Os quatro filhos de MARCIANO
Não é fácil ser filho de militar. Não é mesmo. As ausências de papai por causa da escala de serviço, e o constante convívio com o risco de vida, muito nos preocupava. Entretanto, o que mais amedrontava a nossa mãe era o dano físico ou a morte de papai. Nós sa...Continuar leitura
Os quatro filhos de MARCIANO
Não é fácil ser filho de militar. Não é mesmo. As ausências de papai por causa da escala de serviço, e o constante convívio com o risco de vida, muito nos preocupava. Entretanto, o que mais amedrontava a nossa mãe era o dano físico ou a morte de papai. Nós sabíamos que papai estava sujeito a preceitos rígidos disciplinares e sabíamos também que ele procurava obedecer aos princípios hierárquicos que condicionam sua vida profissional.
Quando papai foi transferido para servir na Ilha Grande, mamãe ficou encantada, pois a beleza da ilha era impressionante. Todavia, o que entristecia mamãe era a relutância por parte de alguns moradores em conversar com ela por ser esposa de um dos militares que davam serviço no presídio.
Quando meus pais se mudaram para a Ilha Grande, mamãe estava grávida de mim e meu irmão mais velho estava com um ano de idade. Eu nasci na Vila do Abraão e o presídio onde papai fora destacado ficava na Vila de Dois Rios. Nossa casa era simples e pertencia ao Governo.
Durante as noites em que papai estava de serviço, mamãe contava às histórias que ela ouvia sobre o presídio, a maioria contada pelas outras mulheres, suas vizinhas, que nasceram ou moravam há muito tempo na Ilha e que começaram a ver mamãe já com o olhar empático. Mamãe contava que o presídio recebia presos políticos contrários ao regime militar e que antes de ser presídio era um hospital chamado Lazareto e que aceitava estrangeiros enfermos que aportavam no cais da Ilha Grande. Depois esse hospital foi transformado em presídio e passou a receber, não os doentes de quarentena, mas os que eram acusados, com justiça ou não, de conspirarem contra o Governo. Mais tarde esses presos foram transferidos para a Colônia Penal de Dois Rios, que passou a se chamar Instituto Penal Cândido Mendes. Contudo eram os nomes de “O Caldeirão do Diabo” e “Masmorra verde” que mais nos impressionavam.
Mamãe nos contava - e isso ela ouviu de papai - que para os internos era humanamente impossível pensar em fugir da ilha, porque os riscos eram grandes, e além do mais nenhum militar de serviço no presídio iria querer em sua Caderneta a anotação da fuga de um prisioneiro. Por isso é que havia muitos cães e guardas sempre atentos. Além disso, como os internos enfrentariam os perigos da mata fechada e do mar infestado por tubarões?
Nas noites mais quentes, mamãe deixava que eu e o meu irmão brincássemos com as outras crianças. Era muito bom brincar e tomar banho nas águas cristalinas da Praia Preta. Depois ao voltarmos para a areia, ouvíamos as narrativas das senhoras sobre o que acontecia no presídio. Elas contavam dos lamentos das esposas, mães, companheiras e irmãs que desciam da barca e se dirigiam para serem revistadas, e assim, ingressarem no presídio para abraçarem seus familiares. As mulheres que vinham para as visitas diziam que muitos presos eram jogados em cela fria, sem refeição digna. Em lágrimas, confidenciavam que seus maridos estavam cativos e desamparados. Algumas acrescentavam que muitos eram adoecidos pelos insetos.
Em suas folgas papai nos levava a longos passeios, sempre nos ensinando algo sobre a ilha. Ele falava sobre o Aqueduto, cujas águas abasteciam o Lazareto e da Cachoeira dos Escravos. Papai contava que a cachoeira recebeu esse nome por causa dos escravos que trabalhavam no cultivo do café e que eram amarrados nas pedras da cachoeira para que pudessem se banhar.
Depois do jantar, rezávamos o terço com a minha avó e eu agradecia a Deus, em silêncio, por mamãe ter nascido livre. Em seguida eu beijava o rosto muito branco de papai e olhava bem dentro dos seus olhos castanhos e neles eu via bondade e mansidão. Sim, meu pai era um homem bom!
Depois que cumpriu serviço na Ilha Grande, papai foi transferido para o quartel da Invernada em Olaria. Nessa época nós morávamos em Pilares. Meu irmão mais velho e eu estudávamos na Escola Municipal Alagoas; o irmão do meio e o caçula estudavam em uma escolinha particular, mais próxima da nossa casa. Assim que terminavam as aulas, eu e o meu irmão íamos para a Igreja São Benedito para ouvirmos bem de pertinho o badalar dos sinos às doze horas. Mamãe não deixava que nós atravessássemos a Av. Suburbana sozinhos, por isso pedia sempre que um dos Inspetores de alunos nos colocasse do outro lado da calçada. Ela tinha medo, porque o quarto filho quase morreu quando foi atropelado pelo bonde linha Cascadura, que saía do Largo de São Francisco para Madureira, via Jacaré, passando pelos bairros da Av. Suburbana. Esse meu irmão, aos dois anos, aproveitou o descuido dos familiares; abriu a porta da sala e foi para o meio da rua. Mamãe, ao ser avisada por vizinhos do acidente, desmaiou. O motorneiro, com as mãos na cabeça, olhava para o corpo caído entre os trilhos.
Triste mesmo foi ver meu pai chegar do quartel às pressas, chorando e gritando o nome do filho. Era um choro tão profundo que doía na alma de quem ouvia. Essa foi a primeira vez que eu vi meu pai chorando. A segunda foi quando o barco de pesca em que nos estávamos virou na praia de Ramos e meu pai não conseguia localizar o meu irmão do meio. Ele mergulhou três vezes e quando o pegou, as lágrimas e os soluços tomavam conta do corpo de papai. Meu irmão, abraçado ao meu pai e já refeito do susto dizia: “Eu estou bem papai. Eu estou bem”. Durante todo o resto do dia meu pai não tirou o meu irmão do colo. Beijava-o e abraçava-o sempre dizendo a mesma frase para ele e para todos nós: “Papai ama você. Papai ama vocês”. Esse irmão era o que mais se parecia com o meu pai.
Na cabeça do meu pai eu era tão menino quanto meus três irmãos e nos fins de semana ele nos levava para assistirmos os jogos de futebol da equipe da Invernada. Papai nos sentava em um dos troncos existentes à volta do campo, e durante toda a partida eu pensava de qual árvore teria pertencido aquele tronco.
Os companheiros de farda de papai eram sempre muito atenciosos com as crianças e com as mulheres presentes. Eles gostavam de ver meu irmão mais velho correndo desajeitado atrás da bola, e nos intervalos do jogo, diziam: “MARCIANO, coloca a tua menina no gol para ver se muda esse placar a nosso favor”. Eles diziam isso, porque nas peladas da nossa rua, meu pai me colocava no gol e gritava: “Fecha e protege! Fecha e protege!” Era para fechar o gol, e proteger o tórax.
Papai contava que a Invernada era uma polícia de elite e que a bandidagem tinha medo dela. Como tinha do BOPE; da CORE; e, da RONaC. Papai falava com muito orgulho que pertencia a Polícia Militar do Distrito Federal. Lembro que certa vez papai chegou acabrunhado e mamãe o indagou sobre o que havia acontecido. Ele nada comentou. No dia seguinte, antes de irmos para a igreja ele falou para mim e para os meus irmãos: “Não vale a pena ser bandido. Nunca. Lembrem-se disso”. Depois jogou o jornal em cima da mesinha de centro e se dirigiu para a porta da sala. Na manchete estava escrito: “Treze balas de metralhadora encerraram a existência do mais atrevido e perigoso bandido que marcou época nos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, José Miranda Rosa, o tristemente famoso \\\\\\\"Mineirinho\\\\\\\", que foi encontrado morto, na manhã de ontem, pela reportagem de O Dia e A Notícia. O corpo foi encontrado à margem da estrada Grajaú- Jacarepaguá, à beira de um grotão, em decúbito dorsal, no lugar chamado \\\\\\\"Pedra do Gambá\\\\\\\", no morro da Cachoeira Grande, com a face esquerda encoberta pela mão do mesmo lado (...)”. Durante a missa, minha cabeça não parava de pensar no que havia acontecido com o “Mineirinho”, entretanto, o que mais ficou martelando minha cabeça foram às palavras “em decúbito dorsal”.
Havia uma mangueira bem no fundo do nosso quintal e eu vivia abraçada ao seu tronco, com o rosto colado nele. Eu ficava debaixo da mangueira e aspirava o perfume das suas flores. Eu amava a beleza da sua copa, os primores dos seus frutos, a robustez do seu tronco. A sua coloração era variada: verde, amarelo, laranja, vermelho e roseado. Lá em casa todos nós esperávamos pelos seus frutos. Vovó dizia que era excelente alimentação para a criançada. E dizia também que era fruta suculenta para a mulher menstruada e muito mais saborosa para as que estavam grávidas e para as que entravam na menopausa. Mamãe olhava para o meu pai de rabo de olho e ele lhe fazia um sinal que apenas os dois sabiam o significado. Minha avó continuava com sua explicação, acrescentando que os homens também se beneficiavam, porque além da riqueza de suas vitaminas, seus frutos eram saboreados pelos homens em pleno vigor e também pelos varões que entravam na antropausa. Nessa hora minha mãe fazia uma cara feia balançando a cabeça e dizendo algo entre os dentes. Papai soltava uma gargalhada gostosa e corria para fazer cócegas na minha mãe. Eu saía de fininho e corria para a minha mangueira. Abraçada em seu tronco eu sonhava com um príncipe encantado, que me abraçaria, me olharia e me amaria como meu pai amava a minha mãe.
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