Projeto: Memórias do Vale do Ribeira - Diálogos
Depoimento de Ezequiel de Oliveira
Entrevistado por Danilo Eiji e Iamara Nepomuceno
Cananéia, 28/07/2011
Realização Museu da Pessoa e Associação Núcleo Oikos
Entrevista: MVRHV005
Transcrita por Ana Cristina Benvindo
Transcrição revisada por...Continuar leitura
Projeto: Memórias do Vale do Ribeira - Diálogos
Depoimento de Ezequiel de Oliveira
Entrevistado por Danilo Eiji e Iamara Nepomuceno
Cananéia, 28/07/2011
Realização Museu da Pessoa e
Associação Núcleo Oikos
Entrevista: MVRHV005
Transcrita por Ana Cristina Benvindo
Transcrição revisada por Iamara Nepomuceno
Ezequiel de Oliveira
P/1 – Senhor Ezequiel, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Muito obrigado por ter vindo aqui
nos conceder a sua entrevista. Em nome da equipe aqui, muito obrigado. Vamos lá, para começar eu queria que o senhor falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento, por favor.
R – Eu sou Ezequiel de Oliveira, nascido aqui no município de Cananéia mesmo no próprio bairro do Marujá na Ilha do Cardoso.
P/1 – Ano?
R – Em 1939. Dezessete de novembro de 39.
P/1 -
Dezessete de novembro de 1939, maravilha. Senhor Ezequiel, antes da gente começar a falar da sua vida em específico, eu queria que o senhor falasse um pouco da sua família. O senhor conheceu a história da sua família: seus avós, seus bisavós. Enfim, conta um pouco pra gente.
R – Sim, minha família veio de Santa Catarina no ano aproximadamente de 1850. Eles moravam no Vale do Itajaí e numa daquelas enchentes que dá até hoje, disseram que eles ficaram sem nada lá e com certeza já conheciam a Ilha do Cardoso e migraram para cá, para Ilha do Cardoso no bairro do Marujá que naquele tempo era chamado de Praia do Meio. E isso era a minha tataravó, ela já era viúva de descendência italiana e o marido dela era de descendência espanhola, Rodrigues.
E aí, eles vieram lá e ficaram morando lá junto com os mamelucos, os moradores nativos da Ilha que eram descendentes de índias com portugueses. Família Barbosa, Cardoso, que a Ilha dava o nome, Mendes, era o pessoal que já estava morando lá desde provavelmente 1600, 1700.
P/1 – O senhor sabe
porquê Ilha do Cardoso? Por que não outro lugar?
R – Não tenho certeza, mas provavelmente seja por conta da família Cardoso que era a família mais numerosa que morava na Ilha e daí a Ilha acabou ganhando o nome de Ilha do Cardoso.
P/1 – Entendi, mas a sua família porquê que eles vieram para a Ilha do Cardoso e não para Santos, não sei?
Por que veio parar ali?
R – Então, porque provavelmente... sempre existiu uma migração dos catarinenses aqui para o litoral paulista e tal. Provavelmente, eles conheciam a Praia do Meio, na Ilha do Cardoso e era, era não, é um lugar muito bom de se viver tem muito recurso natural, para o lado do Canal tem mexilhão do mangue, tem caranguejo, tem ostra, tem almeja, tem o peixe dentro do estuário, tem o acesso tranquilo, que é o estuário, do outro lado tem o oceano Atlântico com marisco também nas pedras, tem muitos animais, muita caça, muito bicho dentro da Ilha do Cardoso, então muito por isso eles
vieram morar ali. Eu acho que eles não erraram o local.
P/1 – (risos) e você sabe como eles eram, como eles trabalhavam, como foi com a família?
R – Então, nesse tempo trabalhavam com a agricultura, lavoura, a fonte de renda, de existência desses moradores era a agricultura. Até quando eu era novo ainda,
a gente plantava porque antes de ser parque era livre para se plantar e tinha uma atividade produtiva agrícola bem forte –
arroz, feijão, cana-de-açúcar, mandioca – fazia muita farinha para vender. E, basicamente o arroz e a farinha eram coisas que o pessoal vendia para fazer alguma grana para comprar alguma coisa que precisasse, porque era muito pouco que precisava do mercado para vender. A pesca não tinha desenvoltura, até porque não tinha mercado de pescado. Por que não tinha mercado de pescado? Primeiro porque era pouco conhecido nos grandes centros urbanos, o peixe, e segundo porque havia uma dificuldade muito grande de conservação. Naquele tempo para conservar tinha que ser salgado, seco no sol porque não tinha gelo, não tinha esse mecanismo de armazenamento de conservação de pescado. Só a partir da
década de 50, mais precisamente de 55 em diante que começou a ser vendido o peixe, até aí o único peixe que o pessoal vendia era a tainha que a safra da tainha é no mês de maio e junho e o pessoal salgava para vender ela salgada. Daí ia para a zona rural do Vale do Ribeira para o pessoal que precisava comer algum peixe lá, porque ela competia no mercado da carne seca, o cara ou comprava a carne seca ou comprava o peixe seco. Mas ninguém salgava outro peixe, era só a tainha, então, a partir de 55 é que começou a aparecer a coisa do gelo e tal e alguns compradores de pescado.
P/ 1 – O senhor participou disso, de ir vender peixe no interior
assim, por exemplo? O senhor chegou a fazer isso?
R – Não, porque isso aconteceu quando eu era bem novo, participei já de alguma atividade de venda de pescado mas já agora mais recente, numa distribuição de peixe fresco dentro do Vale do Ribeira. Através da colônia de pescadores.
P/1 – Ok, a gente vai falar sobre isso, mas antes queria ficar
um pouco na questão da sua infância. Enfim, como que era a região ali da... desculpe qual era o nome da comunidade?
R – Marujá.
P/1 – Do Marujá, na sua infância. Como que era ali mudou muito? Como que eram as pessoas? Eram muitas famílias?
R – Quando eu era criança até, desde quando eu lembro, o número de família era bem menor do que hoje. Tinha entorno de 20 famílias na comunidade inteira e família que fazia agricultura
e pesca. E não tinha escola. Eu lembro que, já que é para falar da minha infância, eu lembro que entrei na escola com quase dez anos porque eu tinha que ir a remo até aonde tinha escola que era no Ararapira, hoje é Paraná, naquele tempo era distrito paulista e lá tinha uma escola que tínhamos que ir a remo. E daí a gente só conseguia ir quando sabia pilotar a canoa a remo.
P/1 – Você ia sozinho, pegava uma canoa?
R – Não, a gente ia em três pessoas. Tinha mais três meninos que iam, nós eramos em quatro.
P/1 – Quem que era? Era o pessoal da... Você lembra o nome dos amigos?
R – Lembro, era uma família de um japonês que estava morando lá meio recente. Era Sátiro, Hélio e Hiroshi, os três companheiros que iam para a escola comigo.
P/1 – E como era essa caminho, o senhor lembra desse caminho?
R – Então...
P/1 – Saiam cedo? Como que era?
R – Era uma trajetória de mais ou menos três quilômetros de estuário até chegar lá em Ararapira, onde a gente ia na escola.
P/1 – Como que era essa escola, senhor Ezequiel? O senhor lembra?
R – Era moradia da professora na verdade, a escola tinha um salão mais ou menos desse tamanho aqui que funcionava a escola, essas escolas do primeiro até a quarta série na zona rural até hoje é aula para primeiro ano, segundo ano, terceiro ano e quarto ano na mesma sala. Então eles dividem metade da sala olhando para uma lousa e a outra metade olhando para outra e dá matéria do primeiro e do segundo aqui e do terceiro e quarto, do lado aqui. Eu estudei nessa escola até o terceiro ano e daí já fiz o quarto ano já quando era adulto no supletivo.
P/1 – Tá certo. E por que essa necessidade de ir para a escola? Porque o senhor não tinha ido, não ia, não tinha. Por que de repente foi para a escola?
R – Então, naquele tempo o pessoal não era muito ligado em escola, até porque não tinha escola e quando surgiu essa escola
e a chance de eu ir, já que eu conseguia ir até lá remando a canoa, me interessei em ir estudar lá.
P/1 – Partiu de você?
R – Partiu de mim.
P/1 – Tá certo. E me conta um pouco dos seus pais assim, como eles se conheceram, quem eram eles?
R – Os meus pais, a minha mãe era descendente desse pessoal que veio de Santa Catarina, que eu relatei, o meu pai era aqui do continente de um sítio chamado Itapanhoapima. Ele ia pescar, no tempo da safra da tainha era e é uma pescaria que atrai muita gente, porque é uma pesca muito legal, então esse pessoal ia do continente também até o Marujá, até a Ilha do Cardoso para pescar . Tinha até um intercâmbio entre moradores nativos do continente com moradores nativos da Ilha do Cardoso, tinha gente que ia plantar alguma coisa lá e gente que ia pescar com eles na época da tainha. Aí numa dessa idas do meu pai
lá acabou conhecendo minha mãe e se casando.
P/1 – Tinha muito contato o pessoal da Ilha
com o pessoal do continente?
R – Tinha muito contato. Tinha essa troca, esse intercâmbio do pessoal que ia lá ajudar a colher arroz depois iam pescar tainha e tal. Sempre houve vários bairros da região de Ariri – Araçaupeva, Araçauba, Rio Vermelho, Varadouro – todos bairros do continente onde dá a maior produção, sobretudo em produção de arroz.
P/1 – E o senhor também ia para esses lugares, participava? Eram mutirões? O que que eram?
R – Não, não. Era um pouco antes quando eu era moleque que tinha esse intercâmbio. Depois a gente plantou muito, fez muita plantação dentro do parque mesmo, plantação de arroz, de milho, feijão, mandioca, para farinha.
P/1 – E conta um pouco, o senhor tem irmão, irmãs? Conta um pouco da dinâmica da família, como é que era? Almoço de domingo em casa, como é que era?
R – Então, no meu tempo nós éramos em seis irmãos, quatro mulheres e dois irmãos – está todo mundo vivo ainda. O mais velho tem 80 anos e a mais nova tem 68, 69. Tem duas irmãs que estão aqui em Cananéia e duas irmãs e um irmão que moram junto comigo na Ilha do Cardoso. A minha família hoje que é mais
numerosa, tenho dez filhos, tenho cinco mulheres e cinco homens. E todo mundo morando lá perto da gente, então um terço da comunidade é parente, é filho, neto. E é muito legal, há sempre muita gente junta, muita festa, aniversário de qualquer um enche de gente porque somos bastantes, é bem legal.
P/1 – E isso desde sempre?
R – Desde sempre...
P/1 – Desde que você era criança casa cheia, é isso?
R – É sempre foi assim.
P/1 – Qual era a diversão na sua infância? O que vocês faziam?
R – Já era jogo de futebol e baile –
era um baile que a gente fazia, fandango que era a música dos caiçaras.
P/1 – O senhor tocava também?
R – Não. Eu nunca me ajeitei a tocar instrumento de corda.
P/1 – O que mais, o senhor conhece aquela Ilha inteira?
R – Conheço a Ilha inteira, conheço os moradores da Ilha inteira. Se precisar lembrar o nome de cada cidadão que mora na Ilha do Cardoso, eu conheço todo mundo. Eu trabalhei desde 81 até agora 2008 como agente comunitário da saúde, e o trabalho de saúde da gente era muito mais do que agente comunitário da saúde, era tratar os problemas de saúde das pessoas lá. Então eu visitava a Ilha do Cardoso inteira, algum bairro do continente inclusive, então eu conheço todo mundo pelo nome.
P/1 – E conta um pouco desse trabalho assim como foi que o senhor entrou nele? Me conta uma passagem que tenha sido diferente, ou enfim um desafio que o senhor enfrentou nessa profissão?
R – Na questão da saúde?
P/1 – Isso, por exemplo.
R – Eu acho... eu tive várias passagens interessantes do ponto de vista da recuperação de saúde, como picada de cobra, parto de emergência, nefrite, problema renal grave, tiveram várias coisas mas eu gostaria de contar uma coisa que me animava mais que era trabalhar com a saúde preventiva, com a orientação de higiene e saúde nas mães etc, era a coisa que mais me empolgava e fitoterapia, que é a medicina tradicional.
P/1 – Como que era isso, conta pra gente.
Conta uma passagem, por exemplo.
R – Então, do problema da saúde as coisas mais séria que eu peguei foi picada de cobra, como eu falei.
P/1 –
Da preventiva mesmo, como é que funcionava? O senhor ia...
R – Uma coisa muito interessante que mudou bastante a trajetória da comunidade foi a orientação sobre verminose e suas consequências, porque como é que a gente podia repassar
para a população como um todo. A gente bolou teatro, dramatização, mostrando como é que se pegava a verminose e como se evitava, foi um trabalho muito legal porque desencadeou todo um interesse comunitário pela melhoria da condição sanitária, pelo cuidado maior com a água, de tomar, e com a alimentação que desencadeou até num projeto de abastecimento de água na comunidade. Em 95, a gente começou a movimentar, a articular isso, a tentar
elaborar esse projeto e, em 98 a gente implantou o projeto de Água na Serra, porque até aí a água que a gente estava coletando e tomando era água de poços semi artesianos. Poço semi artesiano é um cano de PVC com um filtro na ponta, com bombinha em cima para puxar nela, com bomba elétrica ou bomba manual; e essa água que era jogada na caixa para uso total das famílias. Daí a gente detectou que tinha alguns pontos da comunidade, em que essa água estava contaminada, por causa da precariedade do sistema sanitário, aí a gente bolou esse projeto de abastecimento de água e implantou em 98. Implantamos uma rede adutora de seis quilômetros e ligações em todas as casas dos moradores antigos.
P/1 – O senhor participou disso ativamente, acompanhou?
R – Eu fui autor desse projeto. Eu arrumei engenheiro, a gente tinha amizade com ele, para elaborar o projeto técnico, arrumei o agrimensor para fazer o projeto topográfico, depois corremos atrás porque como é parque tinha toda uma complicação por causa dessa captação de água, desse caminho para levar os canos e tal, então toda essa dificuldade que tinha por questão da preservação do parque precisava ter laudo, tive que correr atrás de técnico para fazer laudo biológico, botânico, geológico, e correr atrás dos técnicos para fazer isso para nós na faixa, e
conseguimos.
P/1 – Mas me fala um pouco assim, antes de você entrar para essa carreira, foi concurso público?
R – Esse projeto de saúde foi desenvolvido no Vale em 81 e a ideia era treinar agente de saúde capaz de tratar dos problemas de saúde dessas comunidades isoladas. Porque lá era super isolada em 81, ninguém tinha barco, tinha um barco que hoje é do Departamento Hidroviário, naquele tempo era da Sorocabana, o barco que ia de Iguapé até Ariri uma vez por semana, então isso não servia para nada. Então por conta disso foram treinadas pessoas em pontos estratégicos para tratar da saúde da comunidade. E eu tratava 85% dos problemas de saúde dos comunitários, eu tratava lá.
P/1 – Mas o senhor foi formado pra isso, eu imagino?
R – Fui treinado pra exercer...
P/1 – Como foi essa chegada? Foi um curso?
R – Foi votado pelas comunidades. A filosofia do projeto foi que as comunidades escolhessem uma pessoa, votassem uma pessoa para ser treinada. E por que eu fui votado para ir para o treinamento? É porque eu já fazia esse trabalho de saúde,
eu já mexia com algum remédio alopático, já conhecia algumas ervas, enfim de certo modo eu já vinha tratando das pessoas, e daí eles votaram, meio que me aclamaram para eu ir para o treinamento.
P/1 – E esse treinamento, conta um pouco pra gente, como é que foi?
R – Esse treinamento durou um bom tempo na Regional da Saúde. Tinham técnicos, coordenadores muito gabaritados para esse trabalho, para treinar a gente, para capacitar, para cuidar.
P/1 – Mas eles foram para a Ilha? Ou você foi para algum lugar?
R – Não, não esse treinamento foi lá em Registro.
P/1 – Então o senhor teve de se mudar para Registro para ser formado?
R – Eu fiquei vários meses em Registro fazendo o treinamento.
P/1 – Morando ali?
R – Ficando lá.
P/1 – Conta um pouco, como é que foi esse período em Registro? Você já tinha saído da Ilha? Já tinha tido essa experiência?
R – Não, não. Eu continuei. A gente saia na segunda-feira cedo ia para o treinamento e voltava na sexta-feira a noite para Cananéia e no sábado para Ilha do Marujá e continuava lá no fim de semana, porque a gente pescava nesse intervalo que estava lá também.
P/1 – Mas me conta como foi essa passagem em Registro? Foi um choque ir para lá? Conheceu muita gente? Conta como foi essa...
R – Nós éramos um grupo de 19 agentes que foram treinados, eles escolheram meio que a nata das lideranças comunitárias para levar para esse treinamento, e nós éramos em 19. A gente ficava numa pousadinha em Registro, o cara nos cobrou muito barato para
podermos ficar, porque tinha pouco recurso e o projeto não previa custeio de deslocamento e de alimentação, tínhamos que bancar com recurso próprio, e como a comunidade era bastante pobre se tornava difícil angariar fundos comunitários você tinha que se virar. Então,
foi assim para todo mundo que fez esse treinamento, foi dessa forma.
P/1 – E desculpa, só para eu entender, quem foi que deu a formação e a elaboração do projeto de formar pessoas da comunidade e levar?
R – Veja a coincidência: era no final do governo Maluf que não tinha nada de social, nada de democrático, mas ele nomeou um secretário da saúde que era o Jatene, e ele desenvolveu isso. O Jatene era... é um cara de mente muito aberta, bastante social e ele implementou esse projeto no Vale do Ribeira.
P/1 – Pensando no Vale?
R – Pensando no Vale...
P/1 – Então teve
outras regiões que foram formados...
R – Pensando na dificuldade, no isolamento do Vale do Ribeira e tinha um pessoal muito bom no treinamento, Maria Cecília de La Torre, Lídia, Eduardo Nakamura que era o pessoal que treinava a gente.
P/1 – E teve em outras cidades do Vale do Ribeira que foram chamadas para serem formados?
R -
De Cananéia nós fomos em dois, eu e a Neusa; daí teve de Iporanga, de Apiaí, de Sete Barras, de Miracatu, Itariri, enfim teve do Vale inteiro, pessoas que foram chamada para …
P/1 – Interessante.
R – Iguape, Registro.
P/1 – Interessante. Isso foi na década de 80?
R – Em 81.
P/1 – Isso, o senhor falou. E o senhor já conhecia fitoterápicos e de onde vem esse conhecimento?
R – Esse conhecimento é tradicional, conhecimento que minha avó e meus pais já tratavam problemas de saúde com esses chás. Então, eles já sabiam um pouco e depois incrementou um pouco mais.
P/1 – Mas eles te ensinaram, é isso?
R – Sim.
P/1 – O senhor poderia contar pra gente? O senhor se lembra, por exemplo, de ir andar com o seu pai e ele te ensinar?
R – Não, não. O que a gente aprendeu foi vendo eles fazerem. Não tem muito essa coisa no meio caiçara de dizer “olha a receita é assim ou assado”. É vivendo, vendo e aprendendo, o jeito do aprendizado é assim. E até hoje é assim. O filho do morador caiçara ele aprende a fazer artesanato ou aprende pescar indo junto, vendo e começando a fazer, é mão na massa.
P/1 – É que o senhor falou que a comunidade escolheu o senhor porque o senhor conhecia...
R – Porque já estava fazendo alguma coisa aí...
P/1 – O senhor já era uma referência assim com o grupo?
R – Já era.
P/1 – Então, não era todo mundo que trabalhava com isso, então o senhor tinha uma afinidade?
R – É tinha mais afinidade, entre as pessoas que faziam essa coisa do chá, mas eu estava mais voltado para o tratamento comunitário, enquanto que os outros estavam mais no âmbito familiar.
P/1 – O senhor tentava coisas,
experimentava assim de cortar alguma coisa e fazer?
R – Não, eu sempre fui a partir do conhecimento dos mais antigos, não experimentei coisa nova a não ser quando chegava alguém ou alguma leitura que eu lia, que ia experimentar. Na questão do chá caseiro, na maioria dos casos é coisa que pude experimentar.
P/1 – O senhor pode nos dar exemplos? O que serve o chá, para alguma coisa, como é?
R – Vou dar o exemplo de uma coisa que eu aprendi depois que fui treinado e achei fantástico, que é o chá de cajueiro
com folha de goiabeira para amigdalite, ele é bom para cicatrizar pele de ferimento, mas sobretudo para amigdalite, porque eu comecei a tratar a amigdalite da comunidade sem antibiótico, comecei a tratar com gargarejo com esse chá de cajueiro com goiabeira. Então, mas quando era dentro da comunidade eu fazia isso e quando
era fora
que eu não ia acompanhar então eu optava pelo antibiótico. Então, cada caso era um caso não dá para generalizar.
P/1 – Bom isso te possibilitou sair um pouco da Ilha...
R – O que?
P/1 – Esse trabalho te possibilitou sair um pouco da comunidade. Me conta um pouco desse antes, o que o senhor fazia antes de entrar para a saúde?
R – Pescava.
P/1 – Pescava?
R – Eh, porque até quando dava para plantar mais, para ter maior produção agrícola
porque a gente fazia agricultura e pesca, depois a gente ficou só com a pesca porque houve muita restrição, com a legislação de parque e a gente só aguentou, essas comunidades, porque começaram a trabalhar na atividade pesqueira...
P/1 – Como foi essa implantação do parque?
R – A partir da década de 70 teve uma repressão maior em cima dos comunitários no que diz respeito ao manejo florestal, então a gente optou mais pela pesca e fazia pequenas roças, pequenas coisas, mas a fonte de renda maior era da pesca e o que a gente fazia mais.
P/1 – Quando que a ilha virou um parque?
R – Em 62.
P/1 – O senhor lembra disso?
R – Lembro.
P/1 – E como foi chegaram pessoas? Como foi esse processo, o senhor se lembra?
R – Não chegaram pessoas, naquela época o processo era totalmente antidemocrático. Eram os técnicos no gabinete que determinavam, foi na governo Carvalho Pinto, eles estabeleceram o decreto de parque e só mais tarde que a gente ficou sabendo e começamos a sofrer as consequências da restrição. Mas foi legal porque no início a gente viu que era uma coisa bem negativa, porque restringia muito a atividade dos comunitários, tanto é que esse pessoal da parte interna da Ilha do Cardoso saiu fora, todo mundo coagido pela repressão da Polícia Florestal, porque não podiam fazer a roças, não podiam derrubar o troncos de árvore para fazer as canoas que era o único meio de locomoção deles, então eles saíram, migraram. E o Estado não ressarciu ninguém, não pagou nada, era do jeito que eles tinham escritura da terra inclusive, e tiveram que ir embora meio que forçado. Nós seguramos a peteca porque a gente vivia mais da pesca então dava para equilibrar e conseguimos ficar. Mas daí a partir de 78, 79 a gente começou a se aliar ao Estado na manutenção do parque porque a gente via que a especulação imobiliária era pior do que a legislação do parque, então a gente começou a optar por se aliar ao Estado, tanto é que em 77 a Marinha queria encampar na Ilha do Cardoso e a gente fez uma movimentação em favor do Estado muito grande, fez um assembleia com quase 100% dos moradores da Ilha do Cardoso, aqui em Cananéia, assessorado pela
Igreja, com o padre João. Depois em 82, também quando o Governo Montouro ganhou a eleição em São Paulo, a União queria também tomar o Parque e a gente também se manifestou a favor do Estado, como aliado pela manutenção do Parque, fizemos
movimento, angariamos documentação, tudo para ajudar a consolidar o Parque porque nessa altura do campeonato vimos que ele era uma coisa boa para evitar que a especulação imobiliária detonasse a Ilha, porque víamos o que estava acontecendo no resto do litoral paulista.
P/1 – Eu queria até retomar um pouco, o senhor se lembra, o senhor viu essa chegada da polícia. Como foi essa, os senhores estavam morando lá e de repente vem o aviso de que virou parque, mas como é que foi essa chegada, esse aviso, o senhor se lembra das coisas, o senhor viu?
R – Eu me lembro da presença da Polícia Ambiental, Florestal já, embargando o roçado qualquer coisa assim. Não teve um aviso prévio, aquele tempo não tinha isso.
P/1 – O senhor vivenciou alguma coisa, por exemplo, de chegar a polícia?
R – Sim, sim.
P/1 – Conta pra gente como foi esse dia, por exemplo.
R -
Lá na comunidade do Marujá a atuação da Polícia Florestal foi muito pouca porque tinha aquelas pequenas roças... eu lembro quando um morador bem antigo lá queimou uma pequena roça, porque o sistema era queimar para preparar o solo e eles viram a fumaça da queimada e foram lá embargar , aí o velho veio me contar
que eles tinham ido lá e disseram: “Já queimou?”, “Já”, “então, planta e vamos ver se eles voltarem a gente vai entrar com recurso”; então, eles acabaram não indo mais. Então, assim não teve uma batida muito forte deles porque a coisa que a gente fazia era de pequeno impacto. E tinha muito dentro da estrutura do Estado, tinha sobretudo no Instituto de Pesca em São Paulo tinha bastante gente aliada a nós, que também dava uma certa cobertura para os moradores.
P/1 – Instituto de Pesca de São Paulo?
R – É.
P/1 – O que é?
R – Porque lá tinha o Instituto Botânico, o Instituto Florestal também que...
P/1 – Na Ilha, você está falando?
R – Não, em São Paulo. E o Instituto de Pesca.
A gente tinha dentro do quadro governamental pessoas que se aliavam com a gente nesses institutos.
P/1 – Nossa, mas como foi feito esse contato?
R – Eh, foi ocasional, pessoas que frequentavam o Vale do Ribeira que desenvolvia algum projeto, o pessoal da SUDELPA, por exemplo, que era Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista, e dentro desse pessoal nós fizemos amizade com alguns deles. Eu cito um que depois ficou compadre meu, o Sérgio Vacilão que era um elo
muito forte entre a comunidade e o pessoal de Cananéia e o Estado. Então eram pessoas que passavam figurinhas para gente, que passávamos as coisas para eles e eles faziam o meio de campo.
P/1 – E me fala um pouco como foi essa ocupação da Ilha. Virou parque e como o Estado foi indo pra Ilha, por exemplo?
R – Então a Ilha virou Parque, mas só na década de 70 que eles implantaram a sede
dele aqui no Núcleo Perequê, até aí não tinha nada do Estado, lá. Aí tem a base de apoio de Cananéia, da Secretaria de Meio Ambiente e tem lá no Núcleo Perequê dentro da Ilha. Lá no nosso bairro, só agora em 2000 que eles implantaram um núcleo de fiscalização que quase nunca funcionou. A gente ocupa muito para fazer assembleia, desenvolver fandango e tal, porque eles não ocupam. Porque o Estado é muito omisso.
P/1 – Então, ele criou o Parque mas não foi, é isso?
R – Criou o Parque e depois de muito tempo, tanto é que para você ter ideia o Parque foi criado em 62 e só teve um plano de gestão do Parque, da gestão com os moradores só em 97. Eu lembro que em 93, nós cansados de solicitar
que fosse feito o plano de gestão para determinar o que se podia fazer lá, porque com a legalização do Parque não podia fazer nada porque não devia ter morador e a gente solicitava que fosse implantado um plano e que dissesse quem pode, onde e o que pode. Então como eles não fizeram em 93 nós fizemos um plano comunitário, um plano de gestão comunitária botamos no papel o que era legal, o que podíamos e o que não podíamos. Daí em 97 quando começou a ter as reuniões temáticas para a elaboração do plano, nós entregamos esse documento e foi inserido plano oficial e está valendo até hoje as coisas que a gente tinha colocado lá, manejamento florestal, reformas e construções, enfim toda a vida do comunitário.
(TROCA DE FITA)
P/1 – O senhor estava falando do Estado chegando na Ilha. O senhor disse que foi criado em 62 e só em 97 que foi elaborado o plano. O que eles alegaram para construir o parque, por exemplo? Por que a construção do parque, o que veio para vocês?
R – Então, em 62 a gente na verdade não sabíamos bem porquê estavam decretando parque. Primeiro porque não tinha essa preocupação ambiental no país e em lugar nenhum do país não tinha. E em segundo lugar, porque o que era muito estranho pois o Parque estava extremamente bem conservado, porque a atividade do morador caiçara dentro do Parque apesar de ser um número muito maior de pessoas morando do que hoje como eu citei que muita gente saiu fora, eu estimo que um terço da população saiu do Parque dessa parte interna, o Parque estava extremamente conservado. Por que estava extremamente conservado? Porque
a tecnologia e a cultura caiçara é muito parecida com a cultura indígena, o pessoal faz para comer hoje, ninguém vai extrair uma montanha de marisco, ninguém ia pescar mil quilos de peixe; ia pescar para consumo, então era uma coisa muito pequena. Pequenas roças, derrubada de uma madeira nossa, que a cada dez anos, vinte anos que é o tempo que a canoa de madeira dura, então era muito pouco o corte de material, de vegetal dentro da unidade. E roça era tudo muito pequena, por isso que estava conservada. Se você for hoje na Ilha do Cardoso, nela hoje tem menos de cinco por cento do seu território ocupado por moradores desmatado. A área desmatada
é menos que cinco por cento, então é muito pequeno por causa dessa cultura. Então, não se justificava decretar um parque naquele momento, então tem duas ideias, dois pontos de vista que o pessoal defende. Um é porque naquele tempo o Adhemar de Barros, que era o Governo do Estado de São Paulo e o Lupião Mendonça do Paraná, eles tinham grandes latifúndios, formavam enormes latifúndios, depois sabíamos que eles trocavam arame farpado velho de fazendeiros velhos com arame novo para pegarem aquele velho para fazerem o latifúndio com cara mais antiga; palanque de cerca eles trocavam. Então tinha essa coisa do Lupião Mendonça lá no Paraná e do Adhemar de Barros aqui; então a justificativa seria essa de criar uma área de conservação dentro do Vale do Ribeira para evitar, porque este era e é o núcleo mais conservado do Estado de São Paulo. Uma outra visão é que por conta das guerrilhas que depois até surgiu a Guerrilha do Lamarca no Vale do Ribeira, então marcar presença nesses pontos estratégicos para evitar possível guerrilha. Tem essas duas ideias. Eu tenho uma visão de uma terceira ideia que seria retomar esses pontos estratégicos muito bonitos para fins imobiliários de alto nível, porque houve uma pressão muito grande nesse sentido.
P/1 – Ah, é? O que assim, por exemplo?
R – Por exemplo em 1981 entrou... a partir de 55 tinha uma família lá que comprou umas glebas de terra e loteou um pouco da restinga do Marujá, porque lá é uma restinga, de um lado é um estuário e do outro é o Oceano Atlântico e para cá tem o pé da Serra e no final tem o estuário saindo para o mar, o final da ilha. E lá, eles lotearam um trecho muito grande, venderam lotes a partir de 55, mas aí com o decreto do parque em 62 eles pararam de vender e pararam de pagar quem estava pagando. E depois houve toda uma pressão para liberar aquilo lá para fins imobiliários. Aí, posteriormente em 81 o Takaoka construiu uma casa lá e o ele era o cara do Alphaville, então era muito aliado ao Governo do Estado, Paulo Maluf, era a mão da especulação dentro da comunidade. Eu lembro que
a gente denunciou para todos os órgãos
mas o cara construiu; era poderoso. Depois em 84, o Eduardo Melão, primo do João Melão construiu um casarão também um pouco para baixo, lá na restinga um pouco sul do Marujá. E até em 95 o André Beer tentou construir, que é o cara da General Motors, tentou construir lá no final da restinga, lá no Pontal do Leste também uma mansão que a gente denunciou e essa daí ele recebeu uma reprimenda do juiz que ele teve que demolir, teve de tirar o material quando estava no alicerce ainda. Mas as outras duas casas, a do Eduardo Melão foi demolida agora, no ano passado e essa outra está de pé até hoje, lá. Então todos esses caras estavam entrando lá para fazer pressão, fizeram pressão
aqui na Prefeitura de Cananéia, a Câmara de Cananéia os vereadores são todos um grupo de desavisados, com pouco esclarecimento jurídico, votaram um projeto de expansão urbana dentro da Ilha do Cardoso que foi derrubado pelo secretário Feldman do Meio Ambiente. Então, tinha toda uma pressão para... em todos esses momentos nós nos aliamos ao Estado na manutenção do parque para frear a especulação imobiliária, porque sabíamos que esta especulação era o nosso fim porque já vimos que em todo litoral quando eles chegaram lá o morador caiçara foi para Vila Socó, para as encostas do morro. Vila Socó que eu falo é a aquela que pegou fogo lá em Cubatão. Então, foi uma história de luta, muito longa para a manutenção do Parque.
P/1 – Eles ignoravam que era um parque...
R – Eles queriam liberar aquilo lá para fins imobiliários.
P/1 – E o senhor se lembra da construção dessas casas? Quem trabalhava nelas, por exemplo?
R – Lembro, eles traziam pedreiro de fora. No caso do Takaoka ele levou uma balsa dessa de travessia aqui cheia de material dele para lá. E tirou a balsa que é um serviço público daqui
por 20 horas para levar o material dele lá.
P/1 – E a comunidade vendo aquilo, qual foi a reação? Como foi isso aí?
R – Em 81, a comunidade como um todo não tinha clareza do risco. Era a gente mesmo que tinha que dar a cara, por que eu digo que era a gente? Porque eu comecei a ver o histórico do que estava ocorrendo no litoral norte paulista e no litoral sul carioca, Trindade, no litoral sul carioca, Picinguabá, no litoral norte, Toque-Toque, enfim toda aquela região ali eu acompanhei. Tive pequenas chances de ir até lá e ver, e eu queria passar isso para os comunitários, “o bicho está vindo, o rolo compressor”, mas o pessoal não levava muito a sério, não tinha clareza do risco. Então a gente tinha que lutar muito para evitar que essas coisas acontecessem.
P/1 – Eles compraram as terras de moradores?
R – Não, eles compraram desse cara que loteou,
ele tinha o direito de vender.
P/1 – Ele não era morador?
R – Não, ele não era morador nativo.
P/1 – Entendi, era bens do passado, entendi.
R – O loteamento foi antes do Parque, então eles estavam vendendo os lotes lá para o caras. E essa pressão que estou citando do Takaoka e do Melão é introdução de gente poderosa para tentar aliar-se a eles para tentar excluir aquela restinga do Parque.
P/1 – Chegou a ter alguma forma de conflito entre os moradores e esse pessoal com a casa? Como foi?
R – O morador caiçara é extremamente pacato, ele é pacífico e é até passivo. Então a gente que tinha visão da coisa que dava a cara para bater, porque a gente estava vendo, entendendo o mecanismo e não tinha como ficar quieto. Então tentávamos mobilizar os comunitários, mas até agorinha tinha muita gente da comunidade que tinha grande vínculo com essas pessoas.
P/1 – E essa casa, o que foi feita com ela?
R – Do Eduardo Melão foi demolida...
P/1 – Mas isso foi no ano passado; mas o que era como era, estava sendo usada para o que?
R – Essa casa era um ranchão, um casarão que ele vinha para pescar, ficar lá e tal com os companheiros dele.
E o processo demolitório obrigou ele a demolir e retirar o entulho, e está até hoje tirando o entulho.
P/1 – E a do Takaoka que ainda está de pé é dele ainda, é isso?
R – É. Ele já faleceu e ficou para os amigos dele, mas está no processo. Vai ser demolida também. Então, eles estão demolindo todas as casas de ocupantes não tradicionais, de veranistas e vai ficar só casa de morador tradicional.
P/1 – E quem está apoiando isso? Quem está apoiando esse movimento de vocês?
R – Hoje a gente tem uma ligação muito forte com o Parque, com o Estado, porque quando se criou o plano de gestão se criou também um conselho no Parque que se discute e que se reúne mensalmente ou até mais de uma vez por mês quando há necessidade de se fazer reunião extraordinária, e nessas reuniões trata da vida do Parque, das famílias dentro dele, da questão ambiental, das pesquisas, além da vida dos comunitários.
P/1 – Como está viver hoje lá na Ilha, está muito diferente do passado?
R – Diferente está, porque chegou o turismo, em 80 começou a chegar o turismo e
ele o modificou muito a cara dos comunitários, porque aumentou a visão de consumo e modificou bastante, chegou televisão. Mas é a dinâmica, é aquilo que nós estávamos conversando antes, a população, a sociedade é dinâmica, você não pode impedir
que tenha esse consumo alterado que cria problemas, claro que cria, porque imagina você estar consumindo meia dúzia de coisas e daí você amplia para 60 você tem que capitalizar mais, tem que trabalhar mais para poder satisfazer. E eu sempre falo nas minhas conversas, que o cerne do ser humano é o grau de satisfação de onde se vive. Então você pode estar muito satisfeito com pouca coisa, ou não estar satisfeito com um monte de coisa e sempre correndo atrás do novo, do que está na moda (risos).
P/1 – O senhor comentou da televisão, e o senhor se lembra da primeira vez que viu a televisão?
R – A primeira vez que vi televisão lá faz muito tempo. A primeira televisão na Ilha não tem mais do que 15 anos.
P/1 – O senhor se lembra dessa experiência de ver?
R – Lembro, lembro.
P/1 – Conta como foi pra gente.
R – A primeira vez que chegou a televisão o que fomos ver o futebol, Copa do Mundo. Porque não davam bola para os outros programas, para os jornais, a gente ia mais era no futebol.
P/1 – Que Copa que era?
R – Não lembro, não lembro no momento.
P/1 – É a primeira TV na Ilha para ver a Copa?
R – Isso.
P/1 – Quem que era o dono da TV ali?
R – Era o meu sobrinho.
P/1 – E a primeira vez o que o senhor viu,você disse que faz muito tempo?
R – Faz muito tempo. Isso na cidade já.
P/1 – Conta pra mim essa experiência, como foi?
R – Eh, sinceramente eu lembro muito pouco da primeira televisão que eu vi, mas deve fazer uns
40 anos, foi bem no...
P/1 – Você ia direto para a cidade?
R – É,
sempre ia.
P/1 – Senhor Ezequiel vamos voltando para essa questão dessa vida na Ilha e quando teve o período militar, mudou muito a dinâmica da Ilha? Como foi?
R – O regime militar, você está falando?
P/1 – Isso.
R – No regime militar foi... porque não tinha muita ação, a única coisa que eu lembro é dos militares vasculhando as casas lá no tempo do Lamarca, na guerrilha.
P/1 – Mas vocês tiveram problemas na Ilha?
R – Tiveram lá vasculhando as casas, procurando se não tinha ninguém, foi a única coisa que a gente viu.
P/1 – Como foi isso? O senhor se lembra?
R – Lembro, lembro. Eles chegaram casa por casa, e aquela que era forrada que tem aquelas embocaduras no forro para subir para cima, eles subiam para olhar lá em cima, eles vasculhavam tudo.
P/1 – Mas com carta de procurado, o que eles falavam? Falavam com as pessoas?
R - É eles andavam, já tinha um bando de terrorista que podia estar por ali e entravam na casa e vasculhavam.
P/1 – E o que o pessoal comentava ali?
R – Comentava muito pouco, porque a gente sabia da guerrilha que estava no Vale do Ribeira, então.
P/1 -
Vocês sabiam muito, pouco, ou nada? Vinha coisas para vocês? Sobre política...
R – Sabia muito pouco...
P/1 – Ditadura, você falavam sobre isso?
R – Falava. Isso falava porque eu era super atuante politicamente. Então, eu nunca tive medo. Eu via o pessoal que não abria a boca em certos assuntos, eu nunca tive esse problema. Eu sempre falei, sempre achei melhor correr o risco do que ficar quieto. Mas era comentado dentro da comunidade. E era comentado assim, a maioria a favor da repressão, a favor dos militares (risos) o que é pior. Porque quanto mais subdesenvolvido, mais conservadora a população, então é mais submissa também.
P/1 – O senhor falou que sempre foi muito ativo, mas quando começa essa militância do senhor, quando o senhor começa a entrar e a virar uma referência na comunidade, quando que isso começa?
R – Dezoito anos de idade eu já exercia uma liderança dentro da comunidade.
P/1 -
Da onde vem isso?
R – Olha, eu sempre achei e entendi que veio por conta da necessidade, por conta das coisas que tinha de fazer. A gente tinha, depois mais tarde uma dinâmica lá que era colocar a cartolina nas assembleias “problemas comunitários” e depois priorizar eles em números e tentar solução a partir da priorização do problema. Era uma dinâmica que eles faziam desde...
P/1 – O senhor se lembra, no passado quais eram os problemas e hoje, mudou muito?
R – Mudou, mudou bastante porque tinha muito problema... só para ter ideia, nós fizemos num tempo quando eu comecei a trabalhar em 84 – eu acho – nós fizemos uma ficha epidemiológica que era o nome do paciente, onde mora, idade, qual o problema de saúde e qual o encaminhamento, o procedimento. Eu peguei esse material e depois de um ano e meio e fui tabulando e fui vendo quais eram os problemas de saúde e, tinham muito problema de saúde. Tinha piodermite que é ferida infectada, tinha amigdalite, tinha um índice de verminose altíssimo, tinha IRA que é Infecção Respiratória Aguda, tinha um monte dessas coisas, tinha pouca diabetes e hipertensão. Hoje é o contrário, tem mais diabetes e hipertensão, mas a qualidade... tinha muita diarreia e vômito, mas a qualidade de vida da comunidade melhorou violentamente, muito. Hoje você não vê caso de diarreia, fica cinco seis meses sem um caso de diarreia e quando tem é aquela viral que não tem nada a ver com o ambiente. Então, por conta dessa orientação de saúde e higiene e por causa desse trabalho de saneamento etc, foi o que fez essa melhoria. Mas é evidente quando você olha aquele passado e olha hoje. Hoje quase ninguém sai da comunidade, ninguém quer migrar porque tem uma condição de vida legal.
P/1 – Eu queria que você contasse um pouco de como é essa dinâmica, como é o dia a dia do senhor, por exemplo? Como que essa comunidade está vivendo? Porque o senhor falou que depois de 97 vocês conseguiram mudar a lei.
R – Elaborar o plano.
P/1 – Elaborar o plano e que permitiu roça, voltou a ter roça, voltou a ter caça...
R – Caça não.
P/1 – Caça, não. Pesca...
R – Caça não, porque dentro do plano a gente não previu caça.
Agente deixou... deixa o bicho. Mas fazem...
P/1 – Fazem?
R – Fazem caça clandestina.
P/1 – Os moradores?
R – Os moradores, alguns moradores. Porque tem gente que mora encostado no pé da montanha, então, isolado, ele não tem acesso a mercado para comprar carne, então ele mata de vez em quando um quexada, uma paca, eles fazem isso. Mas a maioria é sossegada, está bem harmônico com a comunidade.
P/1 – E trabalhando com isso, com roça e com pesca?
R – Com roça, com pesca com algum manejo florestal porque
tem esse cerco fixo que é uma armadilha de pesca que você precisa tirar a estaca de madeira da mata para fazer, então essa coisa acontece, mas está tudo previsto no plano, toda essa gestão.
P/1 – Que foi aceito pelo Estado, que foi uma luta de anos e conseguiu. A gente estava vendo a questão da Juréia que tem problemas a questão da reserva.
R – Juréia tem muito mais, porque a Juréia é mais restritiva porque lá não é parque, lá é uma unidade restritiva, Reserva Ecológica.
P/1 – A Ilha não chegou a ser reserva?
R – Não é Parque Estadual, é uma legislação um pouquinho mais branda. Porque lá na verdade só podia ir alguns pesquisadores em alguma áreas só e o resto é tudo preservação permanente.
P/1 – Entendi. Queria retomar a questão do turismo, as pessoas estão chegando. Como que vocês trabalham com essa questão de receber? Quais são os grupos que vão? Como que funciona?
R – Primeiro que quando começou a entrar o turismo a gente sabia do risco, do perigo, é entrada de pessoas do mundo urbano dentro de uma comunidade tradicional bastante pacata e a gente sabia que tinha risco do ponto de vista cultural, do ponto de vista da contaminação, da poluição etc. E começou a trabalhar com a comunidade que grupo que nós queríamos, porque turismo é uma grande massa, mas não é um bloco só, eles são várias categorias. Então, a gente começou a tentar detectar essas categorias, eu lembro que a gente descobriu cinco categorias diferentes de turistas. O pescador de lazer, é uma categoria, o que que ele traz? Quase nada, vem matar os filhotes de peixe da gente, vem brincar com a profissão do pescador. O turismo de iate, sabe esses barcos enormes que vai fazendo aquela marola provocando erosão nos barrancos do rio, ele chega lá ancora lá de frente não gasta nada com a comunidade, atravessa a praia e vai jogando latinha vazia, até que é bom porque os caras catam e vendem, vão jogando lixo nos caminhos, nas trilhas, não deixa dinheiro, não deixa nada. Os veranistas, os caras que adquiriram casas, o que eles trariam? De repente pagam um caseiro para ficar cuidando lá, mas sabe que quando eles estão lá na casa deles, é um comunitário a menos que você tem para mutirão ou para qualquer atividade, está preso lá; e é um salário irrisório que não vai levar a lugar nenhum. E daí, por último, tem os campistas e iam muitos universitários no começo e ficavam nas barracas e os caras que vão se alojar nas pequenas pousadas, quarto de aluguel. Então, a categoria que nós pretendíamos trabalhar eram essas duas últimas. Evidente, são pessoas que trazem recursos para a comunidade, já que vão estragar um monte de coisa, mas que pelo menos deixem alguma recompensa financeira. E a gente organizou isso no decorrer do tempo, eu digo que nós tivemos sorte porque como é uma comunidade isolada eu levei uma hora e 20 de motor à gasolina para chegar aqui. Então de barco nas escunas leva três horas para chegar lá, então é longe e isso foi o fator bom, o fator legal para nós porque dificultou a chegada do turismo, ele foi chegando devagar e a gente foi organizando a chegada dele, entendeu? Aí, a maioria das casas adaptaram fizeram um quarto para aluguel e a gente posteriormente começou em 93, quando implantamos esse plano de gestão da comunidade, uma das coisas fundamentais que nós fizemos foi uma visão de distribuição de renda, de receita do turismo para a comunidade inteira, porque já que eles vão chegar, vão criar problemas para a comunidade inteira nada mais justo do que a grana ser distribuída na comunidade inteira. A gente começou a pegar as cotas das barracas e repassar para todos os moradores, criar infraestrutura sanitária mínima e levar o número X de barraca para o quintal deles como forma de distribuir renda. E quem tinha cinco quartos ou mais dentro da comunidade foi proibido de construir e a gente liberou para quem não tinha para poder construir. E isso está valendo até hoje, então foi um passo fundamental do ponto de vista da organização do turismo, da socialização do recurso e para criar um elo de unidade da comunidade. Junto com isso a gente estipulou um grupo, um número de suporte: daí tem tantos quartos, tem tantos leitos, numerou um número X de barracas e acabou. Se você quiser ir lá na alta temporada, tem que ligar em outubro para ir ... deixa eu ver outubro, novembro, dezembro... no máximo no começo de novembro para achar vaga lá para ir no reveillon, porque os caras ligam lá antes reservam, porque tem limite estabelecido e é até rígido, chega lá e não tem vai ter que voltar. Junto com isso nós implantamos uma coisa muito interessante que é uma contribuição de cada morador com o caixa da Associação
para gerir a comunidade, a Prefeitura não faz nada, o Estado não faz nada. Para não perder
a dinâmica de revindicar nós também não cruzamos os braços esperando que eles fizessem, então a gente inventou, bolou essa contribuição. Daí cada barraca que está nos quintais ou donos do camping paga um real por dia e cada hóspede 50 centavos, isso vai para um caixa da comunidade para fazer coleta seletiva de lixo, agendamento, pagar o telefonista do agendamento, limpeza de trilha enfim toda atividade da comunidade.
P/1 – Vai estruturando, né?
R – É e a gente vai melhorando gradativamente.
P/1 – Recebe muita escola?
R – Recebo bastante escola.
P/1 – Como que funciona a dinâmica com as escolas, por exemplo?
R – Eh...
P/1 – Eles fazem monitoria? Elas ficam aonde? Porque vem turma de 40...
R – Eh, pode ser 40, pode ser 80, pode ser 20 dependendo da escola.
P/1 – Normalmente qual é o percurso que eles fazem? Como que vocês trabalham com os alunos?
R – Olha tem vários jeitos de trabalhar, eu particularmente até desenvolvi um roteiro para a escola. A escola dizia que queria vir então eu bolava um roteiro, passava por fax e eles escolhiam do roteiro que eu passava o que era melhor aplicável para a escola dele. E é assim que funciona. Outros já vem com roteiro pronto já.
Tem escola que vem e fica um dia, outras ficam dois, ficam até quatro dias, aí depende da atividade...
P/1 – Por exemplo, roteiros que o senhor
criou?
R – Ah, eu pegava um dia cachoeira, outro dia tem piscinas naturais, outro dia era estudo de restinga e costão rochoso, isso cabe num dia, sítio arqueológico que é dos sambaquis, o reconhecimento da comunidade, passar e ver a comunidade, um dia de palestras de conversas do que estamos fazendo aqui, um dia para ver a pesca do cerco. Cheguei até fazer uma coisa que foi muito melhor ainda que foi um dia ver a roça de mandioca, tirando a plantação, ver a fábrica de farinha e vê-la sendo fabricando. Então, bolamos o roteiro de acordo como coloca no papel uma série de atividades e ele
escolhe o que que ele pode fazer, qual o interesse dele e o tempo que ele vai ter.
P/1 – A escola discute, liga para o senhor?
R – Discute lá com ele, com a escola e agência e vem com o roteiro pronto.
P/1 – E qual que é o contato, eles ligam para a Associação?
R – Liga naquele telefone comunitário que eu passei ai.
P/1 – E falam com... esse telefone comunitário é da Associação?
R – É da Associação esse telefone, o agendamento é da Associação. Então, o que eles fazem, se for nominal, você liga e fala “oh, eu quero ir pra casa do seu João”, então dá o recado para o seu João; o cara liga e deixa o número lá, o seu João vem e liga pra agência e fecha. Quando vem sem nome, aí ele escola a bola da vez; passa uma vez para uma pousada e outra vez para outra. Porque tem várias pousadinhas.
P/1 – Tem várias pousadas?
R – É.
P/1 – Não tem um lugar que recepciona também um maior. Aquele instituto de pesquisa não recepciona as pessoas também?
R – Não, lá não tem. Tem ali no Perequê na Ponta Ilha Norte aqui. Lá tem uma coisa que é muito interessante que nós implantamos é que nós enxotamos todos de fora para fora, ninguém faz comércio lá a não ser os nativos.
P/1 – Como que vocês conseguiram isso?
R – (risos) então isso é dinâmica de muito tempo. Nós fomos perseguindo, perseguindo, colocamos na reunião do conselho para discutir ganhando o conselho em favor da ação nossa. Porque nós temos a Ilha do Mel vizinha nossa lá, que não tem nenhum nativo na pousada, é só gente de fora, e aqui nós queríamos fazer o inverso. Aqui não aqui tem que ser para os comunitários. Nós organizamos tudo até agora e agora que o bolo está pronto os caras vão comer, não é justo.
P/1 – O senhor lembra de alguma situação
pra contar pra gente assim que foi conflituosa nisso, as pessoas querendo fazer comércio?
R – Teve, teve. Eu não gostaria de citar nomes, mas teve caso de um cara que tinha um bar e fazia forró e que fazia um lixo desgraçado lá, muito uso de droga, que nós botamos ele para fora. A justiça cassou o direito dele e ele foi embora. Teve uma outra mulher, um outro casal que tinha uma pousada lá, também já arrebentamos, já não pode levar mais gente, está lacrada. O único lá que faz comércio de pequeno porte que serve uns bolos lá que ainda tá lá, é bem menos brando mas já está com os dias contados lá.
P/1 – O pessoal junto e entra na justiça?
R – Entra no conselho, o conselho entra na justiça e a justiça...
P/1 – E a justiça...
R – A justiça manda... fecha.
P/1 – Isso daí deve ter sido um momento difícil lá, porque devia ter muita gente querendo fazer um negócio ali.
R – Tem, mas agora está tranquilo porque agora ninguém mais vai tentar, até porque ninguém pode entrar lá, os que estão... só entra que casa com comunitários, com morador.
P/ 1 – O senhor falou que é possível alguém de fora comprar um casa lá?
R – Não, não é. Totalmente impossível.
P/1 – Mas por que é parque, ou por que vocês?
R – Porque é parque.
P/1 – Entendi. E em relação a comunidade em relação à preservação do ambiente ali do... e da cultura tradicional, como você vê isso?
R – Eu vejo um pouco ameaçada a cultura tradicional por causa do turismo, por que? Porque tem gente lá que está virando hoteleiro e o meu discurso é que nós não sejamos hoteleiros, que se mantenha a atividade pesqueira, a atividade tradicional, o artesanato etc, pequena agricultura, e que faça dessa coisa, dessa atividade o produto turístico, que o turista vá lá para ver a pesca, ver o cerco, ver a casa da farinha, para ver o artesanato, comprar o artesanato e não para ver só o recurso natural que é muito belo também, mas eu defendo que esse produto seja o mais forte.
P/1 – Eu queria saber, as pessoas mantém esse jeito de viver de muito tempo ou está todo mundo com TV, todo mundo ouvindo rock'n roll, como faz essa dinâmica da comunidade? O jovem de lá, por exemplo como é?
R – Eu nunca me opus foi a essa dinâmica. Eu acho que a sociedade é dinâmica, você não vai criar mecanismo de deixar estática as coisas, vai mudar sim. Entrou a televisão, vai ter mais consumo, vai mudar o caráter da música, nós temos um bando de pessoas que não gosta do fandango, que é a música tradicional caiçara. E temos muito mais turistas que gostam do que comunitários, mas tem que lidar com isso, não tem outro caminho. Eu não entendo que tenha outro procedimento que não seja aceitar que a sociedade é dinâmica.
P/1 – O jovem está saindo ainda?
R –
Não. Então, nós temos nesses últimos dois anos aí dois ou três que saíram e teve alguém que saiu e voltou em seguida. E nós colocamos uma regra no regimento interno do parque e estamos até escrevendo agora um termo de referência, onde está escrito que quem sair por mais de dois anos perde o vínculo com a comunidade e ele não pode voltar a ter moradia dele, ele pode voltar para casa do pai, mas não pode tocar comércio, não pode construir coisas para ele.
P/1 – E para estudar, por exemplo?
R – Oi.
P/1 – Ele não pode fazer a faculdade e voltar?
R – Não, por questão de educação e saúde ele pode ficar 20 anos lá e voltar, porque nós entendemos que se o Estado não dá chance do cara fazer, ter o direito do cidadão e dever do Estado. Agora arrumar o pé-de-meia fora, procurar um outro rumo na vida dele, tem o direito de sair, mas ele pode fazer a experiência curta, se não voltar em dois anos já perde esse vínculo. Por que? Porque nós não vamos ficar organizando a comunidade para o cara que vai experimentar lá fora e voltar na hora que a comida está pronta ele senta na cadeira na mesa.
(TROCA DE FITA)
P/1 – O senhor estava falando dessa organização. Eu vi que todo mundo foi organizando para não deixar que mude. O senhor comentou vários exemplos de fora, o senhor saiu da comunidade para ir ver esses lugares essa questão do Litoral Norte da Ilha do Mel
que o senhor comentou, como que vocês foram se educando para saber o que fazer? Como foi?
R – Veja aí, em 79 eu comecei a ver esses lugares, a visitar para ter referência. Eu tentei em 79 até 82, 83 um fundo de intercâmbio caiçara. Por sinal, agora nós fomos em Parati três vezes, e dependendo um dia desses vamos mais uma vez,
fizemos vários contatos e visitas nas ilhas do Paraná – Ilha das Peças, Supiragui, Ilha Rasa, Guaraqueçaba – trocar experiências. Então, o que acontecia naquele tempo, eu estava vendo mas não conseguia levar muita gente para ver o que estava acontecendo lá
e para passar para os comunitários. Então,
fizemos várias intervenções, várias idas nesses lugares e tal para acompanhar
como estava indo. Lembro de um episódio muito interessante super interessante lá em Trindade. Tinha uma companhia lá que queria lotear tudo e estava pressionando e comprando a posse dos moradores para desocupar; eu lembro que os comunitários lá tinham um cerco flutuante que é uma armadilha de pesca deles, que tinha uma comunidade que tinha o cerco e tudo que eles tinham era aquele cerco para pescar para a manutenção da vida deles lá. E a companhia contratou jagunço e no temporal, cortaram as amarras do cerco para irem embora e eles ficaram sem nada. E isso estava acontecendo lá e eu tinha que contar para os comunitários
“olha, não vai ser nosso cerco que eles vão corta, mas eles vão chegar aqui, porque isso daqui é um filé-mignon, imagine só quando eles chegarem aqui, então eles vão querer isso daqui de qualquer jeito. E vão pressionar, comprar sua casa, vão oferecer grana e tal”. Então, esse era o trabalho que eu fazia de conscientização, de tentativa de conscientização dos comunitários.
P/1 – No fim a criação do Parque que segurou isso? O morador não pode vender, né?
R – O morador podia vender porque até 97 não tinha plano, até 97 os caras faziam o que bem entendiam com o imóvel dele. E venderam, muita gente vendeu. Mas alguns comunitários venderam...
P/1 – E saíram?
R – Foram embora. Até alguns mais no sul da Ilha que venderam a casa e fizeram outra e fizeram outra, fizeram outra, e partilharam dessa
coisa ruim aí que é a entrada de estranhos. E a gente orientava na assembleia comunitária que ninguém fizesse isso, que não participasse desse jogo.
P/1 – Nessas trocas de conhecimentos caiçaras, conta para
a gente uma das viagens que o senhor aprendeu muito, ou que aconteceu algo que você fale “poxa”, que aprendeu algo que foi para
a comunidade. Conta uma dessas viagens pra gente, de troca.
R – Eu acho que das viagens, todas elas que eu fui, fui olhar o que estava ocorrendo lá. Mas eu citei no meio da conversa a Vila Socó. O que que era? Era uma vila de favelados, uma favela em cima do manguezal que até deu aquele incêndio que vazou coisa da Petrobras e deu incêndio no barraco dos caras. Aquilo lá que morador que é? É morador nativo de área segura que estava morando porque venderam aquele terreno, foram espoliados. Eu vou contar um exemplo bem drástico que foi
lá em Picinguaba, eles começaram a comprar, a comprar, os especuladores, e tinha uma senhora de idade lá que tinha uma merceariazinha lá que vendia tudo para os moradores, era um ponto muito bonito, um ponto estratégico e eles começaram a oferecer grana, a oferecer grana ela começou a resistir, aí o que que eles fizeram? Eles pegaram um sargento reformado e levaram para lá, montaram um supermercado para eles, compravam mercadoria
lá no Eldorado, no Carrefour, lá não sei aonde, o mais barato possível e vendia muito mais barato que ela, quebrou ela em um ano de vida e ela saiu oferecendo a casa para eles, por exemplo. Isso acontecia e a gente estava vendo isso e dizíamos “isso vai chegar aqui se não cuidarmos”.
P/1 – E hoje, atualmente, sofrem pressão de alguma maneira?
R – Não, hoje de vez em quando a gente tem algum desconforto na gestão com o Parque por causa do caráter do Estado de inoperante mesmo porque o plano tem tudo está no papel mas é como a constituição federal.
A constituição federal é bela, é ótima, agora pra você tirar ela do papel e por na prática você tem que convencer o Congresso Nacional, convencer o Senado e depois ainda fazer pressão no Presidente homologar o que eles colocaram no papel. Então aqui acontece a mesma coisa, tem coisa que eles rejeitam tirar do papel, eles são morosos ficam empurrando com a barriga,
então temos que fazer
pressão. Tem, acontece isso. Nós tivemos um diretor muito bom, o primeiro diretor que veio, esses aí eu vou falar o nome porque eu assino embaixo o que faço com eles, eu falo isso pra eles olho no olho, nós tivemos o Marcos Campollim que foi excelente, foram nove anos de gestão compartilhada, muito boa, que ficou servindo exemplo para o Estado de São Paulo, depois tivemos o Mário que foi um cara que ficou dois anos emperrando que não deixou acontecer e hoje nós temos Thiago que é um cara
que está começando a estruturar, a reestruturar as coisas, mas que tem uma gestão bem participativa pra mim
P/1 – Esse pessoal é da? Esses nomes que o senhor falou?
R – São todos funcionários da Fundação Florestal e são diretores da unidade, diretores do Parque do Cardoso.
P/1 – São pessoas de fora.
R – Nomeados, esse daí é concursado. Os outros eram nomeados, mas são técnicos que vem administrar o
Parque. Daí esse técnico marca as reuniões mensais, tem
o conselho que tem membros de todos os moradores, dos núcleos de moradores
tradicionais. Aí tem representantes dos pesquisadores, da Prefeitura Municipal, da Secretaria de Educação, da Colônia de Pescadores, da Polícia Ambiental, enfim das ONGs locais. E tem 15, 16... hoje tem 14 representantes, 14 conselheiros que se reúnem mensalmente para lidar com toda essa dinâmica, tanto no plano da pesquisa
como no plano da vida dos comunitários.
P/1 – E o pessoal mais jovem assim também está mobilizado, como é?
R – Isso é relativo, sabe que comunidade é dinâmica também nisso, tem altos e baixos. Então você pega, por exemplo, a Associação de Moradores que cai na mão de uma diretoria que vai para frente, que busca que reivindica, que faz mais coisa e corre atrás. E outra é aquela mais acomodada, mais passiva. Então são altos e baixos.
P/1 – E o Terceiro Setor, as ONGs, têm algum contato com a Associação de vocês, têm?
R – Tem a rede Cananéia que eu sou membro da rede também, que tem uma dinâmica não só com Marujá, mas com várias comunidades e o IPEC (Instituto de Pesquisas Cananéia) que desenvolve aqui um trabalho dentro da pesquisa, mas atinge muito pouco as comunidades mais tradicionais e é isso. Tinha a SOS Mata Atlântica que nunca fez nada, aliás a SOS Mata Atlântica é um cabide de emprego, e é isso.
P/1 – No caso da Rede Cananéia eles procuram? Qual que é o trabalho que é feito?
R – A rede Cananéia a dinâmica é a seguinte: eles assessoram as comunidades membros. Então tem membros dos quilombolas do Marujá que sou eu, do Pontal da Enseada da Baleia, enfim, da SINTRAVALE (Associação de Trabalhadores da Agricultura Familiar do Vale do Ribeira e Litoral Sul de São Paulo – Sub-Sede Cananéia) que é aqui no continente, tem vários membros de várias comunidades que participam, que são membros da assembleia, e que elaboram junto com ela projetos para essas comunidades, para essas entidades comunitárias.
P/1 – Vocês, moradores, tem um contato bem grande das comunidades do Vale do Ribeira, assim? Existe uma identidade comum? Algo que as unem?
R – Não, não tem, a gente é bastante falho nisso.
A gente tem muito contato individual, mas contato entre entidades é muito pouco. É mais o movimento contra a barragem que o pessoal se reúne mais...
P/1 – Como foi essa questão da barragem?
R – Eu não participei ativamente da reuniões, mas teve uma movimentação muito grande das várias organizações, da sociedade civil organizada do Vale que participaram.
P/1 – O pessoal da Ilha?
R – Eu participei várias vezes, mas de forma isolada não como uma entidade comunitária.
P/1 – Mas o senhor poderia me explicar um pouco de como foi essas questão das barragens porque eu conheço muito pouco da história.
R – Então a barragem, tem uma pressão para sair a barragem do Tijuco Alto e uma pressão da organizações comunitárias sobretudo dos que vão ser atingidos, eu citava assim um bairro mais organizado que é Ivaporunduva do quilombola que tem as pessoas lá muito politizadas e sabem o risco que isso representa, que batalharam muito.
P/1 – E foi algo que organizou o Vale, assim, o Vale?
R – Foi, foi esse bairro, essa comunidade Ivaporunduva é super atuante, já mobilizou bastante as outras entidades.
P/1 – Como o eu senhor imagina a comunidade da Ilha daqui uns dez anos? Como o senhor imagina?
R -
Eu imagino que a tendência é melhorar cada vez mais, não só no âmbito do plano de bem estar social, de qualidade de vida, mas também de respeito com a unidade, cada vez mais está tendo uma visão mais clara... até porque com a entrada da receita do turismo se criou mais atividade para ganhar a vida, então há uma possibilidade muito maior de conservação. O que eu defendo é o seguinte, quanto mais atividade você tem se você vai extrair caranguejo, só caranguejo, você vai devagarinho esgotando a fonte. Se você faz caranguejo, marisco, mais artesanato, turismo, mais não sei o quê, você vai diversificando e você vai tendo menos impacto em todos os setores,
então a sustentabilidade está garantida. Eu acredito que no futuro essa sustentabilidade vai melhorar mais ainda.
P/1 – Mas vocês vendem para fora?
R – Sim, sim. Tem que vender.
P/1 – Vende pra?
R – Para consumidor...
P/1 – Para a cidade?
R – É, é...
P/1 – E isso também passa pela associação?
R – Nem sempre. Isso passa mais pelo conselho e mais pelo próprio indivíduo.
P/1 – Pelo responsável...
R – Todas essas questões são pauta da assembleia comunitária, cada uma no seu tempo certo, mas fazem.
P/1 – Teve alguma coisa que o senhor queria nos dizer que eu não perguntei, enfim alguma parte da sua vida, algum tema, alguma passagem que o senhor gostaria de contar para gente?
R – Eu acho que tem duas coisas que eu queria reviver aí, que é para mostrar... no Estado de São Paulo inteiro que a gente vê é que tem um atrito, um conflito entre Estado e morador tradicional em área de conservação, e a gente sempre teve o discurso de que a gente era aliado do Estado na manutenção dos moradores nativos locais e na manutenção da conservação do parque, e nós queríamos mostrar e garantir que isso é possível. Então, dois fenômenos que aconteceram e eu queria retomar é essa assembleia de 77 que era lá no tempo que quase ninguém estava pensando na preservação do Parque, ninguém tinha muito claro essa visão conservacionista e nós batalhamos contra a Marinha do Brasil em favor do Parque, foi um momento que nós trouxemos quase cem por cento dos comunitários para a assembleia aqui em Cananéia. O tenente, o cara que tinha mandado intimação para as comunidades, mas assim dois, três morador por comunidade para trazer, para desmembrar para ir arrebentando esse espírito de união e nós surpreendemos ele colocando uma assembleia com todos os comunitários no mesmo local. E daí a Igreja daqui do Padre João
ficou com a incumbência de arquitetar a vinda dos técnicos, daí veio três Deputados Estaduais, veio pessoal da Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e
então pegamos o tenente lá e pregamos ele na parede. Então esse foi um momento muito bom, muito forte em favor do morador mas também em favor da manutenção do Parque. Para você ver que nós estamos na atitude de aliado do Parque.
P/1 – Eu não entendi o que a Marinha queria fazer?
R – Segundo eles, era para colocar um estudo de energia nuclear no Cardoso, mas por trás da cortina a gente via que era claramente a especulação imobiliária de alto nível que estava presente fazendo essa pressão. E em 1982, quando o Governo Montoro ganhou o Governo do Estado, a gente tinha uma ligação muito forte com o pessoal do Instituto de Pesca em São Paulo e eles perceberam que essa ligação com a comunidade tradicional não era benéfica para aquela visão deles de especuladores, então a União pegou e disse que ela era a dona da terra, porque a terra é patrimônio da União mesmo, e queria retirar o Estado do Parque. E nós juntamos força, com documentação, pressionando o Governo Federal na manutenção do Parque. Então, foram dois momentos que a gente esteve muito ajudando o Estado na manutenção do Parque. Isso para mostrar que a gente nunca foi esse adversário, que sempre tivemos conflito, divergência porque o Estado é muito omisso mesmo e muito lento para tirar as coisas do papel e implantar. Mas isso não quer dizer que em nenhum momento a gente foi contra o Parque, muito pelo contrário.
P/1 – O senhor consegue me descrever esse dia da assembleia, como foi assim? Onde foi?
R – Foi aqui na cidade...
P/1 – Como foi esse dia?
R – Esse dia foi o seguinte, nós bolamos esse esquema, o padre ficou arquitetando para os técnicos virem e eu sai, naquele tempo não tinha embarcação, o meio de locomoção era só aquela lancha do Departamento da Sorocabana, eu fui a pé daqui de Itacuruçá, convidando casa por casa marcando o dia até o Pontal do Leste da Ararapira, claro que eu não fiz num dia só, dormi no Marujá e no outro dia retomei e fiz tudo, todo o entorno da Ilha convidando todo mundo para vir no dia tal e todo mundo veio. Foi muito legal, a gente tinha muita gente e o tenente ainda tentou distorcer,
tentou levar para o salão da colônia, para parecer bem individual mas nós não concordamos. Eu lembro que colocaram uns fiscais um na subida do CEAGESP (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo )
e outro aqui na rampa do pier municipal do Porto do Bacharel
para evitar que os comunitários subissem, sem contato, fazendo contato com todo mundo e mandando todo mundo para o salão para fazer a assembleia lá e o tenente não teve alternativa e teve que ir para lá. Aí estava a imprensa lá.
P/1 – Vocês que chamaram a imprensa?
R – Foi, então esse meio de campo foi padre que fez e eu fiz o trabalho de contato.
P/1 – O que o senhor achou de contar um pouco da sua história?
R – Eu acho que contar... da atividade pesqueira que nós fazemos na pesca. Eu fiquei mais de sete anos pescando só no mar aberto, pescaria de canoa, de remo não era motorizada, acampando nas ilhas, pegando temporal a noite.
P/1 – Já pegou uma dessa assim?
R – Peguei vários temporais. E eu tinha sete filhos para criar pescando, pegando peixe lá. Então, tinha que ter muito cuidado, muita responsabilidade com a atividade pesqueira também, mas foi legal. Superei as dificuldades que a gente tinha no meio do caminho.
P/1 – Tá certo, alguém gostaria de fazer alguma pergunta. Bom, gostaria de agradecer pela entrevista por disponibilizar. Muito bonita. Obrigado.
FIM DA ENTREVISTARecolher