P/1 – Ru, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Ruberval Marcelo da Silva Oliveira, dia 6 de janeiro de 1968.
P/1 – Você nasceu em?
R – Em São Paulo, capital.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Não, são da Bahia.
P/1 – Seu pai e sua mãe?
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P/1 – Ru, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Ruberval Marcelo da Silva Oliveira, dia 6 de janeiro de 1968.
P/1 – Você nasceu em?
R – Em São Paulo, capital.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Não, são da Bahia.
P/1 – Seu pai e sua mãe?
R – Isso.
P/1 – Como que é o nome do seu pai?
R – Eutímeo Lopes de Oliveira.
P/1 – E da sua mãe?
R – Evilásia da Silva Oliveira.
P/1 – E eles são de que lugar da Bahia?
R – É perto da Chapada Diamantina, o meu pai é de Brotas de Macaúbas, mas é uma cidade bem pequena, e a minha mãe é de Oliveira dos Brejinhos.
P/1 – Essa cidade do seu pai, seus avós são de lá, os pais dele?
R – São.
P/1 – Então vamos falar um pouco agora da família do seu pai. Quem eram os seus avós, os pais dele, o que eles faziam?
R – Tem poucas referências, eles mesmos falam pouco, porque eles mesmos conheceram pouco, mas do que eu lembro eram pessoas que lidavam com a terra, agricultores e tudo. Eu tenho pouca informação mesmo dessa geração, né, eles falam de maneira bem dispersa, não é? Eu lembro que o meu pai fala de uma avó que era índia, que tem uma expressão que chama pega no laço, tinha essa expressão antiga, e tem descendentes de espanhóis, que ficaram gerações dentro de comunidades muito isoladas, depois que vieram pra essas cidades, que já eram pequenas, sobrenome Onça, uns negócios bem, coisas que eu estou começando a dar uma vasculhada, né? Agora, você está falando do que seria meus...
P/1 – Avós paternos.
R – Avós?
P/1 – Avô e avó.
R – Ah, tá, agora eu entendi.
P/1 – A mãe do seu pai e o pai do seu pai.
R – Ah, não, certo, então é isso mesmo, Timóteo Lopes de Oliveira, e minha avó também, é Aurora, esses eu lembro, até conheci, esses eu conheci. Eu achei que era meus, seria taravôs, é isso? É acima.
P/1 – Não, avós, os pais do seu pai.
R – Isso, então são esses, eles eram descendentes de espanhol, meu avô tinha o olho azul.
P/1 – Você conheceu ele?
R – Conheci.
P/1 – Como que ele era, o jeito dele? Ele que era agricultor?
R – O meu avô, então, o meu avô, ele lidava com terra mesmo, com criação, essas coisas, eles tinham pequenas propriedades, que geravam algumas coisas e tal.
P/1 – O quê?
R – Coisas agrícolas da região, essas, um pouco de leite, essas coisas assim, coisa muito rural.
P/1 – Como que era o jeito dele, assim?
R – Ele era um cara muito rigoroso, ao extremo, o que era uma característica acho que da época, eu estou te falando isso porque o meu pai tem 85, o meu pai é o mais velho, então o meu avô estaria com muito mais de cem anos, enfim, se estivesse vivo, ele é do início do século. Inclusive são caçadores também, tem uma tradição de ser caçador na família, sabe, meu pai, desde pequeno, até a gente, chama atenção dele, que vive outro momento e tal, fala: “Não, uma coisinha ou outra e tal”, eles vêm muito disso, sabe? Ele tinha esse ideal, não tem jogador de futebol como ideal, ele tinha essa, ele via o pai, via os tios chegando com caça, essas coisas, isso no início do século. Enfim, eram coisas que tinham contexto na época, hoje a gente fica até assustado, e ele era desse jeito e muito rigoroso e teve 22 filhos. Minha avó teve 22 filhos, que o meu pai seria, o primogênito já morreu, que seria o Péricles, e aí o meu pai embaixo, logo em seguida, que é o que está vivo.
P/1 – E os pais da sua mãe?
R – Os pais da minha mãe, essa é uma figura bem forte na família, a avó Ana, Ana Barbosa, que era descendente desse povo que tinha sobrenome de Onça, eu achava engraçado, eu não sei se eles caçavam onça, enfim, e era uma pessoa bastante, bastante...
P/1 – Como é o sobrenome mesmo?
R – Barbosa, o dela é Barbosa, Ana Barbosa, e era uma pessoa muito, muito, muito marcante mesmo, de uma personalidade ímpar pra época, uma pessoa que tinha um comportamento até à frente do tempo. O meu avô, ele se forma em 1914 na Escola Federal de Medicina da Bahia e ele não teve só a minha avó de mulher, ele teve três mulheres, todas filhas de coronéis, porque, como ele era médico, ele tratava e os pagamentos eram terra, sabe? E era uma época que o médico tinha um status, se hoje já tem o status que tem, na época então era uma coisa de outro mundo, o cara chegava lá e curava as pessoas e tinha todo aquele processo de gratidão. Enfim, ele acabou criando um espólio, mas existe uma lenda que a mulher da vida dele foi a minha avó, enfim, mas era difícil pra lidar com essa coisa de família, né? E ele se forma em 1914, João Cupertino da Silva. Da parte da minha mãe tem esses emblemas que mexem muito comigo, porque, por exemplo, ele, negro, se formar em Medicina em 1914, quer dizer que ele nasce escravo, em alguma medida, ou menino de cria, que é isso que eu pretendo investigar. Estou investigando aos poucos, não tive tempo pra fazer essa investigação, mas só dele ser negro e formado em Medicina na Bahia, que era uma escola de elite na época, enfim, é hoje, imagine na época. Então, e ele também entrou na política, ele era político, ele chegou a ser senador estadual, quando tinha o senado estadual, foi deputado e tudo, e foi quando a minha mãe foi morar em Salvador com ele, dentro de uma... como é que se fala? Assim, uma coisa bem de elite mesmo, ele político, então ela teve uma educação super boa, que chamava Colégio Santa Bernadete, se não me falha a memória, onde até a Irmã Dulce foi professora dela de Religião, se não me engano. Minha mãe é uma pessoa que chama atenção por essa parte da educação dela, porque ela leu tudo de José de Alencar, tudo de Jorge Amado, de Machado de Assis, tudo porque as freiras deixavam ela ler e ela gostou de ler, aprendeu a ler, e até hoje ela é uma leitora e sempre incentivou a gente a ler bastante também. Então essa parte da minha família é bem legal, assim, dessa parte da minha mãe, principalmente o meu avô, assim, e eu tenho semelhança física com ele, quando eu usava óculos, ele tinha um óculos redondo, as minhas tias ficam super impressionadas com a minha semelhança, principalmente quando eu era um pouco mais magro. Quando eu fui às primeiras vezes, depois, já jovem adulto, na faixa dos 20, com os óculos e tal, alguns habitantes lá da cidadezinha ficavam olhando assustados pra mim, achando que tava vendo um fantasma. Era bem engraçado isso aí e foi legal de lidar com esse espectro, com essa áurea que o meu avô deixou, e o hospital da cidade tem o nome dele, é uma cidade pequena. Mas dá potência, dá um incentivo, assim, pra você, como se você tivesse, se no começo do século o cara conseguiu, então a gente conseguiria superar também todas as dificuldades de uma família de migrantes com seis filhos, né? Eu sou o mais novo de seis filhos dos meus pais.
P/1 – Deixa eu voltar atrás, você falou que a sua avó, a Ana Barbosa, uma pessoa marcante, o que fazia dela marcante?
R – Porque ela, quando, eles usam lá a expressão se arretar, ela se arretou com o meu avô e foi embora, velho, de Salvador, voltou pra Brejinhos, numa casa que ele deu pra ela morar, mas ela não queria mais nada dele, além da casa, porque os filhos eram dele, enfim, né? A minha mãe, o meu tio Edilberto e tal, então ele, minha mãe até perde um irmão.
P/1 – Sua mãe o que, se arretou?
R – Não, minha avó.
P/1 – Sua avó?
R – É, minha avó, o meu avô, deputado, político, influente em Salvador do começo do século, maçom, que minha mãe diz que na época da guerra, ele é dos raros, junto com outras pessoas, assim, tipo juízes e tudo, que conseguiam pão de trigo, porque o pão que vendia era só o de milho, essas coisas assim, que marcam a memória de uma criança, que minha mãe era.
P/1 – Você usou uma expressão ótima: “Minha”, quem que se arretou?
R – Minha avó se arretou, não quis mais ficar dentro do que o meu avô achava, do ideal dela viver, era uma pessoa muito independente, tanto é que, quando ela volta pra Oliveira dos Brejinhos, que é essa cidade pequena aonde meu avô fez a carreira política também, ela vai atender, era uma época da explosão, da primeira fase, talvez, pelo que eu entenda do que minha mãe fala, da exploração de cristais de rocha, né? Então começa a vir garimpeiro do Brasil, do nordeste inteiro pra lá e minha avó fez isso, criou uma hospedaria, sabe, e viveu assim, nessa época.
P/1 – Mas ela sai de Salvador e vai pra?
R – E vai pra Oliveira dos Brejinhos.
P/1 – Mas e aí ela deixa o seu avô?
R – Ela deixa o meu avô, deixa ele lá, pra, e aí ele até casa de novo, ele foi.
P/1 – Se separou?
R – Separou, saiu andando, então, por isso que ela é marcante.
P/1 – Com todo o status quo que ela tinha.
R – Com todo, mulher de político, de médico, eu não sei nem que tipo de status que daria isso no início do século, se hoje...
P/1 – Como que é o nome da cidade?
R – Oliveira dos Brejinhos.
P/1 – Que ano isso?
R – Cara, aí você me pegou, da década 30, 40 esse treco aí, essa fase aí, 30, 40, minha mãe é de 32, é, década de 40, guerra, 40, 45.
P/1 – Ela pegou os filhos, quantos filhos ela tinha?
R – Com ele dois. Você sabe que isso ficou como se fosse uma memória proibida, porque essas relações, por exemplo, minha avó teve outro filho, que não era com o meu avô, que a gente chama ele de tio, de tio Élcio, ele é uma pessoa branca, assim, sabe, não tem essas relações de etnia.
P/1 – Ela é negra, não?
R – A minha mãe?
P/1 – Não, a sua avó.
R – Minha avó não, minha avó era, tinha olho azul, meu avô que era negro, tanto é que os seis filhos, quatro têm referências mais finas, e eu tenho uma irmã que tem esses traços mais pro negro, tem irmão meu que as pessoas acham que não é meu irmão, porque são mais brancos, vamos dizer assim, embranquecidos aí por causa dessa ancestralidade aí.
P/1 – Mas quando a sua avó foi pra Brejinhos, ela tinha a tua mãe já?
R – Já tinha a minha mãe.
P/1 – Só tua mãe e esse outro?
R – É, tem um fato marcante na vida da minha mãe, que é isso, como ela ia dar hospedaria pra garimpeiro, então ela se impunha e tinha, tem toda uma questão social nessa coisa, e minha mãe, no início da adolescência, ela falou: “Você não vai ficar aqui no meio desse monte de homem, você vai pro teu padrinho em Brotas”, na cidade do meu pai. Que eu tenho essa incógnita até, eu não sei se foi aí que eles se conheceram, eu acho que foi aí que eles se conheceram, quando ela vai pra Brotas, ficar com os padrinhos dela, que eram tropeiros, sabe, eram comerciantes de posses na época, né? Minha conta que era um monte de cavalo e de burro e de coisa emparelhado, levando as coisas do, que ela chamava de Dindin, que era a expressão da época, ela tem essa memória aí. Então isso foi marcante, porque era um pessoal também de outro nível de formação, de formação intelectual.
P/1 – Mas aí a sua mãe não tinha mais contato com o pai dela?
R – Não, direto não, ela não conta isso, até porque eu acho que ele morre pouco depois disso, se não me engano, assim.
P/1 – Mas ele não dá grana pra ela, nada, ela sai com a cara e com a coragem?
R – Ela sai com a cara e com a coragem, não, quando o meu avô morre, minha mãe já tava em São Paulo, pelo menos é uma percepção que eu tenho, eu não tenho certeza, devia ter falado com ela antes. Mas, assim, porque, como o meu avô tinha muita terra, e ainda tem, porque os meus tios têm terra lá, que é muita terra, e ela estando em São Paulo, o único advogado que tinha na cidade pra cuidar do inventário, do que seria interesse dela, era inimigo político do meu avô, então ela não queria falar: “Não, deixa isso pra lá”, dentro de um grau de informação que ela tinha na época: “Deixa pra lá”. Pra você ter ideia, meus tios que, meu tio João, engenheiro da Coelba, já falecido, eles dividiram 12 quilômetros de margem de Rio São Francisco, na altura de Ibotirama até a serra, então, por exemplo, tem tio meu que envaza água mineral dessas terras do meu avô, sabe? Eram terras boas, tem diamante, meus tios tudo que estão lá com isso, e tem uma outra fazenda, que ficou pra outra tia minha, irmã da minha mãe, que é a única lagoa perene, que pode vir a seca que for que sempre tem, e tem os curral, que vem gado da região inteira beber água lá, porque eles acabam alugando essas coisas. Pra você ter ideia do tamanho das coisas do meu avô, era bastante coisa, você passa na ponte nessa Cidade de Ibotirama...
P/1 – E pra sua mãe sobrou alguma coisa?
R – Não, ela ficou aqui e não, nada disso ela teve acesso, nada.
P/1 – Aí quando a sua mãe muda pra Brejinho, ela está com quantos anos?
R – Início de adolescência, então entre 12 e 14, que é aí que ela vai morar com os padrinhos lá em Brotas de Macaúbas, e aí é que ela, aí ela começa a ter acesso a um nível de consumo e de vida absolutamente superior, assim, eram muito ricos mesmo os padrinhos dela. Então ela tinha os melhores vestidos, as melhores fitas, os caras vendiam isso, então ficava as coisas pra ela e tal, ela fala com muito, com muita saudade desse tempo, com muita nostalgia, assim. Foi um período que não foi muito longo, depois ela volta pra esse contexto mais...
P/1 – Mas ela ficou em Brejinhos até quantos anos?
R – Ela ficou em Brotas durante eu acho que a adolescência toda.
P/1 – Porque a sua avó tava no Brejinho.
R – Isso.
P/1 – Aí ela abriu a hospedaria pra...
R – Oliveira dos Brejinhos.
P/1 – Oliveira dos Brejinhos.
R – É uma cidade mínima lá. Ela tava dando hospedaria, então pra preservar, essa coisa da minha mãe ser mocinha, essas coisas todas, ela vai e muda. Então isso é o quê? Doze, 14 até os 18, 19.
P/1 – É em Oliveira dos Brejinhos que ela abre essa hospedaria pra garimpeiro.
R – Isso, a minha avó Ana.
P/1 – E ela conta como é que era essa hospedaria, você sabe?
R – Vagamente, eram redes que os garimpeiros, tinha um lugar pra eles tomarem banho, redes, uma coisa muito rústica, imagine, interior da Bahia, década de 40, era bem rústico, e daí os caras, aí ela dava comida também, então tinha café da manhã, e os caras iam cavar buraco atrás de minério. Até hoje lá tem muito minério, muito minério, esse cristal de rocha, que chama, depois quartzo azulado, é só empresa estrangeira que explora as serras lá.
P/1 – E aí a sua mãe vai morar com os padrinhos.
R – Isso.
P/1 – E é nessa cidade que ela conhece o seu pai?
R – Possivelmente, é uma conexão que eu nunca...
P/1 – Você sabe como eles se conheceram, qual foi o encontro, como foi?
R – Eles nunca contaram muito, quando a gente era pequeno, porque o meu pai, muito conservador em virtude de ter, até uma certa altura da relação com a gente, ele manteve o rigor que o meu avô ensinou ele, então era muito... Então isso sempre foi uma conversa de adulto ou conversa dos mais velhos, eles não, nunca dividiram isso muito com a gente, estão dividindo agora, depois dos 80, agora que eles tão contando: “Sua mãe ia lá me ver, aí não sei o que”, é muito engraçado essas coisas.
P/1 – E aí eles casaram lá?
R – É, eles vêm casados.
P/1 – Em Oliveira dos Brejinhos?
R – Isso, eu acho que de Brotas, minha mãe, é, eu acho.
P/1 – Oliveira dos Brejinhos é sua avó que estava e a sua mãe foi pra Brotas.
R – Foi pra Brotas, isso.
P/1 – E foi em Brotas que ela conheceu o seu pai, casou lá?
R – Isso.
P/1 – Mas casaram, casaram, igreja, como foi o casamento?
R – Não, eles vêm pra cá, se não me engano, a minha mãe já grávida do meu irmão mais velho.
P/1 – Eles vêm juntos pra cá?
R – Não, ele vem primeiro, depois ela vem.
P/1 – Por que ele veio?
R – Ele veio como toda a perspectiva de migração, de vencer na vida e tal, ele até tentou numa cidade, pouco tempo, em cidades um pouco maiores do que Brejinhos, Vitória da Conquista e tal, aí o pessoal falou: “Não, tem que ir pra São Paulo”.
P/1 – Mas o que ele fazia lá?
R – O meu pai?
P/1 – É.
R – Na juventude dele?
P/1 – É.
R – Meu, eu não faço ideia, mas o que tinha pra fazer eram coisas relacionadas a comércio ou a cultivo, agricultor mesmo, essas coisas de roça, que eles chamam lá: mandioca, milho, feijão, arroz, essas coisas aí, feijão de corda, feijão verde, é isso que eu tenho de memória, assim, mais fresca.
P/1 – E a sua mãe?
R – Minha mãe, como, o que, ela aprendia a bordar, que ela borda muito bem, aprendia a costurar, depois ela fez um profissionalizante disso, que é orgulho dela, logo depois já de casada e com os filhos, ela sempre foi muito voltada pra essas coisas do lar, cozinha absurdo, que ela aprendeu tudo com a madrinha, uma cozinha mais das moças, essa era a realidade da década de 30, 40.
P/1 – Por que ele decidiu, ele escolheu São Paulo? Ele tinha alguém já aqui, tinha algum contato?
R – São Paulo era o sul maravilha, era o sonho de prosperidade de todo migrante, lógico que essa dinâmica do ter um parente sempre facilita, então já tinha os primos dele aqui, aí vem, aí mora na pensão na Barra Funda.
P/1 – Quando ele chegou aqui, ele foi morar aonde?
R – Numa pensão na Barra Funda.
P/1 – Sozinho ainda, sua mãe e seu irmão estavam lá?
R – Não, meu irmão não, meu irmão não tinha nascido, deveria estar na barriga da minha mãe, porque ela tem ele aqui, mas acho que ela já veio grávida, se não me engano.
P/1 – Mas ela morou na pensão com ele ou ele primeiro morou?
R – Não, quando ela veio pra cá, ele aluga, eles foram num bairro, que inclusive também é bem emblemático na história da minha família, todo mundo nasceu lá e foi criado lá, eu saí de lá com oito, mas meus irmãos saíram já formados já, adultos formados, meus outros irmãos.
P/1 – Na Barra Funda?
R – Não, nesse Real Parque, eu esqueci de falar o nome do bairro, o meu pai mora sozinho na Barra Funda.
P/1 – Ele conta como foi a viagem dele pra cá?
R – Se não me engano...
P/1 – Como foi a chegada?
R – Tinha uma parte que era de trem, tem outra parte que era de pau-de-arara, que ficava um tempão, minha mãe conta que era um sufoco vir de pau-de-arara, porque atolava, porque era banco de madeira na caçamba de um caminhão, devia ser embaçado, mano, e ela conta isso, que era dureza de vir, tanto é que... Você sabe que agora, falando, assim, uma percepção, minha mãe demorou a voltar pra Bahia, talvez tenha ficado com um subjetivo de sofrimento nesse deslocamento, eu acho, agora ela não para de viajar, porque os ônibus são confortáveis e a cadeira dela é de graça agora, que ela passou dos 75, eu acho que é isso, acho que é por isso que ela demorou tanto pra voltar lá. Mas meu pai conta um negócio que me influenciou bastante, ele tem só a quarta série, sabe, e os dois, meu pai e minha mãe têm só até a quarta série, que eles chamavam primário, o que seria correspondente ao primário. Mas minha mãe leu tudo de tudo, imagina, se ela leu tudo, José de Alencar, tal, tal, e o meu pai era um cara interessado, ele lia tudo, ele lia que passava, até bula de remédio, ele me falou duas coisas super legais, quando ele diz que morou na Barra Funda. Pra chegar no centro, não tinha dinheiro pro bonde, então vinha a pé da Barra Funda pro centro, imagine, sabe como ele marcava pra chegar no centro? Pelo Altino Arantes, o Banespinha, que tinha acabado de ser construído, então ele falava assim: “A gente marcava o rumo daquele prédio e vinha andando”, era muito interessante ele falar isso. E ele me ensinou outra coisa também, dessa relação que ele teve com a cidade, bem no começo, sabe, ele fala assim: “Filho, você vai trabalhar aqui, ó, na rua, só que a rua que vai não é a rua que vem”, aí eu não entendia. Ele falou: “Vem, vai olhando, para, olha pra trás”, “Pai, é outra rua”, “É, por isso que todo mundo se perde, porque acha que não está voltando na mesma rua, então a rua que vai é uma, a rua que vem é outra”, eu achei isso uma sabedoria tão poderosa. Aí ele falou assim: “Olha pra cima, você vai ver, a cidade é pra cima também”, de olhar pra cima pra você ter referências, que embaixo sempre muda, pra cima é difícil de mudar, não é? Muda a loja, não adianta você marcar qualquer outra loja, aquela loja pode virar outra coisa, mas, assim, os prédios de cima, principalmente das arquiteturas do centro, é difícil de mudar, são raros que mudaram, que lembro. Eu achei isso muito sábio dele e marcou o resto da minha vida, que eu usei até depois, numa aula técnica sobre o patrimônio histórico, eu citei essa frase do meu pai, ficou bem legal, essa relação com a cidade é muito legal dele, ele adorava São Paulo, em alguma medida.
P/1 – Ele conta mais impressões dele na cidade, nessa chegada?
R – Conta, tem uma expressão que fala assim: “Moço, naquela época a gente sofria mais do que sovaco de aleijado”, ele é cheio dessas expressões, sabe, e da dificuldade, do preconceito mesmo, que está no contexto, do preconceito do nordestino mesmo, não é? Ele conta uma história também que é engraçada. Sabe esses tonéis de água transparente? Antes era de vidro e já tinha em São Paulo, aí ele foi pegar, o moço falou: “Você pode beber água aí”, aí ele ficou olhando, nunca tinha visto, aí ele pôs assim, não sobe uma bolha? Ele saiu correndo (risos), ele saiu correndo, nunca tinha visto aquilo, cara, eu fico pensando assim: “Nossa, cara, imagine o cara sair do interior e dar de cara com essa metrópole”, isso é muito legal. Um traço que me influenciou, pessoalmente me influenciou, todos da família são assim, mas especialmente a mim, é o gosto que ele tinha por instrumentista e por música de instrumentista, por seresteiro também, porque ele bebia, esse é outro dado muito potente, muito, que causou muita interferência na formação de todo mundo. Mas aí seresta, então eu conheci música com o meu pai, sentado no colo dele, ele com uma vitrolinha, mostrando os discos e tal, aí eu tenho esse gosto até hoje, isso é bem marcante.
P/1 – Eu vou voltar um pouquinho, daí ele chegou na pensão da Barra Funda, o que que ele foi fazer?
R – Cara, ele não fala o que ele foi fazer, ele foi, era trabalhos, esses, eu não sei o que ele fez, não, eu vou perguntar: “Pai, qual foi o seu primeiro trampo aí?”. Eu sei que no trabalho que ele entrou ele ficou um tempão, depois, ele fez esse monte de trabalhinho, assim, aqui e lá, tal, quando tava aqui, quando ele vai pro Real Parque, que era depois da Ponte do Morumbi, aquele bairro que está ali, que hoje está super verticalizado, super valorizado, era um bairro operário, não é? E quando ele vai pra ali, ele arruma um trabalho numa fábrica de plástico chamada Balila, que ficava na Avenida Morumbi, ele pegou esse boom da troca do plástico, do flandres, daquelas, lembra daquelas bacias e baldes de metal? E aí começou a chegar os de plástico, e faziam filas de árabes comprando aquela coisa, que era pra vender na 25 de Março, né? Então o meu pai interagiu muito com outras culturas, assim, isso acrescentou muito pra ele, ele aprendeu a falar espanhol sozinho, porque ele atendia um pessoal da Argentina.
P/1 – Mas ele fazia o que na fábrica?
R – Ele era encarregado de expedição.
P/1 – Você já tinha nascido?
R – Já, não, eu nasci, ele trabalhando lá, aliás, acho que toda a minha família nasceu, ele já trabalhava ali.
P/1 – Mas aí a sua mãe não foi pra Barra Funda, ela já foi pro Real Parque?
R – Isso, minha mãe chega e vai morar no Real Parque, em várias casas diferentes, até a que a gente foi criado mesmo, que eu tenho como memória, que eram os quintais, né?
P/1 – Aí nasceu seu irmão.
R – Nasceu o Giba, Gilberto Newton.
P/1 – Que nasceu em que ano?
R – Cinquenta e cinco.
P/1 – E depois?
R – Silvana, os nomes: Gilberto Newton, até aí legal, aí começa, Silvana Veralice, Eliana Maria, passou, aí Everlei Niziune, coitada da minha irmã, a gente tira muito com ela, Evirlasio Eutimeo, esse se ferrou mesmo, e aí eu, Ruberval Marcelo, velho, cara, eu não sei de onde eles tiraram esses nomes. E no fim isso ficou muito tempo como meio trauma, aí minha mãe aprendeu uma frase muito sábia, meu pai dizia pra nós, né: “Filho, não é o nome que faz a pessoa, a pessoa que faz o nome, faça seu nome”, aí eu falei: “Então deixa Ruberval mesmo”. Todo mundo queria mudar de nome depois de 18 anos, aí ninguém mudou, não. Everlei Niziune, Evirlasio Eutimio, nossa, foi muita criatividade.
P/1 – E aí no Real Parque, como que era essa casa de infância sua, que você lembra, que você viveu até os oito anos lá, não foi o que você disse?
R – Nossa, velho, era muito do caramba, cara, era uma casa, que eles chamavam cômodo e cozinha, no meio de um terreno enorme, tanto pra frente quanto pra trás. Essa casa é, tipo, o que dizem de mim é que eu sou uma pessoa criativa, eu lembro do quintal dessa casa, que me dava os insights, hoje eu chamo, é lógico, hoje eu sei que chama insight, então que me dava os repentes, eu molequinho, tinha as questões de criatividade, tudo naquele quintal, era um mundo, era louco. Então, assim, pra frente tinha goiaba vermelha, goiaba branca, tinha lírio dividindo, o meu pai ia dividindo, debaixo das goiabeiras tinham bancos de madeira que ele fazia, subindo mais em direção à rua, era uma descida, assim, sabe, lá pra baixo, assim. Então pra você chegar na minha casa você descia, assim uma longa escada, que ele fez de pedra, depois de bloco, se não me engano, à sua direita ficava as plantações, que em alguma medida, que ele deve ter trabalhado quando ele era jovem, então ele falou: “Pô, eu sei fazer aqui”. Então eu ajudava ele, eu pequeno, ficava enchendo o saco dele, na verdade, ele plantava mandioca, milho, depois ele plantou na lateral inteira do terreno, e era bastante, era mais de 200 metros de terreno, de fundo, pelo menos a impressão que eu tenho é que era desse tamanho, porque eu era pequeno, tudo o que a gente vê pequeno, depois vê, vê depois de grande, não era tão grande. Mas, enfim, eu lembro de dezenas de pés de café, assim, seguindo o muro lateral, mas até lá embaixo, lá de cima até lá embaixo, esse em cima e embaixo é pra você ter ideia do tamanho. E aí o milho, mandioca, uma coisa sensacional é, tipo, arrancar mandioca, ele falou: “Arranca essa daí”, meu, é muito difícil, e quando você agarra é uma comemoração, aí você vai puxando, ela faz croc, ela faz um barulhinho assim, eu falo: “Tá saindo”, tal, aí sai assim a mandioca: “Ói, a mãe vai gostar”, eu lembro disso, tá ligado? Que era uma raiz enorme, ele deixava eu escolher, quando era grande a mandioca, falava: “A mãe vai gostar dessa daqui”, “Não bate, não bate senão azeda”, era muito engraçado. E aí a gente ia descendo em direção à casa, aí chegava um quintalzão, onde a minha mãe estendia a roupa, tinha um poço, minha mãe puxou água de poço a vida inteira, quase, até chegar água de rua. Isso ela conta que, quando ela quer dar exemplo da trajetória dela, de quanto ela se entregou pra criar, ela fala: “Pois eu puxei água de poço”, né, então você vê que ela, não deveria ser fácil. E aí tinha, assim, a casa pequena, tinha uma mangueira, um abacateiro, um abacateiro de, muito alto, talvez uns 40 metros, eu me impressionava muito, porque o meu pai subia até o alto pra pegar e tem fotos dele no muito alto, no abacateiro, uma coisa que dava vertigem, assim, porque ele era do mato, então ele sempre pode fazer isso. E à direita tinha um... ó as ideias do velho, ele, tipo, criava sapo pra num, pra comer as coisas das plantas, do pêssego, da bananeira, tinha bananeira no fundo, tal, e ele soltava os sapos pra comer as pragas e tal, depois ele recolhia os sapos de novo (risos), todo mundo falava: “O tio é louco”, controle biológico, ó, mó cara, o cara, ele era, ele tinha essa, era meio visionário, eu que tocava os sapos às vezes? Enfim, essa é uma memória boa, cara, e tinha inhame, eu sabia escolher inhame também, no fundo da casa tinha inhame, era uma floresta de inhame, hoje deve ser um arbusto pra mim, mas pra mim, quando era pequenininho, eu entrava no meio dos inhame pra pegar inhame. Muito legal, porque oReal Parque, até hoje...
P/1 – Como é que era lá?
R – Era uma comunidade fantástica, tinha sede dos moradores, na sede tinha tudo, tinha os bailes que os amigos do meu irmão, que até hoje, eles são amigos até hoje, é muito legal isso, os caras batendo sessentão e, assim, os caras se conhecem desde seis, oito, tem fotos deles, dos que passavam pra pegar e ir pra escola. “Ah, você lembra que a gente ia pra escola”, os caras com 60 anos lembrando de coisa de sete anos, isso, como a comunidade é importante, porque a comunidade do Real Parque está no horizonte até hoje, quase, o quê? Quarenta anos depois da gente ter saído de lá, né? E tinha sede que tinha os bailes, e era época da ditadura e tudo, e meu irmão, o quê? Era Jimi Hendrix, tal, então ele tinha o cabelão, dançava pra caramba e eu lembro disso, foi uma coisa que foi me influenciando depois, todos os irmãos influenciaram de alguma forma.
P/1 – Desde pequeno o seu pai escutava música em casa?
R – Ele?
P/1 – Ele.
R – Provavelmente, provavelmente, mas isso o que a minha memória alcança desse hábito é uma vitrolinha azul, pequena, que ele abria e botava os discos, eu no colo dele, eu lembro do Moacyr Franco, essas coisas que, de criança, que tinha era o Moacyr Franco. Aí ele falava: “Essa música é sua, agora é a minha”, aí botava o Nelson Gonçalves, Dilermando Reis, Saraiva, que ele adora, Saraiva é um saxofonista, Dilermando Reis é um violonista fantástico, até hoje eu escuto tudo isso. Depois Nelson Gonçalves pra caramba, Orlando Silva, era as coisas que ele gostava, a Valsa Vienense também ele gostava muito. Depois ele começou a comprar, isso é marcante também, cara, depois, lá no Real Parque, ele começa a comprar umas coisas da Abril, Geografia Ilustrada, com seis, sete anos, chegava em fascículos, depois você mandava encadernar. Você lembra disso aí? Aí, e tinha o Dicionário Ilustrado da Abril, eu com sete, seis, sete anos, eu me enfiei nisso, cara, eu achava muito do caramba aquele monte de foto, quando eu descobri o que era peixe abissal, eu falava assim: “Abissal”, aí ele: “O que que é abissal?”, eu falei: “É, eu sei o que é abissal” (risos), era muito louco. Aí eu vi como era legal ter conhecimento desde: “Ah, que legal, eu sei o que é abissal”, pô, depois teve um grupo de rap que chamou Região Abissal, engraçado, os peixes abissais, eu comecei a desenhar eles, eles eram lindos, todos coloridos, tá ligado? Muito louco, velho, o peixe abissal, eu estou atrás, minha irmã pegou isso aí, eu tenho que pegar, é isso aí, cara.
P/1 – Como é que era a casa, quantos quartos?
R – Geografia Ilustrada mostrava a África inteira, a África inteira com os nomes antigos dos países, tá ligado? Depois, na década de 70, então eu era craque em saber o nome antigo e as capitais, meu pai fazia isso comigo, capital de tal, era o melhor jogo nosso, até os dez, 12, capital de tal, aí tal, tal, tal, eu sabia a capital de tudo, hoje eu não sei, não lembro muito, não, mas eu sabia de tudo, era muito legal.
P/1 – Como é que era a casa, quantos quartos?
R – Era um quarto e cozinha, que chama, eu lembro que o meu irmão dormia na cozinha, era de vermelhão o chão, vermelhão é um tipo de pavimentação das casas antigas, um cimento, que passava um pigmento vermelho, depois passava a enceradeira.
P/1 – Tinha esse quintal e a casa era pequena?
R – Tinha esse quintal enorme e a casa era pequena. Depois, um dos irmãos da minha mãe, o meu tio Edberto, ele rápido, um cara muito inteligente também, e ele descobriu, ele foi trabalhar na rádio, Rádio Globo, assim, sabe? Então ele começou a lidar com comercialização de rádios, na década, nessa, e aí ele começou a, prosperou bem, tal, e ajudava, ele ajudou minha mãe a construir cômodos, banheiro dentro de casa, eu lembro que o banheiro era fora. Quando eu era bem pequeno, eu ia fora, depois o banheiro ficou dentro, era bem legal ter banheiro dentro de casa, junto com o tanque, coberto, porque aí ela não tomava chuva quando lavava roupa, e nem a louça, era louco isso, era isso aí.
P/1 – Quando que mudou a casa?
R – Era um quarto e cozinha, minha mãe lavava roupa e louça na chuva, era no exposto, e o banheiro era no fundo, isso devia ser uma lógica da época, por causa de coisa sanitária, porque não tinha esgoto. Eu lembro dessa primeira reunião dos tios, muito pequeno, seis anos, eles cavavam fossa, se ajudava, é igual encher laje, sabe? Eles: “Ah, precisa cavar fossa pra não sei quem”, aí ia todos os parentes, ajudava a cavar, porque é um buraco enorme, tem que ter, fazer direito, tal. Eu lembro disso, e depois fez o banheiro dentro, porque aí também chegou tudo, chegou esgoto, chegou a água, enfim, aí foi indo. E a casa foi aumentada assim, um quarto, aí ficou pros meninos e pras meninas, porque são seis filhos, eu sou o mais novo, e aí são três homens e três mulheres, mas são intercalados, tipo, vem o primogênito e as três mulheres, depois eu e meu irmão, os outros dois homens, e a casa era assim, cheia de...
P/1 – Quem que exercia a autoridade lá, seu pai ou sua mãe?
R – Meu pai, sempre, porque, mas porque também tinha a coisa da bebida, velho, então ele se perdeu muito nisso, porque eram relações de violência, enfim, são as relações que a bebida causava na época, sem muita assistência.
P/1 – Ele bebia muito?
R – Muito.
P/1 – Ele era alcoólatra?
R – Ô, velho, bebia muito, todos os meus irmãos, de alguma forma isso atravessou a formação deles, muito complicado e, enfim.
P/1 – Mas ele ficava agressivo, qual era a reação dele?
R – Ele era agressivo, ele era agressivo, mas eu não lembro, porque, quando eu nasci, eu ia no Instituto Aché, que na época tinha convênio com o que seria o INAMPS, na época, e ele tinha sido tratado do alcoolismo, meu pai parou de beber aí, eu ficava no colo dele, ele conta como era o tratamento.
P/1 – Mas você lembra de alguma cena dele?
R – Não, não peguei.
P/1 – Você já não lembrava, você tinha seis anos.
R – Não, mas, por exemplo, eu lembro, eu não vi, porque eu tava no quintal, mas, por exemplo, ele, minha irmã com 14, 15 anos, foi a primeira vez que eu vi pêssego na minha vida, pêssego em calda, porque uma vizinha falou: “Ah, tenho a receita de pêssego em caldo”, ela fez um bolo com pêssego, aí eu queria comer aquilo de qualquer jeito, ficava entrando e saindo até cortar o bolo. Nesse dia, foi a única vez que eu vi, minha irmã apanhou dele, mas ele já não tinha bebido, mas ele meio que se arrependeu, assim, ficou super mal, que ele não queria, sabe por quê? Ele me conta, ele começou a se abrir comigo depois de velho, ele chegou e falou uma coisa, ele falou, um cara italiano, que trabalhava na Balila com ele, falou: “Eutímeo, não bate mais nos seus filhos, não eduque eles através de bater, porque, quando eles crescerem mais, eles vão ficar com raiva de você”, aí ele começou a ficar com medo disso, sabe? E teve sequelas do alcoolismo dele que o levou a ter... ele teve um delirium tremens em Campinas, que ele ficou preso, minha mãe que conta essas histórias, eu não vi nada disso, não vi nada, nada. De certa forma, eu vivi com essa...
P/1 – Com esse fantasma.
R – Não, mas com essa imposição de culpa dos meus irmãos, quer dizer, eu não tive culpa que eu nasci fora do alcoolismo do meu pai, e eu acho que ele me pegou como uma referência: “Poxa, eu não criei ninguém bem, vou criar esse bem”, eu, a relação com ele foi de muito carinho, de muita cumplicidade e tal, entendeu? Dele comprar essas coisas pra família, mas quem que ficava debruçado em cima dos livros era eu, né? Tem um parêntese muito engraçado, o Alexandre, que é um amigo meu, que a gente dividiu apartamento, ele falou assim: “Mano, o Marcelo – ele conta pra todo mundo como se fosse um cara – todo mundo queria ser amigo de quem tinha a bola boa ou quem tinha o War ou quem tinha o Banco Imobiliário, o Marcelo queria saber quem tinha a Barsa”, porque eu ficava enfiado dentro da Barsa. Meu amigo, Alexandre, ele tinha uma Barsa e eu vivia dentro da casa dele, depois, mas ele é meu amigo mesmo, mas eu ficava nas Barsas, por causa dessa parte aí do que o meu pai fez, é, isso aí é um dado legal que eu lembro.
P/1 – Seu pai continuava trabalhando nessa fábrica de plástico?
R – Sempre trabalhou lá.
P/1 – O que ele fazia?
R – Era o encarregado de expedição, ele, o que é isso? Ele fechava a carga de quem pediu, fazia a conferência junto com os outros funcionários, e fechava a nota fiscal, fechava o caminhão e era isso, ele ficava numa plataforma, eu lembro, quando eu era pequeno, eu ia visitá-lo lá na Balila. A Balila era fábrica de brinquedo também, então ela tinha uma festa de final de ano e a gente ganhava uns brinquedos irados, uns caminhãozão com madeira e tal, era bem louco, era bem feito, assim, sabe, super bem feito, e muitas bonecas também, aí minhas irmãs ganhavam bonecas e eu batia nelas, elas ficavam p. da vida comigo. Enfim, eu lembro disso.
P/1 – Você batia nelas ou na boneca?
R – Na boneca, eu achava que, eu via, assim, as lutas do Besouro Verde, do Bruce Lee, daqueles negócios, aí eu saía batendo nas bonecas, minhas irmãs ficavam p. da vida comigo. Enfim, essa é minha infância, foi da hora, foi da hora.
P/1 – Quais eram as brincadeiras de infância, era na rua, com os irmãos, como é que eram?
R – Carrinho, carrinho, meu irmão era bem mais moleque que eu, eu era um cara mais caseiro, meu irmão jogava gude, meu irmão jogava gude direto, eu não jogava tanto gude, meu irmão, pião, nunca acertei virar pião, meu irmão empinava pipa, nunca empinei pipa, assim, sistemático, , a gente chama na gíria de bicar, eu pegava de bicada no dele, mas não ficava naquela nóia. Eu tinha outras, gostava de gibi, de outros bagulhos, eu não gostava de sair, dessa tradicional, eu gostava de cavalinho também, eu pegava, mano, eu brincava diferente, velho, doido eu acho, eu brincava diferente. Meu irmão também, nessa tradição de caçador do meu pai, meu pai contando caçada do meu avô, contando as dele, meu irmão achou que tinha que ser caçador também, aí vai dar, estilingar passarinho, eu ficava p. da vida, ninguém gostava, até um dia que eu comi um passarinho que ele matou e fez, eu falei: “Mano, não deu nada, mó pequenininho”, aí, memória louca, um sanhaço.
P/1 – Como assim você comeu passarinho, como foi a história?
R – Ele matou o passarinho, abriu, limpou e fritou o passarinho e deu: “Toma um pedaço”, eu tinha seis anos de idade, aí eu falei: “Pô, mas ó que pequenininho, não dá nada, não dá nada”, eu fiquei foi revoltado com ele, nunca, aí depois não quis mais ver nada dessa coisa de passarinho com ele, com esse meu irmão imediatamente mais velho. Ele era entregue a todas essas coisas, eu não fazia isso aí, não, eu tinha outras brincadeiras, agora que eu prestei atenção nisso.
P/1 – Mas era dentro de casa, e outros amigos, vizinhança?
R – Muita vizinhança, o que, essa, é o que eu te falei, essa coisa da comunidade, os vizinhos, era a Dona Carmem, que veio do sul, são os contrastes de cultura, ela veio do sul, aí os barriga verde, aí falava com sotaque, aí os nordestinos aqui, aí no fundo Dona Amélia, mineira, aí tinha a Dona Ana também, que veio do sul. Então era uma casa que era dividida em duas, na frente morava uma família, que era a Dona Ana e Seu Moisés, e no fundo a Dona Carmem, era a família dos Dickman, eram nove alemãezinhos, assim, muito contrastante isso, e a gente brincava tudo junto, mas era muito diferente as culturas, assim, volta e meia saía uns arranca-rabo, assim, desses valores que eram muito diferentes, hoje eu sei ver isso. E o quintal era dividido por uma cerca boba, que era fácil de pular, então a gente ficava no quintal, pra lá, pra cá, tal, tinha os poços, mas já tava fechado, aí ficava ali, polícia e bandido, enfim, mocinho, essas coisas aí de criança. Muito cachorro, eu cheguei a ter, isso é marcante também, é muito engraçado, os cachorros ficavam tudo aqui. Primeiro, o meu tio, quando a Rádio Globo era nos Jardins, dava enchente ali e essa cachorra tava na enchente, meu tio recuperou ela, aí ela foi pra minha casa, aí ela simplesmente, ela arrumou todos os maridos possíveis e nós tínhamos 12 cachorros. E aí, quando a pessoa batia palma lá em cima, aí era uma nuvem de poeira: “Au, au, au, au”, aí ficava pulando: “Au, au”, parece desenho, tá ligado, lá em cima, assim, até alguém ir atender e botar os cachorros pra baixo. Isso era bem marcante, que a gente sempre teve muito cachorro, era engraçado, e era um monte de comida que minha mãe fazia pra um monte de cachorro, era legal, o quintal era grande, né? Tinha muita fruta, as pessoas entravam pra pegar e tudo.
P/1 – E comida, você lembra de algumas que sua mãe fazia?
R – Todas, aprendi todas, isso é marcante, muito, muito, muito forte, essa coisa da comida, velho, porque ela cozinhava muito, pra família toda, ela é uma referência na cozinha pra família toda, é uma família grande, que abriu, enorme. Então tem o sarapatel da Vivi, tem o Vatapá da Vivi, tem a macarronada da Vivi, que ela aprendeu quando trabalhou em rotisseria, quer dizer, ela já sabia fazer um molho absurdo, eu ficava imaginando que os italianos que iam em casa, os descendentes comiam e falavam: “Mas como que ela consegue”, ficava bom, ficava muito bom.
P/1 – Mas ela trabalhava fora?
R – Minha mãe não trabalhou fora até eu ficar grande, quando eu fiquei grande, ela foi trabalhar fora.
P/1 – Nessa rotisserie?
R – É, ela começa pequenos passos de independência do meu pai, ela começa a dar uns passinho, hoje a gente vê, ela foi fazer um curso de corte e costura, que pra uma dona de casa da época, nossa, ela era excelente costureira, que ela já tinha habilidade manual desenvolvida com a madrinha, através dos bordados e das coisas todas, dos laços, e depois ela aprende a técnica do corte de molde, agora que tem molde pendurado, que ela escolhe qual, ela fala: “Meu Deus”, né, porque antes ela tinha que cortar. Sempre arrastou aquelas Cláudias, enfim, todas, Manequim, essas revistas todas, por onde ela vai, tem que fechar a caixa e mandar, porque tem coisa lá de, e não é que ela é inteligente nesse aspecto? Que a moda volta, né: “Não, deixa aí um dia eu vou usar de novo”, aí 12 anos depois ela usa a mesma que usou, é isso, né? Então ela tem esses traços aí, na cozinha, como a família era muito grande, ela sabia fazer muita comida e boa, assim, sabe, então a gente lembra de muita fartura, assim,
em algum momento, assim, assim, a minha memória é de fartura, né? Meus irmãos contam que teve uns perrengue, mas mas ela tinha essa relação com a cozinha, com a comida.
P/1 – Vocês tiveram alguma formação, educação religiosa?
R – Minha mãe é religiosa, muito, ela, toda hora ela, quando as coisas tão, quando ela precisa dar um conselho e tudo, tudo: “Entrega na mão de Deus, confia em Deus, tenha fé”. Minha mãe tem essa coisa dela ler muito, ela traz uma sabedoria muito bacana, tudo ela dá ditado, velho, é marcante nela, vai lá que a mãe vai falar um ditado. Então, assim, meus irmãos tiveram filho, começa a correr, tal: “Quem que vai cuidar desses meninos aí”, “Quem pariu Matheus que o balance”, aí comece: “Quem com ferro fere com ferro será ferido”, “Quem fala demais dá bom dia a cavalo”, tudo, tudo, velho, é um arsenal de sabedoria através dos ditados. Eu até queria fazer uma relação dos ditados, mas ela esquece, ela só lembra na hora de usar, tem hora que ela sai com umas, cara, que ela nunca fala, eu falo: “Mãe, e esse, a senhora tirou da onde?” e ela mesmo ri, ri pequeno. Eu queria lembrar mais desses ditados, velho, é muito bom, cara, é muito bom mesmo.
P/1 – E o seu pai era religioso, foi?
R – Não, meu pai tinha uma certa distância de religião, ele é católico e tudo, mas é p. da vida com toda a estrutura da igreja, assim: “Padre ladrão, esse padre não sei o que, a igreja é dos pobres o quê? Olha lá, tudo rico”, aí fala: “Isso não serve” e tal, ele sempre questionou essa exuberância da igreja, ele citava sempre São Francisco e tal. Pensando agora ele é um cara que tava, eu estou falando que ele é bem à frente do tempo, não é que o homem, esse novo Papa veio e é, tem essa perspectiva, legal, ele falava sempre isso.
P/1 – E política, se falava na sua casa?
R – Bastante, meu pai sempre lia as coisas e discutia com a gente política, e ele era Arena, lógico, mas era um cara que falava com muita do Getúlio Vargas: “Não, Getúlio Vargas era, foi demais e tal”, mas aí é que está, né? Porque agora saiu o livro do cara e realmente, cara, tem uma fase do Getúlio que ele é, ele deu essa guinada pro CLT. Então a geração do meu pai, a maioria adora o Getúlio Vargas, então ele falava e contava, né? E odiava o Carlos Lacerda, falava mal pra cacete do Carlos Lacerda: “Isso é bandido, fez o Getúlio se matar ou matou o Getúlio”, aí ele ficava falando essas coisas, foi despertando aos poucos esses comentários dele. Até que nós, jovens, alcançamos as informações e aí começou vários debates: “Não vou votar nesse cara aí, não, pai, de jeito nenhum”, “Como não vai?”, “Não vou e tal” e discutia e tal. E, tipo, ele perseguia o Maluf pra cacete: “Esse turco ladrão”, falava pra cacete do Maluf, logo no começo, o Maluf está na política mais do que a gente imagina às vezes, no senso comum, acha que ele é um cara, o cara vem desde 60, enfim, ele falava muito mal disso.
P/1 – E festas, tinha festa na sua casa?
R – Bastante, era, então, nesse quintal, a mais bacana era o São João, vinha a comunidade inteira pra minha casa e tinha um ritual, um dia antes subir lá no bambuzal, pegar bambu, fazer paredes de bambu, madeira pra fogueira. Aí tinha uma coisa de comunidade, um trazia o curau, pipoca, e ficava tudo lá em casa, churrasco, meu pai tinha um monte de espeto, bem grosseiro mesmo, assim, os espetos que assava carne e tal. Eu lembro de tudo isso no quintal de casa, São João, os cachorros correndo e bandeirinha, minhas irmãs todas, envolvia todo mundo, era belíssimo, belíssimo mesmo, hoje, se na época eu já gostava, imagina hoje então, meu, quando eu lembro daquilo, que sensacional, muito bom, tinha essas coisas aí.
P/1 – Tem foto disso?
R – Deve ter. Marcante também, meu tio, irmão da minha mãe, de alguma forma protegia a irmã, então volta e meia tinha, né, até hoje, velho, eles se pegam, nunca se bateram nem nada, mas discutir, tal. Então o meu tio gostava de Luiz Gonzaga e o meu pai gostava do resto dos sanfoneiros todos, então eu conheci os dois lados, muito Luiz Gonzaga com o meu tio, e muito os sanfoneiros todos, Mário Zan, Zé Béttio, Arlindo Béttio, os Béttio tudo, tudo, velho, o velho colocava, isso era bem legal, era vitrolinha na janela e ficava tocando, ficava lá tocando música, bastante música também, isso eu lembro dessas festas aí. Na Páscoa, eu não sei se existia ovo já, mas na páscoa tinha uma coisa legal, um mês antes, todas as mulheres, quando ia usar o ovo, só quebrava em cima e escorria e fazia uma certa limpeza no ovo, ia deixando dentro da caixinha. Quando chegava perto da páscoa, se fazia amendoim doce e colocava dentro e fechava com papel celofane, a gente esperava isso, aquilo era muito bom, velho! Você abrir assim e ficar comendo amendoim de dentro do ovo, esse era nosso ovo, era legal pra caramba. Lembrança boa, muito bom isso.
P/1 – Natal tinha?
R – Muito, esse meu tio que ficou mais rico, ficou rico, rico não, ficou bem, tal, trabalhando com essa parte policial de rádio, ele tinha uma casa boa, essa é minha lembrança, mas meus irmãos contam de outras fases, mas a minha, que eu lembro, é que todo mundo se reunia lá e tinha, e até hoje na minha família tem essa tradição, a ceia é vatapá e frigideira de bacalhau, o natal que não tem isso a gente fica lesado. E é lógico, surgiu outros núcleos de família, os meus irmãos, e aí vai passar com o outro ente, e aí dá umas desgarradas dessa tradição, mas sempre que a gente pode volta no vatapá e no coisa. E mesas de frutas enormes, porque a Lapa era perto do Ceasa, eu lembro que tinha um movimento de ir buscar fruta no Ceasa, uma coisa que marcou muito, o aroma, quando o meu tio cortava as melancias, meu, invadia, cheiro de natal aquilo, melancia, uva passa, aquele monte de coisa, muito legal, o natal era bem bom, o natal era bom, sempre foi.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Sete, sete anos.
P/1 – Que escola que era?
R – Escola Municipal de Primeiro Grau Alcântara Machado, uma coisa assim.
P/1 – Ficava aonde?
R – Real Parque.
P/1 – Você ia como pra escola?
R – A pé.
P/1 – Alguém te levava?
R – No começo quem me levou foi minha mãe, um medo, muito medo de ir sozinho, mas aí vai ter uma época que eu fui sozinho, aí você ia encontrando os amigos no caminho e vai indo, bom, era bem legal. Eu lembro que nos primeiros dias, eu não sabia que podia ir no banheiro, aí eu fiz na classe, cara, eu nunca mais esqueci disso, pô, não, mas: “Ninguém levanta”, a professora falou. Sabe que eu assisti um filme esses dias sobre educação, o cara fala, ela falou: “Pô, ninguém levanta”, eu não levanto, então: “Mano, eu vou ficar aqui”, aí: “Não vai dar pra segurar, acho que não deu, já era”, isso marcou, foi a primeira semana de aula.
P/1 – E aí você ficou na escola?
R – Pô, eu fiquei p. da vida, nossa, eu morri de vergonha, mas passou rapidinho.
P/1 – Você lembra de algumas professoras do primário?
R – Lembro da tia Nancy, inclusive lembrei dela numa aula recente.
P/1 – Por que ela te marcou?
R – Porque era muito próxima, era uma pessoa muito doce e, tipo, uma coisa que marcou é que foi a primeira pessoa de fora da minha família que eu senti, assim, um carinho quase familiar porque ela demonstrava, ela ia pra 25 de março, era uma menina muito jovem, assim, alta pro padrão da minha família, de óculos e cabelo, era bonita ela, e ela trazia carrinho pros meninos e bonequinha pras meninas, daquelas bem simplesinhas, sabe, mas ela não deixava de dar pros alunos, e a tia Nancy era um barato, cara, a gente chamava de tia na época já, enfim, é a que eu lembro.
P/1 – Do que você mais gostava na escola?
R – Então, cara, de ditado e de leitura, eu gostava de ler os textos, logo no começo, no Caminho Suave eu já queria, porque os dos livros do meu pai já estavam em casa. Então, já vinha coisas e eu tinha repertório, tipo, a África: “Ah, da África”, aí já tinha visto, é aonde tem os negros, né? Eu tinha essas ligações, logo no primeiro ano de escola, tinha isso, das matérias, da professora vir trazendo as coisas e eu ter conexões com essas coisas que eu aprendi com o meu pai, eu lembro disso, assim, eu lembro que vinha uma memória que não era da escola, que era de casa, do meu pai falando. Mais tarde, no final do primário, começo do ginásio, começa a falar da história do Brasil e da época do Getúlio, eu já sabia, o meu pai falava em casa: “Ah, tal”, aí a professora: “Não, que o Getúlio foi um ditador”, “Não – eu falava – mas ele ajudou os trabalhadores, não foi, o meu fala que teve carteira”, “É, mas e tal”, a professora me dava uma retaliada, mas eu já sabia, era legal isso.
P/1 – Como é que você era na escola?
R – Então, eu tinha essa coisa do estigma do primeiro aluno da classe, não é, tinha isso, desse berço aí, então meu ginásio todo, até eu mudar pro Ennio Voss eu era o primeiro aluno da classe, depois virou uma praga, um negócio insuportável, que nenhum professor suportava, porque eu não gostava do ensino, mas até a quinta série, sexta eu era o primeiro aluno da classe sempre.
P/1 – Tinha amigos?
R – Bastante, muitos, de futebol, no Alcântara eu lembro que tinha futebol pra caramba, pega-pega pra caramba, tinha essas coisas, e a primeira mulher que eu achei bonita, essas coisas, né?
P/1 – Quem que era ela?
R – A Regina, ela é minha amiga até hoje, a Regina, eu contei pra ela isso aí esses dias, ela riu pra cacete: “Ah, eu nunca soube”, “Pô, eu tinha sete anos, como é que eu ia falar?”, “Não, eu lembro que você deixava eu ir”, a gente na descida do colégio, a gente descia junto e eu lembro que ela usava Chanel e um laço na cabeça (risos), aquilo era muito esquisito, de lembrar disso. E aí a gente descia e tinha, a gente sacou que tinha aqueles bebedouros que tem até hoje, assim, tal, os primeiros que a gente viu, entre a minha casa e o colégio a gente passava por uma estrutura que era uma escola, parece, que ela fazia parte da igreja, e lá tinha esse bebedouro e a gente entrava quietinho pra beber a tal da água gelada. Aí ela deixava eu beber assim e apertava o outro pra molhar minha cabeça, eu falava: “Pô, Regina”, eu era bunda mole, enfim, ela me sacaneava muito, sempre foi muito esperta a Regina, e eu conheço ela, ela é minha amiga até hoje, muito legal a Regina, ela gosta muito dos shows no SESC, é muito legal a Regina, eu lembro boas lembranças. Da escola, então, e tinha os vizinhos, que a gente brincava dessas coisas, dos carrinhos, e eu lembro também de uma coisa que era bem legal, que a gente fazia escavadeiras com madeira e uma lata de óleo Mazola cortada assim, então ela ficava parecendo um trator, aí você ficava, e botava umas manoplinha, aí ficava direitinho, assim, um trator, um tratorzinho, eu lembro disso. Tinha um balanço, um negócio muito louco, porque era assim, era uma árvore enorme, um eucalipto, que ficava, aqui minha casa, aqui a casa da Dona Carmem e aqui ficava um vaziozão, que hoje chama, são três prédios enormes, chama Mansão do Morumbi, eu vi construindo, e tinha esse barranco, e aí tinha um eucalipto enorme e aí a gente, o meu irmão, a turma do bairro subia, amarava a corda, aí metia um pneu. Meu, então você balançava, você saía daqui, do platô e balançava, sei lá, meu, dez metros, assim, pra baixo, era bem louco, e a gente balançava nisso aí, isso também eu lembro bem, que era, dava uma, era o nosso Playcenter. Ah, tinha descer também com papelão, não, com casca de bananeira, a bananeira não dá aquelas cascas de tronco? A gente sentava naquilo e escorregava. Tinha ir pegar mamona pra fazer guerra, nos outros, isso em direção ao Rio Pinheiros, sabe? Ali em direção, eu acho que tem umas concessionárias de carro, era uma picada só, mas era um mundo pra nós, pequeno, a gente fazia muito isso, que eu lembro, de brincadeira, e ficava e era pião, era bicicleta, bom, bicicleta não tinha, eu fui ter bicicleta depois dos 12, 14, por aí, mas era isso aí que eu lembro.
P/1 – E do ginásio, você continuou na mesma escola do primário?
R – Não, mudei.
P/1 – Por que você mudou? Não tinha?
R – Porque teve, aí veio assim, meu pai quis comprar, ele ajuntou dinheiro pra comprar essa casa, essa que a gente morava, do quintal grande, lá.
P/1 – Por que, era alugada?
R – Era alugada, aí ele ajuntou dinheiro pra comprar, e aí o, porque o dono, eu não sei se o dono morreu, os filhos quiseram comprar, eu não lembro que rolo que foi, aí o meu pai quis comprar e um advogado intermediou, ele sumiu com o dinheiro do meu pai, velho, meu pai odeia advogado até hoje por causa disso. E aí ficou uma situação muito ruim, porque ele achou que o advogado estava tratando e chegou a ordem de despejo, isso foi muito marcante, assim, que, quando eu cheguei em casa, estava todos os meus móveis no quintal. Meu pai, assim, transtornado, porque o advogado sumiu com tudo que ele tinha que ter feito, sumiu, eu sou louco pra saber quem é esse cara até hoje, eu vou pegar os descendentes dele. Eu lembro que o meu irmão saiu correndo pra arrumar uma casa, aí arrumou uma casa no Aeroporto, no Bairro do Aeroporto, aí eu lembro que a gente mudou pra lá, e essa cachorra foi, as cachorras, eu lembro da cachorra, que aí ela morre lá.
P/1 – Vocês mudaram pra Interlagos?
R – Não, pro Aeroporto, Rua Sebastião Paes, que era uma descida.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Sete, eu estava no primeiro ano, final do primeiro ano, eu lembro que minha irmã foi me buscar com o namorado dela, a primeira vez que eu andei de Kombi, e ela falou e ela tava chorando muito, minha irmã é chorona até hoje, a Suzi, é a mais velha das meninas e a segunda mais velha, abaixo do meu irmão Gilberto. Ela falou: “Ai, será”, eu falei, “Vamos mudar”, eu falei: “Ah, que legal”, assim, eu não achei ruim, assim, eu achei, eu fiquei mais assustado com a reação dela do que propriamente de ter que mudar de casa. Eu falei: “Nossa, está tudo fora e tal” e eu senti uma, eles tentando me proteger e eu não estava preocupado, não estava ligando praquilo, assim, de certa medida, eu achava que era coisa de gente grande, que: “Resolve aí, eu quero morar, não quero saber qual que é”. E aí meu irmão correu e achou essa casa no aeroporto, e aí eu mudo pro Leonina, mudo pro Leonina, Leonina Santos Fortes, eu marquei porque o nome era horrível, Leonina Santos Fortes, que é no Aeroporto, todas essas coisas tem hoje ainda, que colégio não fecha, né, nessas regiões não. Eu lembro que eu mudei pra lá pro ginásio.
P/1 – Então você mudou na quinta série?
R – Na quinta.
P/1 – Você tinha o que, dez, 11?
R – Ou foi de quarta pra quinta ou foi na quinta, pô, meu, está me dando um lapso, eu vou pro Aristides de Castro, no Itaim, na quinta, quarta pra quinta, e no Leonina eu vou depois, eu vou antes, mas eu fico pouco no Leonina, depois eu vou pro Aristides Castro, longe, meu, eu mudei pro Brooklin, então eu saía de cá embaixo da Pensilvânia.
P/1 – Não, pera í, você saiu do Real Parque.
R – Saí do Real Parque.
P/1 – Foi pro Aeroporto.
R – É, fui pro Aeroporto, não, é agora sim, eu retomei a linha, no Aeroporto eu estudei no Leonina, né?
P/1 – Mas foi quando você saiu do Real Parque.
R – Saio do Real Parque.
P/1 – Mas eu não entendi se você tinha sete ou 12.
R – Eu tinha oito, aí sim, saio do Real Parque de sete pra oito anos, da primeira pra segunda série, vou pro Leonina, faço o primário no Leonina, aí eu mudo.
P/1 – E aí você mudou de amigos, fez outra turma, como é que foi?
R – Amigos do meu irmão, eu tenho amigos que são dessa época do Real Parque, mas eram amigos do meu irmão, amigos meus não tenho, que eu era muito pequeninho, não deu pra criar um laço.
P/1 – Aí em Congonhas, no Aeroporto?
R – É, no Bairro do Aeroporto, que é embaixo ali daquela avenidona que vai pro aeroporto, assim, fica lá pra baixo.
P/1 – Cupecê?
R – Não, não é a Cupecê, Washington Luís, que faz aquelas curvas. Eu lembro bem que tinha ali o Jumbo Eletro, o Wells, você lembra disso? O Jumbo Eletro, o Wells, que depois virou Eletroradiobraz, uma coisa assim, ou vice-versa, eu lembro disso.
P/1 – E como é que era naquela época?
R – Era tranquilo, todos os irmãos já trabalhavam e a gente conseguiu ficar, assim, numa condição muito legal, todos os meus irmãos moravam em casa, a casa era grande. Aí ali começou, tipo, os casais dos meus irmãos, assim, quem tá junto ou quem tá separado, todos começaram ali, com exceção do meu irmão mais velho, eu lembro que ali o Zé, o meu cunhado, ia, tal, casaram dali. Do Aeroporto eu vou pro Brooklin e continuei estudando no Leonina, aí eu vou, isso é muito engraçado, porque eu morava no Aeroporto, estudava no Leonina, aí eu mudo pro Brooklin, que aí a terceira vez, aí já to na quinta série, aí sim, eu lembro dessas caminhadas absurdas, que eu saía da Pensilvânia, subia toda.
P/1 – Você morava na Pensilvânia?
R – Morava na Pensilvânia, subia toda a Pensilvânia, subia toda a Vieira de Moraes e ia lá pro Aeroporto ter aula, eu andava tudo isso, até meu pai arrumar o Aristides de Castro, porque não tinha ônibus, não tinha ônibus, era tipo contramão, e o Aristides de Castro ficava no Itaim, mais longe, mas tinha um busão, então eu mudo pro Aristides de Castro. E aí ele vai três, quatro dias comigo, depois eu fui pegar ônibus sozinho, então foi muito legal, foi aí que eu descobri a janela dos ônibus, muito bom isso, isso eu conto em toda coisa que eu escrevo, foi muito bom. E aí eu faço a quinta.
P/1 – O que é a descoberta da janela dos ônibus?
R – Porque são as transformações da cidade, que foi depois que eu fui estudar, estudar e atuar nisso na preservação do patrimônio histórico, essas coisas que eu vim a atuar, da ONG que eu ajudei a fundar chamada Preserva São Paulo, que tem essa missão de preservar. Então, quando eu escrevo sobre isso, inclusive no livro que eu escrevi junto com mais dois integrantes da ONG, eu usei essa memória, aí fiz, criei essa metáfora que é: a cidade é um livro aberto e vivo pra você. Então foi nessa época que eu vi as coisas mudando, você passava, era uma coisa, passava, a casa caía, passava, o prédio subia, passava, o viaduto passava, tudo da janela do ônibus, que era longe pra mim na época era longe, sair do Brooklin, ir até o Itaim, ali perto do túnel da São Gabriel, que aí eu andava até a Leopoldo Coutinho Magalhães, que eu ia pro Aristides de Castro. Foi aí que eu começo a não ser mais um aluno bom, eu começo a descer até o que seria o Parque do Povo hoje pra jogar bola, cabulava aula pra ir jogar bola.
P/1 – Isso em que ano, que você deu essa mudada, da quinta, da oitava, da quinta série pra sexta ou no colegial? Eu não entendi.
R – Primário, depois eu começo o ginásio.
P/1 – Primeiro aluno da sala.
R – É, essa coisa toda até a quinta série, quando eu vou pro Aristides, quando eu vou, Leonina, Aristides, não, aí eu começo a zoar no Ennio Voss já, eu era, eu continuava com essa meta aí, com essa áurea aí de ser CDF, nessa época aí, até essa época aí, eu começo a dar uma desvirtuada no Ennio Voss.
P/1 – Por que você deu essa desvirtuada?
R – Ah, começo de adolescência, contato com outras pessoas, outras, tinha esse tumulto familiar também. Tem uma coisa marcante, que é quando a minha mãe começa a ir pra Bahia cuidar da minha avó, que estava começando a ficar doente, então ela passou 22 anos sem ir lá, que a gente lembra, ou que eu lembro, é que ela se sentia culpada de deixar a mãe dela sozinha, velhinha e tal, então ela ia cuidar e nessa época eu fiquei sozinho aqui. Ela disse que isso era a cruz ou a espada, ou deixa o filho mais novo, 14 eu tinha, então eu zoei, aí eu zoei, meu pai trabalhava, tal, minha mãe é que tinha essa fiscalização mais próxima, mas eu não tinha mais ela, então deu uma zoada.
P/1 – O que é zoar?
R – É cabular aula, jogar bola, não ir mais bem, não estudar mais, mas, assim, eu comecei a ter interesse por determinadas matérias, que eu ia muito bem, e outras que eu esqueci, qualquer pai cobraria essa dedicação pra todas, não que fosse bem, mas que se dedicasse, eu não. Aí eu comecei a repetir de ano, essas coisas aí, eu lembro disso, de repetir de ano, na quinta série eu repeti, eu repeti uma quinta e uma oitava, se não me engano.
P/1 – O que você fazia, você passeava, o que fazia da quinta a oitava série, além da escola?
R – Essencialmente cabular aula, pra fazer qualquer outra coisa que não fosse estudar, sempre jogar bola, no Ennio Voss já, o Ennio Voss era um colégio estadual muito diferente, porque ele tinha um ginásio coberto, a quadra era um templo, assim, a gente queria ter acesso e era super criterioso pra ir, porque a manutenção era complicada, então ela ficava fechada o tempo todo. E aí esse, por exemplo, era uma transgressão, que era quebrar o cadeado e passar pro fundo e jogar bola, onde não, invadir lá, isso eu lembro, cabulava aula o dia inteiro, jogava bola o dia inteiro, ou dentro da quadra ou fora da quadra, briga de galo, ficava nisso aí, que eu lembro. Nessa época que eu conheço o meu parceiro, que vai ser meu parceiro da parte musical, né?
P/1 – Quem que é?
R – Cassius, Cassius Franco.
P/1 – Você conheceu ele como?
R – Na classe, eu chego na quinta série no Ennio Voss e ele era da classe, e um ano depois chega meu outro irmão, a gente nos tornamos, assim, uma irmandade mesmo, a gente frequentava a casa um do outro, tal, e a gente ficava mais na casa do Alemão mesmo, né? Foi interessante conviver com o Alemão, sabe, porque os pais deles eram alemães e tinha uma história legal, que a gente ficava fuçando de, tipo, o pai do Alex, falecido Seu Werner, ele era da, oficial, soldado lá do nazismo, e a mãe dele era judia e eles fugiram pra cá, ela era dançarina. Ela dá aula até hoje, cara, ela tem 85, acho que 86, a Dona Rose, ela dá aula de ginástica e tal, foi sempre uma referência também, sabe, logo no começo da juventude, conviver com a cultura alemã. Por exemplo, café da manhã, era muito engraçado, cara, porque, assim, café da manhã pra nós ou é cuscuz ou é beiju ou é pão com manteiga e café com leite, aí ele falou assim: “Vamos tomar café lá em casa”, mano, eu nunca vi tanta coisa, cara, eles têm essa cultura, foi muito legal, tinha bastante coisa, assim. Aí ficou um certo hábito de frequentar a casa do Alemão, ir lá, ela fazia panqueca, muito louco ter esse convívio.
P/1 – E o Cassius?
R – O Cassius, ele sempre foi um mistério, sabe, era um cara muito genioso e ele andava assim, sabe, peito estufado, um negão bonito, alto, sabe, que andava com o peito estufado e tal, não sabia dar um tapa numa mosca, mas aí ele se empunha e evitava que eles fossem assediados, a gente tinha uma certa liderança, centro acadêmico e tal. Ele nunca, meu, sabe o que eu estou lembrando? O Cassius fez o primeiro grafite que eu já vi na minha vida, ele pintou o Pateta dançando break no fundo da classe e a diretora autorizou, de tão bom que ele era desenhista, ele era um excelente desenhista, que depois refletiu em coisas muito legais, depois, no começo da nossa juventude, assim, do, tipo 17, 18, 20. Já que eu fiz essa observação, sabe o que era? É que assim, todo mundo que começava a trabalhar da nossa classe social, era office boy, a gente era office boy, antes disso, entregador de floricultura, antes disso, engraxate.
P/1 – Mas você começou a trabalhar com quantos anos?
R – Com nove, eu entregava flor, perto, já no Brooklin.
P/1 – Como que você arrumou esse trabalho, como foi o primeiro trabalho?
R – Cara, eu acho que eu fui, não, como é que foi? Um amigo meu estava lá e falou: “Está precisando de mais um entregador” e eu fui ou eu passei em frente e falei se ela tava precisando de trabalhar, porque eu queria comprar alguma coisa e queria trabalhar, porque tudo a minha mãe falava: “Vai trabalhar, quer isso, vai trabalhar, quer isso, vai trabalhar”, eu arrumei esse trampo aí. Aí eu lembro que minha irmã tinha uma caixa de bombom, eu guardava meu dinheiro dentro dessa caixa de bombom, bem engraçado.
P/1 – Você estudava de manhã e entregava flor à tarde?
R – Era isso, era isso aí, eu entregava flor já no Brooklin, já tipo num bairro de classe média, meus irmãos todos trabalhando, então a casa tinha uma renda legal, que dava uma condição legal ali, ficou super bacana ali o Brooklin, foi quando eu ganhei a bicicleta.
P/1 – Mas você trabalhou com nove anos.
R – Com nove pra dez anos eu entregava flor. Eu lembro do Seu Matsumoto, era um casal de japoneses, eles eram muito dóceis e muito, tinham muito carinho por mim também. Então, assim, ele trazia uma madeira, ele fala: “Vamos fazer o pau de água”, aí ele falou: “Corta aqui”, aí eu comecei a cortar o pau de água e aí você põe dentro da água, ele floresce, eu achava aquilo o máximo! E depois ele, mano, ó que eu lembro disso, cara, eu falei pra ele tirar, não sei se ele tirou foto, aí eu falava: “Me dá que eu vou mostrar, quando eu for entregar, eu vou mostrar que tem essas outras coisas”, aí batia nas casas, mostrando os vasos, tipo: “Tem essa planta aqui, moça, a senhora tem que ir lá comprar e tal”, tipo vendendo, já pequeno. Era muito louco isso aí, eu ficava mostrando, porque ele, japonês, foto, ele tirava foto dos arranjos que ele fazia e eu mostrava pras pessoas, era bem legal isso.
P/1 – Quanto tempo você trabalhou lá?
R – Dois anos, depois eles compraram, foi muito dramático, foi louco isso aí, cara, porque, quando eles desmancharam a floricultura lá na Avenida Central e montaram ela bem longe, tipo Santana, assim, que eles compraram casa e tudo, foram pra lá, foi muito triste, cara, porque japonês não demonstra, e eles ficaram tristes, o Matsumoto ficou se escondendo de mim, que eu acho que ele estava emocionado, foi mó bonito, cara. E eu lembro que ela me deu o dinheiro, depois me deu mais um pouco de dinheiro e disse que, e mais um pouco, foi um monte de dinheiro, pra mim era um monte de dinheiro, porque, tipo, das pessoas que passaram lá e deixaram caixinha pra mim, e até hoje eu acho que eles que me deram aquele dinheiro, nunca mais vi, legal, passou positivamente.
P/1 – Aí depois você arrumou trabalho?
R – Não, como todos meus irmãos trabalhavam, meu pai trabalhava, minha mãe trabalhava, então tinha tudo em casa, então deu, tanto pra mim, pro meu irmão, a gente ficou meio folgado, logo, assim, não era o mesmo pique das outras famílias que não tinham, porque o cara já tinha que trabalhar com 14 anos, podia tirar a carteira profissional, já ia trabalhar. A gente ficou meio folgando, a minha irmã já trabalhando onde ela trabalha até hoje, eu fui, aí o primeiro emprego com carteira assinada foi ser office boy de um lugar chamado SBPM, Sociedade Brasileira de Pesquisa de Mercado, que ficava na Rua Santa Isabel, no centro, era muito legal, foi a primeira vez que eu tive a carteira assinada e tinha a minha grana.
P/1 – Quantos anos?
R – 14, 15.
P/1 – O que você fazia?
R – Office boy, depois eu fiquei lá até os 18, perto de servir o Exército, já no último ano disso, eu já tava ficando depois do trampo pra cuidar dos professores que iam dar as palestras lá sobre pesquisa de mercado, demonstrar pesquisas e tal. Eu lembro de bastante gente importante que eu lembro que eu lidei naquela época, como hoje, mas que hoje aparecem aí várias coisas, Dona Heloísa, Seu Jairo, eu lembro deles.
P/1 – Vamos voltar um pouco, daí você, como que foi essa experiência de office boy, que lugares vocês circulavam?
R – Isso foi genial, foi muito legal, primeiro muito medo dessa coisa de lugares desconhecidos e tal, e aí eu lembrava do meu pai, dando os rolês comigo no centro, essa coisa de vai, de vem, de observar, isso me ajudou muito, muito. Eu andava pelo centro, Paulista, tinha uma fase que era o seguinte, a gente pulava por trás do ônibus pra economizar o passe, porque o passe era sempre pra comprar cachorro quente, comprava qualquer coisa com o passe, todo mundo aceitava. Então você ficava matando o ônibus falava: “Vou matar o ônibus”, na Paulista, esse Aeroporto-Perdizes já tinha na época, a gente pegava, porque era um ônibus bom, porque você conseguia chegar nos bancos da Paulista, nos bancos da Consolação e tal, eu lembro que eu andei bem no centro. E aí eu arrumei um trampo, eu trabalhava das duas às oito, não, das duas às seis, depois das duas às dez, quando começou a ter curso na SBPM, só que, quando eu não tava estudando, eu trabalhava na lanchonete debaixo, que até hoje existe, Dona Nerina me empregou, eu fui ser copeiro. Então eu era copeiro de manhã e office boy à tarde, depois passei a auxiliar de escritório.
P/1 – E a escola, o colegial você foi fazer aonde?
R – Aí eu saio do Ennio Voss, 82, agora já começa a vim datas, 81, 82, eu saio do Ennio Voss e vou pro Caetano de Campos, no centro, porque era perto do trampo, né? Então lembrança dessa época, acordar muito cedo e pegar o único ônibus possível, porque o resto era impossível, eu peguei a maior bronca de morar longe por causa disso, porque eu vinha pendurado na janela, fora. Era engraçado também que esse ônibus, eram as mesmas pessoas durante anos que pegaram, e eu lembro de duas senhoras cheinhas, elas sentavam meio perto e, quando eu chegava, elas afastavam pra eu sentar no meio, elas guardavam pra mim e eu vinha conversando com ela, ficava conversando a Nove de Julho inteira. Hoje ela, uma delas, a Dona Lúcia, ela tem uma locadora de vídeo lá na vila, lá, mas a gente acordava muito cedo e vinha pendurado na porta, era muito ruim. Eu entrava às sete horas no Caetano de Campos e ficava até uma, aí eu almoçava qualquer coisa e ia, entrava às duas na SBPM.
P/1 – E quais eram os seus, como você se divertia na adolescência, essa passagem aí sua do colegial?
R – No Ennio Voss eu fiz essa amizade, então que eu lembro, eu te falei, né?
P/1 – O Cassius e o Alemão.
R – Eu era muito caseiro, sempre caseiro, aí eu começo a sair, aí começou a faltar uma certa grana, pra você sair você precisava de roupa de sair mesmo e tal, eu tinha roupa pra ir pra coisa, não tinha roupa pra ir pra festa, aí ficava essa coisa, minha mãe tentava fazer umas coisas, mas precisava comprar pano. Eu lembro disso, um pouco dessa possibilidade de diversão nos bailinhos e nas festinhas e tal, era o que tinha, aqueles bailes de fundo de quintal, com aquela lona, aí chovia, fazia as barrigas, virava alguém, molhava todo mundo, você está ligado, como era as periferias, era desse jeito. Mas foi uma época que a black music já tava, então, assim, tinha os bailes de dançar junto, era o fim do mundo, nossa, até tirar alguém pra dançar, era muito, nossa, muito ruim, eu sempre fui muito tímido nessa parte aí, principalmente nessa época. Mas era isso, era ir nos bailes da turma, da onde tinha festa, sempre tinha, se não era amigo do Alemão, era amigo do Cassius, tal, amigo meu, a gente ia na adolescência, aí a gente começa a fazer, aí é que eu começo a lidar com o rap, com música.
P/1 – Com quantos anos?
R – Quinze.
P/1 – Como começou?
R – O meu irmão tinha os discos do Thunder Flyer, tal, eu já escutava, isso o Giba, o Vila, que é esse meu irmão, o Euvilasio, esse mais, o apelido dele é Vila, Giba, Vila, ele frequentava os salões, eu nunca fui de frequentar salão, eu era esquisito mesmo, meu, agora que eu estou vendo, eu não ia na dos caras nem ferrando, eu não ia em salão, meu, todo mundo ia, até hoje eu tenho bronca de salão. Aí o Vila ia nos salões, aí os DJs falavam os nomes dos discos e ele, office boy, começou a comprar, então eu lembro muito nítido, eu procuro esses discos até hoje, chama The Best Funky in Town, era uma mão vindo assim, sabe, uma mão negra vindo assim, tinha tudo de bom. Então eu aprendi a ouvir aquilo. Quando eu conheço o Cassius, a gente não sabia que a gente gostava da mesma coisa, aí eu levo o disco do meu irmão, que até hoje ele não sabe que foi eu que roubava os discos dele, e emprestava pro Cassius: “Esse é o som que a gente, que eu gosto, que a gente gosta de ouvir”, e começamos a ouvir música. Aí eu vi que, enquanto eu ouvia Dilermano Reis, Saraiva, Nelson Gonçalves, Jacó do Bandolim, Waldir Azevedo, Altamiro Carrilho, com meu pai, Vitor Assis Brasil, tal, o Cassius tinha uma formação jazzística, o pai dele era DJ da Opus 2004, na Consolação, Seu Tarcísio, que depois eu vim saber que ele era daquele jeito porque o pai dele teve uma morte trágica. Ele tinha um tio chamado Paulo também, que os dois eram DJs, eram uns bem louco, assim, eu vejo as fotos dele, inclusive ele parece um pouco comigo, o pai do Cassius, e ele era DJ. Então o Cassius tinha acesso, meu, só discão, um monte de jazz, um monte de black music, um monte, e coisa nossa boa, tipo Tim Maia, Jorge Ben, Elisete Cardoso, tudo, isso o meu pai não ouvia, eu aprendi com o Cassius, aprendi convivendo com a família dele isso daí. Isso é bem marcante na minha adolescência, 15, 16 anos, eu tomo contato com tudo isso que está comigo até hoje, assim, é super meu, assim, é super bom, assim. Foi a época que a gente começa a beber também, a gente bebia licor, licor misturado com as coisas, a gente começou a beber com 15, 16. Antes disso, eu tomei um porre de uma sidra que veio numa cesta do meu pai, meu pai chegou em casa, tava eu e meu irmão bem louco: “Vocês são loucos”, e ele depois do alcoolismo, imagina, mas não bateu na gente, cara, ele bateu por muito menos, mas o da bebida ele não bateu, engraçado, né? Foi o meu primeiro bode, nós tomamos: “Tá docinho”, aí o Vila: “Dá um pouquinho mais, Vila”, aí a gente ficou bebendo a sidra, mano, bebemos metade da sidra, velho, nunca fiquei tão ruim, eu tinha 11 anos, velho, eu não sabia que tinha álcool assim. Mas aí a gente começa a beber com 15, 16, a gente começa a beber e a gente fica amigo da dona do bar que a gente frequentava pra ela dar bebida pra gente quando a gente era pequeno, quando a gente era menor, e a gente bebia essas porcaria, licor, tal, depois a gente começou a beber cerveja, bem depois.
P/1 – Retomando dentro desse assunto, mas aí com 15 anos você disse que começa a entrar na sua vida...
R – Música.
P/1 – Música.
R – Assim, como característica, como traço meu, era meu hobby, minha inspiração, minha, e aí a gente começa a fazer música, a gente começa a fazer devagar e tal.
P/1 – Mas nessa época você tinha alguma coisa assim: “Quando eu crescer, eu quero ser tal coisa” ou “Eu quero caminhar pra fazer isso”?
R – Cara, meu pai trabalhou, meu pai conheceu, nesses almoços de final de ano, um dos parentes lá, que era, ele achou o máximo, comissário de bordo, como é? Piloto, sabe, com aquele chapéu, aquela coisa antiga da Varig, azul, aí ele falou: “Tu vai ser engenheiro de voo” (risos), “Vou ser engenheiro de”, eu pensava eu depois: “Engenheiro de p. nenhuma”. O que eu pensava? Eu pensava em ser arqueólogo, arqueólogo, porque eu li um livro que marcou minha vida também, chamado “Eram os Deuses astronautas?” de Erich von Däniken, que está aí contando a mesma história, o Jô entrevistou ele esses dias, o cara está com 80 e tantos anos, mas está lá firmão, e esse livro me influenciou a ser arqueólogo. No Ennio Voss eu conheço um outro cara, o Maurício, que eu não vi mais, mas que ele também tinha muita informação, ele me deu muita informação, ele foi o primeiro que me mostrou Legião Urbana, ele falou: “Olha, eu fui pra Brasília, meu pai estava precisando ir pra Brasília, e olha lá o que que está tocando lá” e mostrou Legião e tal. Eu lembro dessa época do começo do rock, 80, 82, 80, por aí, e aí o Maurício que me dá essa informação também, lá no Ennio Voss isso. O Ennio Voss é bem marcante também, porque ali que acontece toda, essa é a nossa adolescência ali, e assumi esse traço que não saiu nunca mais, que é da black music e depois do rap, né, é aí que a gente começa a tomar contato.
P/1 – Mas você começou a compor?
R – A gente começa a compor, a gente, quando montou a banda, O Credo, chamava O Credo, e o Cassius diz assim: “Eu vou ser DJ e vou fazer os arranjos, você se vira com as letras, você que é aí, metido aí a ser intelectual, baiano, se vira, você vai lê e eu vou pá”. Aí, pô, eu fui lá, aí lia e tentava escrever, aí ele: “Isso aqui está muito barroco, não vou cantar isso, cara”, tipo: “Nos portais da existência” (risos), um negócio que não tinha nada a ver. Ele enchia o saco, falava: “Pô, mano, essa coisa não, isso não é rap, cara, portais da existência, tenebrosos portais, cara, não vai virar, não rima com nada, eu vou fazer isso”, mano, ele se revelou um grande letrista. E aí o que acontecia? Aí a gente mudou a técnica, aí a gente escrevia uma redação do que a gente achava que tinha falar: “Vamos falar do racismo da polícia”, aí falava do racismo, falava da polícia, escrevia uma parada, aí a gente ia achando as rimas. Porque quando a gente vai numa professora de Inglês, ele falou: “A gente quer cantar rap, professora”, ela falou que a gente não, a gente não, acabei de falar isso inclusive pro garoto aqui: “Vocês nunca vão cantar isso, porque o inglês tem contração. Sabe aquele it is que vira it’s e tudo? Você não vão ter isso no português, as palavras em português pra explicar alguma coisa são enormes. Como é que vocês vão cantar?”. Eu falei pra ele: “Nós vamos cantar”, pensamos, né: “Nós vamos”, e aí o que que a gente vai? A gente começa a ler Fernando Pessoa e Drummond.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – É isso aí, 15, 16.
P/1 – O Credo foi com 15, 16?
R – Não, foi mais, não, a gente começa a lidar com uma parte, O Credo é com 16 pra 17, isso, é isso aí. Eu tinha influência, a gente meio que começou a curtir o punk também, mas a gente via que o punk tinha uma estética que não era pra nós, o negro fica, a gente achava esquisito um negro punk, a gente não conseguia arrepiar o cabelo. Já era fogo andar com uma roupa que não era, agora a gente ainda vai botar uma cheia de tacha, rasgada?
P/1 – Mas aí vocês começaram a andar como?
R – O Cassius nunca entrou na estética, eu andava de coturno, coturno e jeans e camiseta branca, que era meio que careca meio que punk isso, né, depois eu fui saber. Tinha uma fase de rock também, que eu ouvi muito rock, mas foi muito pouco isso, a black music vem e domina mesmo, a gente fica dominado por isso mesmo. E aí com 17, 18, aí eu já vou trabalhar em outro lugar, eu já vou, eu fui, aí eu saio da SBPM, de office boy, e não tinha trampo, porque eu tava na época de Exército, aí eu lembro que a minha chefe lá, ela, tipo, ela tinha namorada. Inclusive o primeiro contato que eu tive com isso, com essa possibilidade de duas mulheres, ela era, tinha, ela era casada lá, aí eu falei: “Puxa, mas eu nunca”, aí eu saquei que existia essas coisas. E a namorada dela, a mulher dela, a parceira dela trabalhava num outro lugar, que era um vídeo pôquer na época, eu fui trabalhar no vídeo pôquer, assim, virava, eu ficava de noite, aí eu já era maior, já tava com 18, porque aí por isso que o cara deixou eu trabalhar. E daí eu e o Cassius, aí é que é marcante, sabe essa coisa dele desenhar bem? Ele muito cedo, ao invés dele ser office boy, por isso que eu disse que todo mundo começava com office boy, ele vai ser assistente de arte júnior, ganhar cinco vezes mais, então ele andava mó pano, ele comprava aqueles overcoats e tal, andava tipo os negrão americano, tá ligado? Ele me emprestava e tal, parceirão, e a gente andava sempre destacado, assim, no visual, sabe, e ele que gerava, eu comprava uma coisa ou outra com o meu salário, mas ele que era o cara pra fazer as coisas, e por causa desse talento dele de ser ilustrador e tal.
P/1 – Mas aí o primeiro grupo?
R – O Credo, é O Credo, que é com 16, a gente começa a brincar.
P/1 – Que é você?
R – Eu e o Cassius.
P/1 – Mas aí vocês se apresentavam?
R – Então, com 18 anos, a gente tentando fazer, ele vai aprender baixo, eu queria aprender percussão, só que pro rap é batida eletrônica, é o começo dessa aparelhagem eletrônico, tanto é que deu o african beat depois, que vai pra África e tal. Mas aí a gente ouve as coisas, por exemplo, do Kraftwerk e o África Bambaataa e tudo aquilo não é mais bateria acústica, é só eletrônica e tal. A irmã do Cassius fazia História na USP, coincidentemente, hoje ela é doutora em história das cidades e trata de preservação, foi aí que eu reencontrei ela, não é louco? Mas aí o Mário, que era um amigo delas que era músico, e o Maurício, hoje ele distribui música, o Maurício, emprestou uma bateria eletrônica primitiva, que tinha assim pá, pum, pá, pum, só, aí a gente ficava brincando com aquilo e fazendo as letras. O que acontecia na fase de criação do rap naquela época? Ninguém tinha bateria eletrônica, definitivamente, e a gente não tinha formação musical pra saber que aquele beat, aquela batida pra se cantar em cima podia ser feita em acústica, só depois é que a gente foi saber. Então as gravadoras lançavam o que a gente chamava de single, que era a música que ia ser trabalhada no LP, que ia pras rádios e pras casas noturnas, normalmente no outro lado, no lado B do vinil, vinha o que eles chamavam de bônus beat, que era só instrumental e à capela, às vezes, ora instrumental, ora à capela. Nos instrumentais se cantava em cima e fazia as letras em cima, então a métrica tinha que ser em cima daquela batida disponível, isso era um talento e uma limitação, era uma faca de dois gumes aí. E aí saía coisas muito engraçadas, a gente achava esdrúxulo na época e hoje a gente vê que na verdade era do caramba, por exemplo, o N de Naldinho pega o “My DJ innovator”, de um rapper chamado Chubb Rock, e transforma: “lagartixa na parede”, que tem a ver? DJ em 90, ele está, porque o rapper sempre enaltece, se enaltece: “Ah, eu sou foda, e eu vou pegar todas as minas e tal”, os rappers americanos têm essa coisa do discurso ser sempre meio do ego, né? E aí tem que falar bem do DJ também, que está com ele, então ele falava que o DJ dele era inovador: “My DJ, my DJ innovator”, aí virou: “a lagartixa na parede”, por causa do bônus beat do Chubb Rock. E, por exemplo, teve um outro rapaz que pegou: “Go see de doctor”, do Kool Moe Dee, que era: “Go see the doctor”, aí ele virou: “Pague uma cerveja”, super, tudo a ver, né? Mas era uma coisa, “Go see the doctor” era um toque do Kool Moe Dee dizendo pra todo mundo transar protegido, que senão você ia ter que ver o doutor: “Você vai ter que ir pro médico”, né, então o rap era isso. Kool Moe Dee, inclusive, é o primeiro rapper que vem pro Brasil, 17 de janeiro de 88 ele vem pro Brasil, quem recebe ele é a gente, porque rap era uma coisa que não existia, era de ET.
P/1 – Mas vocês começaram a se apresentar aonde? Como é que vocês começaram a se mostrar?
R – Olha, em 84 a gente já começa a fazer e começa a frequentar o Cais, no centro, na Praça Roosevelt, bom, enfim, aí esse monte de informação, a gente começa a sacar que é possível e aí lê o Fernando Pessoa, lê, vê que dá pra cantar. Tipo, eu lembro que a gente brincava com, acho que é Autopsicografia, não? É: “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / que finge ser dor / a dor a dor que deveras sente”, né, aí dava pra cantar: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que finge ser dor / a dor que deveras sente / e os que leem o que escreve / na dor lida sentem bem / não as duas que ele teve / mas só as que eles não têm / E assim nas calhas de roda / gira, a entreter a razão / esse comboio de corda / que se chama coração”. Era do Fernando, mas a gente já cantou em rap e a gente viu que o segredo era dividir as palavras, o que eles chamam de flow hoje era a métrica, a gente falava métrica e divisão da palavra. Por exemplo: “E no comboio de corda/ gira, a entreter a razão”, né: “Esse comboio de corda / que se chama coração”, então ficava: “Entreterá razão”, você emendava, aí dava a musicalidade que a gente queria, do rap. Então a gente viu que, se a gente seguisse aqueles modelos, dava pra cantar, aí que começou a fazer as letras, era uma técnica, né?
P/1 – E como é que era o Cais?
R – O Cais era num subterrâneo, como até hoje é o teatro que está lá, a noite não tinha, não era tão fracionada, então a gente tinha as casas chiques, como o Gallery e o Vitória Pub e o Saint Paul e o Ta Matete e o Papagaio e o Hippopotamus, certo? Década de 70, finzinho de 80 elas começam a acabar e aí surgem essas casas novas, que estavam dando conta das novas tribos, pós-ditadura, o punk. Então tinha o Carbono 14, que era pro lado dos carecas e tal, mas tinham essas casas que eram ecléticas para esses tipos de manifestação, isso é uma, eu não sei se estudaram diferente, isso eu to falando que eu vi. Então no Cais se ajuntavam os rockabilly, os B-boys, os caras do hip hop, punk e os músicos, foi aonde eu conheci o Skowa, aonde eu conheci o Ciro Pessoa, aonde eu conheci o, conheci toda essa turma.
P/1 – Mas vocês se apresentavam lá?
R – Ainda não.
P/1 – Vocês iam ver?
R – A gente ia ver, quando a gente viu uma banda chamada Lagoa 66, que o vocalista era branco e isso era marcante em nós, essa questão étnica, marcante, que a gente era parado pela polícia, a gente tinha problema com isso. Aí a gente viu o cara cantando e era muito quadrado, e a gente falava: “Pô, olha o que o cara está fazendo com o rap, dá pra cantar, mas pô”, “Eu não pertenço”, a gente achava horrível, a nossa opinião. “Vamos fazer esse bagulho aí que nem preto, mano”, aí a gente começou a cantar, aí que a gente começou a fazer isso que eu fiz agora, por exemplo, com o Fernando Pessoa, a tentar cantar nessas métricas.
P/1 – E quem cantava?
R – Eu, depois, como a gente adotou, ele era DJ e a gente compunha junto, depois ele viu uma matéria do Supla, ele falou, o cara saiu do Tóquio, porque: “O Supla vem aqui, coloca uma vírgula na letra e quer ser coautor”, ele falou: “Vai ter que fazer estrofe pra caramba pra ser coautor”, eu falei: “Pô, mas você já fez oito estrofes, com quatro eu já sou coautor”, aí a gente ficava brigando, essas coisas, coisa de moleque, enfim.
P/1 – Mas teve alguém que ajudou? Tava você, o Cassius.
R – Então, aí chega, aí a gente está com essas batidas primitivas feitas nessa bateria que o Mário nos empresta, e o Maurício, o Maurício Bussab, e a gente está lá no, o Cais tinha umas escadarias que dava acesso à pista e ao camarim, a gente sentava ali, eu com o meu bongô, nas primeiras aulas de percussão, e ficava ali batendo e cantando, eu e o Cassius, e a escada começou a ficar cheia de gente pra ver a gente cantando enquanto que não tava tocando o que eles, porque, como tinha que atender todo mundo, o rockabilly, o punk, por exemplo, tava tocando rockabilly, aí os B-boys e os punk saía de lá e às vezes vinha pra escada curtir, ficava em cima bebendo. Então nessa época foi passando um cara que era produtor cultural, que era o Gilson, que o Gilson é que fala assim: “Deixa eu ouvir, vocês vão tocar na Zoster”, 86 isso, 86, é. Aí a gente foi tocar com o que era underground, então a gente tocou com uma banda psicobilly, chamada Vietniks, eu tenho esse cartaz até hoje, e O Credo. E aí a gente falou assim: “Mas a gente não, ó como estão essas batidas, não tem qualidade pra apresentar ainda, né?”, essa primeira apresentação, aí o Cassius pegou e comprou um toca-discos isotech da Gradiente, eu lembro como hoje, porque era melhor coisa que se poderia ter em matéria de toca-discos na época. E aí o Gilson fala: “Não, deixa que a gente vai, eu resolvo”, inclusive o Thaíde, no filme do Maia, se inspira muito no Gilson, que é aquele empresário enrolado, ele é assim até hoje, aquela praga, mas o Gilson leva a gente pro Akira S, aí a nossa vida mudou, porque o Akira era um dos melhores.
P/1 – Mas o Gilson quem que era no cenário?
R – Ele frequentava o Cais e ajudava a programar o Cais, de certa forma, tinha bons contatos com os donos e tal, era um cara que tinha feito FEI e FAAP e na faculdade ele aprendeu a fazer produção cultural, produção de show, fazendo as festas da faculdade, e daí foi um salto pra ele produzir coisas, né? Ele trabalhou em produção, segundo ele, do Falso Brilhante, ele foi assistente de produção, ele trabalhou nessa aí, na época do Lira Paulistana, sabe, é um cara que trazia esse tipo de informação pra nós, era muito bom isso. E foi quando ele tava produzindo casas noturnas, na época, tinha o Zoster, na Rua Iguatemi, daí ele põe a gente lá pra tocar, e a gente não tinha as bases, não, ter uma bateria eletrônica era impossível, era extraterrestre, tinha três baterias eletrônicas no Brasil, sei lá quantas tinha, que a gente sabia era umas três. O Alex Antunes pega uma dele e empresta depois para o Akira, foi a primeira bateria eletrônica que veio pra nós, pra gente ir pro palco com ela.
P/1 – Mas aí vocês tavam lá, chegou o Gilson.
R – Isso, e aí ele leva a gente pro Akira, o Akira S, Akira S e as garotas que erraram, a cena pós-punk, do Maria Angélica não mora mais aqui, Violeta de outono, esse pós-punk aí, e o Akira era um exímio...
P/1 – Mas por que ele levou vocês pro Akira?
R – Pra ter as bases pra gente cantar. Como é que ia fazer o show sem as bases? Aquelas bases que a gente tinha, pré-gravada na fita cassete, e a gente ouvia e cantava em cima, assim, no, era precário, era um outro mundo, tudo isso hoje, era, isso aqui hoje é mais do que futuro, é um absurdo, não dava pra gente imaginar que ia acontecer, e na época era assim que se fazia, botava até no walkman, e a gente ia cantando. Aí o Gilson fala: “Eu vou arrumar um cara pra fazer essa bases pra vocês com a bateria eletrônica certa”, aí a gente fica na Cristiano Viana com Teodoro Sampaio, aí tocou, o Akira não tava, tocou, era duas da tarde, o Akira chegou onze e meia, debaixo de chuva. Aí quando o Akira olha pra trás, ele está brindo a porta, aí a gente, três negão vai correndo em cima dele (risos), sei lá o que que era, eu lembro disso: “Ô, Gilson, pô, não me assusta” (risos), pô, essa foi foda. Aí a gente todo molhado lá: “Não, Akira”, o jeito dele, né, vender as coisas: “Akira, tô aqui com esses caras aqui, eles tão cantando rap”, “Pô, rap é legal”, “É um Camisa de Vênus preta, a gente tem que botar eles no palco e eles precisam de base”, “Pô, como é que eu vou?”. O Akira olhou pra nossa cara assim, falou: “Vamos, vamos vai”, é uma entidade esse cara, esse cara é maravilhoso, muito generoso e extraordinariamente talentoso e proporcionalmente não reconhecido, sabe, é um ciclo horroroso de não reconhecimento de um cara que tem o tamanho dele, musical e de contribuição pras coisas. E ele fala: “Vamos lá, vai, vamos fazer”, aí a gente, ele falou: “Canta aí”, aí eu olhei pro Cassius, o Cassius olhou pra mim, eu falei: “Pô, eu vou cantar, vai ser f.!”, aí a gente começou a cantar, “Ô, legal, meu”. Tipo a primeira frase que o cara ouve: “Tenho em minhas mãos um manifesto que me salva de afundar nesse mundo que eu detesto”, ele falou: “Esses caras têm que cantar!”. E ele achou o máximo a mensagem da gente, e ele começou a fazer as bases pra gente. Como a gente, a bateria eletrônica era um negócio que era uma fortuna e não, e era até emprestada a dele, a que ele tinha, ele fazia as bases e gravava numa fita cassete, o que a gente depois soube que era um playback, mas era só pra contornar o custo da, não era pra ser sacana e não ter banda. A gente não tinha o equipamento pra fazer aquela sonoridade, então ele pré-gravava numa fita cassete da melhor possível, Ferro, Dynamic, Chromo, na época tinha isso, e pré-gravava. Então como é que ele ensaiava a gente? Ele falava: “Canta, aí eu ficava apertando o botão, aí eu olhava pro Cassius, eu falei: “Beleza, lá vem os beat aí, né”, “Canta de novo”, ele apertava o botão: “Canta de novo”, ele ia apertando o botão, eu falei: “Esse japonês está tirando nós, ele não, isso aí não vai sair, mano, esse japonês não vai saber o bagulho”. O que ele tava fazendo? Ele estava botando um chimbal, marcando a métrica da nossa música, então: “Tenho em minhas mão um manifesto, que me salva de afundo nesse mundo”, ele: “Tss, tss”, aqui ele está atacando, aqui ele vai atacar: “Nisso tudo eu piso e não tropeço, aí ele: “Tss, tss, tss”, ia marcando. Meu, isso é muito rico, cara, porque ele, aí ele falou, aí ele fazia isso e via onde a gente atacava.
P/1 – Quando vocês falaram: “Meu, ele não vai chegar, o que ele está falando?”.
R – Aí ele marcava pra nós, aí a gente andava da Nove de Julho até a Cristiano Viana, a gente atravessava os Jardins e Pinheiros inteiro pra ir na casa do Akira, porque é o que tinha de condução. Aí a gente falou: “Não vai sair, negão”, aí quando a gente chega na casa do Akira um dia, ele falou: “Ó, armei aqui”, quando a gente ouve os bumbos e as caixas, velho, e canta direitinho em cima, foi muito pesado, porque tava a música ali: “Tac, tu, tá, tu, tu”, uma pancadaria e a gente cantando em cima, era uma música que tinha acabado de nascer ali, as músicas, né? A gente sempre chamava o Akira de produtor, hoje eu sei que ele era da banda, lógico que ele era da banda, gente, que privilégio eu ter a chance de fazer essa correção. E a gente descobriu aí que o Skowa, que era do Sossega Leão, que meu irmão era fã, já estava com um outro trabalho na área de black e era amigão do Akira e trocavam informações de programação de bateria, de teclado, e o Akira produziu essa primeira fita e a gente tenta colocar isso no palco.
P/1 – Do Credo?
R – Do Credo, aí a gente vai pra Zoster com o show. Aí chega lá, aí o técnico: “Que isso aí? Toca disco em cima do palco? Mas cadê os instrumentos?”, “Não tem”, “O que é?”, “É isso aqui”, é uma bateria eletrônica, né, aquela 606, que era muito usada em outros estilos de rap, que era muito fininha assim, não era pá, igual a 707, 727, se não me falha a memória. Então o cara fica olhando e não consegue tirar o som, não sai, nem o scrach, fazia humm, sabe, dava um Rambo, que eles chamam, e a gente ficou perdido nisso, a gente não conseguiu tocar três músicas no nosso primeiro show. Aí a gente sentou no palco: “Pô, gente, a gente está tentando”.
P/1 – Lá no Cais?
R – Não, na Zoster, Zoster, foi a Nação Zulu inteira, que a gente já tinha conhecido em 84, 85 no Cais, e eles estavam começando na São Bento, foi aí que eles falam. Era engraçado porque, assim, aí é uma questão agora de trocar muita informação com quem era da época, porque algumas coisas você não tem absoluta certeza, mas nessa época todo mundo, não, isso eu tenho certeza, nessa época todo mundo queria ter, como nos Estados Unidos, todo mundo queria ter tudo, porque... Uma coisa que eu não poderia ter deixado de falar, em 83, 84, chega um filme aqui chamado “Beat street”, batida de rua, antes do “Beat street” a gente teve muita informação isolada, tipo, “Hangin’ Out”, do Chic, no Fantástico, que aparecia um moleque se quebrando: “Como ele faz aquilo?”, aí a gente ia pra frente do espelho, aí a gente ia pra frente do espelho fazer, né? Aí aparecia o Lionel Richie com dois garotinhos, o Lionel Richie era pop, mas ele usa o rap, o break, que já tava, então o “Beat street”, antes, teve dois filmes: “Wild style” e o “Beat street”, trazendo o que a gente veio a saber que eram os elementos que faziam a cultura, mas no “Beat street” fica divididinho, grafite, o break, o DJ e o rapper. Aí a gente saca: “É isso”, a gente sacou, então todo mundo queria ser igual o do filme, pô, todo mundo queria ter o grafiteiro, todo mundo queria ter o seu DJ, todo mundo queria ter o seu rapper e os dançarinos. O que aparece primeiro? Que hoje, numa percepção minha, eu acho que é o seguinte, a gente, os caras aprenderam a dançar break primeiro, aqui no Brasil, porque é o que eles precisavam, o corpo, não é? Porque, se fosse grafiteiro, precisa da tinta, precisa de um dinheiro, pro DJ então nem pensar, porque toca discos era uma, tem no livro: “Hip hop, cultura de rua”, tem fotos do DJ Hum e de outros DJs tocando com, a gente chamava de madeirinha, que é aqueles Gradiente que balançava e tal, nada como depois das Mk2 200, que está aí pra todo mundo. Então, aí deu esse show errado, não foi isso?
P/1 – A gente parou no primeiro show, que vocês fizeram lá na Zoster.
R – Rua Iguatemi.
P/1 – Conta o que que era o Zoster, dá uma situada, assim, dá uma descrevida.
R – Zoster era uma casa noturna que tinha um espaço de som ao vivo e uma semana antes tinha...
P/1 – Que ficava?
R – Ficava na Iguatemi, hoje é um prédio, era uma casona grande, foi transformada em casa noturna, com essa proposta de ter som ao vivo e tal, e de final de semana era uma casa comum, as casas na época tinham essa característica de abarcar o máximo de tendências possível. Então tinha um palco pra apresentação ao vivo, eu lembro que foi marcante e, inclusive porque o Akira tava envolvido nos dois momentos, é que uma semana antes tinha toca o Arto Lindsay, o Akira S e o Alex Antunes lá, numa espécie de retrospectiva do Garotas que erraram, do Akira S e as garotas que erraram, e logo depois a gente no mesmo palco. Foi, na época foi grandioso.
P/1 – Como que foi esse primeiro show lá?
R – Então, a gente tocou três músicas só, por questões técnicas intransponíveis, porque, como tudo do rap era novidade, e até hoje tem técnico de som que bate a cabeça pra sonorizar rap, só que tem rap hoje que já tem acústica e tal. E na época é o que eu te falei, o Akira produzia as coisas, as baterias na bateria eletrônica, todos os beats e tal, tudo o que a gente tinha que cantar a gente cantava em cima mesmo, ensaiava certinho. Aqui entra aquela pergunta que você fez, tipo, quem cantava, então eu era o MC, o rapper, e ele era o DJ, só que ele passa a cantar comigo, porque a gente opta na época por uma proposta baseada em Public Enemy, que era, mais ou menos influenciava, que era, chamava, a gente brincou de dar o nome de hardcore rap, porque era muito rápido, era não sei quantas BPM por minuto, então pra ter fôlego tinha que ter duas vozes. Hoje eu não consigo cantar sozinho, eu preciso diminuir a BPM ou tem que ter outra voz, as músicas que a gente cantava na época, tanto pela idade e também pela respiração, se você cantar rap todo dia, você aprende a respirar, né? Se você pega o Cultura de Rua, que é o disco que a gente grava posteriormente, você vê um monte de respiro errado, num disco gravado, porque era muito, era muito orgânico, a gente era muito, era de rua, não tinha técnica. Bom, enfim, mas esse primeiro show foi isso, mas a gente se sentiu bem, porque, quando a Nação Zulu vai e a gente, e toma forma, então a gente, O Credo passa a ser da Nação Zulu. Então, assim, Nação Zulu tinha os break dancers, como, voltando na questão do “Beat street”, todo mundo queria ser igual ao filme, então todo mundo queria seu grafiteiro e tal, queria ter o seu grafiteiro e ter o break dancer e ter o DJ e ter o MC. Então a Nação Zulu, ela pega e pega O Credo pra ser os rappers deles, o Kay One e companhia eram os grafiteiros, bom, eles já eram os dançarinos, tem o Cassius, que é o DJ, mas aí eles começam a formar DJs também, na própria equipe. Então isso é muito importante na narrativa histórica do hip hop em São Paulo, e talvez no Brasil, que é que as equipes de break é que dão a luz aos outros elementos, porque o primeiro elemento a ser conquistado e dominado é o break, é a dança, porque o cara só precisava do corpo. Depois é que a gente foi tomando contato com os outros elementos e inclusive pra adquirir técnica, o grafite pra fazer aquelas letras gordas e coloridas e tal, os caras não aprenderam de um dia pro outro, eles foram, foi rápido, jovem aprende rápido, mas não foi imediato. E também o break, ele era, por exemplo, na época antes da Nação Zulu, teve algumas manifestações de dança, mas, por exemplo, tinha o Eletric Boogies, que é esse Ricardo que vai, esse garoto que vai pros Estados Unidos e aprende lá o break e traz pra cá, e aí sim, ele é a primeira equipe de break, mas isso era, foi um fenômeno isolado, porque ela não grudou com nada, não, né? Quando eu estou construindo essa história na minha cabeça, eu vejo assim, tudo era bônus beat, não tinha beat original, então, se você cantava em cima, é uma coisa que progrediu, que evoluiu, na minha percepção, ou que se deu outra solução, que impera até hoje, ninguém canta mais em bônus beat, a não ser pra fazer uma versão, hoje tem. Então o que prevaleceu? Prevaleceu as batidas originais, feitas em cima da métrica da narrativa do português.
P/1 – Você tava falando, você enveredou por aí, a gente estava no show, aí depois do show, aí parou o show.
R – Entro na equipe, aí dou a importância das equipes na São Bento, dando a luz aos outros elementos.
P/1 – Por que na São Bento? O que estava acontecendo lá?
R – Certo, então, a gente encontra os caras, encontra Nação Zulu e o DJ Hum, ele começa a ir também no Cais e a gente se encontra lá e, depois desse, a gente já ia no Cais em 84, 85, já conhecia eles, aí, mas a gente conheceu eles no Cais, aí que a gente monta O Credo e começa a fazer apresentações. Isso acontece muito rápido e muito em várias camadas, em vários níveis, eu precisava construir isso melhor, mas, assim, basicamente é isso, as equipes de baile, através da informação do “Beat street”, criam suas posses, suas crews, que chamava na época, seus, cada um com seus quatro elementos, sob um label só, um nome só, Nação Zulu, a Black Spin, Street Warriors, a Crazy Crew etc.
P/1 – E vocês?
R – A gente era da Nação Zulu, era os rappers da Nação Zulu, mas a gente era O Credo, não é?
P/1 – Dentro do Nação Zulu.
R – Da Nação Zulu, que era de break.
P/1 – E a São Bento?
R – Então, alguns, o Ricardo, do Eletric Boogies, quando chega, volta pro Brasil, ele monta a Eletric Boogies, e aí eles começam a se apresentar na região de São Caetano e tal. Ele começou, passando pelo centro, ele viu o SP Cia, do Nelson Triunfo, dançando, mas o Nelson, ele trouxe, ele tirou o que é a dança funk de dentro do salão e foi pra rua, era legal isso, muito bacana isso. O salão tinha uma estética e uma dança e uma, características que ele transferiu pra rua, isso é muito legal, na região da 24 de Maio e do teatro e tal, é o SP Cia, né? E quando o Ricardo entra em contato com eles é que passa essas técnicas, pelo menos é a narrativa de quem acompanhou o Funk Cia e o Eletric Boogie, eu não acompanhei, não é, eu pude ver que isso se evidenciava, porque, se o cara, quem tinha maior domínio técnico, né? A SP Cia tinha domínio, pouco domínio, mas, como eles estavam sempre andando, a produção da Globo viu eles e colocou eles na abertura do Partido Alto, né, que se limitava a o quê? O que depois veio ser chamado de, que é o robô que é a imitação do robô e tal, que eu sempre confundo o nome, é popping, locking, tem essas divisões todas, mas até quero corrigir isso depois, que pra mim é importante. Mas não é o break, o footwork, que faz no chão, não era isso, não tinha esse domínio, tinha de alguns elementos, as equipes vão ficar verdadeiramente reconhecidas que dominam a técnica do break na São Bento, que era treino todo dia e tal. Os caras começaram a fazer coisas iguais aos americanos, no caso, por exemplo, do André, do Alan Beat, por exemplo, era bem melhor do que os americanos, porque ele tinha a ginástica olímpica e a capoeira a favor dele, sabe, então, nossa, o cara fazia, rodava horas de cabeça, e o Fantastic Chic era uma coisa linda e de qualidade, sabe? A gente não era, como a gente era acusado de estar imitando a cultura do americano, quando a gente vê aquela qualidade florescer ali perto, aquilo deu, empoderou, deu força pra gente, porque a gente não era mais imitação, a gente estava tão bom quanto ou talvez melhor, né? E quando o rap começa a sair, a batida começa a sair original, sem precisar cantar, meu, aí a gente começa a ver que a gente tava melhor, que a gente tava evoluindo, não é? Então o que acontece antes da São Bento e o que acontece principalmente antes do disco “Hip hop, cultura de rua”, são essas coisas isoladas, que não grudam uma na outra e não dá uma consistência, elas vão sofrendo esses picos de popularidade, depois volta, pico e volta, pico e volta, tipo o Black Júnior, tipo o Pepeu, não é? Com todo o respeito e consideração que eu tenho por eles e o que eles significaram, consistência, se você fosse tratar uma linha, grudar uma linha em algum momento do tempo e puxar até agora, a única que não quebrou foi essa que começa na São Bento, que ali foi ladeira a abaixo. Isso o Marcelo Black Spin, ele fala, ele deixa muito claro num documentário, ele fala: “Aqui a gente tava na São Bento e aqui na São Bento a gente desenvolveu o break, o rap, o grafite, tal, então as pessoas se encontravam, mas depois do “Cultura de rua” tudo mudou, a dimensão mudou, o hip hop foi pro mundo, não é, é isso que ele fala. Qual que é o grande detalhe, que é...
P/1 – Vamos voltar, porque você está falando já de uma coisa, pressupondo, vamos organizar, vamos voltar. Vocês estavam naquele momento, nesse cenário, tinha essas equipes.
R – Grupo, grupo é melhor, porque você vai porque a palavra equipe vai pesar se a gente continuar usando.
P/1 – Grupo.
R – Grupo de break, ou gangue.
P/1 – Como é que vocês se encontravam?
R – Na São Bento.
P/1 – Nessa casa?
R – Então, assim, a gente, no Cais a gente é convidado pra ir pra São Bento, a São Bento estava no começo, as equipes estavam tomando corpo, não é? A São Bento surge quando um dos dançarinos que aprendeu o break vai treinar na Tiradentes, né?
P/1 – Mas quando você fala Tiradentes, quando você fala São Bento, é na rua?
R – Não, na estação de metrô, por causa do piso, isso é uma característica muito louca, o piso, então o João Break, ele vai treinar lá, aí o pessoal do metrô fala: “Você não pode ficar dançando aqui”, aí ele pega e vai pra São Bento. Lá na São Bento, inclusive...
P/1 – No metrô?
R – No metrô São Bento, ali embaixo tudo lisinho, perfeito pra dançar, mas os punks estão lá, então há um começo de entrevero, aí se conversa e tal, né, aí o punk acaba ficando em cima, que eles não precisavam lá de baixo, e o break embaixo. E eu acho, a perspectiva que tem é que esse primeiro momento um se reconheceu no outro, de ser da periferia, de estar protestando contra o sistema opressor etc., tinha todo um contexto político muito parecido, com linguagens diferentes, parece que ficou ali, ó, todo mundo é da vila, todo mundo é da periferia.
P/1 – Mas você ia como espectador? Como é que você entrou em contato?
R – Então, quando a gente começa a cantar e começa a tomar contato, depois do “Beat street” a gente já vai pra São Bento, porque antes é o que eu te falei, a informação vinha atrás de artistas pop etc., que usavam, alguns elementos do break, ora mostrava um grafite, tudo, e aquilo ia chegando fragmentado, depois do “Beat street” organiza isso pra gente, hip hop, quatro elementos e pá. Aí a gente já estava na São Bento, a gente já tava lá, indo, dançando.
P/1 – Mas no metrô?
R – No metrô São Bento.
P/1 – E aí e o metrô?
R – O metrô às vezes perturbava, falava: “Não, fica mais pro lado e tal”, e ajeitava lá, tinha umas encheções de saco, né? Mas entre a gente frequentar a São Bento e, os rappers começam a participar da vida da São Bento batendo na lata, na lata do lixo, faz o beat ali e vai cantando ali, e aí começa a dividir essa arena com os breakers, com os dançarinos, né? E aí não é briga, mas fica assim: “Pô, a gente está aqui, está tirando uma rinha, você fica batendo na lata aí, cantando, aí tira a atenção daqui, pô, vamos fazer”. E aí o Blaw, o JR Blaw, que é um cara que, dentro de versões e da narrativa do hip hop, pouca gente lembra dele, mas é um cara essencial pra o que o hip hop se tornou, porque ele vira pra mim e fala assim: “Ô, Ru”, ele tinha a língua presa, ele não está com a gente mais, aí ele falava assim: “Ru, é o seguinte, não vamos ficar mais na São Bento, o crew vai cantar, como a gente vai cantar, vamos tudo pra Roosevelt”. A Roosevelt virou outra, impressionante, porque quando a Roosevelt se fortifica, inclusive o Mano Brown fala que quem fundou a Roosevelt foi eu, ele e o Brown, e que vai pra Roosevelt, os rappers vão pra Roosevelt, parece que todo quer dizer que foi uma ruptura, foi, nada, zoeira de moleque.
P/1 – Mas volta lá, você tava falando dessa batida, mano, daí ele chegou, esse figura.
R – O JR, que não podia mais cantar enquanto tinhas as batalhas, aí ele falou: “Praça não falta”, mas o Jack me lembrou uma coisa muito importante, o Blaw queria ver o hip hop em todas as praças, não só na São Bento, era um visionário. Era um cara muito inteligente, teve músicas gravadas pela Marina Lima, por outros grupos que já tinham projeção na época, que nem uma banda chamada Nômade, que gravou quatro letras, ele fala tudo em quatro letras, o moleque era muito especial, esse Blaw, era amigo, e ele transitava. Isso eu quero, acho que é legal, assim, de começar isso numa narrativa fresca, assim, porque isso era rua, isso era rua, nós todos na São Bento éramos a rua, a gente era.
P/1 – Isso acontecia de manhã, de tarde, fim de semana?
R – Sábado de manhã.
P/1 – Todo sábado?
R – É, de manhã, ia todo mundo pra São Bento, era certo que ia tá lá o Thaíde, DJ Hum, Jack, Ninja, Street Warriors inteiro, Nação Zulu e era louco.
P/1 – E a população?
R – Circulava, via, falava: “Olha, que bonito os caras rodando”, moinho de vento, eles iam se aperfeiçoando cada vez, a estética ia ficando cada vez mais bonita, tava lindo aquilo, era lindo aquilo. E nessa época não tinha, por exemplo, o que hoje é tido como algum tipo de protagonismo inicial aí, não tem, porque só tinha as equipes, as gangues, que depois viraram equipes, que depois viraram grupo de break, tal, e que depois resultaram nos outros elementos. Então, assim, é nítido pra mim que a cultura hip hop, ela surge na São Bento, por um motivo muito simples, é quando os quatro elementos se unem. Se eu perguntar pra qualquer um militante, atuante, querido ou simpatizante da cultura hip hop o que é o hip hop, ele vai responder: “Hip hop é uma cultura que tem quatro elementos, rap, DJ, grafite e dança”. O que eu posso chamar de hip hop antes disso? Eu posso chamar alguma coisa que faz parte de um todo, do todo? Não, ele é uma parte, ele está na fórmula, a pinga só vira caipirinha se você misturar ela com limão, senão ela é pinga, ela é limão, ela é açúcar, aí ajunta, é caipirinha, aí juntou. Então por isso que existe uma narrativa predominante da história do hip hop que diz que o hip hop começa na 24 de Maio, lá começou funk, lá se dançava funk, depois é que se dançou algum tipo de break, né? Pós “Beat street”, em 85, 84, 85, pós a exibição do filme, é que se consolida os quatro elementos na São Bento, então a cultura hip hop, pra mim é muito claro que ela começa na São Bento, e não em nenhum outro lugar, nenhum outro marco. É importante também a gente falar o seguinte, que a cultura hip hop, a nossa perspectiva de São Paulo é que a gente tava, eram os pioneiros do Brasil, porque não tinha registro de nada, não era internet, que você abria e sabia o que tava acontecendo em todo lugar do mundo. Hoje, através da rede, você vê que os caras começaram também sempre pós “Beat street”, em todo lugar, todo mundo foi seduzido por aquilo, como foi seduzido por “Brilhantina”, em algum momento, “Embalos de sábado à noite” no outro momento, não é isso?
P/1 – Que ano que é esse que começa na São Bento?
R – É por aí, 84, 85.
P/1 – E fica até quando?
R – Teve várias idas e vindas, eu não consigo te dizer isso assim de pronto, mas teve várias idas e vindas, eu me afasto em 90 definitivamente da cultura e retomo depois, diante desse cenário.
P/1 – Mas da São Bento você se afasta quando?
R – Noventa, 89, 90.
P/1 – Mas aí a Roosevelt começou a ser um outro espaço, é isso?
R – Começou outro espaço que eu fundei, mas não protagonizei, eu deixei lá, eu fui umas três, quatro vezes pra Roosevelt, depois não fui mais, e lá na Roosevelt cresceu o rap, teve o Sindicato Negro.
P/1 – Mas aí ele falou assim: “Tem muita praça, vamos pra Roosevelt”, aí o que vocês fizeram?
R – Nós fomos pra Roosevelt e fundamos a Roosevelt.
P/1 – Quem foi?
R – Fui eu, foi o Brown e vários. Qual que é o problema disso? É que era um monte de neguinho, entendeu, subiu aquela renca pra lá, a gente conhece dos caras mais velhos, eu, o Brown era mais novo, o Brown, o do Racionais, ele era mais novo, o Brown tem 42, a gente está na faixa dos 46, 47 já. Então ele era um dos menininhos que estava com a gente, subindo pra coisa, mas na memória dele ele lembra que ele foi pra Roosevelt com a gente, que ele era, ele cantava rap.
P/1 – E o Brown, você...
R – Eu, o Brown, o Blaw, né, JR Blaw, e o Brown, e mais, e outros rappers, né?
P/1 – E que dia que vocês iam pra lá?
R – Na Roosevelt também era de sábado, também era de sábado, mas à tarde.
P/1 – Mas vocês iam de manhã pra São Bento e à tarde pra Roosevelt?
R – Então, eu não lembro dessa rotina, não, essa rotina apagou, eu não lembro direito, mas eu lembro dessa, que a divisão foi suave e que a Roosevelt ficou pro rap e a São bento ficou pro break.
P/1 – Como é que era a Roosevelt nesse momento?
R – Eram dois pavimentos abandonados, que depois virou um supermercado e tal, a gente ficava por ali, o show na Roosevelt era horrível, porque subia dançarino pra Roosevelt também, não ficou repartido, ficou assim, predominância, mas tinha rapper e tinha skatista também, que começa a ficar. O skatista da minha época curtia Grinders, que era, depois o skate, hoje a trilha sonora é rap, a grande maioria é rap, eu não sei, pode estar por aí, né, quando o rap cruza o skate. Dizem, alguns frequentadores dizem que o Chorão e o pessoal do Charlie Brown andava de skate da Roosevelt, então tem essa mística aí, eu não vi isso, eu não tava lá.
P/1 – Quem que era o público que ia na Roosevelt, tinha público?
R – Tinha público, era quem gostava de rap, o rap começou. Eu lembro que na São Bento a gente trocava, por exemplo, o Doctor MC’s, eu lembro como hoje, que como a gente já conseguia dividir as métricas seguindo o que seria uma composição de uma poesia pra cantar, eles queriam saber como é que era aquela divisão. Aí a gente ficava fazendo como se fosse uma oficina, por exemplo, entreterá, a gente fazia as quebras ou os alongamentos das palavras, a gente ficava ali: “Não, aqui você quebra aqui, ó, respira aqui”, então ficava trocando essa, quem começou um pouco antes, já tinha superado aquilo, ficava trocando com o pessoal mais novo.
P/1 – E aí quando vem vocês gravarem o primeiro disco?
R – Então, isso é uma história louca.
P/1 – Quer começar na próxima?
R – Quero, eu quero sim, porque aí ficava suave, né?
P/1 – Tá bom.
FINAL DA ENTREVISTARecolher