simpatia de pessoa, ela veio conversar comigo. Ela veio me agradecer, ela me abraçou e falou: “Olha, eu adoro o seu trabalho”. E ela me contou o seguinte: que ela alfabetizou o marido dela com o meu livro. O que você quer mais que isso? E a criança... é fantástico, eu não saberia te reproduzir o que é. Mas há a conversa e, de repente, as perguntas que surgem, e a empatia que se estabelece. Eu me dou bem com as crianças quando eu vou conversar, imediatamente eles têm uma coisa de confiança. Então, eles falam, conversam. E você vê que isso é o que me faz, também, prestar muita atenção, por isso que eu fui voltar a estudar e tal. Pra ter melhores argumentos, me preparar melhor, porque pra mim a literatura foi uma coisa muito importante. Eu sempre li, desde criança, eu tive uma vida, joguei bola, eu fiz de tudo, mas eu li livros importantes pra mim como pessoa. John Steinbeck, por exemplo, autores que me marcaram, o Franz Kafka, autores que me pertubaram. Que eu lia aquilo lá e falava “O que é o mundo? O que é a vida? O que sou eu?” Me fizeram refletir sobre eu mesmo e me ajudaram a me construir um pouco como pessoa, dentro dos conflitos que a gente tem. Eu acho que a literatura é um instrumento mesmo que ajuda a gente a compreender melhor a gente e esse caos que é a vida, que são as outras pessoas. Não tem nada a ver com autoajuda isso que eu estou falando, mas com vida mesmo, com existência. Você lê um poema e o poema te traz uma coisa que, de repente, faz, não aprender, mas compartilhar uma dúvida. Compartilhar uma angústia, quer dizer, saber, também, que aquele outro cara também, acha que é difícil, também, acha que a coisa é muito complexa, que a coisa é imensa, muito maior do que nós podemos dar conta. É uma riqueza isso. Isso a literatura pode trazer e traz, tanto a prosa como a poesia. E eu tento muito quando eu converso com as crianças. E, também, quando eu dou palestra pra professores, tento transmitir isso a eles. Falar: “Pô, isso aqui não é pra ler e tirar nota dez. Não é ler pra fazer exercício escolar. Não tem nada a ver com escola, na verdade, a literatura. Literatura é uma maneira de tentar interpretar a vida e o mundo. É uma das maneiras que o homem inventou pra interpretar a vida e o mundo.” Então, quando você tem contato com um escritor, se ele estiver chato, fecha o livro, esquece, não bateu. Mas se bater, pode ser que te ajude, pode ser que faça você ficar mais forte, pode ser que faça você entender melhor a vida. Não é entender, é conviver melhor com a vida, acho melhor que entender é conviver melhor com você mesmo, conviver melhor com as dificuldades e com o espanto que é viver.
P/1 – Você rodou o Brasil dando palestras...
R – Isso é uma coisa que, é uma das coisas mais gratificantes. Do fato de eu, logo desde o início já me convidaram pra ir pra lá e pra cá em viagens. Adotam o livro ou, então, a Secretaria de Educação faz lá um evento qualquer e te chama pra dar uma palestra ou coisa assim. Eu era um paulistano, aqui, em São Paulo. E, de repente, me vi em Estados que eu jamais iria. Roraima, por exemplo, e ampliou. Ampliou a minha visão e as minhas preocupações a respeito do Brasil. Isso me motivou muito a continuar fazendo a minha pesquisa de contos populares, porque eu vejo claramente que uma boa parte dos brasileiros vem de casas muito pobres. Acho que 80% da população brasileira é de origem muito humilde, e uma boa parte filhos de analfabetos, senão netos de analfabetos. Quando essa pessoa tem sorte de ir pra uma escola, a escola, de certa maneira, diz pra ela o seguinte: “Olha, você é um nada, porque os seus pais são analfabetos, entendeu? Os seus pais não sabem geografia, não sabem história, não sabem matemática, não sabem nada.” E isso que a escola tem é tudo. Não acho que é proposital, mas é uma coisa muito excludente, a criança é levada a ter vergonha dos seus pais nessa conjuntura, porque o pai não sabe nada, nem pode ensinar, nem ajudar em nada do que ele está estudando ali. Então, se ignora uma cultura popular. Aquele projeto da Fura-Bolo. Que hoje em dia, são livros publicados pela Moderna, aquilo foi a gota d’água pra eu compreender a importância que tem esses livros chegarem na mão dessas crianças. Um conto popular chegar na mão de uma criança nessa situação, porque a criança lê o livro e fala assim: “Pô, mas o meu pai conhece isso aqui, o meu avô, a minha avó conta uma história parecida.” Então, a criança vai pra casa, se a professora estiver preparada, a professora fala assim: “Poxa, então vai lá e pesquisa com o seu pai, se ele não sabe escrever, não tem problema, você escreve. Pede pra sua avó contar uma história e você traz aqui pra gente. Ou uma adivinha ou um trava-língua ou um ditado popular.” Porque a cultura popular é uma das coisas riquíssimas e viva no Brasil. Samba, de onde que vem? É da cultura popular. Pô, se você pegar os grandes artistas brasileiros, ou parte deles, a marca importante do trabalho é popular. Guimarães Rosa, eu falo artistas desse porte, Guimarães Rosa, Mario de Andrade, um monte, o Tom Jobim, Villa-Lobos, se você pegar a obra desses caras, na parte que o popular entra como uma coisa significativa é importantíssima. Eles não seriam quem eles foram, ou seriam outros caras, se não fosse a cultura popular brasileira, que está lá empregnando, eles estão empregnados por ela. Então, a escola desprezar isso ou simplesmente não saber lidar com isso é um erro, principalmente considerando que boa parte da população brasileira vem dessa cultura, que é heterogênea, que é multifacetada. Então, eu percebi que o meu livro, esses livros que eu tenho feito, e acho que outros caras que estão fazendo, de certa maneira, ajuda a fazer um elo entre essas pessoas e a sua cultura. Eu tenho uma história que eu acho fantástica, que é verdadeira, que é o seguinte: eu vi a palestra e li o livro do cara, inclusive, o cara chama Diógenes da Cunha Lima. Quando ele era jovem, ele foi uma espécie de office-boy do Luís da Câmara Cascudo. Então, ele tinha uns quinze anos e o Câmara Cascudo era já velhinho, era o sábio de Natal e ele fala assim: “Eu quero trabalhar com esse sábio.” E ele pediu lá de graça, assim: “Olha, eu posso carregar livro, ir no correio.” O Câmara Cascudo: “Então fica aí, moleque.” E um dia, o Câmara Cascudo não estava em casa, e ele estava, lá, arrumando uns livros, e a empregada doméstica estava, lá, varrendo. Era analfabeta, a mulher que trabalhava na casa do Câmara Cascudo há cinquenta anos, e aí, o moleque, o Diógenes da Cunha Lima quando era moleque, chegou pra empregada e falou assim: “Vem cá, fulana, você acha que o Câmara Cascudo é sábio mesmo como dizem?” Ela estava varrendo, ela parou e falou: “É nada, estuda a noite inteirinha.” Mas, por que ela disse isso? Porque na concepção de uma pessoa analfabeta, quem estuda não sabe. Quem sabe, já sabe, é um conhecimento adquirido pela experiência prática ao longo da vida. Você já imaginou um pescador experiente ir pegar um livro pra olhar? Ele não olha nada, ele sabe, ele sabe o tempo, ele sabe se é a hora de ir pescar ou não, ele sabe que peixe ele pescou. É um conhecimento construído numa vida, é uma concepção de conhecimento completamente diferente da de um moleque de dez anos pegar um livro e aprender tudo a respeito de gramática, por exemplo. Não tem nada a ver uma coisa com outra, é importante que a escola saiba que essas pessoas vêm de uma outra tradição. É, tem a questão religiosa, essas pessoas são empregnadas pela religião. Se você ignora isso, já é uma coisa meio excludente pros caras, porque o cara fala: “Eu tenho uma explicação caseira que é uma, de repente, aqui, não se fala no assunto.” Então eu acho que uma escola não deveria ser religiosa, de forma alguma, não é isso que eu estou defendendo, mas a escola deveria trazer as inquietações da religião, as perguntas que as religiões fazem, porque isso, de alguma forma, aproximaria, independente de quem tem religião e quem não tem. Aí, existe a possibilidade, se vocês acreditam, se você acredita nisso ou naquilo, tudo bem, mas a discussão é essa, a questão é que, realmente, têm coisas que são complexas.
P/1 – Ricardo, você está falando do sábio, eu queria que você comentasse um pouquinho do seu livro do Sábio ao Contrário.
R – Então, o Sábio ao Contrário eu escrevi quando eu estava fazendo doutorado. Eu estava andando ali na Santo Amaro e tinha, lá “podólogo”. Eu olhei “podólogo”, e falei: “Pô, se fosse um peidólogo. O que esse peidólogo faria? Como que seria?” Aí, voltei pra casa e falei: “Pô, interessante isso aqui, do peidólogo.” Então, aí, como eu estava mergulhado até as tampas de estudo, foi uma brincadeira. Qual é o meu método de trabalho? Eu estou fazendo um peidólogo, se for um estudioso de peidos ele vai fazer o quê? Tanto que ele usa um método lá, que é um método que dá pra você fazer um estudo, na verdade. Ele faz o comentário. O comentário, a análise e a interpretação. Quando você vai ter aula de teoria literária é isso que o cara vai fazer, você vai pegar um texto, você vai fazer o comentário, quer dizer, as informações em torno desse texto, contextualizar ele o máximo possível, ver no dicionário palavras que você não sabe, etc e tal; analisar esse material e, depois, fazer a sua interpretação. É um método, é o método do peidólogo. Eu já fui em uma escola no Rio Grande do Sul, numa senhora de uma escola, numa cidadinha minúscula de vinte mil habitantes, uma das escolas mais lindas que eu já fui na minha vida, que eu esqueço o nome da cidade, e as crianças não só leram o Sábio ao Contrário como construíram os equipamentos. Tinha uma mesa cheia de peidimetro, peidômetro, punzífero e não sei o que mais, mas uns troços complicados, com umas bombas. Eu tirei fotografia do lado dos equipamentos dos peidólogos lá.
P/1 – Ricardo, nós estamos chegando no fim da entrevista, então, eu queria te perguntar, como você vê, você que participa desde 1980 desse momento forte da nossa literatura infanto-juvenil que chega a partir dos anos 70. Como é que você vê, tanto dentro quanto fora o que é produzido nesse período?
R – O Brasil é um país muito desigual, extraordinariamente desigual. E eu acho que a literatura infantil pode ocupar um papel muito interessante, como um espaço mediador entre uma certa cultura erudita ou elitista científica e a maioria das pessoas. Porque desde o meu início, uma coisa que me chocou, logo de cara, quando eu comecei a escrever, quando eu fui convidado pra ir numa biblioteca em Sapopemba, era um programa desses da prefeitura de encontro leitores e autores, eu me lembro que fui de Kombi lá em Sapopemba, e quando cheguei lá na biblioteca, eram adultos que estavam lá. Aí, eu falei: “Não, eu acho que erraram de autor?” Os filhos estavam brincando, mas os adultos queriam conversar comigo, eu falei: “Pô, mas o que é isso?” Isso é o Brasil. Então, se você detém o poder de ter uma linguagem acessível, você tem uma responsabilidade nesse país. Porque a maioria dessas pessoas são leitores, têm interesses. Eu lembro, também, na Pirelli, por exemplo, tinha um ascensorista chamado Aldo, e ele não tinha um braço, então, essas pessoas que sofriam acidente de trabalho, em geral, viravam ascensorista, ou trabalhos que eles podiam trabalhar. Eram ex-operários da fábrica. E ele era um cara inteligente, e eu me lembro que ele vivia desesperado de manhã, ele com o jornal, e ele queria da gente que chegava que contassem o jornal pra ele, era muito difícil pra ele ler o jornal. Na verdade, pra ele compreender. Ele estava preocupado com o salário dele, em geral era a grande preocupação dele, era grana. Naquela época era de inflação, e ele queria saber o que estava acontecendo. Ele sabia ler, mas ele tinha dificuldades diante da linguagem que o jornal trazia. A maioria dos brasileiros não entende o que o cara está falando ali, não compreende que o cara usa uma estatística, traz uns termos. Então, eu vejo a literatura infantil não só como uma expressão da arte ou coisa desse tipo, mas como uma arte popular mesmo, e que pode ajudar a formar pessoas a pensarem melhor, a serem mais críticas. E ter contato com a poesia e com a ficção, é lógico. Mas eu vejo muito por aí. Então, eu me interesso quando eu olho uma obra que está sendo publicada. Se está publicando muita coisa hoje em dia, tem muita coisa boa, e ilustradores, também, muito bons, produção gráfica, uma conjunção muito legal. Mas eu me interesso por essas obras que têm essa consciência. Que não são tão egocêntricas. Que não estão voltadas pro seu próprio umbigo e conta mais uma aventura individualista ou coisa do gênero. Isso não me interessa, pra falar a verdade, pode estar muito bem produzida, pode ser pela melhor editora que, pra mim, é nada, não importa. Eu acho que a gente vive num barco, e estamos todos no mesmo barco. E qualquer trabalho que você faça, do Museu da Pessoa a estudar História, a fazer literatura infantil ou literatura adulta, o que for, de alguma forma tem que estar participando de uma situação, porque o barco é um só e ele afunda ou não, e vai todo mundo, do alienado ao não alienado. Vai pro espaço. E quem tem algum conhecimento tem uma responsabilidade. Sem a menor dúvida, eu me sinto responsável e tento fazer a minha parte.
P/1 – Então, eu queria terminar perguntando, essa pergunta clássica. Que a gente termina a entrevista. O que você achou de contar a sua história pro Museu da Pessoa?
R – Gostei. De repente, me vi aqui lembrando de coisas que, de vez em quando, aparecem na minha cabeça e desaparecem. Mas, bom, gostei. Agradeço esse convite. Foi bacana. Eu espero que isso seja útil pra alguém.
P/1 – Ah, pra muita gente, pra muitos alunos e professores.
R – Tomara!
P/1 – Então, muito obrigado, Ricardo.
R – Obrigado.
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