Programa Conte Sua História
Depoimento de Patrícia Ferreira Miranda
Entrevistada por Carolina Margiotte e Julia Thon
São Paulo, 28/02/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV733_Patrícia Ferreira Miranda
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – P...Continuar leitura
Programa Conte Sua História
Depoimento de Patrícia Ferreira Miranda
Entrevistada por Carolina Margiotte e Julia Thon
São Paulo, 28/02/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV733_Patrícia Ferreira Miranda
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Patrícia, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui hoje. E, para começar, o seu nome completo.
R – Patrícia Ferreira Miranda.
P/1 – O local e a data do seu nascimento.
R – São Paulo, 11 de janeiro de 1972.
P/1 – Patrícia, você sabe por que os seus pais lhe deram esse nome: Patrícia?
R – Não sei. Sinceramente, não sei. Não sei mesmo, porque eu não fui criada pela minha mãe, eu fui criada pela minha avó materna, então eu não sei por que o meu nome é Patrícia.
P/1 – E os nomes dos seus pais?
R – Da minha mãe biológica, Cilene Ferreira Miranda. O pai, ele é pai da minha irmã, porque eu tenho dois irmãos por parte de mãe, então foi o pai da minha irmã quem me registrou - é José Silvestre Miranda.
P/1 – E o que você sabe sobre a história da sua mãe?
R – Eu conheci minha mãe, e tudo. Minha mãe só não criou a gente, mas a gente conviveu com ela. E a minha mãe, ela deu muito trabalho, ela era viciada, era alcoólatra, morreu muito nova, morreu com quarenta e três anos, há dezesseis anos - uma enxurrada de chuva a levou. E assim... Mas ela era uma mulher guerreira, bonita, muito bonita minha mãe era. Mas era louca, louca, louca. Ela gostava muito de sair, de curtir a vida. Ela não queria ter muita responsabilidade, ela veio a ter responsabilidade, um pouco, quando ela teve a minha irmã mais nova. Mas aí ela já estava mais… Bem viciada mesmo, bem no vício da bebida mesmo, não ligava muito, vivia bêbada. Mas assim... A gente teve convivência com ela.
P/1 – E você chegou a conhecer o seu pai?
R – Não, não sei o nome do meu pai. O meu pai mesmo, eu não sei o nome. Ela nunca disse e a família também nunca disse. Nunca falou do meu pai.
P/1 – E além de você, sua mãe teve...?
R – Tem eu, tem a Kátia, mais velha, o Wesley… Não, a Kátia, eu, aí vem o Wesley e vem a Karina, que é vinte anos mais nova que a gente.
P/1 – E qual é a lembrança que você tem sua junto com a sua mãe?
R – A última lembrança da minha mãe... Eu lembro de que ela fez um almoço no aniversário dela, chamou a gente para ir. Aí, fui eu, o meu irmão, eu não lembro se a minha irmã mais velha foi. E ela estava já meio altinha, eu até falei para ela: “Eh, mãe, a senhora está de novo alta, e a Karina?” A Karina tinha uns sete, seis anos. Aí, uma frase que eu lembro que ela disse, que ela falou assim, que bêbado rico morria em cima do tapete e pobre morria num córrego. E foi a última vez que eu vi minha mãe. Aí, eu só fiquei sabendo da notícia que a chuva a tinha levado. Eu sempre digo que ela… A boca fala o que quer, a gente mesmo põe a sentença na vida da gente, não é? Porque as palavras têm poder. Então, a gente tem que pensar muito bem no que fala. Mas a minha mãe não queria ajuda. Minhas tias - irmãs dela - a internavam e ela fugia. A gente tentava ajudar, mas ela mesma não queria ajuda. E a minha avó já tinha falecido. Então, isso para ela também era a morte. Mas a minha avó sempre ensinou a gente a respeitá-la, sempre! Sempre a gente respeitou os momentos dela de loucura, tudo, a gente sempre respeitou. Eu sempre a ajudei financeiramente, o que eu podia fazer, mas ela não queria ajuda, então…
P/1 – Se você se sentir confortável para contar para a gente como foi receber a notícia, no dia do falecimento da sua mãe…
R – Foi… Vai até fazer aniversário agora, Carnaval. Acho que até já fez - dia oito de fevereiro, se eu não me engano - porque foi no Carnaval, foi na sexta-feira de carnaval. Eu estava em casa, o telefone tocou, aí uma mulher perguntando se eu era filha da Cilene, eu falei que era. Ela falou que eu precisava ir até o bairro onde ela morava. Aí eu falei que não dava, porque eu tinha… Como eu tenho o William, e estava com o Igor bebê, que é o meu filho mais novo, ela falou: “Mas você tem que vir urgente”. Aí eu perguntei: “Por quê?” “A gente não pode falar por telefone”. “Você tem que falar porque não tem como eu sair daqui e deixar os meus dois filhos”. “Sua mãe foi levada pela enxurrada da chuva e a sua irmã está sozinha em casa”. Minha irmã tinha sete anos, oito anos. Aí, eu fui na vizinha, deixei o William e levei o Igor, porque o Igor era bebezinho. E fui. Eram umas oito horas da noite, fui para o Jardim Jacira. E eu moro no M’Boi Mirim, era bem distante. Fui, aí eu liguei para uma tia - que é irmã dela - primeiro. Aí, essa tia veio e levou... A gente foi para lá. Aí, chegou lá, ela estava no lugar em que ela faleceu. Tinha um córrego e o corpo dela estava do outro lado. Conseguiram achar porque um homem foi mexer nas coisas dele lá e o corpo dela ficou agarrado nos entulhos, só por isso que achou. Ah, foi uma sensação horrível, não é? Porque é triste, porque a gente avisava, avisava a ela e… Mas aí, numa parte eu agradeço a Deus, porque a minha irmã não estava junto com ela. Senão, teriam ido as duas. Porque ela não desgrudava desta minha irmã, ela podia ter todos os defeitos, mas a minha irmã estava sempre com ela, sempre junto. Ela podia estar bêbada, ela podia estar sã, ela podia estar louca, sempre com a Karina.
P/1 – E como foi depois para a Karina? Quem a assumiu?
R – Então... Aí a Karina... Foi uma briga feia porque eu queria, a irmã mais velha queria, porque já tinha meninas e eu só tinha menino. O meu irmão sempre foi neutro. Aí, a Karina acabou ficando comigo. Eu que criei a Karina, porque eles não queriam deixar a Karina comigo por causa do William, porque o William começou a
ficar especial. Porque o William não nasceu especial. E aí, ela ficou comigo, porque eu era casada, aí eu conversei com o meu marido, ele aceitou e a Karina ficou comigo. Eu criei a Karina, a Karina... Tem três anos que ela saiu da minha casa. Mas não foi fácil.
P/1 – Patrícia, a gente já começou assim, já super com uma história, você se importa se eu voltar para a sua infância?
R – Não.
P/1 – Tudo bem? Porque a gente já começou super avançado no sinal. Mas não tem problema nenhum, porque a nossa memória é assim mesmo, vai e vem, vai e vem. Eu queria que você falasse um pouco da sua infância, como é que era a convivência em casa? Quem morava nessa casa?
R – A infância assim... Como a minha mãe foi embora e minha mãe sumiu... Pelo que eu lembro assim, das histórias, minha mãe sumiu, deixou a gente com a minha avó - eu, meu irmão e minha irmã - Kátia, Wesley - a minha avó assumiu a gente. A minha avó foi no Conselho Tutelar, pegou a nossa guarda e cuidou da gente. Quando eu estava acho que com uns dez, doze anos, a minha mãe apareceu. Do nada, ela apareceu, toda bonitona, chique. E aí a minha avó falou: “É a sua mãe”. Tudo, não é? E a gente morava no quintal. Tinha uma casa, moravam as minhas tias, moravam duas tias - tia Sineide e a tia Selma, ou a tia Siná, se eu não me engano - e a ‘primaiada’. A gente apanhava muito porque a gente aprontava muito, eu era terrível. Eu não era gente (risos). Mas a minha avó criou a gente na igreja evangélica presbiteriana e fazia… Ela não trabalhava, ela não sabia ler, escrever, mas era uma guerreira, lavava roupa para fora, a gente passou muita dificuldade - fome não - mas dificuldade a gente passou muito. Mas ela sempre ensinou o caminho certo, ela sempre falava para a gente: “Eu não quero nunca que venha a polícia aqui na porta da minha casa para falar que vocês fizeram coisa errada, que eu nunca vou lá na
delegacia tirar vocês”. Então, a gente cresceu nisso - não entrar em coisa errada. E era bagunça com ao primos. A minha tia Sineide era muito rigorosa. Aí, às vezes, a minha avó viajava para ver a minha bisavó e a gente apanhava, porque a gente aprontava mesmo, coisa de criança mesmo. A gente gostava de sair para a rua, a minha avó não deixava, ela prendia muito a gente. Então foi uma infância… Foi legal, assim... Eu acredito que tive mais infância do que hoje essas crianças têm. Tinha uma moto grande, que
a gente montava nesta moto, descia a rua de barro que tinha,
a gente era terrível. Terrível mesmo! E os primos... Aí, a gente foi crescendo e foi se afastando, não é? Cada um… Minha avó faleceu do coração, também, a gente mudou dessa vila em que a gente morava e a minha avó, com as angústias, acho que ela foi guardando e faleceu.
P/1 – E, Patrícia, você tem
a lembrança desse dia em que a sua mãe saiu de casa?
R – Não. não tenho. não tenho mesmo. A gente era muito pequeno. Pelas histórias que eu conto, a minha irmã mais velha tinha acho que três anos, eu… Três ou quatro anos, eu acho, se não me engano, e eu também… Sou três anos mais nova, meu irmão era bebê. Ela saiu assim, como passear, entendeu? E sumiu no mundo. Depois de muitos anos é que ela foi dando notícia, que estava no Rio de Janeiro. Na época, acho que ela estava casada. Mas a bebida estragou a minha mãe, a convivência dela, a bebida; foi o vício que estragou muito a minha mãe.
P/1 – Mas na casa da sua avó, como é que era o dia a dia? Como é que era falado sobre a figura da sua mãe? O que a sua avó contava sobre a ausência dela?
R – A minha avó evitava um pouco de falar. Quando as minhas tias falavam mal da minha mãe... Ela nunca falou mal da minha mãe para a gente, não é? Ela sempre falava que a gente tinha que respeitar. Ela procurava a minha mãe onde estava. Aí, uma vez, a minha mãe mandou uma carta e disse onde estava, porque como tinha que assinar documento da gente, tudo, tinha que ter um responsável... Mas ela nunca falou mal da minha mãe para a gente. É que a minha mãe queria viver a vida dela, solta, louca por aí.
P/1 – E essa cabeça de criança, como é que era viver essa ausência da sua mãe? Como é que era o dia a dia com os colegas?
R – Eu acho que eu nem sentia muito, porque a minha avó era a mãe mesmo, a avó fazia muito pela gente. Tanto que os meus tios tinham ciúmes da gente com a minha avó. Ela tinha seis filhos. E ver ela colocar os três netos dentro de casa, então a gente era o xodó dela. Então, ela cuidou muito bem da gente. Muito. Eu sinto muito a falta da minha avó.
P/1 – Qual o nome dela?
R – Ambrósia.
P/1 – E o que você sabe sobre a história da dona Ambrósia?
R – Ah, dona Ambrósia, eu sei que ela tinha… Ela era de Minas Gerais, não é? E a mãe dela… O pai dela era… Como se fala? Ele fazia cachaça e ela era a única das irmãs que não se envolvia na bagunça, nas festas das irmãs, tudo. As irmãs saíam para namorar e ela gostava de ficar dentro da cozinha com as outras mulheres. E ela casou com o meu avô. Meu avô faleceu... Ela sofreu muito, porque o meu avô, quando separou dela, fez ela pagar a casa em que morava, para ele não tomar a casa dela. Ela pagou em dez promissórias de cem cruzeiros para ele, ela lavava roupa e pagava para não perder a casa para ele. E criando a gente. Ela era uma mulher de ferro. Ela não tinha hoje o dinheiro para o pão, mas ela falava assim: “Amanhã, Deus proverá”. Hoje eu sou o que eu sou por causa da minha avó. Ela era uma guerreira mesmo.
P/1 – Se precisar de lencinho, pode ficar à vontade. E água também.
R – Está bom.
P/1 – E você sabe por que ela saiu de Minas e veio para São Paulo?
R – As histórias da minha avó, assim... Por que veio, eu não sei muito não. Eu sei que ela veio - vieram ela e uma tia, que era irmã dela. Essa tia minha é viva ainda, deve estar com uns cem anos, quase. A minha avó morreu com setenta e três anos, a minha bisavó morreu com cento e quinze, lúcida. E essa tia minha deve estar beirando os cem. Se a minha avó fosse viva, ela estaria com uns noventa e dois, noventa e três, se eu não me engano. Aí, ela veio para cá para São Paulo viver a vida dela. Ela casou com o meu avô, o meu avô não era muito bom para ela, pelas histórias que a gente… Tanto que ela disse que, quando eu nasci, ele queria me jogar da janela do hospital, ele não aceitava que a minha mãe me tivesse, ele era bem rude, aqueles homens ogro, mas ela era guerreira.
P/1 – Queria que você a descrevesse. Como ela era.
R – Ela era morena, parecia uma índia, morena, vivia de coque, era morena mais clara assim do que eu, cabelo bem liso e tinha umas mechas brancas no cabelo. Vivia de coque, a gente falava para ela… E nunca usou calça comprida. Nunca usou, nunca. Ela falava assim: “Não…”. Uma vez eu falei: “Mãe, corta o cabelo…” - a gente chamava ela de mãe: “Mãe, corta o cabelo, a senhora está nova, dá para arrumar um velho”. “Deus me livre”. “A gente vai comprar umas calças para a senhora ficar toda apertadinha”. Ela dava bronca na gente. Eu lembro de que em um aniversário dela
/eu falei assim… Eu dei um pijama para ela, ela falou que não ia usar porque se Jesus viesse, ela ia estar de calça comprida e Deus não ia levá-la. Ela morreu tomando banho, nua. Tomando banho, no chuveiro, tomando banho, teve um enfarto. E ela era bem rígida, essa parte de igreja assim, ela era bem… Não deixava a gente ir para baile. Quando eu ia para os bailes, ela me buscava (risos)... Os bailes da escola. Eu dei trabalho, eu e o meu irmão demos trabalho para a minha mãe, para a minha avó. Hoje, ela ia ficar louca com os netos, com os bisnetos, ela ia endoidar. Eu tenho muitas saudades dela.
P/1 – E você chegou a conhecer o seu avô?
R – Sim, conheci.
P/1 – Qual o nome dele?
R – Era Fioti. Mas eu não tive muito contato com ele, não. Porque quando eu cresci ela já estava separada dele. Mas eu o conheci. Fui no enterro dele, tudo. Porque, antigamente, os enterros eram em casa, não é? A gente tinha que ir. Mas ele não era muito bom, não. Não tinha muito contato com ele, não. Eu ia assim, porque a gente foi criada... Educação, não é? Bênção vô, bênção tia, até hoje a gente tem que dar benção para os tios. Então, por isso.
P/1 – E qual era o bairro em que vocês moravam?
R – No Parque Santo Antônio. Eu moro próximo ainda. Às vezes eu vou lá na casa das amigas, eu vejo minha ex-casa lá e eu lembro. Falo: “Gente, a gente aprontava aqui, não é?” Porque era terra, tudo. A gente teve uma infância boa, com todas as dificuldades a gente teve uma infância boa.
P/1 – Como era essa casa? Descreva-a para mim.
R – A casa, entrando, tinha o terreno, tinha a garagem, aí tinha a casa da frente, com três
cômodos, que foi uma tia minha quem construiu. E tinha a casa dos fundos, também com três cômodos. O chão era de encerrar - toda sexta-feira a gente tinha que fazer faxina, era lei. Era chão rústico, não é? Mas o sonho dela era construir em cima, fazer uma casa bonita, com jardim. Tinha os jardins dela, pé de figo, pé de acerola, ela tinha. Mas aí, depois, ela começou a desgostar e o meu irmão... Juntaram com o meu irmão, venderam e compraram um apartamento na Cohab Adventista. Aí, ela foi desgostando, acho que ela não queria morar em apartamento. Aí, lá, ela faleceu.
P/1 – E como ainda nessa infância, nessa casa, como que vocês se organizavam assim, nos quartos?
R – Dormia todo mundo num quarto só. Porque ainda tinham as tias que moravam junto, não é? Os primos. Era tudo num quarto só. Todo mundo. E é muito engraçado que assim... Eu dormia com o meu irmão, eu sempre fui mais grudada com o meu irmão. Com a minha irmã, a gente tinha… Até hoje a gente tem umas briguinhas. E eu e o meu irmão, a gente fazia xixi na cama… Fizemos xixi na cama até os doze anos. Aí, para a gente parar sabe o que ela fazia? Ela pegava o colchão de manhã e punha para toda a vizinhança ver (risos). Aí, a gente falava que a desculpa dela era que a gente sonhava que estava fazendo; preguiça de ir ao banheiro à noite (risos). Fizemos... Nossa, que vergonha todo mundo ver isso. Pois é, fizemos - eu e o meu irmão. O povo ensinava simpatia para ela fazer, crista de galo para comer, que parava. Mas era sem-vergonhice, não era nem doença, não. Era safadeza mesmo, preguiça de ir ao banheiro à noite. Aí, depois, quando a gente começou a ficar adolescente, aí a gente pegou e parou. Mas era terrível. Aí, a gente tinha que ir para os acampamentos da igreja, no Carnaval, e então ela comprava pijama: “Vocês tomem vergonha, você tem o Wesley, vai fazer xixi lá na cama e passar vergonha”. A gente nem dormia de noite para não fazer xixi na cama (risos). Se acontecer... Vergonha, não é? Mas a gente era terrível. Fizemos. Nossa, meu filho vai se rachar quando ouvir isso.
P/1 – Você chegou a fazer alguma simpatia?
R – Essa do galo, comer a crista do galo. Tinha que cortar a crista do galo, ir lá no forno, lá no fogão e torrar, e a gente comer. Pois é. E as surras... Ela pegava a mangueira e cortava, batia de mangueira ou uma árvore, maldita árvore que ela tinha, de pitanga, a gente apanhava de vara, mas a gente era terrível, a gente merecia.
P/1 – Conta aí alguma coisa que vocês chegaram a aprontar.
R – Ah, muita coisa. Uma vez, uma prima minha cortou o cabelo. Aí, ela tinha essa mania: se a gente fizesse alguma coisa e não contasse a verdade, ela reunia os primos e punha... Fazia uma roda, pegava um tijolo e falava: “Quem não contar, a gente vai jogar esse tijolo”. Uma surra que eu levei, que essa eu não esqueço. Toda vez que eu vejo a minha tia eu falo. Ela pediu para eu comprar um cigarro para ela e eu desci correndo a rua. Era uma rua bem grande, eu desci e estava com a calcinha sem elástico, porque a calcinha estava sem elástico, e aí ela viu. Quando eu cheguei em casa, ela me deu uma surra primeiro, pegou o elástico e me ensinou a colocar elástico na calcinha. Olha, toda vez eu falo: “Tia Selma, que surra que eu levei”. Por causa da calcinha. Esse dia eu desci segurando a calcinha para comprar cigarro. E eu não gostava de ir ao bar. Até hoje eu não compro cigarro para ninguém; nem cigarro e nem bebida, não sou muito fã. E eu falava para ela: “Tia, não quero ir lá”. “Você vai”. E uma vez elas também me usaram, fizeram… Elas não tinham convivência com uma vizinha do lado, mandaram eu chamar essa vizinha para ir lá em casa e deram uma surra nessa vizinha, bateram na vizinha (risos) e eu que fui lá chamar a vizinha para apanhar, porque elas não gostavam da vizinha, eram umas loucas. Até hoje, vixi, minha família é rolo, baixaria e confusão, você não está entendendo (risos). Pois é, minha infância foi assim, bem divertida, não é?
P/1 – E, Patrícia, ainda na infância, tinha alguma divisão de tarefas em casa?
R – Tinha! Tinha que arear panela bem areada para pendurar lá, tinha que encerar o chão, lavar o quintal... Toda sexta-feira era faxina. A gente não tinha moleza, não. Lição de casa, se não soubesse a tabuada, filha, era estreito. Aí, se a mãe fosse na escola e visse que a gente dava trabalho até, tipo, a quarta série, até uns dez anos, nove anos assim, a
gente tinha… Aí, foi crescendo, não tinha como a mãe pegar no pé da gente, não.
P/1 – Mas em casa, como era essa cobrança da tabuada?
R – Sentava lá, minha filha, e esfregava a nossa cara na tabuada. Tinha que saber de cor e salteado, tinha que saber. A tia Sineide pegava no pé da gente, que era a tia que morava no quintal mesmo. Essa era cruel.
P/1 – E as comidas?
R – Ah, as comidas eram gostosas. Assim... Quando tinha coisa gostosa para comer, fazia. Frango com quiabo da minha avó ou o tutu de feijão dela eram maravilhosos! E ela fazia muito era… Como é que se fala hoje? Cuscuz, não é? A gente falava fubá suado na época, tomava com leite e café, não é? Eu adoro. Coisa que hoje, lá em casa, ninguém come, porque eu não faço. Mas era muito boa a comida.
P/1 – E tinha algum momento da semana em que a família toda sentava para comer junto?
R – Não. Só se reunia na época de Natal. Natal era muito bom, que a gente ganhava presente, não é? Aí tinha... Porque a minha avó passava muita dificuldade, não é? Então, a gente não tinha muita… Assim... vida fácil, não! Eu comecei a trabalhar cedo. Com doze anos eu fui trabalhar numa casa,
para dormir. Então, o meu irmão... Também com quatorze anos foi trabalhar. Minha irmã mais velha. Todo mundo. Cada um tinha que ajudar, não é?
P/1 – Então, só para a gente ainda… Um pouquinho só na parte da infância, porque ainda quero chegar na parte da adolescência. Mas, dava tempo de brincadeiras?
R – A gente brincava com aquelas bonecas... A gente fazia as bonecas, aquelas bonecas sem cabelo, de plástico, não é? A gente brincava, sim. As primas… Como os pais das primas tinham mais dinheiro, mais bem de vida, elas compravam brinquedos, a gente brincava com elas, não é? Mas a gente, minha avó comprar brinquedo para a gente, não. Eu lembro só de uma parte que a gente gostava muito, que quando passava o caminhão da Coca... Eles vendiam Coca... Antigamente, o caminhão da Coca vendia Coca em casa para a gente. E aí, a minha avó comprava, e era a festa. Quando tinha coisa boa, era festa
para a gente. Então, a gente se divertia mesmo, podia levar lanche para a escola. E uma coisa que até hoje eu não como é banana, porque a gente levava pão com banana, doce de banana, bolo de banana, eu odeio banana (risos) - tinha que levar. Fazia aquele pão de banana e punha lá… Não, Deus me livre! Não como banana (risos), tenho nojo de banana. Eu compro banana em casa por causa do meu filho, mas não. É uma coisa de que eu não gosto.
P/1 – E por que banana?
R – Porque era mais barato e no quintal tinha um pé de banana. Então, ela tirava do pé da banana; às vezes, ela também comprava de um senhor que vendia banana, tudo era banana: banana no almoço, banana no jantar, banana no café. Não tinha pão, era banana cozida, banana verde… Deus me livre, era tenso.
P/1 – E dessa parte do quintal, vocês tinham alguma responsabilidade para fazer alguma coisa?
R – Não, só o quintal mesmo. Era lavar, porque o quintal era rústico, a gente tinha que lavar, deixar limpo, tudo. A casa era impecável, tinha que ter a casa impecável, a nossa casa. Encerar, lustrar fogão, tudo. Todos nós tínhamos que fazer, não tinha esse negócio que a criança não fazia, não.
P/1 – E onde você estudava?
R – Eu estudava num colégio próximo de casa, no Monsenhor João Batista de Carvalho.
P/1 – Você lembra do primeiro dia ou dos primeiros dias na escola?
R – Lembro. Era muito frio a escola, era muito frio. Eu lembro como umas meninas até arrecadaram roupas para a gente, era muito frio, muito. Eu lembro do professor Guerra, tinha os alunos, eu era uma peste na escola, minha filha. Na quarta série, eu pus fogo no cabelo de uma menina. Eu era… Pulava o muro da escola, eu era terrível. Até a quarta série a minha avó ainda conseguiu segurar a gente. Eu amava ir para a escola para ir à Educação Física, para ir para a salinha, tudo. Trabalho de escola... Inventava trabalho de escola para fugir, para ir para a casa das amigas. Era tenso.
P/1 – Mas como foi essa coisa do cabelo?
R – Ah, a menina ficava provocando na sala de aula. Hoje eu sou amiga dela. E ela com um coquinho, ela era daquelas crentes com coquinho, e a gente… A menina enchendo o saco, aí eu e uma amiga pegamos, acendemos um isqueiro e pusemos fogo. A sorte é que estava preso o cabelo dela. Aí, a gente foi para a diretoria. Nesse dia, eu apanhei. Ainda o diretor perguntou se a menina era a Joana D’Arc, que morreu...: “Vocês acham que a menina é a Joana D’Arc?”(risos) Era muito folgada. Eu era terrível. Não fui muito bem na escola não, repeti de ano, muito. Eu era o terror. O professor, quando via a gente lá na sala de aula... Era muito faladeira, eu sempre fui faladeira, muito, muito. Minha mãe ia na escola: “A Patrícia fala demais, a Patrícia não quer saber de fazer lição, a Patrícia isso… “. Mas eu acho que era da idade, mesmo. Aí era tenso mesmo.
P/1 – E o que a menina Patrícia queria ser quando crescesse?
R – Eu queria ser… Aí eu falava que ia ser advogada, mas não consegui realizar o meu sonho, não. Não consegui. Advogada, eu queria ser. Hoje, se eu tivesse oportunidade, eu seria uma advogada. Mas a minha sobrinha estudou por mim e ela é (risos), hoje.
P/1 – E, falando da entrada da adolescência, sua mãe, sua avó ou suas tias conversavam com você para falar sobre as transformações do corpo…?
R – Sim, elas conversavam muito com a gente sobre os rapazes, porque eu lembro que eu tinha muito corpão assim, não é? Eu e a minha irmã, tudo. E a gente queria muito ir para o bailinho, porque tinha os bailes de formatura da escola. E foi uma época em que eu comecei a dar muito trabalho. Ela não deixava a gente sair e eu queria ir para as festas, eu queria dançar igual às minhas amigas e ela não deixava a gente ir. Ia escondido, então, complicado. Mas elas sempre avisavam a gente das coisas assim do corpo, tudo. E eu fugia para ir para as festas. A minha avó, às vezes, deixava a gente trancado, ela ia para a igreja, a gente não queria, ela deixava a gente trancado. A gente pulava a janela para ficar brincando de rouba bandeira na rua. Aí, quando a gente avistava ela de longe, a gente voltava para dentro de casa e ela descobria, sempre ela descobria, porque tinha a vizinha do lado que também era bem rígida com os filhos e a gente tudo era junto. Então, elas acabavam descobrindo o que a gente fazia de errado. Mas até aí, a gente parou até de apanhar, porque ela viu que não tinha jeito, não é? A gente parou de apanhar nessa época. Aí, nessa época, minhas tias já tinham saído do quintal, a gente ficou sozinha no quintal.
P/1 – E você lembra do dia em que você ficou mocinha? Como foi?
R – Lembro. Foi num cinema. Eu tinha ido ao cinema com a minha irmã mais velha, na São João. Aí, foi lá. A irmã mais velha, para tirar um baratinho, tirou um barato da minha cara, que eu não sabia colocar o absorvente, não é? Ela me zoou bastante. Foi estranho, mas depois a gente acostuma, não é? Dá vergonha. Eu morria de vergonha, principalmente quando tinha que ir para a escola, tudo, não é? Morria de vergonha.
P/1 – E as suas tias, ou a sua mãe, falavam para você não fazer alguma coisa nesse período? Quais eram as recomendações?
R – Ah, falavam que eu não podia andar com o pé no chão, que eu não podia lavar o cabelo, não podia isso, não podia… Que dava cólica, mas a gente nunca segue, não é? Não segue. Tinha isso: “Os menininhos… Tem que usar sutiã porque os meninos na rua, e blá, blá, blá…”. E a gente: “Está bom, mãe”. Mas a gente queria usar shortinho curto para mostrar para os meninos o corpinho bonitinho, não é? Pois é. Ah, se eu as tivesse escutado nesse tempo, muita coisa não teria feito.
P/1 – E as primeiras paixões?
R – Nossa, eu tinha várias. Eu estou falando para você que eu era o terror. Várias. Várias. Tinha um menino na escola... A gente até se encontrou há uns três anos, a turma da escola. E a caixa d’água era famosa - a da escola - porque a gente ficava atrás da caixa d’água beijando os meninos. A Patrícia e a Janaína eram o terror da escola, na caixa d’água (risos). Aí, se a caixa d’água falasse! Mas era tudo assim, na inocência, só beijinho mesmo. E quando marcava para ir para casa, a gente falava para os meninos: “vamos para casa de fulano, para fazer trabalho”. Aí a gente fazia festinha em casa, bailinho nas casas, aí sim. Mas a minha avó nunca deixava, a minha avó nunca sabia disso, não é? Nunca podia saber.
P/1 – Mas dá para contar como foi o primeiro beijo?
R – Nossa! Eu nem sabia beijar. Deixa eu ver se foi… Ou foi o Cláudio ou foi o Lúcio que eu beijei primeiro. Acho que foi o Cacau que eu beijei primeiro. Eu não sabia não, ele que me ensinou, maior vergonha. Mas depois que aprendeu, filha, só Jesus na causa (risos). Se a caixa d’água falasse… Aquela caixa d’água. E, na minha casa, assim... Quando a gente anda numa rua, dá para ver lá a escola, não é? Eu falo: “Meu Deus, essa caixa d’água, muitas lembranças”. Eu estudei do primeiro ao oitavo lá nessa escola, então foi terror mesmo.
P/1 – E alguma vez vocês foram pegos atrás da caixa d’água?
R – Pelo diretor. O diretor chamava o Guerra e ele pegava a gente. Suspensão, não é? Porque na época tinha suspensão, não é? Três dias de suspensão. Mas aí, eu mandava outra pessoa assinar, não mandava para a minha avó. Se eu levasse para a minha vó, ia para o castigo direto.
P/1 – E para justificar esses três dias em casa? O que você falava…
R – Não tinha aula. Mas aí eu saía, ia para a casa da amiga, falava que estava indo para a escola. Mas ia para a casa da amiga. Mas depois a minha mãe acabava sabendo na reunião dos pais, não é? Aí, era pior.
P/1 – E, Patrícia, você tinha falado que foi mais ou menos nessa época que a sua mãe apareceu, não é?
R – Foi.
P/1 – Eu queria que você contasse como foi esse dia ou esse período.
R – O que eu lembro... A gente estava indo para a igreja - ou estava chegando - parou um táxi e desceu uma mulher. Ela estava com uma roupa azul, bem bonita, porque ela era bonita mesmo. E ela desceu e falou que era mãe da gente. A gente olhou assim, que eu não lembrava dela, aí a minha avó falou: “É a sua mãe, a Cilene”. Aí eu lembro de que ela veio toda bonitona, com dinheiro. Ela levou a gente no mercado - na época tinha acho que era Sé Supermercado ou Jumbo Eletro, um negócio assim. Ela levou para o mercado e fez compra. Para a gente era novidade, não é? Porque a gente não tinha muita coisa em casa, comprou roupa, comprou um monte de coisa para a gente. Era uma festa. Mas a minha avó sempre falava bem dela, então a gente acabou respeitando-a e tudo, não é? Só a bebida que estragou a minha mãe, mesmo.
P/1 – Mas aí, ela acabou morando com vocês?
R – Não, ela ia embora. Ela vinha, ficava um tempo e ia embora. Depois ela vinha e sempre vinha com um homem diferente. Toda vez que ela vinha do Rio de Janeiro. Chegava aqui, dava a louca nela, batia nos homens, os homens iam embora. O último, eu lembro que ela rasgou uma faca no rosto dele assim, pôs ele para ir embora, e o homem não conhecia São Paulo, foi embora - acho que era Paulo o nome dele. E a última vez que eu fui ao Rio de Janeiro, fomos eu e a minha irmã. Acho que eu tinha uns dezessete, dezesseis anos, que a minha mãe apanhou lá de um cara, o cara quase matou a minha mãe. A gente foi atrás para saber, para ver. Aí, depois dessa época, ela resolveu vir morar em São Paulo. Ela veio, começou a dar muito trabalho aqui para a gente, conheceu o pai da minha irmã mais nova. Mas dava muito trabalho, muito trabalho. Minha mãe só deixou de dar trabalho depois que faleceu, mesmo.
P/1 – E por que ela ia para o Rio de Janeiro?
R – Porque ela morava lá, tinha casa lá, não é? Ela gostava de lá. Aí, depois, ela começou a ficar sozinha lá, a gente foi, ficou uns tempos com ela lá, com a minha avó, tudo, mas era muito calor, a gente não se adaptou, voltamos. Aí ela resolveu vir para São Paulo, morar aqui perto da gente.
P/1 – E como foi essa mudança?
R – Ah, foi diferente. Porque ela queria mandar na gente, a gente não aceitava, não é? Não era mãe da gente, que a gente obedecia à minha mãe Ambrósia, não a ela. A gente discutia muito, muito. Ela brigava mais com a minha irmã e com o meu irmão, muito. Eles brigavam muito. Eu sou mais assim… Eu sou assim, eu me irrito fácil, se você falar uma coisa para mim, eu não aceito, eu sou mais assim, passiva. Então eu costumo falar que eu sou meio ovelha negra da família, sou mais afastada um pouco da família. Com ela eu me dava bem, ela falava que eu era a mulata dela, que os meus irmãos são brancos. O Wesley é loiro, de olho azul; a Kátia brancona, a Karina, e eu sou morena. Ela falava que eu era a mulata do Sargentelli dela. Eu me dava com ela. Eu brigava com ela porque eu não gostava de vê-la bebendo. Aí, eu pegava no pé. Mas a gente se dava bem.
P/1 – Se você puder contar como eram esses momentos, de ver a sua mãe com a bebida.
R – Ah, era muito triste. Ela se virava… Ela era outra pessoa, ela ficava muito violenta, era muito perturbada a minha mãe, muito, muito mesmo. Minha mãe sofreu muito por causa da bebida, por causa do vício. Era para a minha mãe estar muito bem de vida, mas o vício acabou com ela, acabou com a vida dela. Não se dava com ninguém, não se dava em casamento nenhum, vivia apanhando de homem, foi muito triste. Então, muito triste mesmo.
P/1 – E como foi descobrir que ela estava grávida, que ia vir mais uma irmã para vocês?
R – Aí eu já estava casada. A gente engravidou na mesma época - eu e ela. O William e a Karina é diferença de um ano. Porque a minha avó vendeu a casa, com o meu irmão, foram morar na Cohab Adventista. Eu ainda cheguei a morar com eles, aí eu conheci o pai do William. Eu saí de casa porque a minha avó não aceitava o meu relacionamento com ele, ela não gostava dele e eu saí de casa. E aí eu fui morar com a minha mãe e com o pai da Karina. Só que não deu certo. Aí, o pai do William alugou um quarto para eu morar sozinha. Então eu engravidei e ela também engravidou. Ela engravidou primeiro do que eu. A gente até achou que nela não ia… Que a gravidez não ia para frente porque ela bebia muito, muito, muito mesmo. Então: “A Karina vai nascer até com problema”. Mas, nada! Ela levou a gravidez dela, teve a Karina, conviveu com o pai da Karina um tempo, ele batia muito nela, e aí acabou se separando dele na época. E aí foi a última semana que a gente viu… Que eu cheguei a ver... Que ela fez um almoço no aniversário dela - que foi em outubro. Depois eu falei para ela: “Eu não vou vir mais aqui, porque toda vez que a gente vem, a senhora está bêbada. A senhora só bebe, bebe, então não vou procurar a senhora mais não”. A gente levava as coisas, a comida para ela, ela vendia para beber. Então aí, quando eu fui vê-la foi quando ela morreu mesmo, que ligaram na minha casa e falaram que ela tinha falecido, que a enxurrada da chuva a tinha levado.
P/1 – E, Patrícia, antes da gente falar da sua gravidez, eu queria que você falasse do seu primeiro emprego.
R – Primeiro emprego, eu trabalhei no centro da cidade… Não, primeiro emprego eu trabalhei, com doze anos, na casa da Jane. Era uma amiga da minha avó, que ela tinha uma farmácia, era próximo do bairro mesmo, mas ela queria alguém para ficar dormindo na casa dela. E eu trabalhava para dormir. Era a escravinha da família lá. Aí, eu ia para casa uma vez na semana, no domingo. Ia, passava o dia e voltava à noite para a casa da mulher. Ganhava um dinheirinho… Aí, depois, eu saí de lá. Eu olhava as crianças, a minha tia fazia geladinho, a gente ia para o campo para vender geladinho. Aí depois, quando eu fiz acho que dezessete, dezoito anos eu fui trabalhar no escritório, no centro da cidade - de auxiliar de escritório. Fiquei lá um tempo, depois eu saí, aí eu casei.
P/1 – Você pode falar um pouco mais sobre essa época em que você ficava na casa...? Você falou o nome…
R – Da Jane.
P/1 – Jane. O que você fazia? Como era esse dia a dia?
R – Fazia tudo. Eu dormia assim, depois deles. Cuidava dos filhos dela, ela tinha três filhos, acho que Alexandre, Pedro e a Tatiane - era tudo pequeno. Eu lavava roupa, fazia comida, fazia tudo, tudo para eles. E dormia num quartinho nos fundos. Mas assim... Eles nunca me trataram mal, mas eu fazia tudo para eles, tudo mesmo, para ganhar um dinheirinho. Eu fazia muita faxina para as minhas tias, tenho uma tia que hoje eu não falo com ela e a gente… Acho que por ter sido criada pela avó, eles achavam… Como a gente precisava, a gente tinha que se submeter a muitas coisas, então foi meio sofrido assim. A infância e a adolescência foi meio sofrido, até a gente ter a nossa independência. Foi meio punk mesmo, a gente tinha que sobreviver, não é? A gente queria comprar as coisas, mas eu gostava da Jane. Hoje, essa mulher para quem eu trabalho, ela não tem nada, ela perdeu tudo. Ela perdeu um filho, que mataram. Hoje dizem que ela vive assim, na pobreza. E ela não era assim tão humilde. Mas depois, eu olhei algumas crianças. Tem até dois rapazes que hoje eu os encontro e falo: “Gente, eu peguei vocês no colo, caramba! E vocês estão uns homens casados hoje”. Eu ajudava muito a vizinhança, eu sempre gostei de ajudar. Eu sempre fui prestativa.
P/1 – E você falou que a sua tia fazia geladinho e vocês iam vender no campo?
R – Campo de futebol. Eu e o meu irmão. Saiamos com a caixa de isopor e vendíamos geladinho, todynho. Para ajudar em casa, não é?
P/1 – Como era o dia de jogo?
R – Era… A gente não gostava, porque a gente tinha vergonha de sair vendendo geladinho, mas era divertido. Porque tinha uma bica de água e a gente, às vezes, quando terminava, a gente não ia para casa direto, a gente ia para essa bica tomar banho. Aí, quando a gente voltava, tomava uma surra, porque a gente se molhava. Mas a gente voltava com o dinheiro do geladinho. Mas era gostoso. Era um lugar… Hoje lá é um campo bonito - esse lugar onde a gente ia. Tem uns prédios, construíram uns prédios, mas a gente não gostava muito não - eu e o meu irmão - a gente não gostava muito, não, de vender geladinho.
P/1 – Como chamava esse campo?
R – Agora é Campo do Sabão, que eles falam. É na rua Cinquenta, mas é Campo do Sabão que eles falam. Hoje mudou bastante lá, mas era bem feinho lá. Hoje, o meu filho mais novo... Eu o levo lá onde eu morava, ele fala: “Mãe, você morou aqui?” “Morei”. “Nossa, mãe, é muito feio aqui, não gosto de vir aqui, não”. Mas eu gosto de lá, eu sou meio maloqueirinha, eu gosto de lá. Se eu pudesse voltar para lá, para as origens, eu voltaria. Para a mesma rua e para mesma casa. Mas muda, não é?
P/1 – E dia de jogo, quando vocês tinham que vender o geladinho, vocês falavam alguma coisa para anunciar que tinha geladinho?
R – Eu ficava gritando: “Olha o geladinho, olha o geladinho” (risos). E vendia o geladinho. Tinha que vender. Se não vendesse, se chegasse em casa com o geladinho de volta, minha tia pegava no pé da gente. E aí, à noite, a gente tinha que fazer o geladinho para vender no outro dia. Vendia em casa, não é? Porque a minha tia punha plaquinha. Mas fim de semana era no campo de futebol. Era bom. A gente aprendeu a dar valor às coisas.
P/1 – Tem algum acontecimento de algum jogo que tenha ficado assim…?
R – Não. Que eu lembre, não.
P/1 – Conte para a gente como você conheceu o pai do William.
R – O pai do William não é uma história muito legal, não. O pai do William, ele era bicheiro - não sei se você sabe o que é bicheiro, fazia jogo do bicho. Recolhe, não é? Fica fazendo recolhe - você faz a fezinha lá e leva, ele passa lá na rua, de carro. E antes dele, eu tive um noivo. A minha avó amava esse noivo meu. Eu até esqueci de trazer uma foto dele para vocês verem. Que eu tenho a foto guardada do ex-noivo. E a minha avó era apaixonada pelo Otávio. Otávio para lá, Otávio para cá… Aí, a gente namorava, só que a família do Otávio não me aceitava. Não sei se era pela minha cor, não sei o que era. Ele era filho único, de homem, tinha mais uma irmã. Só que o pai do William passava na rua e eu era terrível, não é? Eu era piriguete da época. Passava com um fusquinha para cima e para baixo com aquele fusquinha e eu, de olho no fusquinha. Aí, peguei amizade com ele e minha avó falava: “Ele não presta, eu conheço o pai, não presta”. E a gente sempre quer o que não presta, não é? Aí, acabei ficando com ele, que aí foi a época em que a minha avó vendeu a casa em que a gente morava e eu fui morar nos apartamentos da Cohab Adventista. E eu não gostava de lá, eu ficava mais na casa do Odair, da família do Odair. Minha avó não gostava. Aí, teve um dia, um feriado... Ele, além de ser bicheiro, ele era baloeiro. Aí, a gente foi soltar balão e eu fui… Foi num aniversário de São Paulo, feriado, e eu fui para essa soltura de balão à noite e não avisei à minha avó. Passei a noite inteirinha nessa soltura de balão. Quando cheguei em casa, no apartamento, ela me deu uma bela de uma surra. Eu já tinha dezoito, dezessete ou dezoito anos, ela me deu uma surra e falou: “Ou você vai ficar em casa, escolher ficar aqui, ou ele”. Eu era bocuda: “Prefiro ficar com ele”. Mas não tinha lugar nenhum para ir, não é? Fui bocuda. Aí, ela falou: “Então, você pode pegar as suas coisas e sair de casa”. Aí eu saí. Fui morar com a minha mãe, foi nessa época que eu fui morar com a minha mãe. Só que aí não deu certo, porque tinha o pai da Karina, a casa era pequena, a minha mãe bebia, então… Aí, ele alugou uma casa, um quartinho, uma garagem, e me colocou lá. Ele ia para a casa dele, às vezes ele ia para a minha. E, na época, eu fazia unha para ganhar um dinheirinho, não é? Para me virar. E ele trabalhando no jogo do bicho, com o pai dele. Aí, eu acabei engravidando. Então, o pai dele deu um terreno no Parque Fernando, a gente construiu uma casa, eu engravidei e fui morar nessa casa antes de terminar, porque estava para ganhar o William e a minha avó não aceitava. Tanto que a minha avó, quando eu tive o William, a minha avó não foi visitar. Ninguém foi ver, da minha família. Só a minha irmã. E antes eu fiz o noivado - antes de engravidar - eu tive o noivado, ninguém da minha família foi, foi só o meu irmão, se eu não me engano, que foi no meu noivado. Minha família não foi. Ninguém gostava dele mesmo, depois que eu fui enxergar, não e? Aí, a gente construiu a casa, a família dele me tratava muito bem, sempre me tratou. Aí, tive o William, depois de um tempo é que a minha avó conheceu o William. Quando o William fez quatro anos, a minha avó faleceu. Aí, a minha vida virou assim. Porque aí já não tinha mais a minha avó para ajudar, para a gente correr atrás, não é? Mas eu nunca reclamei da minha vida com o pai do William para ela. Não levava os meus problemas para ela. Para eu ir na casa dela, para vocês terem ideia, ele me levava, ele não deixava eu sair sozinha, ele não deixava nada, ele sempre tinha que ir. Aí, eu ia para a casa dela para ajudar a arrumar o apartamento dela, tudo, porque a gente morava próximas, não é? Mas não foi muito boa não, a minha vida com o pai do William.
P/1 – Mas, Patrícia, como foi terminar, antes, o primeiro noivado?
R – A minha avó pirou, não é? Eu terminei, falei que não o queria mais, que eu queria o pai do William,
e terminei. Eu era cega, cega. Quando a gente está apaixonada, a gente fica cega, não é? Pai do William. E hoje, eu não tenho mais contato com eles, com a família dele. Eu tive até uns contatos com a irmã dele há três anos, eu cheguei a ver, fui ao enterro do pai dele. Aí, depois que eu separei, assim, adulta, com o William e tudo, que eles foram me aceitar, que eu era a Patrícia do coração, que podia ter sido a norinha deles, não é? Mas na época, ninguém me quis, não é? Eles falaram que o pai dele era racista, não sei se era verdade. Mas a minha avó pirou quando eu terminei, que eu fiquei com o pai do William. Minha avó não aceitava mesmo. Aí, eu sei que o pai do William ainda foi na minha casa pedir para namorar comigo, minha avó falou assim: “Olha, eu não faço gosto, mas ela quer, eu vou fazer o quê? Por mim, ela não fica com você”. Mas eu queria, não é? Então, paguei o preço.
P/1 – Eu queria que você falasse sobre a experiência da primeira gestação, como é que foi perceber, saber que você ia ser mãe?
R – Sinceramente, eu não gosto muito de falar nisso, mas quando eu perdi a minha virgindade não foi porque eu quis, foi um cara que me estuprou, um vizinho. Foi por isso que a minha avó vendeu a casa. Então, foi assim... Minha avó ficou louca da vida... Ele me pegou à força e eu fiquei grávida. Tive que tirar, minha tia, a Sineide, me fez tirar, porque não... porque eu não ia ficar. Eu lembro que ela pagou um farmacêutico para ir na casa dela me dar uma injeção, eu quase morri. Aí, depois, me internaram para fazer tudo, que depois que eu conheci o Otávio na escola… Não, já conhecia o Otávio, já tinha terminado com o Otávio. Acho que foi dessa parte aí que a família dele não me aceitou mais com ele. Aí eu conheci o pai do William. Quando eu fiquei grávida, não sabia nem que eu estava grávida do pai do William. E fiquei feliz, porque eu falei: “Agora eu vou construir uma família”. Fiquei muito feliz. A família dele ficou doida, porque era o primeiro neto, primeiro bisneto, fizeram tudo por mim. Eu não posso falar nada deles, construímos a nossa casa, tudo, mas foi muito legal. Fiquei muito feia, porque eu engordei muito. Mas eu não tinha muito contato com a minha família. A minha família não seguiu a minha gestação. Nessa parte, eu ficava triste. O William não foi planejado, mas ele foi bem-vindo. Tive cesárea, eu sofri muito. Depois a minha família foi vendo e se adaptando, não?
P/1 – E por que William?
R – William porque minha avó disse que teve um filho - não sei se era um filho ou um irmão dela, que ia se chamar William - só que faleceu. Eu acho que era um filho que ela teve e ia ser William. Aí eu coloquei William. Eu falei: “Então, o William vai chamar William, como era o meu tio”. O meu tio que eu não conheci. Eu gostava desse nome, William.
P/1 – E eu queria que você falasse como é que foram os primeiros anos como mãe. Como foi essa descoberta da maternidade?
R – Ah, não foi fácil não. Porque quando o William nasceu eu morava ainda na garagem, porque estava terminando de construir a casa. E o pai do William me deixava muito sozinha e ia me trair. Saía, e eu pastei. Aí, tinha a minha madrinha que morava perto, teve uma vez que o William chorava muito de noite, muito. E eu levei… Sai à uma hora da manhã para a casa dela para ela me ajudar a cuidar dele. Aí, ela só colocou ele assim no peito e ele dormiu. Mas é porque eu estava tensa, não é? Mas eu gostava de cuidar do William assim, só que o pai do William não me ajudou muito.
P/1 – E como era saber que ele estava fora de casa, e você com criança pequena?
R – Ah, era tenso, não é? Eu chorava muito, porque não tinha o apoio da minha família, não é? Que a minha família tinha me avisado, não é? Mas eu dava uma de louca, filha, eu saía atrás. Eu o caçava, eu punha o William nos braços e ia… Uma vez, ele falou que ia para um casamento - o William tinha acho que um mês, um mês e meio - e eu fui atrás dele. Aí, a gente acabou brigando, ele não foi para esse casamento, porque ele ia sair com outra moça. E ele não foi e ele sempre me traía. Aí, a gente mudou para outra casa nova, ele não deixava eu trabalhar, não podia trabalhar. Se eu fosse sair, ele me deixava na casa ou mandava o pai dele me levar. Sempre assim, sempre alguém tinha… Sempre alguém me vigiando. Então, não tive muita liberdade. Eu me separei dele - eu tinha vinte e cinco anos - porque eu descobri traição dele e tudo, eu falei assim: “Eu não aguento mais, não”. Mas aí, eu separei dele, o William tinha dois anos. Aí, eu saí da casa, deixei a casa para ter paz. Eu saí de casa porque ele era muito grosso, como esses homens que querem bater em mulher, essas coisas, eu não aceitava. Então, eu preferi sair da casa e ter a minha paz. Aluguei a minha casa e fui morar sozinha; aliás, eu e o William. Eu não tenho contato com ele, hoje. Mas eu sofri muito com o pai do William, muito mesmo.
P/1 – E como foi ir morar sozinha com o seu filho?
R – Então... Na época, eu dei uma de louca, tirei todos os móveis que eu tinha, a casa era bonita, eu tinha tudo! Tirei e fui morar com uma tia minha - a tia Sin - que ela morava sozinha e eu fui morar sozinha com ela. Mas aí também não deu certo. Na época, eu tinha um lava-rápido e o William não era especial. E eu trabalhava no lava-rápido e ia vivendo a minha vida. Aí, eu fui curtir, eu saía, eu dançava, eu namorava, eu ‘causava’ mesmo. Tinha dinheiro, tinha carro, tinha tudo. Então, nem senti muita falta de ter separado, não. E a família dele parou de falar comigo, porque eles falavam que eu o tinha traído. E eu falei assim: “O que eu faço é depois que eu separei dele. Então, separada, eu posso fazer o que eu quiser da minha vida”. Mas aprendi muita coisa. Eu sofri muito, mas eu aprendi muito, também.
P/1 – E como foi voltar a ter contato com a sua avó, com a sua mãe, não é? Porque ela chegou a conhecer o William quando ele estava com quatro anos, não é?
R – Não, a minha avó conheceu o William com quatro anos, a minha mãe também, porque tinha a Karina. Ela gostou, porque o William era um furacão, não é? O William detonava, ele chegava dentro de casa e era um furacão. Que foi a época em que ele estava começando a regredir e a gente não sabia. Aí, chegava: “Dá benção para a sua avó”. Aí ele fazia assim para ela (risos): “Beleza?” E ela não aceitava, queria que fosse lá e beijasse a mão dela, mas ela era uma vozona, bisavó, não é? Porque ela era bisavó dele, não é? Ela gostava dos netos perto, ela gostava da casa dela cheia de gente. Ela era uma vozona, mesmo. Quando as ‘netaiada’ ia para lá, ela gostava. Mas como ela faleceu logo, então ela não teve muito contato. É, o William tinha quatro anos quando ela faleceu. Ou eu estou confundindo com a minha mãe, mesmo… A minha avó, ele tinha quatro anos quando ela faleceu - ela tinha setenta e três e o William tinha quatro anos. Ela não conheceu o meu outro filho.
P/1 – E como foi receber a notícia do falecimento da sua avó?
R – Eu estava no meu lava-rápido, era dia de eleição, e um de nós sempre levava ela para a eleição, não é? Porque ela era uma gasolina, ela gostava de andar de carro, ela não gostava de andar a pé não. Tinha que... Ou eu ou o meu irmão tínhamos que levá-la, porque a gente tinha carro, não é? Aí, a minha irmã ligou desesperada, gritando no telefone, dizendo que ela tinha… Que a mãe estava no banheiro caída, que ela tinha morrido. Aí, eu fiquei desesperada, eu não acreditava naquilo. Quando eu cheguei, eu não tive coragem de ver ela caída dentro do banheiro, porque ela ficou caída no banheiro até buscarem-na; mas foi o pior dia da minha vida. Foi muito triste saber que a gente a tinha perdido, porque ela foi guerreira, mesmo. Aí, acabou a família. Depois que a minha avó morreu, acabou a família. Porque ela era a coluna, não é? Podia ter as brigas, mas a gente sempre se reunia, todo mundo estava lá, mas depois que ela foi, acabou.
P/1 – Por quê? O que mudou, Patrícia?
R – Tudo. Mudou tudo, cada um vai viver a sua vida, não é? As tias... Tudo mudou. Eu tenho contato mais com duas tias - a tia Sineide, tia Siná eu falo um pouco mais pelo zap, sempre pergunto dela - mas mudou tudo, tudo mudou. Tudo, até com os meus irmãos. Eu tenho mais contato com essa minha irmã mais nova e com o meu irmão. A mais velha é meio ranzinza, vive a vida dela.
P/1 – E você tinha comentado na época que a sua avó tinha conhecido o William, que ele ainda não tinha regredido…
R – Não, ninguém sabia que o William era especial, não.
P/1 – Conte para a gente o que…
R – Porque a doença do William só aparece a partir dos quatro anos, não é? Então, quando começou a surgir, o William estava na escolinha e a professora falou que ele não acompanhava as crianças da idade dele, que era para eu levá-lo ao médico. Aí, comecei a jornada. Já estava separada do pai dele, porque eu separei ele tinha dois anos. Aí começou a jornada de levá-lo para hospital, para médico, mas ninguém sabia o que o William tinha. Ninguém falava para mim o que estava acontecendo com ele. Aí, como eu estava separada, o pai casou com outra mulher, era uma guerra para ele pegar o William, era uma ‘brigaiada’ danada, e eu fui levando o William ao médico, levando, levando. Aí o William parou de andar, começou a usar fralda, tive que tirar da escola. Parei de trabalhar, passei o lava-rápido para a frente, porque não tinha como eu cuidar, e eu fui cuidando do William.
P/1 – Mas ainda, nesse começo, o que ele apresentava de características…?
R – Ele era muito agitado, era hiperativo, ficava uma semana sem dormir, e só gritava, gritava. Parou de falar, começou a usar fralda. E aí eu já fui notando a diferença, porque quatro, cinco anos já está fora da fralda, não é? Mas ele voltou. Aí, ele começou a dar… Tinha semana em que ele andava, tinha semana em que não andava; aí, fizemos exames e não dava nada - nada no William dava, nenhum exame dava nada. E eu fui levando, fui, e aí, depois acho que de sete anos, que eu estava uns cinco anos separada, eu conheci o pai do Igor. Aí, eu conheci o pai do Igor, ainda tinha um outro lava-rápido, porque eu montei outro lava-rápido, e o William regredindo, não estava mais em escola nenhuma. E quando eu separei do pai do William, que eu saí da casa, eu saí da casa da minha tia, eu perdi tudo. Assim... Eu fui morar na casa dos outros, de favor, com o William, passei bastante dificuldade mesmo. Aí eu fui atrás da família do pai do William, para me ajudar. Aí o avô do William já tinha falecido - porque mataram o avô do William - e essa mulher do pai do William era uma benção, para não falar outra coisa. Aí, ele falou que pagava o aluguel e o convênio para o William - na época eram trezentos e vinte reais. Eu já estava namorando o pai do Igor. E eles alugaram uma casa para eu ficar, mas depois que eles viram que eu estava namorando, eles pararam de me ajudar. Aí, não me ajudaram mais. Então, eu trabalhei numa escolinha que era da minha prima, de auxiliar de limpeza, e o William só regredindo, ninguém conseguia cuidar do William, porque ele era muito hiperativo. Aí eu larguei, saí, coloquei o pai do William na Justiça, ganhei na época a causa, mas ele nunca pagou direito. Aí, eu fiquei grávida do Wanderlei, ele veio morar comigo na minha casa, eu pensei que as coisas iam melhorar, eu falei: “Um homem mais velho, vai melhorar”. Não. Aí, o Igor nasceu, eu não sabia ainda o que o William tinha, o William estava com sete anos e ele já estava bem, bem… Já estava usando fralda mesmo, já tinha parado de falar e só gritava, gritava - ele passava a noite gritando. E o Wanderlei, que é meu ex-marido, ajudava do jeito que ele podia. Aí, comecei a dever aluguel, porque eu morava de aluguel, tive que mudar para uma casa menor, e o Wanderlei sempre às minhas custas, não é? Aí, eu montei um outro lava-rápido com uma amiga minha, levava o William, o William ficava amarrado - tinha uma pilastra assim, a gente amarrava o William, assim podia ficar quieto para a gente trabalhar. E eu grávida. Trabalhei até os meus nove meses lavando carro. E o Wanderlei não queria saber de nada, queria saber só de ficar em mesa de baralho. E aí, foi a época em que a minha mãe faleceu, daí eu tive o Igor, e morando em dois cômodos. Aí, a dona da casa tinha uma casa de quatro cômodos desocupada, eu mudei para a casa de cima e fomos vivendo. Aí, eu pedi para uma amiga minha para arrumar um emprego para ele, arrumou um emprego de segurança, mas ele não gostava muito, não. Não gostava de trabalhar, ele não gostava de trabalhar. E fomos levando a vida. Aí, fechei o lava-rápido, que não dava para tomar conta do Igor e do William, bebê - dois bebês dentro de casa. Aí foi virando a guerra e foi aí que a minha mãe faleceu. Acho que o Igor tinha uns oito meses quando a minha mãe faleceu; a minha mãe mesmo, faleceu. Aí, a minha irmã veio morar comigo. Aí, começou a luta, que ela foi crescendo e eu não me dava bem com o meu marido dentro de casa, ‘brigaiada’ danada. A família dele, do meu ex-marido, que é o pai do Igor, me ajudava, ajudava a cuidar do William, ajudava a
cuidar do Igor, sempre me apoiaram. Aí, eu acabei… A Karina virando adolescente, começou o trabalho. Aí eu mudei para outra casa, me separei. Aí, ficamos somente eu, a Karina, o William e o Igor. Mas aí eu não podia trabalhar por causa do William, o pai do William não ajudava, acabei voltando para ver se dava certo. Casei no papel, casei na igreja, casei tudo, falei assim: “Ah, pelo menos vai mudar a vida”. Porque na minha família era assim: você tinha que casar, ficar juntado não. Casei. Aí que virou um inferno, mesmo! Aí, eu fiquei mais sete anos com ele, separei... Deu uns cinco minutos...“Não quero, vou separar”. O William com dezessete anos, eu vi uma reportagem na televisão... Porque até aí, os médicos não me falavam o que o William tinha. Eu vi uma reportagem do doutor Fernando Kok, do Hospital das Clínicas, falando de uma doença... Não sei se vocês já chegaram a ver... Em que um pai fez um remédio para o filho? E eu achei parecido com o mal do
William. Eu mandei um e-mail - peguei o e-mail do médico e mandei - pensei: ‘ele nem vai me responder’. Mas ele me respondeu. Falou: “Traga o seu filho aqui, numa quarta-feira, no Hospital das Clinicas, que eu vou dar uma olhada”. Aí, eu levei. Esperamos umas duas horas, ele apareceu, me chamou, olhou para o William e falou assim: “O William tem Mucopolise”. “Não, porque eu conheço criança que tem Mucopolise e não é igual ao William”. “Não, mãe, tem sete tipos, então, a gente vai fazer dois exames, que são o de urina e o de sangue, que é em Porto Alegre. Você tem como pagar o exame?” “Não, mas eu me viro”. Aí me virei, pagou. Vinte dias ele me ligou e falou: “Você está preparada? Pode vir, mas não traz o William”. Porque o William era muito agitado, me deu muito trabalho. Aí ele falou... Mandou eu sentar, eu sentei...: “Está preparada, mãe?” “Estou.” “O William tem Mucopolissacaridose, tipo 3”. Aí, para mim, meu mundo caiu. Porque não tem o que fazer, é você cuidar da criança até Deus levar. “Você já sabe o que acontece na doença, não vou falar para você que o seu filho vai viver dez, quinze, vinte ou trinta anos, porque eu não sou Deus; é qualidade de vida que você der para ele. Quanto mais você cuidar do William, mais o William vai viver”. Aí, quando eu saí da sala do médico, eu falei: “Agora tem que ir à luta”. E é o que eu faço até hoje. Abandonei vida profissional, separei do Wanderlei, Karina me deu muito trabalho - muito trabalho mesmo a minha irmã me deu. Tem três anos que ela saiu da minha casa, porque ela arrumou um rapaz, engravidou, casou, mas teve uma filha antes de sair de casa, dentro da minha casa. Eu ajudei, apoiei, mas depois ela saiu de casa. Até hoje, ainda ajudo um pouco, não é? E cuido do William.
P/1 – Mas como é que era esse período sem saber exatamente o que ele tinha? Sem ter o diagnóstico? Como que era…
R – Tinha que viver, não é? Tinha que viver aquele momento, fazendo os exames. Aí ele começou a ter crises convulsivas, eu não sabia que era crise convulsiva. A primeira crise eu pensei que ele estava morrendo, corri para o hospital e os médicos: “Mãe, o William tem uma doença grave mental”. “Mas que doença?”. Escola não aceitava ele. O único lugar em que ele foi aceito foi no Instituto Gabi, no Jabaquara, ele ficou lá até os dez anos. Eu o levava, passava o dia com ele lá e com o Igor no canguru, todo dia, todo dia. Aí, depois, eu consegui aquele carro Atende, a gente ia e voltava, mas foi uma luta mesmo para descobrir. Depois que eu descobri, aí eu fui conhecendo outras mães, elas foram me ensinando como adaptar, ele foi parando de falar, aí ficou na cama. Hoje, ele fica lá na cama, quietinho. Mas eu tenho saudades dos gritos dele. Porque ele dava trabalho, ele ‘causava’. Uma vez, a gente foi para a praia, chegou lá ele puxou o biquini da mulher (risos), porque as pessoas olhavam para ele e falavam assim: “Não é uma criança especial, é uma criança mal educada. Porque a mãe não dá educação para a criança”. Porque ele não tinha características; hoje sim, mas antigamente não. Ônibus, quantas brigas eu arrumei no ônibus, porque ele tinha mania de ficar chutando com a perna, arrumei muita encrenca. Aí, o pai nunca quis chegar perto do William, a família do pai do William nunca... Nunca me ajudou. Parou de dar pensão, parou tudo. Até hoje eu brigo, é uma luta. Agora é que tem dois anos que apareceu a tia-avó dele, e a tia mesmo dele, que apareceu para vê-lo, depois de vinte anos. Mas mesmo assim, é só por Deus.
P/1 – Mas, Patrícia, como é que foi você, como mãe, ver o seu filho ali, mal, gritando e aí, depois, começando a apresentar essas características e chegar ao ponto de não falar mais?
R – Então... É muito triste. Quando o médico me falou o que ele tinha... Porque assim... Você pensa assim: tenho um filho especial, ele vai receber um diagnóstico, mas vai ter o que fazer para ajudá-lo. Mas quando ele falou para mim que ele tinha MPS (Mucopolissacaridose Tipo II – Síndrome de Hunter), e eu sabia o que acontecia, meu mundo caiu, meu mundo acabou. Hoje mesmo, eu até mandei, no grupo, de manhã... Como hoje é o Dia Mundial das Doenças Raras, eu falei que a gente costuma ter o filho para morrer, porque eu tenho um filho que vai morrer, eu não sei se hoje ou amanhã, mas ele vai morrer. Então, você cria um filho para morrer. E é muito triste, porque você o vê ali... Ele andou, ele falou, o William foi para a escola até os treze anos, o William brincou na rua, o William fez tudo E hoje em dia, a gente não tem o que fazer para ele, entendeu? Mas eu sou muito egoísta. Às vezes, ele está lá com dor, sofrendo, e eu falo: “Deus, leva o William”. Aí, daqui a pouco, eu falo: “Deus, não leve o William não, deixe ele aqui”. Porque a gente é egoísta, a gente vê a pessoa sofrendo ali, mas a gente não quer perder. Mas vai ter uma hora em que Deus vai ter que levar, não é? Porque é muito sofrimento. É muito. Tanto para a gente, para a família, como para eles. E eu não tenho apoio das pessoas da minha família. Exemplo, tem dia que o William não dorme. Essa noite o William não dormiu, porque ele estava com dor, ele sente muita cólica, muita. E assim... Tem dias em que eu estou super cansada, muito cansada mesmo. Tem hora que dá vontade de sair correndo e nem voltar mais, mas eu sei que ele depende de mim. O Igor não, mas o William depende de mim. E a família assim... Critica, julga em certas coisas que você faz, e não fala assim: “Hoje eu posso ir na sua casa para cuidar do William para você dormir um pouco?”. Não vêm. Mas, de outra parte eu entendo, porque não vão conseguir cuidar do William como eu. Há quatro anos eu travei a coluna, fiquei na cama. E como vai cuidar do William? Quem ia cuidar do William? Eu estava dando banho nele, fui pôr na cama, a coluna travou - do jeito que eu pus, eu fiquei. E eu sozinha com ele, dentro de casa. Aí eu consegui pegar o celular e ligar para a madrinha dele, que eles são uma benção na minha vida. Padrinho e madrinha dele, para mim, o que eu precisar, eu posso recorrer. E eu liguei e falei: “Eu não consigo levantar”. Aí eles vieram para a minha casa, puseram uma cama, chamaram uma ambulância e nem a ambulância conseguiu me tirar da cama, porque a dor era muito forte. Eu falei: “E agora, quem vai cuidar do William?”. Aí, a vizinhança juntou, colocaram uma moça para me ajudar, mas mesmo com a moça lá, porque assim... O William é um homem, não é? Para dar banho nele, para trocar a fralda dele. Então, foram dois meses assim, de luta. Hoje eu falo: “Se eu ficar na cama hoje, não tem como cuidar do William”. Porque o Igor... Eu saí agora, mas o Igor sabe da dieta, ele sabe ver se ele está com convulsão, mas ele não consegue trocar a fralda dele, porque ele é muito grande. Então, é uma preocupação. Eu tenho que ficar: “Fulano, dá para você ir em casa trocar a fralda?”. Porque eu acho assim, se eu sei que você tem um problema, você tem uma pessoa que você precisa de ajuda, eu não vou precisar... Eu sou da sua família, sou sua irmã: “Patrícia, está precisando de alguma coisa? O William está bem?”. Eu não vou precisar. Então, a minha briga com os meus irmãos é por isso - com a minha família. Porque eu não precisaria pedir ajuda para ninguém. Hoje eu vivo de ajuda. Se eu não consigo trabalhar... O mês passado foram as pessoas que pagaram o meu aluguel, pagaram conta de água, luz, porque eu vivo com um salário mínimo. Como agora... Março... Amanhã
entra março, eu não tenho dinheiro para pagar o meu aluguel, não tenho dinheiro para pagar a água, luz, eu vou ligar: “Fulano, paga a água para mim?” Eu já fiz isso. “Ciclano, faz isso para mim?” Às vezes, eu faço rifa, faço… E a família do pai do William é grande, podia acontecer com eles. Eles têm netos lá, o Odair tem mais três filhos - o pai do William, sabe? Então, é muito triste.
P/1 – E quando você recebeu o diagnóstico, como é que você falou para a família do pai do William o que estava acontecendo em casa?
R – Eu não tive nem contato. Porque quando eu falei para o pai do William que o menino tinha uma doença rara, ele: “Mas como o William tem uma doença rara? De onde vem?” Porque ele é meio ogro, sabe? Ele não entende que existem as doenças raras, ele não lê. Ele: “Deus está castigando”. Não é castigo, porque eu vejo assim: se o William fosse normal, hoje eu não sei se ele estaria no mundo das drogas, se ele seria um bom rapaz. Eu vejo que o Igor é, mas o William eu não sei. Então, eu falo para ele: “Você não é justo, você não sabe o dia de amanhã. Você tem três filhos…”. A mulher dele chegou a falar para mim: “Você tem outro filho, você não sabe se o Igor vai ficar especial”. “Você tem três filhos, eu não estou falando que os seus filhos vão ficar. O William era normal, nasceu normal”. Então, as pessoas só sentem a dor da outra se for com elas. Do contrário, elas não sentem. Como eu tenho muitas amigas, eu prefiro pedir para você: “Carol, tem como você me dar isso?” Do que eu ir lá na casa da minha irmã e falar: “Você me dá isso? Me dá um pacote de arroz, me dá um pacote de feijão?” Eu prefiro pedir para um estranho a pedir para a minha família. Tem dia que eu estou morta de cansaço, morta, mas… E as pessoas julgam de fora, também. Tem uns que não te ajudam e julgam… Eu amo pagode, eu amo futebol, eu amo ir ao estádio de futebol, eu amo ir ao samba, agora não estou indo muito. Sábado mesmo, as meninas… Uma amiga minha comprou ingresso para eu ir ver o Safadão. Eu não gosto muito do Safadão, mas eu fui por causa do Dilsinho. Aí ela: “Pat, vamos”. “Gente, eu não vou, eu não estou saindo muito”. “Pat…”. E o outros falam muito assim: “Você não tem que ligar para o que os outros falam, toma dois Dorflex aí para a sua coluna e vamos”. Porque elas compraram pista, não é? Falei: “Gente, por que vocês não compraram cadeira para eu ficar sentada?” “Ah, você vai ver Dilsinho e Safadão sentada?”. E fui. E assim... Tudo que eu posto nas redes sociais... Porque eu tenho muito conhecimento, uns até pegam numa boa, outro já vêm com cobrança. Uma vez... Eu amo salame. Eu comprei salame e postei que eu estava comendo salame. Aí, uma menina entrou no meu: “Pati, não posta que você está comendo salame. Salame é uma coisa muito cara, e aí as pessoas que te ajudam vão falar: ‘Nossa, ela precisa de ajuda, mas está comendo um salame!’”. Gente, aquilo pra mim foi o cúmulo, então eu tenho o outro… O Igor gosta de uma pizza, o Igor gosta… A gente tem vontade de comer uma coisa, não é porque a gente tem um filho especial que a gente não vai comer uma coisa gostosa, não vai sair, não vai passear. E aquilo ficou para mim, guardado. Hoje, eu já não posto tanta coisa que eu como, que eu saio, alguma coisa assim. E aí, as pessoas julgam muito a gente, julgam sem saber, sem viver o dia a dia da gente. Eu costumo falar que eu queria o pai do William uma semana lá em casa para cuidar dele, para ele ver como que é. Não só o pai do William. Quem julga a gente. Hoje eu vivo, eu dou risada, eu brinco, eu converso, mas eu sou muito triste por dentro, porque eu falo assim: “Se a minha avó estivesse viva, eu teria ajuda, ela estaria ali comigo”. (choro/emoção) Do contrário, não. Porque é muito fácil você julgar a vida dos outros, e eu sinto muito a falta dela, muita mesmo. Eu vivo sozinha no fim de semana. Quando eu estava vindo para cá, uma amiga mandou uma mensagem para mim: “Você fala que as amigas abandonaram, mas eu fui na sua casa agora e você não está”. Aí eu falei… Fazer o quê, não é? Eu falei: “Pior amiga, você está trabalhando muito, você é escravinha agora”. “Verdade”. “Depois eu converso com você, porque eu estou indo resolver uns negócios”. Mas eu sinto muita falta da família, porque eu acho que família não somos nós - eu, o William e o Igor. Família é o que está ao redor (choro/emoção). Eu tenho o meu irmão, eu amo o meu irmão de paixão, assim... Elas falam que eu puxo o saco dele. Eu falei: “Ele pode fazer o que fôr de errado, mas ele é o meu irmão”. Somos irmãos, todos os três, somos irmãos por parte de mãe, só. Cada um tem um pai. Minha mãe era ótima. E aí, ele assim... É o meu xodó. Eu falo para ele que são meus olhos verdes. E as minhas irmãs não apoiam o casamento dele agora porque ele teve a primeira mulher, traiu e ficou com a amante. E eu falo: “Eu não vou deixar nunca de apoiar o meu irmão”. Eu vou abrir a porta, sempre, da casa, para ele. Foi a vida que ele escolheu. A Karina escolheu viver a vida dela, a Kátia escolheu viver a vida dela e o Wesley escolheu viver a vida… E eu não vou fechar as portas para o meu irmão, para a minha cunhada agora. Ele teve uma bebezinha agora e ninguém visita, ninguém foi ver. E eu posto as fotos, as minhas sobrinhas criticam e eu acho injusto isso. Porque assim... Se você tem uma religião, você está dentro da igreja, por que você está julgando o próximo? Você não sabe o dia de amanhã , eu não sei o dia de amanhã . E Deus ensinou a amar ao próximo, não é? E as pessoas estão muito desumanas, muito, muito mesmo. Então, eu sinto falta da família, mas fazer o quê? E tem uma tia, com quem eu não falo também, que ela é meio louca. Tem uns dez… Não, eu moro nessa casa... Tem uns treze anos que eu não falo com essa tia, e ela me ajudou muito com o William na época em que ele estava regredindo. Ela comprava fralda, ela me ajudava muito, levava no hospital e eu sinto muito a falta dela. Só que as minhas primas falam: “Não se aproxime da mãe, que a minha mãe não quer ver você”. Por causa de besteira. Porque ela é muito ciumenta e eu peguei uma carona com o meu tio para levar o cachorro ao veterinário - o meu cachorro - e ela falou que eu estava saindo com o meu tio. E ela criou… A mim e aos meus irmãos, ela viu a gente crescer, e o meu tio… E ela não fala comigo até hoje. E eu sinto falta dela, porque ela me ajudava muito. Mas como ela é meio ‘tantã’, então as meninas falam: “Não se aproxime da mamãe”. Então, são todos afastados. E é muito complicado, muito. E as coisas, para a gente que tem filho especial, é muito difícil. Ser humano está sem amor. Muito difícil, mesmo. E eu costumo falar assim: “Acho que se hoje não fosse o William na minha vida, eu estava no mundo, no mundão mesmo”. Se não fosse o William hoje... Às vezes eu deixo de fazer as coisas para o Igor, por causa do William. Assim... Privo muito o Igor. O Igor é louco por futebol. Com dez anos, ele passou numa peneira e o pai não quis levá-lo. Ele tinha que ficar dez dias no Atlético Paranaense e o pai não levou. E ele guarda isso. Aí, esses dias ele falou: “Mãe, tem uma peneira em Diadema, me leva”. “E o William?”. Aí liguei para a Karina e falei: “Tem como você ficar com o William para eu levar o Igor?” Aí o vizinho me emprestou o carro: “Pode pegar o carro e levar o Igor”. Aí levei, ele passou, mas só que, como é de várzea, ele falou: “Mãe, aqui é de várzea, é muito perigoso”. Depois desse negócio do Flamengo, não é? Aí, agora, vai ter do Corinthians. Aí eu falei: “Então, leva a documentação no Corinthians que eu o levo lá. Você tem que se virar, porque você já é maior de idade, não quer ser homem? Pega o trem, meu filho, pega um ônibus aqui e vai perguntando até chegar lá”. Então, eu o privo muito das coisas. Às vezes, eu falo assim… Uma vez ele… Ele tem ciúmes do William, aí ele falou: “Tudo é o William”. “Opa, vem aqui. Vamos conversar: você quer falar do seu irmão? você queria estar no lugar do seu irmão? Então, pense para falar as coisas, Igor, porque o seu irmão não é feliz estando naquela cama ali. A gente vê no semblante dele. Então, pense para falar. Você tem saúde, você sabe andar, falar, faz o que você quer. Então, você é um bom menino, nunca me deu trabalho”. Nunca me deu trabalho. A gente fez um encontro dos anos 80, das pessoas com as quais a gente estudou, na minha casa, e foram contar... Começaram a contar o que eu fazia... A caixa d’água… E eu nunca contei isso para ele. Ele: “Mãe! E você ficava cobrando de mim, quando eu estudava, para ter nota boa, para não faltar na escola”. “Você nunca faça o que eu faço; faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”. Eu falo que se tivesse me puxado, eu estaria ferrada. Então, é muito complicado, mesmo.
P/1 – Sabe o que eu queria saber? Eu queria que você falasse para mim como é que é a sua comunicação com o William? Quando estão vocês dois sozinhos, o que você fala para ele?
R – O William, eu o trato como um bebê. Um dia, uma moça me deu uma bronca porque eu falo com ele como faço com bebê. Ele é meu bebê, eu falo para ele que ele é o meu bebezão. Ele pode ter vinte e cinco, trinta, quarenta anos que ele vai ser o meu bebê. Mas quando ele está com dor, eu já sei. Tudo do William eu sei. Eu olho para ele assim, eu já sei o dia em que ele está bem, o dia em que ele não está. E eu não durmo direito, porque se acontece alguma coisa com ele... A médica até esses dias passou um remédio para eu dormir e eu até tomo o remédio. Mas não consigo dormir. Essa noite ele teve muita dor, eram três horas da manhã eu estava lá, como um zumbi, cuidando dele. Fiz um chá de hortelã, dei para ele, aí ele conseguiu dormir. Mas tudo dele eu sei. E parece que eu sinto quando ele vai… Quando ele está se engasgando eu sinto. Como, por exemplo, eu vim aqui hoje porque eu sei que ele está bem, porque senão eu não viria. Se eu vou para uma balada sábado, eu vou para uma balada, eu sabendo que ele está bem, mas eu fico lá: “Igor…”. “Mãe, se o William não estivesse bem…”. Tanto que eu cheguei em casa, o Igor estava dormindo e o William estava acordado, me esperando. Eu falei: “Quem está cuidando de quem?” Não é? O Igor bem, lá no quarto dele, e o William lá no outro quarto. Falei: ‘Quem está cuidando de quem, William?” Aí ele olha bem para a minha cara assim, ele faz bico quando a gente fala com ele: “Quem está cuidando de você? É você quem está cuidando do seu irmão, não é?” Aí ele olha assim… Mas ele conhece a gente. Quando, tipo, você vai na minha casa pela primeira vez ele fica só observando a sua voz; se você vai na segunda vez, ele já sabe. Tem umas loucas que vão lá, são as piriguetes, elas falam: “E o meu cara? O William é o meu cara”. Ele já fica todo assim, assanhado. Então, ele conhece, eu já sei tudo do William, tudo dele eu sei. Eu só não estou preparada para perdê-lo, mas tudo dele eu sei.
P/1 – Você pensa sobre esse dia?
R – Não. Esses dias eu falei para o Igor: “O dia que Deus levar o William, a primeira coisa que eu vou fazer é a minha mala e sumir daqui”, falei para ele. Ele: “É, mãe”. Não, quando ele tem as dores, que eu tenho que levar para o hospital, eu já fico preocupada de chegar lá e falarem: “O William não vai voltar hoje, vai ficar internado”. Então, eu falo que eu sou a médica. A enfermeira, médica do posto, fala: “Você é uma mãezona, porque o William está muito bem. Pela doença do William, ele está muito bem, Patrícia, porque essa doença é cruel”. Teve… O ano passado foram três do mesmo tipo da doença dele, tudo novinho, com nove, dez, doze anos. O William está com vinte e cinco, ele é o mais velho do tipo dele. Então, não é fácil.
P/1 – Logo depois do diagnóstico, como que você foi se apropriando sobre a doença?
R – Aí foi mais fácil, não é? Porque aí eu comecei a conhecer, eu já fui no lugar certo, que é lá no Hospital São Paulo, o __________ (01:18:54), conheci umas mães, conheci… Tem uma que ela tem a Gi, que até usa… Aí eu fui entrando no Facebook, eu conheci a presidente do Instituto Vidas Raras, aí eles foram me adaptando, me colocando nos grupos, me colocando nas mães, comecei a ir aos eventos, saber mais sobre a doença mesmo, fui procurando saber mais, não é? Como é... Porque a gente tem que aprender. Por exemplo, há quatro anos ele se alimentava pela boca, hoje ele já não come, não se alimenta, tem quatro anos que ele colocou sonda. Eu aprendi a trocar a sonda, porque uma vez eu levei ao hospital, ficaram seis horas para trocar uma sonda que em cinco minutos você troca. Aí, uma mãe falou: “Pat, eu vou lá na sua casa e vou te ensinar”. Hoje eu troco tranquilo. Tem muita coisa que eu faço, que eu aprendi para evitar levá-lo para o hospital, para o médico. Porque eu pago para não sair com ele. Mas eu vivo cada dia um momento com ele, não é? Porque quando Deus levar, já era, não é? Aí não tem mais… Vou ter a consciência de que eu cuidei dele, não é? Muito bem.
P/1 – Eu queria que você falasse quais são os cuidados que ele exige.
R – Todos, A convulsão tem que ter... A convulsão não avisa quando vem. Não deixar ter ferida. Dar a dieta certinha, que é de três em três horas, muita água. Assim... Se tiver muita secreção, tem que aspirar, mas, graças a Deus, o William não tem. Tudo. É como você cuidar de um bebê recém-nascido, é a mesma coisa. Porque ele está ali, ele não sabe falar, ele não sabe pedir, a fome... Não sabe nada. Então, você tem que cuidar mesmo. Pedir a Deus para… Eu falo para Deus para não deixar ele sofrer mais do que ele já sofre. Se tiver que levar, leve do jeito como ele está ali, não ficar trancado no hospital. Como muitos ficam. Como aquele que você me mostrou, assim, eu acho que não suporto ver o William mais do que eu já vejo ele lá, sofrendo. E peço a Deus, também, para ter misericórdia do pai dele, porque o pai dele não fala, ele sente o amor que a gente tem por ele. Eu converso muito com ele, muito mesmo. Ontem, na hora do jogo, ainda falei: ‘Agora você vai…”. Eu coloco a blusa do Corinthians nele e falo: ‘Agora vamos assistir o timão”. Aí ele olha, como quem diz: “Minha mãe é louca”. Não é? É doida a minha mãe (risos). Eu converso, brinco, eu faço o aniversário dele; todo ano eu faço um bingo beneficente no aniversário dele. Para ele, para ajudar nas coisas, ajudar. Brigo na rua, semana passada a gente foi para um evento brigar. Passei no Balanço Geral, já passei no Brasil Urgente, por causa da dieta dele. O que tiver que fazer pelo William, eu faço. Pelos dois, mas o William porque precisa mais de mim, não é? Então eu sempre falo isso para o Igor: não ficar com ciúmes, porque o William precisa de mim e vai precisar até Deus levá-lo, não é?
P/1 – E qual é o maior desafio para uma mãe que tem um filho que é especial?
R – Saber o diagnóstico. Quando você sabe qual é o diagnóstico… Até quando você não sabe, pensa: amanhã ele vai ficar bem. Mas quando você sabe um diagnóstico, que você sabe que não tem cura, não tem o que fazer. Porque a doença dele tem sete tipos. A tipo 1, a tipo 4, a tipo 2 têm uma enzima que toma. Mas ameniza a doença, não cura. A do William não tem nem isso para amenizar a doença dele, a regressão dele, não é? E quando você chega ao hospital, os médicos olham, tipo assim, sabe? Já está acamado, vai morrer, não tem o que fazer. A médica do posto encaminhou-o para fazer Fisioterapia. Chegou lá, falaram que não tinha o que fazer: “Não tem o que fazer pelo William”, está acamado, já está morto, então está bom, não é?
P/1 – Em relação à acesso a apoio, pensando na saúde pública, qual é o maior desafio?
R – Tudo! Porque o William usa sonda, eu que troco em casa para não ter dor de cabeça. Ele toma uma dieta que é de trinta e um litros por mês. O governo só dá vinte, os outros onze eu que tenho que me virar. Aí, tem o frasco que é para pôr direto o equipo, que é para pôr para tomar - o governo não dá. Eu recebo LOAS, que está para tirar porque essa Previdência aí, se fizer a meta… Como o Igor... Se o Igor for trabalhar registrado, eu perco o LOAS. Então o Igor não vai viver porque o irmão… O que tem a ver o William com o Igor? Eu tenho quarenta e sete anos, eu nunca paguei INSS, se eu cair hoje doente, eu estou ferrada. E aí? Então, é terrível. Neste país em que a gente vive é muito triste viver com um doente, um acamado ou um idoso, a gente precisar do governo. Porque eu acho que eles tinham que dar mais qualidade de vida para as mães, porque muitas largam tudo para cuidar, não é? Não são todas que têm um home care, que têm um bom convênio, que têm um marido que apoia, não são todos. Eu conheço três que têm o marido que apoia, são uns ‘paizão’ que cuida... Como o William. Assim... Eles cuidam. Daniel é um excelente pai - o pai da Gi - ele trabalha fora, mas está presente. Então, é muito difícil. Muito. Mas eu costumo falar assim, que essas pessoas que não nos ajudam, família, lá na frente eles vão pagar um preço, não é? Principalmente o pai do William. O pai do William paga um preço muito alto. Ele já está pagando. Então, é assim.
P/1 – E como você se envolve na luta por esses direitos?
R – Ah, a gente entra nos grupos, não é? Tem os grupos. Aí uma mãe fala: “Tem direito disso, olha lá, Patrícia”. Ontem mesmo uma falou para mim que eu conseguiria aposentar o William. Eu falei que não, porque o William nunca pagou INSS. Ela falou: “Não, mas minha sobrinha... Minha cunhada aposentou a filha dela com autismo, com dois anos”. “Não existe”. Aí perguntei para a minha advogada”. Ela falou: “Não, o William nunca contribuiu, então não tem como. É só o LOAS mesmo que o William recebe”. E assim, a gente que vive de ajuda, a gente paga um preço muito alto, porque as pessoas… Algumas lhe ajudam, mas cobram de você lá na frente. Então, é difícil. Porque se você me ajuda, tem que dar de coração, não interessa se eu vou lhe devolver a ajuda ou não. Você tem que me ajudar de coração e não jogar na minha cara, não é? Eu falo assim que a gente tem que ter gratidão. Como eu ajudo a minha irmã mais nova... O que eu posso fazer. Então, ela tem que ter gratidão, eu cobro isso dela, não estou cobrando porque eu ajudei, mas a gratidão ela tem que ter por mim. Eu tenho que ter gratidão. Como... Tem uma moça, que ela me ajuda muito, a Roberta, ela me ajuda assim, se eu ligar para ela e falar: “Rô, eu preciso disso, paga o meu aluguel, paga isso para mim”. Ela me ajuda. Então, não tem dinheiro que pague o que ela faz por mim, nenhum deles. Todos que me ajudam, eu sei cada nome de cada um que me ajuda e eu peço a Deus para dar o dobro para eles, porque o que eles fazem por mim, a família não faz.
P/1 – E, Patrícia, como é que é o seu envolvimento com outras mães ou pais também que têm filhos com algum tipo de doença rara?
R – Ah, a gente conversa, porque cada um tem a sua luta, não é? Às vezes, a gente tem umas encrencas que a gente não aceita umas coisas aqui, outras ali, mas é bom o convívio. Eu não gosto muito de grupo, eu só participo do grupo das Mães Raras porque teve um evento, em dezembro, e trinta Mães Raras foram escolhidas para ir a esse evento... Foi um jantar, uma tarde assim… Num hotel chique e tudo, foi muito bom. E eu fui escolhida. Então, ainda falei para elas: “Eu não gosto de grupo, gente”. “Não, Pat, fica nesse grupo porque é mais experiência que precisa, tudo”. Aí, eu fico nesse grupo delas. Mas no Facebook tem um grupo de doação, tipo, se eu tenho alguma coisa para doar ou trocar com outra mãe, a gente troca. Só que,por esses dias, o Facebook bloqueou porque puseram remédio, venderam remédio… Isso eu também não acho certo. Se você pega do governo, por que você vai vender? Doa: “Dá para você trocar comigo por alguma coisa?” Tem umas mães… Eu sei que a gente precisa do dinheiro para comprar... Tenho que comprar onze dietas do William, então, se eu tenho alguma coisa que eu posso vender mais em conta, tudo bem. Mas tem mães que não, tem umas que usam isso... Uma vez eu discuti com um pai, porque ele tinha home care, tinha tudo e ele entrou no Mercado Livre e colocou uma dieta, que custa muito caro, lá para vender. E eu descobri. Aí eu printei e mandei. Aí, ele falou que ia me processar. Eu falei: “Você vai ser processado, porque você tem home care e você sabe que não pode fazer isso”. Então, doa. Se você não pode, você doa, não é? Se não está usando, sobrou, tem outra mãe que precisa. Tem dieta que custa quinhentos, seiscentos, setecentos reais. Tem mãe que não tem.
P/1 – Fale um pouco mais sobre esse grupo Mães Raras.
R – Então... Mães Raras tem uma presidente, que é a Regina Próspero; tem a Roseli, que é irmã dela, que é o braço direito dela. A Regina teve dois filhos com a mesma doença do William, o primeiro faleceu - o Vitinho - e tem o Dudu. O Dudu é o exemplo. Eu não sei a idade certa dele, mas ele já fez a terceira faculdade, esses dias ele se formou. Só que assim... Ele tem as limitações dele, a dele é tipo… Acho que é tipo 1 ou tipo 6 - a Mucopolise do Dudu. Ele anda, só que ele não enxerga mais, ele não escuta, mas ele se formou em advocacia, se formou em administração, e a Regina é uma guerreira. Porque ela perdeu o primeiro filho e foi à luta para ajudar a gente. No começo, eu não gostava muito dela, porque eu falava assim: “Tem essa Mães Raras aí, mas não ajuda a gente em nada, não explica nada para a gente”. Aí eu a fui conhecendo, hoje assim... Eu bato palmas, porque elas tentam fazer o governo ajudar a gente, não é? Porque é muito difícil, o governo não quer saber, não é? Mas é gostoso, a gente vê as experiências, cada mãe tem uma. Nesse grupo a que eu fui, nesse evento em que eu fui, as mães… Cada uma… Tem uma que está nos Estados Unidos lá, com a filha, porque a filha tem uma doença chamada NIC e tem que fazer os estudos lá. E lá ela está trabalhando como diarista para bancar lá. E o povo acha que ela está lá passeando, vivendo às mil maravilhas e não está. Não é porque a gente ri, que a gente põe uma roupinha mais bonitinha, que a gente está bem. Não é. Mas é muito bom a gente ter convívio com elas. Muito. A gente aprende muito.
P/1 – Voltando... Você estava falando sobre como a sua amiga lhe ajudou a…
R – Então... Elas ajudam e a gente pega experiência. Como quando o William começou a regredir, que ele chegou a pesar até vinte quilos, a gente já: “O William está magro, o que eu faço?” “Pat, leva no neurologista, leva na nutricionista, o William vai ter que usar sonda”. Como da primeira vez em que eu ouvi que o William ia ter que usar sonda, eu tive que levá-lo a uma consulta normal, aí a nutricionista viu que ele estava só pele e osso. Aí fez um teste com a comida, ele engasgou, ela falou: “Pode ir para o Hospital São Paulo agora que ele vai pôr a sonda nasal”. Eu, sozinha - porque toda vez que eu vou ao médico, eu vou sozinha com o William - eu fiquei desesperada: “Meu filho usar sonda?” Porque, para mim, nunca ia usar, não é? Chegou lá, colocaram a sonda nele, vim para casa sem saber como fazia. Aí, liguei para as mães. A gente vai trocando experiências, e assim aprendi. Três meses o William ficou com a sonda, essa amiga minha foi quem conseguiu a operação para o William, porque se dependesse eu estaria na fila até hoje - lá do Hospital das Clínicas - esperando para operar o William. Já tem quatro anos. Aí, ela conhecia um pessoal, fizeram a cirurgia no William e deu tudo certo. Hoje, eu troco a sonda dele normal, algumas coisas eu fico assim, meio em dúvida, aí eu ligo: “Fulano, ciclano…”. A Maria Lúcia é a que eu mais perturbo, porque a Maria Lúcia tem a… A Gi tem a MPS 3A, só que a Gi já está bem mais regredida, ela usa traqueostomia, o William não usa. Então... Mas é muito bom tê-las por perto, a gente ter convivência.
P/1 – E, Patrícia, o que você falaria para uma mãe que tem um filho com alguma doença rara e que ainda está naquele comecinho de não saber o diagnóstico ou de receber o diagnóstico? Está naquele susto inicial.
R – Ser forte, porque a gente tem que ser forte. Ser forte, porque eu costumo falar: “Gente, não adianta falar que ele vai regredir…”. Não, se for o tipo da doença do William, não vai melhorar, não vai ter cura, só se Deus arrumar uma pessoa do bem, aí sei lá, um cientista bom, e descobrir a cura. Porque não tem cura”. Então, não adianta você ficar se iludindo: “Meu filho vai andar, meu filho vai falar”. Não, não vai. É muito triste mesmo. Como eu falei para você no começo, que eu costumo dizer que a gente tem o filho para morrer, que a gente cria o filho para morrer, então, é ter força. E costumo falar, também, para os pais, não é? Acompanhar, mesmo que não esteja com a esposa, com a mulher, mas ter amor pelo seu filho, porque ele é um ser humano, não é? A gente tem amor por um cachorro, como não vai ter por um ser humano? Porque depois que Deus levar, não adianta chorar: “Meu filho…”. Não. E eu costumo falar que o dia que Deus levar o William, quem não esteve comigo na minha luta, não adianta ir lá chorar no enterro do William, não. Não adianta ir na minha casa me dar os pêsames, não. Muito obrigada. Porque assim... A gente precisa de ajuda financeira, mas a gente precisa de apoio, de conversar, de sair, brincar, rir. A Pat não pode sair? Vamos lá na casa da Pat tomar um café com a Pat. É disso que eu sinto falta. Minha casa vive vazia. Só eu, o William e o Igor. Isso eu sinto falta. E encarar a luta, porque não é fácil.
P/1 – Alguma vez você pensou em desistir de alguma maneira?
R – Muitas! Às vezes, dá vontade de sumir no mundo, muito! Muitas vezes eu pensei. Mas o William depende de mim, então eu vou levar até quando Deus permitir. E eu morro de medo de morrer antes dele. Porque quem vai cuidar dele? O Igor tem... Já é maior, tem a família… O William não tem ninguém por ele. Não tem. Eu não posso falar que a tia vai ficar, fulano vai… Não, o William não tem ninguém por ele, o William tem a mãe dele, que sou eu, e pronto. E que Deus me dê saúde para eu cuidar dele, porque senão, coitado.
P/1 – Patrícia, hoje é um dia especial, porque você falou para a gente que hoje é o Dia Nacional das Doenças Raras, certo?
R –
Sim.
P/1 – Eu queria que você falasse... Você acabou falando muito já sobre isso aqui, mas queria que talvez viesse alguma frase sobre o dia de hoje. Por que falar sobre doenças raras?
R – Porque doenças raras podem acontecer comigo, podem acontecer com você, podem estar na casa do Presidente, podem estar na casa do Governador, do Prefeito, e as pessoas têm que se conscientizar do que está acontecendo no mundo. Porque anos atrás você não via tantas doenças como estão existindo hoje. Então, as pessoas lerem mais, conviverem mais com as pessoas, seja com a Síndrome de Down, seja uma doença rara, seja um autista. Como o autista. O autista, você não vê que ele tem autismo. E as pessoas criticam muito um autista. Eu bato palmas para o Mion, aquele filho dele, ele é o cara, eu falo que ele é um paizão, que ele é o cara mesmo. E as pessoas… Não sei onde foi que eu vi uma matéria, foi essa semana que eu estava lendo, que os alunos... Teve uma festa e não convidaram o menino porque ele era autista. Gente, pode acontecer com você. Hoje você está bem, amanhã você pode estar na cama. Pode acontecer comigo, eu estou bem… As pessoas estão muito desumanas. Então, que elas pratiquem o amor, o amor ao próximo, tem que ter amor ao próximo. Eu costumo dizer que eu recebo muita ajuda financeira, mas não só financeira, o apoio para a gente. A gente precisa muito de apoio. As mães que têm filhos com doenças raras têm que ter o apoio. Tem uma que eu conheci - a Camila - ela é rara, ela anda com o andador e assim... Ela tem uma força de viver e tem um filho também. Eu conheço gente que tem três filhos com a doença do William. Três, gente. Não é fácil. Eu tive o William, aí quando eu tive o Igor, eu não sabia o diagnóstico. Quando eu descobri o diagnóstico, eu já fui operar, porque falei: “Não, não sei o dia de amanhã”. Então, é muito difícil, é muito difícil mesmo, mas é ter amor ao próximo e conhecer mais sobre as doenças. Que não são contagiosas - a doença do William não é contagiosa, a Síndrome de Down não é contagiosa. Tem que ter amor. Você vê dentro do ônibus, tem gente que não chega nem perto. Minha família mesmo, nem convida você: “Não vou convidar a Patrícia, vai levar o William, ah não, o William é não sei o quê…”. Não é assim. Eu deixo de ir em muitas coisas porque eu sei que tem lugares onde eu não vou poder levar o William mesmo, não tem como. Mas tem lugares que eu até posso tentar levá-lo - numa casa eu posso, porque ele pode ficar numa cama deitado lá e eu de olho nele. Mas as pessoas têm preconceito, infelizmente. Hoje é o Dia Mundial das Doenças Raras e eu falo para as mães terem força. Força mesmo e guerrear, e irem atrás dos seus direitos e lutar mesmo, porque a única coisa que a gente tem que fazer é lutar, não desistir nunca. E o “Não” não existe na nossa vida. não existe: “Seu filho não…”. “Não vai ter isso para o seu filho…”. Não. No dia em que o governo me negou um espessante que ele estava usando, eu falei: “Não”. Aí eu fui atrás da reportagem. No outro dia, passou, eles me ligaram. “Não precisava disso, não é?” Não é que não tenha, é que eles não querem dar, não querem ajudar. O governo poderia dar um salário para a mãe, a cuidadora, porque eu acabei sendo uma cuidadora, deixei minha vida para cuidar do William. Não me arrependo, mas e aí? Quando o William se for, o que eu vou fazer da vida? Ainda eu sei dirigir, sei fazer unha, eu vou me virar, mas tem outras mães que não sabem fazer nada, porque vivem ali em função do filho, não é? Então, é muito difícil.
P/1 – Patrícia, a gente está caminhando para o fim. Antes, Ju? Alê? Tem alguma história que você queira contar para a gente que eu não lhe estimulei a contar?
R – Não. Você perguntou tudo, um pouquinho de cada coisa da minha vida.
P/1 – Ou você quer falar sobre alguma outra coisa, também?
R – Não.
P/1 – Eu tenho mais duas últimas perguntas para lhe fazer. Mentira, três. A primeira, eu queria que você falasse como que surgiu essa paixão pelo Corinthians.
R – (risos) Corinthians é coisa de doido. Corinthians é desde o meu irmão, desde adolescente. Corinthians e Corinthians. Minha vida é o Corinthians, depois do William, do Igor, meu Corinthians (risos). Eu vivo pelo Corinthians, gosto do Corinthians. Às vezes, até digo que eu acho que estou exagerando. Ontem mesmo, quando ele ganhou, mudei meu status. O povo fica até doido de abrir o meu status, abrir o meu facebook, mas é uma paixão louca. A gente não ganha nada com isso, mas é uma forma de eu me divertir também. Quando eu pisei no Itaquera, eu ganhei de um grupo - porque eu entrei em um grupo da página do Corinthians - e eles deram ingresso para mim, para o Igor, e tudo grátis. A gente entrou lá, falei: “Meu Deus, não acredito que eu estou aqui dentro”. Foi muito bom. Os anjos me perdoem, mas aqui é Corinthians.
P/1 – Bom, as duas últimas perguntas, então. A primeira é: como foi para você vir aqui hoje contar a sua história? Como você se sentiu?
R – Aliviada, foi bom. Uma terapia para mim. Foi bom contar a minha história, porque tem muitas Patrícias por aí, muitas Marias por aí, que têm filhos especiais ou têm até outras histórias bonitas também. Se todo mundo pudesse contar, tivesse um tempinho para contar
sua histórias de vida… Bom, muito bom. Eu gosto. Eu me sinto uma guerreira, eu não piso em ninguém para estar onde eu estou hoje. Eu não tenho nada, não tenho casa, não tenho nada, mas eu tenho amor ao meu próximo. Isso eu tenho. Posso te dizer que eu tenho. Se a pessoa precisar de mim, eu faço. Se eu não puder, eu não faço, mas se eu puder, eu faço, seja amizade… Até com ex-marido, pai do Igor, eu fiquei bronqueada com ele, mas eu o ajudo. Ele não me ajuda muito, mas eu ajudo. Esses dias ele me pediu coisa emprestada. O Igor: “Eh mãe”. Eu sei que se eu fizer o bem, eu vou receber em dobro. Deus, eu tenho… Minha vida sou eu e Deus, a salvação é individual, eu estou aprendendo isso a cada dia. Como eu falei para a Anne, que esses dias eu fui comentar na página, porque apareceu... De lembrança, da minha irmã mais velha, e ela tinha me bloqueado. Aí, eu perguntei para a minha sobrinha: “Por que a sua mãe me bloqueou?” Então, eu falo que é mais fácil você ter o amor do próximo fora, sem ser da sua família, do que da sua própria família. Porque a gente não pensa igual, a gente nunca vai pensar igual, ser humano nunca vai pensar igual. Então, porque eu tenho diferenças com ela, ele foi lá e me bloqueou. Aí eu falei: “Agora então, não precisa mais me procurar também. E se acontecer alguma coisa com o William, não precisa também mais vir na minha casa dar desculpa, alguma coisa, não”. Porque tem que fazer para mim enquanto ele estiver vivo. Do contrário, não precisa.
P/1 – Para a gente finalizar, então, Patrícia, quais são os seus sonhos?
R – Meu sonho? Meu sonho é ter a minha casa própria, eu sempre falo isso. Ter minha casa própria, um carro, uma dignidade de vida melhor e a cura para doenças raras, é o meu sonho. Ter a cura para os que estão vindo por aí, porque eu sei que para o William não tem cura. Para Deus nada é impossível, mas eu sei que agora o William não vai ser curado. Mas para as próximas crianças que estão chegando aí. A cura, e a cura para esse mundo, não é? Esse mundo está precisando de cura, porque está feia a coisa, vai ficar mais feia ainda se não tiver Deus no coração. Pronto. É isso.
P/1 – Então, Patrícia, em nome do Museu da Pessoa, muito, muito, muito obrigada por ter vindo aqui hoje, foi uma delicia te ouvir, foi super importante te ouvir, foi incrível.
R – Obrigada.
P/1 – Obrigada mesmo.
R – Obrigada a vocês.
FINAL DA ENTREVISTARecolher