Programa Conte a sua História
Depoimento de Alois Bianchi
Entrevistada por Carol Margiotte e Gustavo Yamashiro
São Paulo, 21/06/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV687_Alois Bianchi
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Viviane Aguiar
R – Começando o inverno, hoje.
P/1...Continuar leitura
Programa Conte a sua História
Depoimento de Alois Bianchi
Entrevistada por Carol Margiotte e Gustavo Yamashiro
São Paulo, 21/06/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV687_Alois Bianchi
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Viviane Aguiar
R – Começando o inverno, hoje.
P/1 – Verdade, começando o inverno. O senhor queria falar alguma coisa antes, seu Alois?
R – Não, fiz a barba. Até a barba fiz hoje.
P/1 – O senhor está ótimo. Seu Alois, bem-vindo aqui no Museu da Pessoa, nessa calorosa manhã de começo de inverno. E, para começar, por gentileza, seu nome completo.
R – É Alois Bianchi.
P/1 – Local e data de nascimento?
R – 28 de maio de 1931.
P/1 – 31?
R – É.
P/1 – E o senhor sabe por que os seus pais te batizaram de Alois?
R – Eu tinha um parente com esse nome. Um avô. Na verdade, o nome inicial é do pai do Hitler, então, de origem austríaca também. Daí esse nome. Meu pai era de origem italiana, mas a minha mãe era de origem alemã. Mas de origem alemã aqui do Brasil mesmo. Daí, apareceu, aqui estou.
P/1 – E o senhor sabe como foi o dia do seu nascimento? A sua mãe contava a história sobre isso?
R – Olha, ela até pode ter contado, mas eu não tenho memória disso porque já faz mais de 80 anos. Então, não dá para lembrar mais. Mas foi normal, como o das minhas irmãs. Normal. Aquela época não existia tanto problemas, vamos dizer assim, obstétricos como tem agora. Normal. Pronto.
P/1 – E, falando dos seus pais, qual o nome deles?
R – A minha mãe é Paula Wöss, com “w” e “o” com tremas, porque é de origem austríaca, e Bianchi, que é o sobrenome do meu pai. Meu pai é Vincenzo, porque ele é de origem italiana, Bianchi. Bianchi na Itália é, em geral, “brancos” do meio da Itália, porque os de cima, do norte da Itália, mais perto da Europa são Biancos. Depois da média Itália, são Bianchi, Roma, as chegadas, e lá em cima, no sul da Itália, relacionados muito mais com a África, são os Bianchini. Chega?
P/1 – Falando ainda dos seus pais, o senhor pode contar um pouco sobre eles, sobre a trajetória deles?
R – O meu pai foi muito interessante porque ele tinha um irmão em Boston. Eles eram em 11 irmãos em Roma. Ele já tinha um irmão que morava em Boston. Então, eles iam contatar com esse irmão dele, ia de navio. O navio não foi direto para Boston. Ia primeiro para a Argentina. Quando ele ia para a Argentina, desceu em Santos, subiu para São Paulo, adorou São Paulo e aqui ficou 42 anos. Nunca mais voltou para lá. Voltou depois. Mas ficou 42 anos porque ele adorou São Paulo, já em 1927, 1928 por aí, e continuou aqui. E continuou aqui. Ele já estava completando a idade de atender o Serviço Militar na Europa, depois não voltou mais, pegou os documentos do irmão, aí, ficou aqui. Pouco tempo depois, teve uma revolução aqui, mas ele gostou da revolução. Não quis fazer exército, mas gostou da revolução. Por isso, ele foi parar em Mato Grosso. Depois, voltou para São Paulo e ficou aqui. Casou aqui e ficou.
P/1 – E ele contava a história dessa vinda para cá, como foi?
R – Não, era muito curta. Eram muito curtas essas coisas. Ele era mecânico. Falava só italiano, depois aprendeu português. Adorou aqui e pronto. E continuou adorando. Continuou adorando até o fim da vida.
P/1 – E a parte da sua mãe? Da história da sua mãe?
R – Minha mãe era de origem austríaca, que era um grupo de austríacos-alemães que tinha ali para os lados de Santo Amaro, por ali. Ela é brasileira mesmo. Por isso esse sobrenome de W-ö-s-s. “W”, com trema em cima. É austríaco, né?
P/1 – E o senhor sabe como eles se conheceram?
R – Ah, esses detalhes não têm. Naquela época, não conversava isso em família. Não existia isso. Quer dizer, existia entre eles. Mas a gente não ficava sabendo. E, aí, depois eu, quando eu tinha mais ou menos cinco ou seis anos, eu fui frequentar uma escola alemã que existia aqui, que era no Alto de Santana, onde tinha uma pequena comunidade alemã. Então, lá eu fiquei mais ou menos um ano e pouco. E, aí, teve a guerra, em 39, teve a guerra, a escola no fundo teve que ser fechada. Então, a gente foi para casa. Depois entrei no grupo escolar. Mas foi na época que os alemães, os italianos e possivelmente os japoneses tiveram que se afastar do convívio social do dia a dia. Mas acho que todo mundo continuou aqui feliz da vida.
P/1 – E, senhor Alois, o senhor chegou a conhecer seus avós?
R – Não. Não os conheci porque a idade não permitiu, e a localização, né? Meus avós estavam na Itália, aqui a gente não tinha intimidade. Não conheci mesmo.
P/1 – E, da parte da sua mãe, o senhor conhece a história de como eles vieram para o Brasil?
R – Não. Não tem essa história. Quer dizer, tem. Mas a gente não ouvia, não sabia.
P/1 – E só para deixar registrado – tudo bem se o senhor não souber –, o nome deles, dos avós?
R – Uma chama Sofia Wöss. Outra era... Ah, esqueci.
P/1 – Tudo bem, é mais para, se soubesse, deixar registrado. E, Seu Alois, fala um pouco da infância do senhor, onde vocês moravam?
R – Num bairro que chamava Santa Teresinha. Era no Alto de Santana. Perto da base da Serra da Cantareira. Naquela época, eu morava numa casinha bem pequenininha, que era geminada, a rua chamava Estrada do Bispo. Então, naquela época era estrada, tão longe era, que desembocava no Lauzane Paulista. Era um time de futebol que tinha lá. Tinha um campo de futebol. O resto era tudo matagal mesmo. Hoje tem prédio. Naquela época, não tinha nada.
P/1 – E o senhor consegue descrever para mim como era a casa em que vocês moravam?
R – Era um sobradinho geminado e tinha quarto, sala, cozinha e o banheiro lá no fundo do quintal, que antigamente o banheiro não era dentro de casa, era no fundo do quintal. Chega. Dava para criar galinha, mas não cachorro naquela época, senão, ele se alimentava demais. Galinha.
P/1 – E o senhor teve irmãos?
R – Duas irmãs mais jovens, não sei se você quer o nome ou não, A Dalva, que tem três anos a menos que eu, e a Diva, que tem três anos a menos que a Dalva. Vivem ainda, moram ainda em Santa Teresinha. As duas. Cada uma mora numa casa.
P/1 – E o senhor pode contar como era a convivência com elas nessa infância?
R – No começo, era agradável, porque a gente sempre tinha aquela baita noção de família. Noção de família, de pai, mãe, escolaridade. As escolas ensinavam muito o que era noção familiar. Inclusive a escola oferecia situações em que isso se apegava. Eram festas eventuais, de meio de ano, na própria escola, onde os pais eram convidados, ou pequenas viagens que se fazia naquela época até Santos. Ia de trem. Então, você passava o dia lá. Conhecia o mar. São coisas pequenininhas naquela época e fáceis naquela época, não nos dias atuais, né?
P/1 – O senhor se lembra da primeira vez que fez essa viagem até Santos?
R – Lembro.
P/1 – Consegue contar para mim como foi a viagem?
R – Detalhes não sei. Mas foi de trem. A gente tomava um ônibus, ia até a Estação da Luz, tomava-se esse trem, ia até lá, lá pegava um bonde. Tinha bonde naquela época, tinha um bonde que ia até as praias. Depois, voltava o mesmo caminho. Fugia do sol. Todo mundo tinha que levar lanche. E assim por diante. Não tinha restaurante.
P/1 – Que tipo de lanche sua mãe organizava?
R – Era sanduíche para viajar. Sanduíche e uma fruta. Não pergunta qual era a fruta que eu não sei.
P/1 – E o senhor se lembra da primeira vez que viu o mar?
R – Aí, foi interessante. Era um dia bonito, sol, a gente saía cedo daqui, mas chegava lá quase que nove e meia, dez horas. Naquela época, muito bonito o mar, agradável, com pouca gente, não tinha ninguém na praia. É claro que a gente ia em Santos. Santos, a praia era o Gonzaga mesmo, não tinha ninguém. Ainda mais que era dia de semana.
P/1 – E em casa tinha divisão de tarefas?
R – Praticamente não. O pai trabalhava fora, a mãe tocava a casa. Sempre foi assim. E os filhos só ficavam lambendo lá em casa.
P/1 – E quais eram as brincadeiras de infância em casa?
R – A gente tinha poucos vizinhos na época porque as casas eram afastadas uma da outra. Então, você não tinha muita, não tinha... O rádio estava iniciando. Naquela época, você não ficava ligado no rádio, claro, não tinha televisão, nada disso. Era brincadeira do dia a dia. Mas lembre-se de que 80 anos atrás não é fácil lembrar, viu, dona?
P/1 – E teve alguma brincadeira com as suas irmãs que era sempre aquela que vocês faziam?
R – Ah, não tinha. Não tinha. Elas eram pequenininhas. Não tinha. Muito pequena, muito jovem. A história mesmo começou melhor quando eu entrei no ginásio. Naquela época, era ginásio. Chamava-se Alfredo Pucca, ainda existe mais ou menos no Centro, perto dos Correios ali. Era ali perto dos Correios. Começou por ali. Fiz o curso inteiro. Não era um curso muito forte porque depois eu fui fazer vestibular, eu só tive que fazer três vezes para passar no vestibular. Não era fácil, era uma concorrência muito grande mesmo, para valer. Na verdade eu fiz quatro anos. Fiz dois repetidos, um ano eu não fiz porque não tinha verba suficiente, e, aí, eu fiz mais uma vez. Na terceira vez, na terceira vez do exame que eu consegui passar. Entrei aqui na Faculdade de Medicina. Mas, por uma tendência própria, porque não tinha na família médico, nada disso. Depois de uma certa idade, a minha mãe se tornou obstetra, obstetrícia. Fez um curso, me lembro até hoje o nome desse professor, chamava Raul Briquet, curso de três anos, e ela virou obstetrícia da área dela lá. Santa Teresinha, chama. Fez um monte de parto etc. etc. E eu fui para Medicina.
P/1 – Então, conta para a gente como surgiu esse interesse pela Medicina?
R – Não sei. Apareceu sem nada. Não tinha médico na família. Não tinha nada. Talvez pelo fato de fazer leituras frequentes, ouvir o rádio, essas coisas. Mas não tinha nada de especial. Nem do lado do meu pai, que tinha mais dez irmãos, irmãos e irmãs, nem do lado da minha mãe. Nasceu. Acho que eu não tinha juízo e continuei sem juízo.
P/1 – E o senhor se lembra, no dia da inscrição, a opção por Medicina, o senhor consegue contar como foi chegar em casa e contar que tinha feito essa opção?
R – Ah, não. Era assim. Nós entramos em 80 na Faculdade de Medicina. Naquela época, eram 80. Tinham três de fora, três internacionais. E nós, 80 nacionais mesmo. E no começo você só tinha aula do dia a dia. Mais ou menos do segundo para o terceiro ano que começaram as opções. Então, eu, por exemplo, escolhi Pediatria porque naquela época eu estava começando a residência de Pediatria. Além de você ter a formação básica de seis anos, você tinha mais dois de residência. Foi aí que eu escolhi residência em Pediatria. A minha turma de Pediatria foi a primeira turma de Pediatria mesmo, como residentes. Nós éramos em seis. Naquela época, fomos todos pediatras, ainda todos vivos, eu não sou capaz de citar os nomes para não esquecer ninguém. Mas ainda vivos. A maioria não exerce mais a atividade ainda.
P/1 – Antes de a gente chegar nessa parte, eu queria voltar lá para o começo do curso. Como que os seus pais receberem essa notícia dessa escolha por Medicina? Quais eram as sensações que seus pais tinham?
R – Claro que eu não lembro detalhes, mas eles ficaram felizes da vida, principalmente pelo fato de ter entrado da Faculdade de Medicina, que era uma. Só tinha Faculdade de Medicina. Tinha a Escola Paulista, que estava começando, e posteriormente começou a Santa Casa. Ficaram felizes da vida, morava longe, eu morava em Santa Teresinha, estudava. A Faculdade de Medicina era aqui na Doutor Arnaldo, em Pinheiros. Para movimentar, era difícil, porque você tinha que tomar bonde, naquela época. O bonde ia até o Largo São Bento, ou a pé. Bem trabalhoso. Tanto é que algumas ocasiões, quando o curso ficou muito apertado, a gente até morava nuns casebres, nuns buracos, vamos dizer assim, ali perto da faculdade. Porque, senão, não dava. Trânsito e a movimentação também. Eram muitas horas de locomoção. Para ganhar tempo.
P/1 – E como foi a comemoração quando o senhor soube que tinha passado em Medicina?
R – Faz o curso e pronto. Faz o curso e acabou.
P/1 – Mas como o senhor ficou sabendo que tinha passado?
R – Saía no jornal. Uma listinha no jornal saía. Eu não me lembro qual jornal que era, mas saía a listinha lá. E eu passei lá no fim, 67°, para 80 vagas.
P/1 – E o senhor se lembra desse dia, como foi receber o jornal e ver? O senhor consegue contar desse dia?
R – Sabe o que é, filhote? Naquela época, era uma coisa do dia a dia. Não era como entrar na faculdade, sai, alegria, sai, festeja. Não, era do dia a dia, tua obrigação, vai fazendo aí e acabou. Não tinha. Você tinha que começar a calcular como ia ser tua evolução lá, de trabalho, de frequência etc. Naquela época, meu pai era chofer de táxi, então, algumas vezes ele facilitou até, que existia um táxi que ia, não da Praça Patriarca, do Mappin, em frente ao Teatro Municipal, ia pela Teodoro Sampaio etc. Chamava-se lotação. Naquela época, várias pessoas iam no mesmo táxi até o bairro. Então, isso facilitou algumas vezes quando tinha que pegar o táxi. Pegar carona.
P/1 – E o senhor se lembra das primeiras aulas?
R – A minha turma já começou entrando em greve. Então, nós éramos 80 e uma pessoa – não vou citar nome – tinha passado numa faculdade de Medicina lá no Nordeste. E a pessoa, o pai tinha muita influência, naquela época era militar as coisas. E tentou, matriculou ele aqui na faculdade também. Nós entramos em greve, né? Durante dois meses. Entramos em greve, mas tínhamos, no fundo, apoio da faculdade porque era duro entrar na faculdade aqui, vinha um de fora entrar lá? Então, a gente tinha aula no jardim, tinha aula, dois meses. Até que a pessoa desistiu. Aí, nós voltamos às atividades do dia a dia. Mas sempre foi assim.
P/1 – E quais os primeiros desafios de ter aula de Medicina?
R – A gente enfrenta anatomia. Naquela época, anatomia era com cadáveres, fragmentos de cadáveres, pedaços de cadáveres. Tinha lá um cheiro de formol, essa coisa toda. Mas todo mundo fazia. Tudo era entusiasmado. Porque ninguém era muito – entre aspas – ninguém era naquela época muito “grã-fino”. Estou usando grã-fino, não citando mal como nome. Mas todo mundo tinha poucos recursos. Então, era de muito estudo e muito trabalho. E foi uma época em que pela primeira vez entrou um grande número de mulheres na faculdade. Nós éramos 80, naquela época, já teve 12 mulheres do sexo feminino. Foi uma raridade aquilo. Mas um convívio muito humano, muito tranquilo, muito sério. Também uma coisa que tinha naquela época: eram poucos orientais na minha sala. Naquela época, não tinha muito oriental. Na minha turma, acabou tendo oito ou nove orientais. De origem oriental, né? Oriental nosso aqui. Também foi uma raridade.
P/1 – E como era essa convivência com a turma mesmo da sua sala?
R – Muito boa. Muito séria, muito honesta, muito verdadeira. Até hoje, depois de tantos anos, nós ainda conseguimos nos reunir, uma vez por ano, às vezes até duas. Ainda dos que estão vivos, nós nos reunimos em 60 e poucos. O resto, “Pedrão” levou.
P/1 – E, antes de a gente chegar na parte da especialidade, eu ainda tenho umas perguntas para fazer. Nessa época de graduação ainda. Teve algum professor que tenha sido marcante, como uma figura inspiradora dentro da Medicina?
R – Praticamente todos eram. Não vou citar nomes. Mas todos eram mesmo chegados à gente. Não era aquela distância, não. Até que a minha turma, por exemplo, tinha um colega que está me fugindo o nome, nós fizemos o primeiro Projeto Rondon, que eram estudantes que visitavam os índios lá em Mato Grosso. E nós fomos visitar os índios lá em Mato Grosso. Fomos os primeiros. Não tinha esse Projeto Rondon. Foi o primeiro projeto de visitar os índios lá, nos enfiamos lá no meio das tabas dos índios, para fazer exames de fezes neles lá. Uma coisa simplória. Até pela primeira vez, foram descritos uns parasitas intestinais – aí eram assistentes, não éramos nós, estudantes – nos índios lá. Uns parasitas que não tinham por aqui. Ficamos no meio dos índios.
P/1 – E como que foi essa proposta de ir até lá? Como chegou até vocês?
R – O nosso grupo era um grupo muito dinâmico, muito “inventador” de coisas. E um dos colegas, ele era de origem portuguesa, é que foi mais o incentivador da feitura dessa visita no meio dos indígenas. E muito interessantes os indígenas, naquela época, eram. Eram índios mesmo. Não eram pelados, mas já eram índios com roupa etc. Ficamos lá um mês no meio deles. Ganhamos um trem. Ganhamos 13 vagões da Sorocabana. Naquela época, era o governador, presidente, o Jânio Quadros. E ele nos cedeu esses vagões que podiam grudar – eram 13 vagões –, que podiam grudar em qualquer trem conforme nós fôssemos andando. Ele entendeu isso. O cara, naquela época, já era bem pensante para o desenvolvimento.
P/1 – E como vocês organizaram essa viagem? O que vocês levaram – tanto pessoal, quanto para fazer o exercício da atividade?
R – Ah, não tinha grandes... Comíamos onde, dormíamos onde, ou quando chegava naquelas cidades, não pensa que eram baitas cidades. Cidadezinhas, dava para comer, dava para... Também para eles que nos recebiam, também era uma novidade fantástica. E tinham o interesse em nos participar, nos ajudar, nem sei se era comida de índio.
P/1 – E quando o senhor chegou nessas cidades, quais suas primeiras impressões?
R – Ah, eram indígenas mesmo, né, bem? Eram silvícolas, não tinha muito o que... Aquilo que você vê nos dias atuais ainda, quando tem um bom programa. Era bem simplório. Eles moravam naquelas tabas, muito de qualquer jeito. Não tinha um capricho, não. Acho que nem para banho eles tinham muito capricho.
P/1 – E onde vocês dormiam?
R – Em geral, nós dormíamos no trem. No trem mesmo. Em geral, no trem. Raramente dormia... Tinha uma ou outra cidadezinha que tinha prefeito, mas raramente. A maioria dormia no trem. Esse trem que ele nos cedeu. Ainda, de nós, ainda tem alguns vivos que frequentaram esse passeio aí.
P/1 – E teve algum atendimento nessa viagem que o senhor fez que tenha sido marcante? Alguma história curiosa que aconteceu?
R – Além desse parasita intestinal lá, foi o mais marcante. O resto foi só o dia a dia. Não tinha nada. Media a pressão, naquela época, nós colhíamos o sangue deles para ver o que eles tinham, nada sério.
P/2 – E vocês ficaram um mês em uma vila só, uma aldeia só?
R – Não. Andamos em cidadinhas. Foi Aquidauana, Cuiabá, nós fomos na capital, mas na capital nós ficamos pouco. E mais algumas cidadezinhas lá, que agora eu não me lembro. Paramos em quatro lugares. O trem ficava na estação lá, em um desvio, utilizava isso, porque realmente a minha turma foi uma turma muito avançada nesse sentido. Tanto é que a minha turma é que teve os primeiros residentes de Pediatria. Mas, em si, era médico em geral. Seis foram para lá. Até quando eu fiz a residência de Pediatria, era curioso. Eu fiz dois anos de residência, eu terminei a residência em 1963, eu recebi um convite... Não, antes disso, eu já estava no Samdu, Serviço de Assistência Médica de Urgência – não é Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], é Samdu que dizia –, em que você podia trabalhar e recebia. Então, a partir do... Você podia fazer isso a partir do quinto ano, do quinto ano da faculdade. E você recebia uma parte. Então, isso já ajudava muito, porque você trabalhava, dava plantão. Era Jundiaí, Santos, Santo André, mais uma cidade, não era Campinas, era Jundiaí só. Enfim, você podia fazer isso. Aí, quando eu terminei a residência, eu recebi o seguinte telefonema do professor, esse eu vou citar o nome, porque foi famoso, professor Binda Guido Filho. Ele era um professor relacionado ao tórax, era um atleta, era forte, bonito, morava em São Paulo, ele me deu um telefonema: “Você não quer vir trabalhar aqui como pediatra?”. “Ah, professor, não sei nada de Pediatria.” Ele falou um palavrão e falou: “Ninguém sabe nada”. Falou um palavrão. “Ninguém sabe nada. Pode vir!” Ele que começou a Oncologia. A Oncologia começou aí. Depois da residência de Pediatria, não existia Oncologia, câncer de criança. E realmente aí eu fiquei dez anos sozinho, toquei muito a vida. Aí, começou a vir mais gente de fora etc. Não consegui ir para fora estudar a Oncologia Pediátrica, foi aqui mesmo. E fomos apanhando e ganhando lentamente o índice de mortalidade. Quando a gente sabia fazer o diagnóstico, era grande. Acho que 80% morria porque não tinha recurso também.
E depois foi aparecendo aos pouquinhos, nem se compara com os dias de hoje, que é ao contrário. Hoje, 80% das crianças com câncer são curadas, mais ou menos. O resto é que ainda sofre por causa das dificuldades no atraso do diagnóstico, chegam tardiamente nos centros hospitalares, e hoje o Brasil inteiro tem. E muitos desses colegas que estão na Oncologia mesmo, aqui em São Paulo, foram filhotes lá no Hospital do Câncer. E quem cuidava do Hospital do Câncer era Dona Carmem Prudente, que não era médica, o marido era médico, e eles fizeram o Hospital do Câncer. Eles fizeram, construíram o Hospital do Câncer. Uma área enorme. Eles, hein? Com aconchego, com doações etc. E um hospital que até hoje está lá. Grande e bonito. Você vê. Há quantos anos? Muitos anos. Não vou fazer conta.
P/1 – E, Seu Alois, como foi começar a estudar uma especialidade que ainda não existia?
R – Foi duro. Porque eu fui, então, fui terminar a residência, recebi esse convite do Binda Guido Filho. E, nossa, apanhei para burro, porque a grande sorte é que tem um andar inteiro lá do Hospital do Câncer, que é em uma extremidade, que tinha mais ou menos 60 e poucas vagas, e era cuidado por umas enfermeiras da Cruz Vermelha Alemã, Deutsches Rotes Kreuz, que eram as enfermeiras da Cruz Vermelha Alemã. Ficaram muitos anos lá. Então, esse aconchego foi muito bom. Passei também a aprender, ler, ouvir, telefonar. Tinha uma colega brasileira que era formada há pouco tempo, que estava nos Estados Unidos. E a mãe dela morava aqui em São Paulo. De vez em quando, ela telefonava. Então, a gente tirava umas dicas dela. Foi interessante. Valeu a pena.
P/1 – E o senhor se lembra dos primeiros pacientes?
R – Ah, não, não dá. Dos pacientes que eu nunca me esqueço, um era uma criança que tinha retinoblastoma, um tumor no canto dos olhos, mas ele já tinha sido operado, então, ele não tinha os olhos. Era um menininho pequeno, retinoblastoma, era pequeno, tinha lá uns três, quatro anos, andava na enfermaria. A enfermaria era livre. As pessoas dormiam lá. E nós tínhamos um mongólico junto. Estou falando um episódio. Não foi no começo. Foi no meio. Nós tínhamos um mongólico grande, forte, ele tinha um dez, 12 anos – que a gente internava criança até os 12 anos. Esse mongólico tinha uma leucose, porque os mongólicos têm uma tendência a ter uma doença neoplásica. E ele era bravo. Bravo e gritava e batia nos outros. E, além de tudo, ele era forte. Então, todo mundo tinha medo desse mongólico. Mas, quando esse mongólico via o pequenininho sem os olhos, ele saía correndo. Tinha medo. Ele tinha medo do pequenininho. Então, isso foi marcante. Porque tinha que fazer dormir nos quartos. Aquelas coisas. Imagina. Não tinha como mandar embora. O que mais você quer saber?
P/1 – Como foi construir uma especialidade tão nova?
R – Foi bom. Realmente a gente apanhava. Tinha que fazer, existia uma visita semanal das crianças com câncer com os médicos do hospital. Mas não tinha Pediatra. Então, eram fragmentos que vão se adaptando, um daqui, outro de lá, fragmentos que foram se criando dentro do hospital, que hoje é enorme. Fora o fato de que hoje tem diagnóstico mais precoce, tudo isso. Naquela época, nem se sabia o que era câncer, apanhava. Hoje não. Hoje, tudo o pessoal da Escola Paulista, o Graacc [Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer], eles foram filhotinhos lá. No Rio. Foi criando gente.
P/1 – E teve algum momento em que o senhor ficou em dúvida de seguir essa carreira?
R – Não. Pelo contrário. Não era. Eu era pediatra oncologista. Eu vivia da Pediatria. Não vivia da Oncologia. Vivia da Pediatria. Eu passei no Hospital do Servidor Público Estadual, no Ibirapuera, fui para lá e lá eu fazia Pediatria. Lá é que eu tinha salário. Então, eu ia de manhã para o Hospital do Câncer, de tarde eu ia para o Hospital do Servidor Público do Estado. Aí que eu recebia. Mas não tinha nada a ver com câncer. Era totalmente diferente. Mas começou a ter experiência, começou a ter propagação, propaganda etc. Só no Hospital do Servidor Público, ele nasceu e cresceu grande. Então, ficou muito fácil tocar a vida lá. Com muito carinho, inclusive.
P/1 – Nesses primeiros serviços remunerados que o senhor começou a fazer, como que o senhor administrava o dinheiro? Com o quê o senhor gastava?
R – Péssimo. Eu nunca soube usar bem o dinheiro. Porque, além de tudo, eu também voltei a trabalhar, eu voltei a dar plantão do tipo Samdu, mas era outra coisa, era fora. E eu sempre fui mal administrador de dinheiro. Então, eu deixava para Ana, minha esposa, ela sabia administrar melhor do que eu. Precisava saber gastar o que tinha. Mas não gastar exagerado. Gastava, precisava comprar isso, aquilo. Mas o resto da economia, a Ana, ela também foi professora de Geografia e História, também ela tinha o salário no começo. Depois, as crianças foram ficando grandes, já não dava mais, eu não sei o tempo, enfim, para tocar a vida lá. Foi bom.
P/1 – Eu quero saber da Ana, mas ainda eu tenho algumas perguntas com relação à Medicina, Seu Alois. Porque a Medicina de antes é muito diferente da de hoje. Não só pela especialidade, mas o próprio hospital, o espaço. Como eram as pessoas, como chegava a demanda de um paciente infantil para o senhor?
R – Na Pediatria dia a dia? Na Pediatria dia a dia, porque era Pediatra, você frequentava habitualmente maternidades. Então, naquela época já tinha Maternidade São Paulo, não sei o quê, já existia Pro Matre Paulista, naquela época. A Pro Matre era mais velha do que eu até. Então, a gente foi criando nome e com frequência você era chamado nas maternidades. Tinha a Maternidade São Paulo, que, com os anos, fechou. Então, você ia nas maternidades ver as criancinhas. E as criancinhas depois se tornavam os seus pacientes, os seus clientes. Diferente dos caminhos que seguem nos dias atuais. E eu, aí, tinha consultório, consultório que nós abrimos na Rua Itapeva até hoje. Nós éramos em quatro, agora só somos dois porque os outros dois, “Pedrão” levou. Então, isso continuei como uma clínica grande de Pediatria porque, além de tudo, tinha o suporte da Oncologia Pediátrica porque estava na moda. Ficou uma moda ficar falando em câncer de criança. Então, isso ajudou a tocar a vida. O dia inteiro isso. Mas valeu a pena sim. Isso foi uma novidade bem boa.
P/1 – E, nesse começo, onde o índice era 80% que não tinha cura, como era lidar com essas perdas?
R – Terrível. Terrível. Terrível. Tanto é que, dentro das salas, dentro do Hospital do Câncer, tinha umas salinhas que eram para deixar quando as crianças estavam em estágio final, para não ficar junto com os outros. Foi indo, foi indo, foi indo até melhorar evidentemente. Eles tinham sim. Era um cuidado danado. O maior, um dos casos que eu nunca me esqueço é o seguinte. Trabalhava todos os dias. Um sábado, na hora do almoço, tinha o degrau. Hoje, o Hospital do Câncer não tem mais degrau, por causa da dificuldade de acessar. Tinha o degrau de saída para a rua do hospital. Vem um colega meu, colega de turma, com uma criança no braço – era sábado na hora do almoço, nunca me esqueci –, sangrando. Bom, aí, era uma leucemia aguda. Internamos a criança no sábado. Essa criança era uma menina de dois anos e pouco. Não vou citar nomes, porque não vale a pena. Aí, foi, conseguimos tocar a vida. E estava tendo no Memorial Hospital aquela doutora, cuja mãe morava aqui, ela ficou famosa lá no Memorial. Então, telefonava para ela, não sei o quê. Como o meu colega era um colega boa gente, era o terceiro filho dele, terceira filha, não, quarta filha dele, ele era do interior. Então, eu falei: “Então, você vai para lá”. Falou: “Não, eu nem sei falar inglês, nunca fui para os Estados Unidos”. Falou uns palavrões, xingamos, brigamos, lá foi ele. Foi lá, foi atendido. E ela ia, ficava lá dois, três, quatro dias, cinco dias, ficava uma semana. Ficava um mês aqui. Ele tinha recurso. Ele era do interior. Ele tinha recurso. E ela ficou. Essa moça existe até hoje. Tem dois filhos grandes até. Então, ele, de lá, às vezes ele ligava. Porque telefone não era fácil como hoje, precisava pedir para fazer a ligação. Ele falava, eu falava um palavrão, aquelas coisas de médico. Xingava, quando ele queria vir embora. “Não sei falar nem inglês.” Falava: “Burro!”. Ela é essa criança aí, essa mãe vive até hoje, tem dois filhos, casou, se salvou. Então, você vê, era uma leucemia linfática que chegou sangrando. Ela é bonita até. Eles são meus amigos até hoje.
P/1 – E como é essa relação do senhor com esses pacientes e as famílias até, porque são crianças?
R – Criança em termos. Criança em termos, porque chegou um certo momento, nós passamos a atender criança até os 18 anos de idade, naquela época. Porque hoje a divisão de Oncologia Pediátrica está mudando um pouquinho. Vai até a adolescência, da adolescência até a juventude, vai outro grupo de pacientes. É outra patologia já. Isso está começando. É até agora que está com essa divisão assim no mundo inteiro. Então, foi. Como eles eram pacientes do Hospital do Câncer, estou falando, não estou falando do dia a dia. Não eram pacientes especificamente seus. Eram do hospital. Não tinha aquela ligação etc. Tinham muita ligação com as enfermeiras da Cruz Vermelha Alemã, naquela época. Depois foram embora. Então, tinham uma ligação porque elas moravam lá dentro. Moravam no hospital. Tinha um prediozinho que era delas. Elas moravam dentro do prédio. Ainda existe isso. Tantos anos. Mas não tem mais enfermeira da Cruz Vermelha Alemã lá. Mas foi famoso isso.
P/1 – E por que elas ficavam com vocês? Como era a atuação delas?
R – Porque a Dona Carmem Prudente – que ela e o marido construíram o hospital – tinham estado na Alemanha e teve uma ligação. E ela trouxe essas enfermeiras, que ficaram lá no hospital. Recebiam pelo hospital e pela Cruz Vermelha Alemã. Então, elas ajudaram muitos anos lá. Vinham de fora. Era voluntariado, teoricamente. E o hospital era localizado em uma situação difícil naquela época. O acesso tinha que ir de bonde, você já imaginou? Não era fácil.
P/1 – Tudo bem se eu falar ainda sobre a questão de óbito, Seu Alois?
R – Sim, horrível, mas fala.
P/1 – Prometo que é a última em relação a isso. Teve algum paciente que tenha sido marcante e que tenha entrado em óbito e que tenha sido marcante para o senhor pelo processo dele de tratamento?
R – Esse caso que se salvou foi marcante. Você vê que até hoje eu conto, ainda mais que o pai dessa criança é vivo até hoje. É médico também. Mas não exerce mais a profissão. Mas os outros eram muito tristes. Muito dolorido. Acho que não consegui criar um que ficasse marcado perto de mim, pelo fato de ter falecido. Era muito marcante. Tanto é que nós temos uma área reservada só para esses que entravam em óbito.
P/1 – E como era na equipe essa discussão de como o paciente ia para essa sala?
R – Existia uma... Depois, eu tive outros colegas que foram trabalhar comigo lá. Então, realmente a gente via o que já tinha sido feito, o que mais tinha para fazer, consultava a literatura médica, e se sentia na dependência da saúde, então, você propunha para a família. Então, a família que ia lá era família simples, porque era um hospital grátis naquela época. Era gente simples. Eles aceitavam o problema porque eram bem tratados, bem cuidados, eles participavam muito. Raramente, teve paciente que quis ir embora no fim da vida. Eu tive um casinho. Esse eu até me lembro. Ele morava no interior do Maranhão. E apareceu lá no Hospital do Câncer com uma criança pequena, de uns três, quatro anos. Uma menininha. Um pouco menos, uns três anos, não chegava. Ele chegou lá. Aí, a gente internou, cuidou, começou a cuidar. E ele era simples, sabe daqueles que usavam aquele chapéu, do tipo alto assim? Do interior do Maranhão era. Ele conseguiu vir no Hospital do Câncer porque ele ganhou um radinho, e no radinho que ele ouviu essa história que tinha o Hospital do Câncer. Então, ele fez todo um trajeto. Ele foi até o Ceará, do Ceará ele entrou na Bahia. Da Bahia, ele pegou uma carona de caminhão, foi parar em Belo Horizonte, naquele tempo. Foi parar em Belo Horizonte, de Belo Horizonte ele veio para São Paulo. Bom, aí, arranjamos emprego para ele numa construção do lado, ele era pedreiro. Arrumamos emprego para ele lá. Ele era um homem esforçado, pequeno, mas bem esforçado. Então, ia fazer uma pausa no tratamento da criança dele. Cheguei para ele e falei: “Olha, nós vamos ficar mais ou menos um mês sem dar remédio”. Fazia parte do esquema. Ele falou: “Então, eu quero ir ver a minha mulher porque já nasceu mais um e eu nem conheço”. Ele tinha um bando de filho. “Então, está bom.” Aí, naquela época, eu liguei para o pessoal do Campo de Marte, que tinha a aviação lá, tinha um cara lá que era mais ou menos meu conhecido. “Está acontecendo isso, isso, isso.” Ele falou: “Liga de novo amanhã”. No dia seguinte, eu liguei e ele falou: “Eu consegui localizar a fazenda dessa pessoa lá no Maranhão. Eu levo eles”. De aviãozinho. Não era. Então, ele pegou, no dia seguinte, ele foi, o piloto e mais um ajudante, porque tinha que pôr gasolina no avião lá em Brasília. Não ia direto para lá. Quando foi, marcaram um mês para voltar. Aí, passou um mês, o cara não apareceu. O piloto me ligou: “Olha, nós fomos lá, não achamos o cara. Ele não apareceu lá no lugar”. “Bom, paciência, vai ver que morreu, né?” Passado outro tanto, mais uns 20 dias, aparece o pai com a criança. “Ele foi te buscar!” Ele foi explicar: “Nós fomos noutra fazenda, porque abriram outro campo que era mais perto da minha casa. Então, nós fomos para aquele campo”. Era campo de aviação, não era o Aeroporto de Congonhas. Era mato. E lá nós fomos, e ele não apareceu. Aí, eu vi que a criança estava mal, tinha passado muito tempo do esqueminha. Falei: “João, está mal aqui, não está muito bom”. Ele falou: “Doutor, então, eu quero levar a criança para a minha mulher, porque ela quer morrer nos braços da minha mulher”. “Está bom.” Toca achar um piloto de novo, levou de novo para morrer no Maranhão, precisava dois dias. Não era um voo direto. Então, esse aí foi bem marcante. E o cara conheceu isso pelo radinho. Quando começou os primeiros... Não, não era um radinho assim. Radinho de mão, era desse tamanho. Foi por aí que ele começou.
P/1 – E como o senhor, pessoalmente, lidava com essas perdas?
R – Doía muito, né? Mas alguém tinha que lidar. Não era fácil. Até tinha dias que, como eu trabalhava de manhã no Câncer, depois ia para o consultório onde tocava a vida mesmo. Depois ia para casa. Às vezes, tinha um pouquinho de depressão. Mas, como não ficava gagá, deu para tocar a vida. A Ana também ajudava muito. A Ana. Ela sabia. Não ajudava na Medicina, ajudava na parte social. Ajudou muito. Tanto é que eu sinto falta dela até hoje. Ela já faleceu faz quatro para cinco anos já. Foi um braço direito.
P/2 – E eu queria perguntar se tinha, como era uma retribuição das crianças que você tratava e davam certo? Eles voltavam? A família? Porque era um tratamento gratuito, né?
R – Gratuito e simples. Muita gente simples, não tinha recursos. Não eram ricos. Tinha essa parte social, eles tinham que se entender com a Dona Carmem Prudente, que ela tinha um serviço de voluntárias muito grande, onde parte era da Cruz Vermelha Alemã e outra parte era nossa gente mesmo. Ainda sobrevive esse...
P/2 – Mas voltava a família depois de um tempo? O senhor chegou a reencontrar pacientes que...
R – Encontrava, mas a gente não dava muita confiança, né? Essa é a verdade. Tocava a vida. Mas não queria mal, pelo contrário. E também não existia essa obrigatoriedade social. E retorna, não sei o quê. Não tinha, infelizmente, né? Mas isso também não era fácil. Tinha um professor de radioterapia, Roxo Nobre, que tentava – ele era bem mais velho do que eu –, que tentava harmonizar isso, porque ele tinha muita ligação com fora. Ele tinha muita ligação com a Alemanha. Ele tinha muita ligação com os Estados Unidos. E às vezes ele também relatava esses casos lá. Não era comum, não. Ele foi um grande cara, ele foi diretor do Hospital do Câncer por um tempo.
P/1 – Seu Alois, antes de entrar no hospital, ou quando o senhor saía, o senhor tinha algum ritual pessoal?
R – A única coisa, eu tinha sido sócio do Clube Tietê. E você podia... Às vezes, ia nadar lá. Mas, às vezes, porque era fora de mão. Você precisava tomar condução. Você não tinha sempre carro naquela época. Mas era isso só que eu fazia. Chega, não dava, você era tomado o dia inteiro. Fazia leitura. Até lia o jornal. Mas não tinha como. Agora, uma coisa que nós tínhamos, mais fácil que antes, depois de uns anos, quando a vida foi melhorando e tudo, então, as férias eram um mês. Um mês de férias. Então, eu já tinha as duas meninas, elas estão com 50 e poucos anos – essa que está aqui é uma delas, né? A gente saía de férias um mês. Então, nós conhecemos bem o Brasil. Andamos muito pelo Brasil. Tinha essa facilidade para andar. Essa Belém-Brasília – tinha uma estrada que chamava Belém-Brasília – foi uma das que nós fizemos primeiro, de lá para cá. Não tinha posto de gasolina, foi até gozado. Então, andamos muito isso aqui. E também andamos aqui pela América do Sul. O Estreito de Magalhães, o Chile, estivemos no Equador. Passamos na Ilha de Páscoa. Naquela época, era o que se fazia de interessante. E fomos até a Nova Zelândia, naquela época. Teve, na Nova Zelândia, um episódio que não teve nada a ver com a conversa. Interessante. Nós chegamos na Nova Zelândia, tinha tido um terremoto e uma briga numa daquelas ilhas lá do Pacífico. Nós saímos, nós chegamos na Nova Zelândia, o pessoal extremamente educado, você caía de costas. Falaram: “Olha, vocês não têm o visto de entrada”. Nem sabia que precisava de visto. Eu falei: “Não sabia”. Inglês péssimo meu. Ele falou: “O senhor espera aí no aeroporto” – eu, a Ana e as meninas – “eu vou providenciar”. O cara falando isso, hein? Chegou uma hora depois, falou: “O senhor pode ficar até dois dias depois da data do seu avião aqui”. Eu falei: “Mas amanhã eu vou embora para o sul da Nova Zelândia”. “O senhor pode ir, não se preocupe.” Eu falei: “Sabe o que é? Também está faltando uma mala”. Ele veio e deu 50 dólares: “Isso é para o senhor comprar o que precisar”. No aeroporto! Deu 50 dólares. Então, no dia seguinte, nós fomos lá para o sul da Nova Zelândia, linda para chuchu, né? Aí, na volta, nós voltamos com uma motorista, uma motorista de carro, uma motorista, nós estávamos passando numa cidadezinha lá, a Nova Zelândia é bonita de ir de carro, tinha um carro: “Ó, sua mala!”. Uma cidadezinha lá qualquer, eles sabiam que a gente tinha vindo: “Ó, sua mala”. Marcante, né? Parece que não existe isso. É outra gente. Eles só trabalhavam até às três horas da tarde. Não tinha empregada doméstica. Eles é que tinham que arrumar a própria casa. Você vê que coisa antiga. Não tem nada a ver com câncer o episódio.
P/1 – Não precisa ter. Tem alguma outra viagem que vocês tenham feito de férias que tenha sido marcante por algum perrengue que vocês passaram?
R – Ah, era muito interessante. Talvez até tenha. Nós fomos na Ilha de Páscoa. Porcaria! É feio para burro. A Ilha de Páscoa é no Chile. Não tinha nada. Era feio. Você andava um pouco e pronto. Porque era moda, né? Ilha de Páscoa.
P/2 – Ilha pequena.
R – Pequena. Tinha um aviãozinho que ia até lá. Aviãozinho não. Era avião de carga porque é grande, grande, três mil quilômetros, mas tudo bem. Pronto. Chega, não te conto mais. Não precisa ir na Ilha de Páscoa.
P/1 – E pelo Brasil? Como era o deslocamento nessas viagens pelo Brasil?
R – Sempre muito bem feito. Sempre muito bem recebido, e o Brasil é lindo. Ainda o Brasil é lindo, na minha opinião. Com tudo isso que acontece, estão estragando ele, mas o Brasil é lindo. Acho que não tem país como o nosso. De tanto a nossa mistura de gente. Essa é a nossa grande vantagem. A nossa mistura. Quando você vê esses documentários de outros países, você vê na rua, os caras andando de qualquer jeito, aqui não. Aqui é fácil. São Paulo ficou difícil, é claro. Não estou falando de São Paulo. Mas o Brasil é lindo ainda.
P/1 – E tem alguma viagem pelo Brasil que tenha surpreendido?
R – Não, tudo fácil. Era uma vez por ano, não pensa que era todo ano, viu, dona? E depois também tem uma coisa. Quando eram férias, era obrigatório 30 dias. Quando chegava 20, você já queria voltar para sua casa. Verdade mesmo.
P/1 – Em alguma dessas viagens, teve alguma ocorrência que o senhor precisou ser médico?
R – Não, felizmente não. Felizmente, também... Ter fechado os olhos, mas em todo caso.
P/1 – Eu quero saber como o senhor conheceu a Ana?
R – A Ana foi assim: ela estudava. Não, já trabalhava como professora num colégio de freiras. Ali no Brás, por ali. Então, ela morava em Santana e ia de bonde. Eu muitas vezes descia da faculdade, do trabalho, quer dizer, e ia de bonde também. Então, às vezes, o cruzamento era no bonde. A partir da Estação da Luz, que ia para lá para o Alto de Santana. Aí, a gente se cruzou uma vez, cruzou duas. Uma vez, sentou um do lado do outro. Aí, nasceu a vida. Mas eu já estava meio velho quando casei. Já estava com 26 anos. Naquela época, era velho. O pessoal casava mais cedo, 16, 17, 18 anos. Aí, casamos. Pronto.
P/1 – Mas vocês sentaram juntos dessa vez no bonde e quem começou a conversar?
R – Ah, você acha que eu me lembro disso aí? A condução era difícil. Não pense que era bonde. Você vivia pendurado no bonde. Tinha a segunda fila do lado de fora de pendura. Não era fácil. Ela pegava ali na Estação da Luz, me lembro bem, e eu já vinha do Largo São Bento. Eu às vezes cedia o lugar para sentar.
P/1 – Como ela era?
R – Muito batuta. Pena que faleceu com Alzheimer. Tocamos muito. Aprendemos muito. Andamos muito. Ela falava italiano. Sabia falar italiano por causa da família dela. Mas alemão ela não sabia nada. Mas falava italiano. Naquela época, não tinha necessidade de outra língua. Era católica. Não era fanática de igreja. Ia à igreja, tudo. Às vezes, a gente sente saudade pelo tempo que a gente passou. Mas nós temos que ver que o dia atual é diferente daquela época. O nível socioeconômico dos jovens hoje é diferente. Especialmente se a gente comparar o sexo masculino e o sexo feminino, não é verdade? Hoje, o sexo feminino está em ascensão grande. Ela está abandonando algumas coisas que é do sexo feminino, na minha opinião, por isso que Deus fez dois. Senão, era tudo igual. Abandonando, mas está subindo na escala socioeconômica dela. Não tem nada a ver com câncer de criança. Mas essa é a verdade. Você também, capaz de já estar nessa fase. A tua ascensão, você é casada, solteira, o que você é? É casada? Não. Então, a tua ascensão você vê que é maior do que foi nos dias, no passado. A mulher era muito mais, o sexo feminino, vamos dizer assim, era muito mais dependente do trabalho do homem. Hoje não. Hoje não é tanto. Está mudando.
P/1 – E como foi o casamento de vocês?
R – Tranquilo. Com festinha. Naquela época, tinha festinha, tinha roupinha bonitinha, tinha tudo. Normal. Normal naquela época.
P/1 – E onde vocês foram morar depois de casados?
R – Depois de casados, nós fomos morar naquilo que no passado chamava Estrada do Bispo, que passou a ser Conselheiro Moreira de Barros. Nós fomos morar numa casinha antiga. Aí, depois, eu fui morar na Rua Olavo Egídio, que era em Santana, que era vizinho da mãe da Ana. Da mãe e do pai. Aí, depois, à medida que foi ajudando, melhorando, não sei o quê, eu fiz essa casa aqui em Pinheiros. O arquiteto era do pessoal do McDonald’s. E eu acabei vendo um parente dele. Ele foi casado cinco, seis, sete vezes. Ele gostava de casar. Verdade. Casou um bando de vezes. E ele que me ajudou a desenhar a minha casa. Então, a minha casa tem um pouquinho da casa dos McDonald’s, não as lojinhas, a casa. Tem um pouco daquela casa, telhado. Nós ficamos fazendo um ano e meio a casa, até que deu certo. Está lá a casa, até para vender. Quer comprar? Está lá.
P/1 – E, ainda nesse começo de vida de casado, teve alguma descoberta da vida a dois?
R – A gente tocava a vida já, né, bem? Tocava a vida, com muito carinho. Depois de uma certa altura da vida, Ana fez algumas viagens com uma irmã dela, uma outra irmã, ela tem mais três irmãs. Fez algumas viagens para fora, mas uma semana, duas, que já tinha as meninas, era mais trabalhoso. Saudades dela.
P/1 – Se o senhor se sentir à vontade, pode contar para a gente como foi esse diagnóstico dela em Alzheimer, como foi perceber?
R – Foi devagarzinho. Percebi porque no dia a dia a economia era ela que tocava. De repente, eu vi que ela começou a comprar coisas demais. Oito pães, não sei o quê, um bando de coisas. Aí, eu falei: “Mas que esquisito isso”. Foi aí que eu achei esquisito e foi um longo caminho. Porque Alzheimer é um longo caminho. Não é um caminho curto. Mas comecei, quando percebi que Ana estava comprando coisas demais. Tipo pão, bolacha, nada grave. Foi assim. E, aí, foi um longo caminho, um caminho duro. Como é nos dias atuais também. Não pense que é fácil. É bem difícil. Eu ainda tenho alguns clientes mais velhos, que ainda são meus amigos, meus conhecidos, porque na minha clínica gira – eu nunca vi – uns 50 mil pacientes, mais ou menos. São muitas famílias grandes. Eu tenho uma agenda, há uns 20 anos, eu comecei a tomar nota da data de nascimento desse pessoal. Então, às vezes, eu pego – a agenda não está aqui –, tem mais ou menos seis, sete, oito, dez aniversariantes no dia. Eu ainda ligo para eles. Alguns ficam todos felizes. Outros já mudaram o telefone. Puseram mais um nove. Aí, não dá mais.
P/1 – E tudo bem se eu ainda falar da Ana?
R – Não, não, chega. Sinto muita saudade.
P/1 – Sim.
R – Fizemos muita coisa juntos. Inclusive essa casa onde eu moro atualmente. Eu estou lá há 45, 50 anos. Foi a Ana que bolou muito da casa. Muito cômoda. Se você quiser comprar ou alguém quiser comprar, está lá às ordens. Vai ver. Que comodidade que tem.
P/1 – E, Seu Alois, para a gente deixar aqui registrado, qual o nome das suas filhas?
R – Ana Márcia, esta que estava aqui, Ana Márcia. E Vera Lia. A Vera Lia é mais nova que... A Vera Lia é um pouco mais braba que esta. Esta não é braba. A Vera Lia que é braba. Braba é modo de dizer. Mais durinha assim.
P/1 – Seu Alois, eu estava perguntando: como é ser um pai pediatra? Ou um pediatra pai?
R – O problema é você... Elas foram sendo criadinhas, vacinadas. Naquela época, a vacina começou mais ou menos na idade delas. A vacina bem diária, atualizada, começou nelas. Atualmente, o pessoal está relaxando. Mas no começo foi assim, bem feitinha. Tanto é que no Hospital do Servidor Público do Estado, fomos nós que começamos a vacinação. O Vicente Amato Neto – que é um nome não estranho, ele é vivo ainda, ele é mais velho que eu –, ele e eu começamos a vacinação lá no Hospital do Servidor. Tanto é que na entrada do Hospital do Servidor tinha lá um posto só de vacina. Então, vacina foi significativa. Desapareceu um bando de doenças do dia a dia. Sarampo, rubéola, caxumba, tudo isso foi sumindo. Tinha colega que nunca tinha visto sarampo. Só para você ter ideia. Caxumba. Então, foi muito bom. As minhas filhas também receberam vacina. Então, vacinadinhas, limpinhas, iam para a escola, não tinha doença. E a gente também se acautelava para não levar doenças para casa. Isso a gente sempre fez mesmo. Foi bem. Elas se desenvolveram. Ninguém detesta a Medicina, as duas, que claramente me roubou delas. A Medicina me roubou delas. Então, elas detestam Medicina, não querem saber de Medicina. Nenhuma. A Márcia é mais comerciante. A Vera é mais intelectualizada, trabalhou na Dow Chemical, nessa área.
P/1 – E, depois que o senhor se tornou pai, o exercício da Pediatria, teve alguma mudança no modo como o senhor enxergava o paciente?
R – Sim. Com muito carinho.
P/1 – O senhor pode falar sobre essa transformação?
R – Ah, não sou capaz de detalhar, mas mudou muito. Com muito carinho. Comecei a entender bem o que é um pai, a respeitar, inclusive, ver as angústias. Foi uma época em que o telefone começou a ficar mais fácil. Então, a gente também tentava ajudar também por telefone muitas vezes, porque nem sempre o pai podia trabalhar comodamente. Fiz com muito carinho isso até. E estou aqui. De barba e bigode branco.
P/1 – Queria que o senhor falasse um pouco do seu dia a dia hoje.
R – O meu dia a dia hoje é, vamos dizer assim, não dá para parar de trabalhar. E nem quero parar de trabalhar. Isso aqui foi uma teimosia minha. Eu estava no consultório, no terceiro andar. No segundo andar, estava o Sílvio, que é um colega de turma. É cardiologista. Estava aqui no terceiro andar tocando a vida. Aí, estava com dor de cabeça, uma pressão. Eu não costumo ter isso. Aí, eu desci lá no Sílvio, o Sílvio mediu. “Pô, está 27 por...” Falou uns palavrões, né? “Está 25 por 17.” Melhor internar. “Ah, tem gente lá ainda.” Subi, vi as duas. Vi as duas criancinhas. Aí, fui para casa. Quando chegou na esquina da Consolação com a Paulista, o braço parou. “Esquisito. Bom, acho que vai melhorar, né?” Teimoso. E fui para casa, mal consegui subir a escada porque a Ana não era mais presente. Mas consegui subir a escada, subi a escada. Aí, de madrugada, não passei bem. Liguei lá para a Márcia até. Eles foram me buscar. Estava indo para o CDC [Centro de Diagnóstico e Cirurgia] de arrasto. Aí, cinco meses de UTI [Unidade de Tratamento Intensivo]. Aí, o “Pedrão” não me quis, eu continuei aqui.
P/1 – E como é estar do outro lado, do lado do paciente? Como foi o período de cinco meses como paciente?
R – De vez em quando, me apagava. Ficava lá. Você conhece o Sírio-Libanês? Ficava lá no Sírio. Como eu já tinha trabalhado um pouquinho no Sírio, e os meus colegas estão lá: Eugênio, Dario Birolini, Maksoud, são colegas lá. Aliás, dois, o “Pedrão” já levou também, faz parte. Tem que obedecer. Tem que obedecer. Daí, eu voltei para casa. A minha casa é grande, fico sozinho. Por isso que eu moro nesse lugar que chama Lar Santana. Você conhece lá? Vale a pena conhecer. Foi um convento de freiras. Tem mais ou menos dois quarteirões e meio, é grande, mas quem escolheu foram a Márcia e a Vera. Foram andando, andando, até achar. E tem lá mais ou menos 100 velhinhos, inclusive eu. Tem mais ou menos... 80% são mulheres porque elas vivem mais do que os homens. A saúde delas é melhor. A integridade. A cabeça é melhor. Os homens são mais do bacalhau. Aquela coisa toda. É verdade. Então, elas me puseram lá e, logo de manhã cedo, eu levanto, tem dias que eu vou ao Graacc, amanhã cedo eu vou ao Graacc, que forma o conjunto da minha gente. De terça e quinta, tem a fisioterapia, que vai lá de manhã. Hoje, eu não fui porque vim ver vocês aqui. O que mais? Depois, de tarde, eu vou para o consultório, o consultório é um, dois, zero. Três é acidente de pacientes, a maioria é zero, porque tem convênio e tem que ter, economicamente. Às vezes, eu vou lá e não tem ninguém, volto para casa. Leio, ainda leio muito, apesar dos óculos, leio bastante. Durmo. Durmo mal para burro porque não é a minha cama, não é o meu quarto, não tem muito ruído para falar a verdade. De vez em quando, tem alguma velhinha que xinga a outra. Você dá risada, mas é verdade. Os idosos são problemáticos. Não é fácil, não. Tem de tudo lá. Idosa e idoso, os dois. Faz xixi. Depois andam. Faz barulho. Alguém grita. Tem uma que grita: “Socorro!”. Ela grita socorro quando ela precisa de gente. Eu vou passando lá.
P/1 – E como é sua relação com os outros moradores desse lar?
R – Eu quase não participo com eles. Porque eu saio cedo e volto tarde. Em geral, os caras estão tudo dormindo. Aliás, um episódio gozado que eu vi esses dias: esses velhinhos dormem muito. Tem muito sofá, tem uma mulher lá que tem 106 anos. Só para você ter uma ideia. Então, eles dormem muito. Dormem no sofá. Se vocês têm idoso na família, já viram isso. Então, eu ia andando. Na frente, tinha uma senhora com acompanhante, porque a maioria tem acompanhante, e tinha um sofá com três dormindo. Essa daqui virou para a outra e falou: “Nossa! Quantos defuntos”. Estavam dormindo só. Então, cada velhinho daqueles lá tem uma história, não é verdade? É que a gente não é de escrever, então...
P/1 – E o senhor é avô?
R – Sim. Tem uma menina, uma de 26 anos, casada, na Austrália. Está adorando a Austrália. Está organizada, está bem, diz que a Austrália está bem organizada. E a Austrália foi país de bandido, de resto de gente. Da Inglaterra, mandava os bandidos, ladrão... Pois a terceira geração pôs ordem. Está feliz da vida lá. Eu até tenho medo, porque não gosto, porque o Brasil precisa dessa gente nova. Então, ela, 26 anos, é uma gente nova, é que precisa cultivar nossa terra. Está cheio de velho aqui. A Nina, nesses intercâmbios aí, passou em Boston, em Milão e Stamford. Passou! Eu nem sabia que ela era tão boa de cabeça. Fiquei assustado. Pensei que ela era folgada. E ela vai para Milão. Gozado. Tem que ir, né? Fazer intercâmbio não sei das quantas. Porque hoje tem uns cursos, não sei se você já viu, tem uns cursos hoje que você não sabe dizer o nome. Não é mais engenheiro, advogado, nada. Tem uns cursos que você não sabe mais nem o que é. Fico olhando. “Está bom, vai!”
P/1 – E como foi esse avô?
R – Ah, tranquilo. Depois, as minhas filhas cuidam bem, sabe? Não dou trabalho. Só me desobedecem um pouco. Claro, porque a gente também finge que obedece e não obedece, né?
P/1 – Tipo o quê?
R – Modo de dizer. “Pai, faz isso.” “Ah, sim!”
P/1 – Eu tenho mais duas perguntas, mas você tem mais alguma outra questão antes de a gente...
P/2 – Eu queria. O senhor falou que a Austrália é muito diferente, está organizado, e eu fiquei pensando como você vê a diferença do que era a saúde pública no seu tempo e agora?
R – A saúde pública, no passado, também foi boa. Acho que até foi mais perfeitinha do que nos dias atuais. O pessoal abusa mais de droga, das coisas todas. Então, por isso que o tempo de vida daquele pessoal era um pouco mais curto. Porque agora, você olha na rua, tem um bando de gente acima dos 80 anos. Mas também, hoje em dia, os jovens – os jovens de um modo geral, não estou falando dos drogados, viciados, essas coisas –, eles se cuidam mais. Você olha na rua, vê se tem algum gordo hoje? Não tem gordo, porque gordo passou a ser doença. Tudo fininho, magrinho, com a malinha nas costas para endireitar a coluna. Antigamente, usava aqui na frente que era para entortar. Olha na rua. Tenha esse cuidado de ver. Então, a vida do ponto de vista social é melhor. Mas a vida climática, por exemplo, é mais contaminada. Vacinação foi melhor, está decaindo agora. Está decaindo a vacinação e com coisa simplória. Com doença simplória. Não é doença complicada. Não é só tuberculose, você vê as outras: sarampo, rubéola, você vê que o pessoal está fugindo da vacinação.
P/2 – E a questão dos hospitais públicos?
R – Os hospitais públicos, você sabe que... Não vou falar mal deles, mas tem uma classe médica nos dias atuais muito mais deficiente. Não estou querendo falar mal, mas o Brasil abriu 312 escolas de Medicina. Falar o quê, 312 escolas de Medicina? Não é verdade? Cadê professor para ensinar tudo isso? Cadê dinheiro para pagar tudo isso? Então, tem muitas aí que são comerciais. Vocês sabem. É uma pena porque o Brasil depois da Rússia e depois dos Estados Unidos é o que tem mais escola de Medicina. Tem 300 escolas de Medicina. Não é Rússia. Depois da China e um país aí do meio da Europa, aqueles grandões lá. A Holanda é um país pequeno. A Rússia, a China, esqueci qual é, também têm 300 escolas de Medicina. O que é isso? Não ensina bem. Tem mais essa. Não tenha dúvida quanto a isso.
P/1 – Seu Alois, o senhor também é tio-avô, né? Eu queria saber em que momentos o senhor se reúne com a sua família? E que junta todo mundo?
R – Não, aquilo que eu falei. A gente obedece, finge que obedece. Finge que obedece para não obedecer. Mas também esse entusiasmo agora é menor. A gente tem 80 e fumaças anos, né? Então, é menor o entusiasmo, você se sente melhor, ainda mais com essa deficiência aqui, você se sente melhor sentadinho, quietinho, lendo. Nem vendo televisão. Eu vejo pouca televisão. Televisão só vejo Jornal Nacional. E às vezes eu vejo o Faustão lá, eu vi o filho dele, meu clientinho, eu vi a filha dele que estava na Inglaterra. E vi esses dois. Depois ele casou de novo. Eu vejo o Faustão, aquela parte muito gozada que tem no fim do programa. Aquelas imagens gozadas dele lá.
P/2 – Videocassetada?
R – Isso, videocassetadas. Só isso eu vejo. O resto eu não fico olhando. O Jornal Nacional, então, está sem graça também. Só fala de político ladrão e mais nada. Só ladrão.
P/1 – E, Seu Alois, antes de a gente encerrar, eu tenho duas perguntas finais, mas o senhor quer contar mais alguma outra história que ficou?
R – Está doida! Já chega. Já contou tanta história!
P/1 – Então, Seu Alois, como foi hoje para o senhor contar sua história?
R – É assim. Eu nunca fui bom escritor. Nunca fui bom escritor, mesmo dentro da Medicina. Nunca fui e nunca me interessei profundamente. E, por outro lado, eu também não sou muito socializado. Justamente porque a própria profissão te toma demais. Também nunca fiz questão disso. Então, isso aqui para mim hoje foi uma baita novidade. Perguntei para a minha filha, a Márcia: “Mas o que nós vamos fazer lá, filha?”. “Ah, não, pai.” Bom, tem que obedecer, né? Então, aqui estou.
P/1 – Que bom que o senhor não desobedeceu dessa vez.
R – Não sei se foi bom.
P/1 – Muito bom. E para a gente encerrar nosso encontro, Seu Alois, quais são seus sonhos hoje?
R – Que o “Pedrão” me leve calmamente. Sabe o “Pedrão”? Me leve calmamente. De tudo aquilo que a gente vê no dia a dia, né? E eu quero ver se eu não fico gagá. Talvez já esteja um pouquinho. Mas não quero ficar. Porque eu vejo lá no Lar Santana, os idosos, às vezes, eu pergunto para ele: “O que ele foi?”. “Foi isso, foi aquilo.” Eu estou vendo um lá com 60, 70, que se perde lá dentro. Já duas vezes eu vejo ele perdido lá dentro. Eu não quero chegar nessa fase. Tem 67 anos, não parece. Ele até parece bem mais idoso. Por isso que eu perguntei a idade dele. Ele se perde lá dentro. Vocês nunca entraram lá. Lá não é muito grande. Tem corredores profundos, certinhos. Ele se perde um pouquinho. Está doido! Será que eu vou ficar lelé assim? Esse é o medo da gente. Tem que ir embora para não cansar a família. Chega um momento que você tem que ir embora. Faz parte. Tem que aceitar. Eu não sei se vocês têm família grande. Às vezes, você percebe isso. Os idosos, os velhinhos também dão trabalho. Os velhinhos também dão trabalho. Não pense que é assim, não. Antes, você trazia todos os filhos para morar com você. Agora que você vai ficando velho, você que vai morar com eles. É o contrário, né? O que mais você quer saber?
P/1 – Agora, eu quero agradecer por o senhor ter vindo aqui compartilhar a sua história com a gente. Em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada, Seu Alois.
R – Nada. Achei interessante isso aí: Museu da Pessoa. Tem coisinhas que precisam ficar marcadas, né? A gente esquece dos principais, pode acreditar. Pode acreditar. Mas são coisas que talvez eu fique pensando, tem que ter uma parte econômica atrás disso, claro, ninguém vai fazer isso de graça. Não sei como isso vive do ponto de vista econômico. Porque não sei se tem gente interessada em ler, ver isso, não é verdade? E também isso pode traduzir. Isso pode traduzir para a parte social, né? Isso também, tenho dúvida ainda. Isso, depois, vocês é que têm que depois me dizer. Eu vi que vocês são desembaraçados. Desembaraçados para perguntas etc. Então, se vê que vocês já têm experiência nisso.
P/1 – Com certeza, lá na salinha a gente responde essas perguntas.
R – Então, está bom.
P/1 – Está bom? Obrigada, Seu Alois.
R – Obrigado vocês. Desculpa se fui muito prolixo aí.
P/1 – Está ótimo.
R – Bom, se sobrar alguma dúvida, então me liguem. Está bom?
P/1 – Combinado. Muito obrigada, Seu Alois.Recolher