Projeto Conte Sua História - SESC
Depoimento de Sophia Bisilliat
Entrevistada por Priscila Leonel e Marcia Trezza
São Paulo, 19/12/2018
Código: PSC_HV27
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado por Fernanda Regina Ferreira
P/1 – Você pode falar pra gente o seu nome, onde você nasceu e a data, o ano.
R – Eu me chamo Sophia Bisilliat, nasci em São Paulo, 28 de março de 63.
P/1 – Então, eu queria que você contasse pra gente um pouquinho sobre a sua infância. Coisas que você lembra lá da primeira infância, antes de entrar na escola, quando vai… Sabe, nesse primeiro momento?
R – Antes de entrar na escola?
P/1 – Sim, se você lembrar de alguma coisa.
R – Nossa! Eu fazia parte de uma família muito… Minha mãe trabalhava muito, ela viajava muito e o meu pai era um cara um pouco… Se sentia um pouco amargurado, né? Eu era uma pessoa que estava ali, mas os filhos… Era uma família muito complicada porque tinha filho dele, filha dela, tudo meio solto por aí e eu era a filha dos dois. Então, tinha certa culpa de eu ser filha de pai e mãe que estavam ali. Cada um estava meio fragmentado e cada um meio jogado num canto, era uma família que realmente não foi muito preparada para ter filhos. Então, sofreram muitas consequências por isso. No decorrer, eu fui entendendo que família era aquela e fui sendo cobrada, assim, cruelmente pelos irmãos, por alguns irmãos, né? Tinha pouco contato com ela, porque ela viajava realmente muito, então ela cuidou pouco da gente, de mim, basicamente. E é isso. Aí depois, eu fui para a escola e na escola… Além disso, ela ainda era muito diferente, era estrangeira, era um parâmetro totalmente diferente de… Não se encaixava. Então, com certeza, eu também ia ser meio parecida. Então, ela me vestia de forma muito estranha, sempre de preto. Todas as roupas eram pretas e, logicamente, eu comecei a sofrer o maior
na escola, mas muito forte, muito forte. Eu era muito estrábica, totalmente estrábica, assim, tinha óculos… Acho que eu devia ter muitos graus. Então, eu usava tampão. Então foi uma infância dura, assim, de não ter muita lembrança boa. Foi uma infância meio difícil. Na escola também foi difícil e aí, com o tempo, eu falei: “Eu vou virar essa página”, eu me falei, eu falei para mim mesma. E, no decorrer, eu fui falando: “Vou virar”, e comecei a me associar com as pessoas… As melhores alunas. “Eu vou ficar amiga delas”, e aí, virei o jogo totalmente e me transformei na oradora da turma no final, na formatura. Foi bacana. Foi uma conquista para mim porque eu sofri demais. Eu tropeçava todo tempo, elas me chamavam de vampira porque sempre de preto e então, era difícil. Mas aí, começou a melhorar e aí, foi. Aí, eu fui embora, mas a família foi uma família complicada com irmãos de todos os lados e isso te abala, né?
P/2 – Fala o nome da sua mãe e do seu pai completos.
R – A minha mãe chama Maureen Bisilliat e o meu pai chama Jacques Bisilliat.
P/2 – Quantos irmãos, mesmo que de parte…
R – São dois da parte dele e uma da parte dela. A minha irmã da parte dela, ela, minha mãe quando ela tinha dois ou três anos, ela foi para os Estados Unidos, a minha mãe e meio que abandonou tudo, mas ela tinha um pai muito bacana e o pai, assim, assumiu totalmente. E aí, ela voltou, tipo, oito anos depois, sei lá quantos anos depois e aí, ela foi procurá-la quando já tinha eu, então ela também tem muita mágoa, assim. Então… E os meus irmãos também foram… A mãe deles era totalmente também despreparada e um foi criado num lugar, outro em outro, cada um… Aí, fica com eles agora, agora não quero… E era meio jogado, assim. E aí, quando vem na adolescência, o negócio estoura, estoura tudo de uma vez e fica tenso. Foi tenso.
P/2 – Tinha bastante diferença de idade, assim, de você…?
R – Eu sou a caçula, tem oito… Acho que a mais velha deve ter dez anos de diferença, oito, dez, seis, cinco, quatro, mais ou menos isso.
P/2 – E alguma vez assim, você perguntou para a sua mãe ou ela falou por quê que ela gostava de te vestir de preto? Chegou a falar alguma coisa?
R – Eu pedia para ela… Eu tinha reunião e ela eventualmente estava, eu sabia que ela ia, antes de ir para a escola, eu deixava um bilhete: “Por favor, vista tal roupa”, ela né, porque ela ia de Havaianas. Havaianas era… Ninguém usava Havaianas. Então, eu pedia para ela colocar uma roupa um pouquinho melhor, assim, porque senão… Ela por exemplo, um dia fez uma saia para uma festa junina, a saia, eu pisei na saia, ela desfez todinha (risos) e aí, fiquei com a saia toda desfeita, assim. Eu não sei porquê que ela vestia de… Ela achava bonito. Ela sempre foi uma pessoa muito de estética. A estética para ela era tudo. E isso é uma coisa que a gente… É a nossa grande diferença, assim. A visão dela é puramente estética e a minha é muito mais humana, é mais assim, eu vou… Eu até posso filmar várias coisas ou fazer um documentário e tudo, mas não me interessa muito se tá bonito, me interessa saber a história da pessoa. E ela não, os trabalhos dela… O mais forte assim, Xingu que ela ficou mais tempo era mais a beleza mesmo, a luz, a fotografia… Mas o índio em si era uma ferramenta para ela, entendeu? Era assim, no olhar dela, tudo, mas não é um trabalho antropológico, é um trabalho de estética visual.
P/2 – E brincadeiras antes de você se formar no primeiro grau, ensino fundamental, que você foi oradora, não foi?
R – É.
P/2 – Mas antes, ainda menor, ainda como criança, você brincava, tinha brincadeiras preferidas? Ou em casa, ou na escola?
R – Eu tinha uma amiga que era minha vizinha de porta, muito amiga dos meus pais e eu soube depois que é tão louco, né, mas minha mãe viajava tanto, a mãe dessa menina tinha uma coisa com o meu pai e eu fui meio filha deles, entendeu? Então, uma coisa que eu vim a saber muito depois. Ela era muito doce comigo, a mãe dela. E a gente era próxima de idade, eu e a filha dela. Ela tinha mais duas filhas. E ela tinha… Eu sempre passei ferias, fim de semana na casa de amigos, porque em casa, não tinha muito. Então, eu ia muito à casa dela, que ela tinha uma casa no Guarujá, ia na casa de uma funcionária que… Passava férias na casa de uma funcionária que trabalhava na minha casa e de uma professora da minha escola, que a minha mãe pedia para eu ficar com ela. Mas essa menina foi uma sorte porque eu ia muito para o Guarujá, onde ela tinha apartamento, aprendi a andar de bicicleta, então, de vez em quando, agora que eu só pedalo, eu aprendi a andar numa garagem e então, quando eu entro numa garagem, aquilo é uma lembrança boa. Quando eu vou estacionar numa garagem e dou uma volta na garagem, eu me lembro daquela época que eu aprendi. É uma lembrança boa. A gente brincava… Eu lembro do Topo Gigio que a gente brincava muito com ele, mas não muito… Lembro de uma coisa que eu fazia, acho que não é tão primeira infância, era uma brincadeira horrível, mas os meus pais tinham uma loja, eles encomendavam cestas indígenas e chegavam caixas enormes assim, aí a caixa ficava na frente de casa, eu me punha dentro, quando a pessoa passava, eu assustava. Era horrível (risos), dava um susto. Ai depois, vendia caramelo, vendia… Fazia caramelo e vendia na porta…
P/2 – Você sozinha, assim, fazia?
R – Eu não lembro quem estava comigo, mas eu lembro de acontecer isso.
P/2 – Você lembra de uma pessoa assim, que passou que foi mais marcante, que você assustou?
R – Ai, acho que um senhor de idade. Nossa, ele ficou bravo com razão, né, imagina! Que absurdo. E tinha um negocinho, então eu via quando estava chegando (risos), que horror! Mas aconteceu.
P/2 – E a última coisa, depois a Priscila vai continuar. O seu pai trabalhava com o quê?
R – Então, o meu pai é uma coisa muito louca porque o meu pai era um cara que eu não sabia muito o que ele fazia. Eu fui saber quando ele teve uma loja. Ai, ele estava mais feliz, porque ele não era uma pessoa muito feliz. Ele tinha uma loja de arte popular brasileira, então ele ia viajar pelo norte a busca de material, chegava com a Kombi abarrotada e aí ele estava feliz. Ele teve uma loja, ele trabalhava numa… Eu não sei, eu nunca soube. Meu pai sempre era um mistério. Ele sempre vivia muito… Eu até falei com a minha irmã outro dia, que ela falou: “Tal coisa tá errada, o papel…”, falei: “Pra mim não me importa, porque a forma que eu fui criada é tão diferente da sua”, o pai dela era todo preto no branco, o meu era todo cinza, assim, não tinha… Era assim, tudo ilegal. Então eu tinha que andar nessa ilegalidade, entendeu? Era uma coisa muito louca, eu só fui saber de… Mas só fui entender agora, assim. Mas era tudo muito por baixo do pano, era tudo meio estranho.
P/2 – Eles tiveram participação política também em algum momento?
R – Então, o meu pai… Eu vim saber bem depois desse trabalho aqui que ele tinha sido preso durante oito anos na França. Ele era moleque de tudo, ele tinha 16, 17 anos e ele resolveu lutar pela Resistência contra a França. Ele achou bacana, se juntou com mais três que tinham um avião, não sei direito e começaram a bombardear a França pelos alemães. E aquilo ele não falava, porque para ele, depois de um tempo ecoou aqui, né? E quando eu falei que eu ia trabalhar… Que eu tinha vontade de trabalhar em presídio, ele logo topou, ele achou legal. Ela não topou, ela achou que aquilo não ia ser legal, se assustou: “Que absurdo”, e aquilo não me importava porque eu ia fazer de qualquer maneira, não me importava se ela falasse ou não falasse. Mas ele era mais moderado, ele tinha mais uma… Ele falou: “Deixa, a vida é dela, ela faz”, e é isso.
P/1 – A gente queria voltar um pouquinho lá na escola, na sua relação com a escola, o quê que você lembra da escola, tanto do fundamental e a gente vai indo, pensando no fundamental I, II, matérias que você gostava, onde que você se achava nesse lugar.
R – A escola… Eu tinha uma escola que era pequena, era uma escola pequena e no começo era estranho para mim, tudo muito difícil. Mas eu resolvi ser assim, não era hiper inteligente, aquela pessoa que quando a pessoa fala, você já grava, já assimila, já… Não. Mas eu era esforçada, eu tinha que ser boa aluna, eu tinha que ser… Então, justamente, talvez, pelos meus irmãos serem muito conflitantes, eu queria ser a diferente. Eu queria ser uma pessoa que não desse trabalho e que não desse conflito, entendeu? Vamos tocando, vamos… Mas eu me esforçava muito, não era uma coisa assim, brilhante: “Nossa, que menina brilhante”, de jeito nenhum. Era uma coisa assim, esforçada. Esforçada e gostava de Educação Física, comecei a gostar de trabalhar com o corpo sempre, desde pequena, eu acho. E tinha uma escola que eu fazia uma vez por semana que era escola de artes, mas era uma escola, assim, foi muito legal para mim. Era uma mulher que abria… Ela tinha um ateliê e as pessoas chegavam lá e faziam o que queriam: argila… Mas era assim, era muito vanguarda, mesmo. Não tinha assim, caxias: “Aqui é aula disso…”, não, era uma loucura e, no final, a gente se vestia, tinham fantasias, tinham várias roupas, a gente se vestia e fazia o teatro. Eu chegava em casa toda pintada e tinha pipoca no final, isso era muito legal também. Mas era assim, era libertador. Era totalmente libertador. Ela chamava Paulina, era ruiva também, era bem ruiva, era bem loucona, assim, vanguarda para caramba! Naquela época, eu tinha sei lá, 70… Menos que isso, 68, perto da ditadura, então ela era uma pessoa muito… E foi muito bom pra mim. Ai, a escola foi indo, que eu fui me tornando uma pessoa caxias, bem assim, fazia as lições e queria ser boa aluna, queria… Eu acho que eu queria ser… A minha casa era tão difícil que eu queria ter um lugar onde eu me encaixava um pouco. Ai depois, eu fui… Era tão assim, tudo foi tão conflitante, que eu falei: “Ou eu me coloco no trilho, ou então, eu vou ficar sempre caindo como eu caía no começo. Ou eu firmo minha perna aqui ou então, eu vou ficar sempre tropeçando e batendo a cabeça”. E foi ai que eu segui… Percebi que tinha que ser de mim, ninguém ia chegar e falar: “Filhinha, vem aqui…”, não, “Me dê a mão”, não, não tinha. Então era assim: ou você vai você, ou então… E fui.
P/2 – Nesse caminho, teve algum professor, professora que te influenciou?
R – Tinha. Eu gostava muito de um professor de Matemática, o jeito dele ensinar era excelente, tanto que eu quis cursar Matemática, mas não tinha nada a ver, por causa dele. Ele era gay e era muito raro… Mas ele era demais. Ele chamava Clovis, foi uma referência assim. E tinha a Professora Neide, que era de Português eu acho que era onde eu passava as férias. Também era uma pessoa muito maternal. Ela percebia esse meu desamparo e ela me amparava.
P/ – Você ficava na casa dela, direto, nas férias?
R – Nas férias.
P/2 – Dormindo e tudo?
R – Sim. Era fora de São Paulo. E eu ficava muito assustada que a mãe dela tinha epilepsia, então ela caía de vez em quando e ficava… Aquilo me assustava. Mas lembro que eu li “O Meu Pé de Laranja Lima”, lá e marcou aquilo pra mim.
P/2 – Ela tinha filhos, assim, que vocês conviviam?
R – Não, ela não tinha filhos.
P/2 – E as amigas da escola, tinha essa parte do estudo que você ficou próxima, mas tinha assim, outras coisas que vocês faziam?
R – A gente se reunia para estudar, então era gostoso. Era gostoso depois que a gente foi sendo… Era o trio que era as boas alunas. Então, eu falei: ‘Poxa, consegui”, era gostoso, a gente ia na casa de uma… Eu sempre evitava de ir na minha casa, sempre ia na casa de uma ou de outra. E de uma eu fui bem amiga mesmo. E ai, eu ia no fim de semana. As pessoas foram me adotando, né, os pais foram percebendo que era uma coisa meio… E foram me adotando.
P/2 – E quando você estava em casa, já indo para a adolescência, você lembra de alguma história assim… Em casa ou na escola, sabe alguma situação que foi bastante importante?
R – Eu com 13 anos, com essa… Uma das amigas ai, ela fazia ballet e eu ia… Como eu ia na casa dela, eu ia junto com ela e assistia e aquilo me despertou. Aquilo, eu falei: “É isso que eu quero fazer”, e foi um super refúgio pra mim, então, eu ficava assim, a partir do momento que eu comecei a fazer… Eu sou assim, eu sempre sou muito intensa, se eu começo uma coisa, eu vou, mas eu mergulho total, assim. E comecei a fazer todo dia, todo dia de manhã, de tarde, de noite, ia na escola, voltava para o ensaio… E tareará… E aquilo foi muito bom pra mim porque era o meu refúgio. Eu não queria ficar na minha casa, a minha casa não era legal e, depois, começou a chegar um irmão daqui, um irmão dali, era um conflito, era uma briga, era uma coisa horrorosa e eu não queria estar nisso. Então… O meu irmão começou a pegar pesado em drogas e uma das funcionárias resolveu chamar a polícia, que era namorado dela, e tinha um tijolo de maconha no meu quarto. Um dia, eu estava na dança, aí veio a minha irmã e falou: “Olha, a polícia tá lá em casa”, não entendi nada. “Você vai ter que dar depoimento na…”, eu tinha 13 anos “Você vai ter que dar depoimento na delegacia”, eu não acreditei, né? E aí, começou minha vida de presídios e tal.
P/2 – Você chegou a ir na delegacia?
R – Cheguei.
P/2 – E como foi assim… Você acha importante registrar isso?
R – Hã?
P/2 – Faz parte da sua história…
R – Eu me lembro o vestido que eu estava, eu estava muito assustada. Era um subterrâneo, assim, e lembro que eu não tinha nada o que falar, o meu pai foi junto. Porque era o meu quarto, era por isso, então eu tinha que ir. Ela foi tão sacana, né, que… por quê que colocou no meu quarto, né? Enfim, mas fui. Me assustei, mas passou e tinham coisas que eu, assim… Isso é uma coisa que eu ficava meio passada, como para ela era muito difícil ela conseguir funcionários, não sei o que, uma funcionária e ela viajava muito, então era mais fácil ela manter a funcionária, independente do que acontecesse. Então isso pra mim, eu ficava realmente, uma coisa… Eu não acreditava naquilo. Como assim? Parece que um dos filhos de uma outra funcionária, parece que teve uma tentativa de abuso comigo e não foi mandada embora, né? Então, uma coisa muito…
P/2 – Ela não foi?
R – Não. E quem me falou isso foi ela, foi minha mãe, porque na adolescência, ela achou que eu precisava fazer terapia por causa disso. “Mas eu nem sabia disso, nem lembrava”. Enfim, coisas assim, que… Ai, um dia ela acabou se dando mal, porque a pessoa roubou tanto, roubou, roubou, roubou e ai, ela teve que mandar embora, né, ela mesma. Então, era assim, ela protelava aquele conforto que não era conforto, que era um mal estar também. Realmente, a minha infância foi uma coisa difícil, não gostaria de voltar, não teve assim: daria tudo para voltar a minha infância, não! Não tenho bons recuerdos.
P/2 – Os dois irmãos eram dois meninos?
R – Uma menina e um menino.
P/2 – Depois outra menina?
R – E outra menina, é.
P/2 – Mas você falou do ballet…
R – E ai, o ballet começou…
P/2 – Que idade assim, mais ou menos?
R – Treze. Eu comecei com 13 e dali, então, eu nunca mais parei com atividade física. Ai, eu me tornei uma bailarina profissional e dancei até 20 e tantos, ai fui para o teatro, do teatro, eu fui para o circo, comecei a migrar e ir sempre com o corpo em ativa e aquilo… O teatro já foi uma ferramenta para mim com esse trabalho aqui, né? E foi. Não tinha como não ser nas artes, né, porque a família é muito forte, né?
P/2 – Você lembra… Não sei se a primeira vez, mas uma apresentação assim, que foi… Que hoje você ainda traz na memória dançando? Ou a primeira vez que você se apresentou?
R – Outro dia, eu vi fotos e era bacana. Era um momento de glória, mesmo.
P/2 – Mas como você se sentiu assim, a primeira apresentação, por exemplo?
R – Ah, muito bem, né? Muito bem.
P/1 – Não ficou nervosa?
R – Não. Eu já me sentia super bem. E aí, mais ou menos, nessa idade também, o meu irmão namorava a filha do Zaragoza, da DPZ, né? Ela era muito parecida comigo, o cabelo… A gente tinha um cabelo muito grande, assim, todo frisado, assim. Ele quis começar a fazer umas fotos comigo. Aí eu entrei também para a propaganda, comecei a fazer propaganda, que foi muito bom pra mim, porque financeiramente foi ótimo porque os cachês eram muito altos. Naquela época, os cachês eram altíssimos e em um dia, você ganhava por dois meses. Era uma coisa…
P/2 – O pai da menina que quis fazer? O seu irmão namorava com?
R – Com a Inez e o Zaragoza quis fazer, filmar e me apresentou na agência, imagina, me apresentou na agência… Não tinha como não fazer.
P/2 – Mas ficava bom, pelo jeito, porque…
R – Era incrível! A primeira coisa que eu fiz foi lãs, era uma coisa de lá, eu tricotando… Eu acho que eu tenho isso, ainda. E o meu cabelo enorme… Era a Penélope, sabe, que tricota e tricota…? Era essa a história. E ai, eu era a Penélope. E ai, nossa, eu fiz muito filme. Garota Canarinho do McDonald’s, fiz muito. Até hoje, me chamam, mas eu não tenho muita paciência mais. Já foi.
P/2 – E você representava? Não era só imagem.
R – Então, ai eu comecei a me dar muito bem com a câmera. Eu percebia que aquilo não me constrangia nenhum pouco, era assim, um palco. Então, por isso você falou da dança, não, eu acho que era meu mesmo. Não é que eu fui aprendendo, não. Já era uma coisa que eu… Ascendia a luz, eu já… Oi (risos), já brilhava. Eu gostava.
P/2 – E teve alguma situação engraçada, assim?
R – De filme?
P/2 – É, nesse momento de gravar assim, porque pode acontecer…
R – Tiveram várias! Nossa, foram… Eu cheguei a ficar com pneumonia porque eu estava fazendo uma odalisca e a, era o ar condicionado e depois, as luzes e ficava… E ai, nossa, eu fiquei muito doente. Ah, tiveram coisas engraçadas. Eu fazia Us Top, aquele jeans e era um vidro assim, e eu ficava em cima assim, era pá, a câmera ficava embaixo, era como se eu tivesse flutuando. Teve uma outra que eu tive que fazer um salto para traz, ai eu comecei a usar o circo, a cama elástica. Ah, fiz muitos. Realmente, eu fiz muitos, muitos.
P/2 – A Us Top foi uma propaganda que ficou marcante.
R – Várias… Eu tenho alguns registrados. Como eu comecei bem, num lugar legal, eu sempre fui em lugares muito legais, então a TVC, eu fiz muitos na TVC com o Doddi, ah, todos os melhores diretores da época, eu passei por eles. Era legal, foi um momento bacana.
P/2 – E você sentia que era… Se relacionou com o teatro?
R – É, porque eu me dava muito bem com a câmera, então, de vez em quando, se eu pudesse improvisar, eu já improvisava. Sempre gostei muito de improvisar mais do que texto. Então, eu nunca poderia ter um TP aqui que eu já fico em pânico. Fico em pânico se tem um TP ou se tem um texto que você não pode errar a vírgula. Eu chego a ficar assim, congelada de pânico. Fiz novela e travou ai.
P/2 – Que novela?
R –Ah, fiz umas duas ou três novelas. Pouco. Eu fiz uma na Manchete, duas na SBT e uma participação na Globo, mas…
P/2 – E como é fazer novela? Só pra gente… A sua experiência de novela.
R – Fiz com a Bárbara Paz, quando ela lançou, a Bárbara Paz, a gente fez juntas. Eu era uma enfermeira horrível.
P/2 – Você era?
R – Nossa! Eu era péssima!
P/1 – Qual novela?
R – “Amor e Ódio”, acho.
P/1 – Ah! Pensei que era “Pérola Negra”.
R – Não. E eu nem sei se era isso, eu sei lá, eu sei que…
P/2 – E a sensação de estar gravando novela?
R – Era legal pelo glamour, assim. Mas eu tinha esse problema do texto. Eu não era uma boa atriz, não era. Não era. E, hoje em dia, a gente sabe o que a gente faz bem e o que a gente não faz bem, né? Dança também era legal, mas era travadinha. Eu tinha postura… A dança foi muito boa para postura para mim. Foi incrível! Para minha postura e para minha disciplina. É impressionante o que… Eu já sou uma pessoa já tendenciosa a ter disciplina, juntou com a dança, nossa! Assim, super disciplina, e postura, muito legal, muito legal. Então, eu agradeço sempre.
P/2 – E teatro?
R – Ai, veio a fase do teatro, né, Antunes e Romeu e Julieta a gente fez. Foi legal, foi uma experiência marcante…
P/2 – Por que foi marcante?
R – Porque o Antunes é…
P/2 – Mas conta um pouco pra gente registrar. Uma sensação, algum momento…
R – Eu tive… tiveram vários. A gente tinha dois elencos… Tinha o Antunes trabalhando a Giulia Gam no “Romeu e Julieta” e tinha um elenco paralelo trabalhando “Da Pedra do Reino”, do Suassuna. Eu era a onça Caetana e o Antunes queria que eu ficasse nua, só isso. Nua e toda pintada. Tinham as carteiras de escola, eu ficava andando em cima das carteiras. Então, como eu já tinha feito dança, eu andava muito leve e aquilo era um momento forte pra mim, imagina, você andar nua no meio de todo mundo, mas sempre tinha uma coisa dessas com o Antunes, né? Ele não era besta, pegava sempre as pessoas… Umas pessoas bacanas (risos). O Antunes era terrível…
P/2 – E você… Porque era um momento em que você estava interpretando, né?
R – É.
P/2 – Tem como descrever esse momento que você tinha que se disponibilizar e…?
R – Eu acho que assim, o estar em cena é muito legal, para mim, é muito… Eu tenho uma presença muito forte, mas o texto é uma coisa complicada para mim. Antes do Antunes, eu já cheguei a fazer outras peças, eu fiz vários musicais, ai vem “O Dilúvio”, que era uma mega produção e acho que foi depois do Antunes, eu não lembro. Era dança e canto, então pô, eu me dava super bem, mas eu achava que o texto ali pegava pra mim, não sei, não sei se era um bloqueio. Eu não sei o quê que é, se era um bloqueio, se eu não fui bem dirigida, não sei. Mas eu sei que eu tenho uma presença forte e gosto, não fico acuada, não.
P/2 – Então, esse momento assim, de andar como uma onça…
R – Ah, eu lembro porque era uma coisa imponente, totalmente imponente. Era como se eu tivesse andando por cima das pessoas. Se as pessoas tivessem curvadas, eu andaria por cima delas de boa assim, como se fosse uma… Um ser altivo, mesmo. E era isso.
P/2 – Que época foi? Que ano, você lembra? Mais ou menos?
R – Eu acho que eu tinha 20 anos.
P/2 – Mas o ano… 80?
R – 83, mais ou menos, acho.
P/2 – E na época da ditadura, você fez teatro? Chegou a ter alguma situação?
R – Não, foi um pouquinho depois, né?
P/2 – Foi de 60 até 80 e alguma coisa… Década de 70 e alguma coisa.
R – Não, eu era muito pequena…
P/2 – 78, 79…
R – Setenta?
P/2 – 78…
R – Não, não.
P/2 – Que ai, já tinha uns 15 mais ou menos.
R – Não, não.
P/2 – Você começou mais pra frente, né?
R – É, mais pra frente. Eu fiz dança. Dança, dança… Ai, da dança, eu comecei a ir para o teatro.
P/2 – A gente estava falando da dança, depois do teatro. Agora, pensando mais pelo lado assim, dos amigos, namoro, amores… Você lembra do primeiro assim, que você ficou bastante envolvida?
R – Lembro! Eu lembro do primeiro beijo que era um grande amigo meu, mas a gente não continuou, só foi um beijo.
P/1 – Ah, então descreve o primeiro beijo, que pra gente é sempre um momento importante.
R – Muito legal. A gente foi numa festa e eu acho que eu até estava a fim dele, mas não sabia se… Ai, rolou o primeiro beijo, eu fiquei… Nossa, eu fiquei em êxtase, né? Mas logo em seguida, eu comecei a namorar o Nicholas, foi o meu primeiro namorado. Ele era do Equipe, fui para o Equipe e ele era do Equipe, acho que dois anos mais ou três anos mais. Ele era bem mais velho do que eu. Ele se apaixonou e eu não lembro direito como foi… Como que ele começou a chegar, mas a gente ficou um tempão juntos, um tempão, bastante tempo juntos. Foi legal. Eu namorei muito (risos), muito, eu tive muitos namorados, assim, eu morei junto com muitas pessoas também, eu tive… Casei várias vezes. Sempre estive acompanhada, assim, difícil me ver sozinha.
P/2 – Desde que idade, Sophia?
R – Dezesseis.
P/2 – O Nicholas foi o primeiro namorado?
R – É. E ele era inglês, ele era filho de inglês, a gente tomava chá, eu gostava dele, mas ai começou a ficar muito parado para mim, uma coisa muito parada: “Ai, gente, pelo amor de Deus, essa coisa de ficar tomando chá da tarde…”, ai eu falei: “Não, chega, não quero mais”, e ai, logo depois, veio eu acho que o Guilherme, também, casei de novo, era um arquiteto bem mais velho.
P/2 – Com o Nicholas você foi morar com ele?
R – Não, não. Com o Nicholas não. E ai, com o Gui, ele era um arquiteto de uma… Já trabalhando, super mais velho, tinha bastante anos mais do que eu. E ai, já casei.
P/2 – Você conheceu onde o Guilherme?
R – O Gui eu conheci… Naquela época, tinham festas incríveis, né? As festas que a gente presenciava eram festas incríveis, a gente saía de uma festa e ia para outra, passava a madrugada indo em festas, né? Não tinha perigo, então andava pela cidade. Eu acho que era uma turma assim, do Equipe, fora do Equipe… Esse cara que eu dei o meu primeiro beijo era amigo do Guilherme, era tudo uma turma de artistas plásticos, arquitetos, que eu acho que iam nessas festas. E o Gui foi uma coisa bem forte, foi uma coisa assim, foi o meu primeiro cara que eu morei junto, ele foi… Puta, foi o cara também que foi muito, muito… Gostou muito de mim e me ofereceu, assim, mundos e fundos. Não é que ele era rico, não, mas ele comprou um fusca pra mim, foi uma maravilha (risos), eu bati, torrei o fusca. E assim, eu era uma princesa na mão dele, assim: “Cuidado com a louca, que ela é uma princesa”, então ele me tratava como se eu fosse uma princesa. Mas aquilo eu não gostava, eu não gostava daquilo. Eu precisava mais de… E ai, também fiquei um tempão com ele e ai, também falei… puta, foi uma sequência (risos), ai eu comecei a namorar um bailarino que era gay, mas eu me apaixonei por ele. E não só eu, muita gente gostava dele, ele era muito bonito e a gente fazia “Ai Vem o Dilúvio”, e era uma coisa assim, eu ficava muito tocada, quando ele chegava perto, assim, eu… A perna ficava mole e eu falava: “Meu Deus do céu! O que tá acontecendo?”, e ai, falei com o Guilherme: ‘Gui, não vai rolar mais”…
P/2 – Ele sofreu? Provavelmente…
R – Muito! Mas muito, muito, muito. Anos. Foi uma coisa muito doída pra ele. Ele é meu amigo até hoje. É um cara muito legal, muito gente boa. Mas ele sofreu, eu sei que ele sofreu. E ai, com o Duda eu fiquei assim, tipo um mês. Foi uma paixão assim, de ambos os lados, mas a cabeça dele era muito complicada. Muito complicada, eu não dava conta, não. Muito assim, acho que não conseguia assumir, assumia… Era difícil. Eu tinha uma grande amiga que morava com ele, que foram as duas mulheres que ele teve relação, e ele gostou muito das duas, mas a gente hoje é muito amiga, eu e a Carla. E até isso aqui é dela. São pessoas marcantes. Mas ai tiveram outros bailarinos, ai depois no Antunes também me relacionei com o Marcelo Tas, tive vários famosos (risos), o Marcelo Tas, a gente teve um amor, assim, escondido porque não podia, no Antunes, não podia ter relacionamento.
P/2 – Não entre vocês?
R – O Antunes é chato, né? Ah, ele é terrível! Só ele pode, mas ninguém pode ter porque é sabido, o Antunes… Ai, o Marcelo foi num tempão que a gente ficou junto.
P/2 – Moraram juntos?
R – Não, não. Eu já morava sozinha. Ai, depois, nem lembro quem veio depois, mas foi indo e ai, eu casei de novo… Não lembro direito… Foi indo, teatro… Bom, a gente vai lembrando, eu vou lembrando.
P/2 – Então, vamos voltar para a parte de trabalho.
R – Tá, eu vou lembrando. Eu comecei a trabalhar mesmo, com publicidade, né? Que eu comecei a ganhar dinheiro e era dinheiro mesmo, então aquilo era uma fonte de renda que eu tinha e que durava muito, porque eu nunca fui muito de gastar assim, de viajar também não muito. Então, durava pra mim. E ai, eu comecei a fazer teatro e ai, começou a chegar perto do Carandiru, né? Eu ensaiava uma peça infantil em Santana, pegava o metrô todo dia e passava na frente daquele lugar, eu falei: “Meu jesus, o quê que é isso?”, parava, olhava e falava: “Nossa, ainda vou entrar ai dentro”.
P/2 – O quê que passava pela sua cabeça assim, para falar: “Vou entrar”?
R – Eu sou terrível! Quando eu quero uma coisa, eu consigo. Nossa, dá até medo. Eu queria entrar, eu queria conhecer, eu queria… Era curiosidade. O Dráuzio falou a mesma coisa, o Dráuzio tinha a mesma tara, queria conhecer. Mas eu lembro que na mesma época ou um pouco antes ou depois, não sei, eu tinha fascínio assim, fascínio! Era preso, louco e não sei se tem mais algum que… Mas esses dois era uma coisa… tanto que me recomendaram Piaget, me recomendaram Foucault, e não sei o que porque era todas instituições, assim, era uma coisa que eu queria conhecer. E começamos pelo presídio, então.
P/1 – Mas aí, você queria conhecer, conhecer? Ou você já imaginava fazer alguma coisa?
R – Não. Não, não. Eu queria entrar lá dentro. Queria entrar, queria… Eu não sei o quê que eu queria. Queria entrar. E aí, num desses momentos, eu falei: “Bom, então vou dar aula de teatro, sou atriz, vou dar aula de teatro”, e aí, comecei a fuçar aqui, fuçar ali, fuçar até conseguir, comecei a ligar, ligar, ligar, um passava para o outro… Eu acabei com o Sérgio Mamberti na Cultura e falou: “Tem um pessoal que chama FUNAP, que é Fundação de Amparo ao Preso e vai lá”. Fui lá, era na rua, ainda é lá, na Rua… Na frente do Antunes, na frente do Sesc Vila Nova e cheguei lá, falei… Eu era uma menina, eu acho que eu tinha 18, eu falei: “Eu queria dar aula de teatro”, eu lembro que ela chamava Cecilia, ela falou: “Olha que interessante, a gente tá abrindo uma turma”, juro por Deus. Foi uma coisa impressionante. Tipo hoje que eu cheguei aqui, o Claudinho tinha me ligado ontem. São coisas assim, do acaso, né? Aí, eu falei: “Tô dentro”, era o Roberto Lage que era um diretor de teatro, que era o que ia coordenar esse grupo. E a gente ia dar aula de teatro em Tremembé, onde estão os artistas hoje em dia, o Presídio de Tremembé… Taubaté, que é um do lado do outro. E aí, aos sábados. Então, a gente tinha que pegar o ônibus, era longe, duas horas e meia… E aí, eu entrei no meu primeiro presídio, e para mim, não tinha novidade nenhuma, era igual assim. As pessoas… E era um presídio agrícola, então mais solto, assim, não tinha a menor diferença.
P/1 – Do quê? Menor diferença do quê?
R – De nada. Era assim, eles estavam ali, aí a gente chegava, era uma baby mesmo, era uma criança. Cabelo todo assim, aqui… Menina. E aí, eu lembro que eu falava assim: “Vamos dar as mãos?”, eles se olhavam e falavam assim: “Puta, não vai rolar, né?” “Por quê?”, tipo assim: qual é o problema? Falei: “Gente, desculpa”, nossa, eu era totalmente ingênua. E aí, comecei a entender, mas a longos passos a dificuldade e a complexidade do lugar, do que era aquele lugar, do que eram aqueles caras, do que eram aqueles olhares para mim, aquela coisa, eles comiam, assim. Não por eu ser mulher… Por eu ser mulher, por eu ser menina, por eu ser branca, por eu ter olho claro, tudo isso. Tudo, né? E eles não entenderem o quê que eu tava… Muitos não entendiam o quê que eu estava fazendo ali. “Mas o que ela tá fazendo aqui, nesse lugar podre?”, e isso foi indo, foi indo e a gente fez uma peça. Aí, esse grupo se dissolveu.
P/2 – Então, antes dele se dissolver, você já tinha dado aula de teatro, não?
R – Não, eu fui metida, enxerida mesmo. Sabia pouco, mas era bailarina: “Posso fazer umas coisas, umas coreografias”, era tudo pretexto, era um pretexto, eu queria entrar, eu sou bailarina, sou bailarina, vamos, o quê que eu preciso fazer?
P/2 – Mas tinha uma orientação dessa pessoa que…
R –Não, ela simplesmente… Era um vínculo, mas o Lage já gostou de mim, eu tenho uma coisa assim… Eu tenho… Eu sei me virar, entendeu, falei: “Bom, o que precisa fazer?”, eu já me viro…
P/2 – Ele orientava?
R – Ele orientava, é, e aí, de repente, até fiz uma coreografia, não lembro muito, faz muito tempo! Mas o Lage, eu acho que ele lembra.
P/2 – Mas conta como é que você construiu essa peça que foi a primeira? Descreve…
R – Na verdade, eu não lembro muito. Eu lembro que… Uma coisa eu lembro, que tinha um cara que era assim… Era tão negro que… Era tão escuro, ele tinha um olho totalmente virado, quando eu era pequena eu era assim também e ele escreveu uma coisa assim: “Aqui no paraíso… estamos no paraíso…”, alguma coisa no paraíso e eu lembro que a gente fez um cenário de algodão, como se fossem as nuvens e tudo cor de rosa, azulzinho. Eu não sei se eles usavam aquilo porque eu era uma menina e eles queriam fazer de um jeito que… Eu não sei, eu não sei, porque até então, eu não lembro mais do Lage, acho que eu já estava sozinha, porque as pessoas iam desistindo e eu ia continuando, entendeu? Eu sabia que aquilo, eu não ia desistir tão cedo.
P/2 – E eles que escreviam?
R – Então, a minha ideia sempre era essa, era que eles escrevessem, eles fizessem a coreografia e a gente sempre tivesse de retaguarda ali. Eu acho que eles escreveram, sim. Eu tinha um vídeo desse negócio, mas ele estragou, foi uma pena. Mas eu lembro que ele entrava assim, ele acordava assim: “Estou no paraíso, estou no paraíso”, e era assim. Era muito divertido, um cara negão, mas um negão assim, cabelo bem curto e de asas, assim: “Estou no paraíso”, muito engraçado, era muito engraçado.
P/2 – E eles curtiam, pelo jeito?
R – Muito! Muito. Primeiro que era um momento de sair daquele lugar do inferno, né, e depois, que era gostoso e estava com mais pessoas do outro mundo, né? Era legal.
P/2 – Apresentavam em algum lugar?
R – Sim, apresentamos lá mesmo, para eles ali, talvez, alguns convidados de fora.
P/2 – E foi bacana a apresentação?
R – Foi, foi bacana. Eu não lembro muito bem. Eu lembro melhor das outras que vieram em seguida. Não lá mais, porque esse grupo se dissolveu e aí, eu continuei, eu falei: “Mas eu quero continuar”, e eu acho que já eu queria vim para o Carandiru, que era mais fácil, porque eu poderia ir mais vezes e porque queria conhecer, né, aquele que eu queria conhecer, não era aquele, né? Então, a gente foi para o Carandiru, eu não sei como foi esse acesso, mas já era uma turma, tinha músico, tinha uma diretora de teatro e eu era a parte de corpo e cenário, figurino e tal. Aí, foi uma coisa mais consistente, mesmo, foram meses e meses. E aí, a gente fazia ensaios e fazia todo um figurino, conseguia reciclar… Material reciclado, era muito legal, mesmo.
P/2 – E quando você entrou a primeira vez… Quer dizer, a primeira…
R – Eu não lembro como foi.
P/2 – A tua sensação, assim, porque…
R – Mas eu acho que eu gostei de ter entrado. Eu gostei de ter entrado, eu falei: “Consegui, né?”, mas até então, passei muito tempo só indo no Pavilhão 6, que era onde era o cinema que tinha sido queimado. Então, eu só conseguia ir no Pavilhão 6 e sempre fui muito, muito refém de seguranças, funcionários. Então, isso era uma coisa difícil e eu nunca gostei de me sentir atada, né, mas eu passei anos assim, dependendo de funcionários que te leve daqui para lá, que abria um portão, diversos, abria um portão, fechava, abria outro portão, fechava, abria outro… Vários, vários e aí, você andava pelas galerias assim, né, e eram ruas largas, enormes e eles estavam ali, andando e vindo para cá, para lá e eu ficava bem na minha assim, não era muito de ficar olhando, assim, eu ficava bem na minha e sentia a vibração, você sentia todo mundo olhando, pessoas novas. Era comum ter visitantes de faculdade de Direito, era comum. Mas eu comecei a ir muito mais, né? E aí, mas por enquanto, só no Pavilhão 6. Eles tinham que enfrentar a barreira de ir até o Pavilhão 6 para fazer teatro, era muito difícil! Era muito… Querer muito, porque eles ouviam muita graça dos outros, então era difícil.
P/2 – Eles que se inscreviam: “Quem quer fazer?”, era assim?
R – Exatamente. A gente não tinha limitação nenhuma. Eu, inclusive, queria que viessem de todos os pavilhões, mas eles que escolhiam. Mas eu não tinha controle.
P/2 – E vinham de vários?
R – Vinham de vários. Comecei a perceber que alguns iam porque o Pavilhão 6 tinha o Judiciário, então eles iam para fazer a correria deles, também. Tudo bem. Uns só iam para ficar olhando, para ficar só… Para encontrar o outro, acontecia de tudo. E alguns iam para fazer mesmo! Era muito legal, porque eles eram muito… Quanto mais bravo e mais feio, mais cara feia eles tinham, mais você ia descortinando, e ia virando uma pessoa assim, um doce de pessoa.
P/1 – Você lembra de algum morador específico, assim, que você achou que foi super…
R – Morador de lá?
P/1 – É. Que super se revelou no teatro, que super se deu bem?
R – Ah, tiveram vários, que… Tinha o Claudinei, eu acho, que é bacana também contar. Claudinei, ele era muito tímido! E no decorrer, ele começou a se descobrir. E ele se revelou, mesmo, como… Mandou textos e textos, tudo que eu conseguia fazer, ele me mandou! Ele mandou muito, foi muito bacana e ele… Bom, aí tem depoimentos imensos de vários que a minha mãe tem, de pessoas que falaram o quanto o teatro fazia bem para eles. Cada um por seu motivo, né? Uns porque eram vistos como pessoas, outros que conseguiam mostrar a arte deles, por exemplo, tinha figurinista da Vai-Vai, de escola de samba, que fazia o figurino pra gente. Então assim, a gente tinha um
maravilhoso, mecânicos, cenários, tudo dava um jeito, sabe? “Ah, isso não tem…”. “A gente vai dar um jeito”, então tudo dava um jeito, porque claro, a gente estava com um leque de pessoas de diferentíssimas categorias, né?
P/2 – E vocês iam… O que você fazia para ir descobrindo? Acho
R – Pra?
P/2 – Pra descobrir essas competências, essa vocação de cada um.
R – Na verdade, a gente tinha um cronograma do dia. Então, hoje vai começar com… Geralmente, eu começava com aquecimento, aí depois, dava uma coreografia ou dava circo para eles e então, era uma parte lúdica, uma parte de força, de aquecimento do corpo, de soltar o corpo e, depois, a Inês entrava com o texto e o Renato ficava com a música. E cada um se dividia para um canto, então aí, você já começava a perceber quem era quem. E então, tinham uns que adoravam ficar com a Inês, ajudando ela no posicionamento das pessoas: “Tem que fazer mais assim, fazer mais assado”, e também tinham as paixões, então um se apaixonava pela Inês, um se apaixonava por mim… Isso é básico, mas a gente sempre mantinha uma relação bem profissional, assim, porque senão… Se deixasse, ia ser um perigo.
P/2 – E a primeira apresentação, você falou que durou meses para construir.
R – Aí, a gente fez para um público grande de fora e também, para um público grande, então encheu aquele negócio, lotou! E aí, foi incrível, foi maravilhoso!
P/1 – E aí, como é que você percebeu o reconhecimento também de quem estava fora desse trabalho?
R – Ah, os aplausos e, depois, eles foram falar com eles, né? Todo mundo ia falar: “Nossa, você foi muito bem, não sei o que…”, e eles… Essa semana de ensaio, eu ficava totalmente sem voz, de tanto que a gente tinha que se dedicar… Eu estava grávida acho que da minha primeira filha, mas eu não estava nem aí, sabe, eu estava lá e estava maior… Era trampo, mas era trampo, muito! E além da coreografia, eu ainda tinha que fazer todo o cenário, figurino, tal… Então era assim, uma coisa assim… Mas era muito gratificante, porque a gente saía de lá oito horas da noite e eu conseguia deixar eles fora da tranca um tempão. Então, o finalzinho sempre era o melhor, porque eles ficavam fora da tranca. Era muito legal. E aí, quando a gente saía, a gente andava pelo presídio à noite e eles fora da tranca, então era toda uma sensação assim, sabe? Mas era muito… Foram momentos muito fortes, muito fortes. Tiveram acho que duas ou três apresentações e aí, esse grupo se dissolveu de novo.
P/2 – Durou quanto tempo? Um ano, assim?
R – Ah, acho que mais de um ano.
P/2 – Para fazer a apresentação?
R – Não, uns seis meses, no mínimo, oito, seis…
P/2 – E você falou que foi dentro e fora. Foi dentro…
R – Não! Foi dentro com as pessoas de fora que vieram. Aí, acabou, esse grupo se dissolveu…
P/2 – Onde que apresentava?
R – Lá mesmo, onde a gente ensaiava.
P/2 – Mas no pátio?
R – Não, no cinema. Tem um cinema que a acústica era terrível. E aí, eu tive a brilhante ideia… Olha só, de colocar cabo de aço, parafusar assim, cabo de aço bem abaixo assim, para abaixar e colocar caixa de ovo em cima para abaixar. Só que como é que a gente ia chumbar o… (risos), foi um negócio isso. Como é que a gente ia chumbar o negócio para carregar o cabo de aço para segurar milhões de caixas de ovo? Tinha que ser muito forte o cabo. E o parafuso tinha que ser desse tamanho! Ou seja, nem sei como chama, mas a pistola tinha que ser… Era uma arma, aí os funcionários não queriam: “Eu não fico” “Pelo amor de Deus, então me deixa aqui sozinha, eu fico, eu preciso parafusar”, e aí, parafusamos.
P/2 – Conseguiu?
R – Consegui com a escada Magirus e uma pistola dentro do Carandiru, eles tinham a faca e o queijo na mão, se eles quisessem fugir, eles fugiam, mas não fugia.
P/2 – Por que não fugia?
R – Porque eles tinham um propósito e eles iam acabar com aquilo, nunca mais eu ia entrar, nunca mais… Então, eles tinham… E depois, era para eles se apresentarem. Mas teve o boicote, um dia o negócio estava cortado no chão e eu cheguei, estava no chão, eu falei: “Humm, cortaram?”
P/2 – E não dá nem para imaginar…
R – Exatamente por isso, porque eu enfrentava, entendeu? Não tinha o que me parasse, não tinha funcionário que falasse: “Não vai dar”, “Não vai dar vírgula. Vai dar, sim. Não é com você que eu preciso falar, né? É com o outro, então vamos falar com o outro”, e acabava com esse cara: “Você não é nada! Você não me ajudou, você pode me ajudar e não me ajudou, então, vou para o outro”, ia até achar alguém que me ajudasse. E aí, ia criando inimigos, né? E aí, logicamente, caiu… E um dia, eu levei o meu pai, fiquei com um pouquinho de medo, acho bom eles saberem que eu tenho alguém que está por trás disso. E aí, foi a primeira vez que ele entrou no presídio. Mas eu não sabia ainda. Eu fui saber depois da apresentação, que ele contou para o Guilherme, que era o meu marido e contou, aí ele contou e contou e contou.
P/2 – Depois que ele entrou?
R – É. E foi incrível. Mas aí, se dissolveu de novo. E aí, eu falei: “Eu não quero terminar”, e olha, vai ano, hein! E já vai indo ano.
P/1 – Você estava com quantos anos?
R – Eu? Ah, eu já estava com 23, já tinha ido…
P/2 – Esse grupo permaneceu por mais de uma apresentação?
R – Mais de uma, tipo uns dois anos, a gente ficou juntos.
P/2 – E por que dissolveu?
R – Ah, porque era muito difícil, a FUNAP já não pagava mais, a gente tinha que conseguir financiamento no Ministério da Cultura de Brasília, era um perrengue, não dava e tinha que mandar projeto… A grana chegava sempre depois de muito tempo e a gente trabalhava de graça, por isso, as minhas propagandas eram boas.
P/2 – Você continuou na propaganda?
R – Continuava.
P/2 – No teatro?
R – Não mais, eu acho. Acho que até fazia um pouco, mas… Fazia. Novela de vez em quando, essas coisas assim.
P/2 – Dissolveu o grupo…
R – Dissolveu, dei uma interrompida também, mas aquilo me chamava, né, era uma isca assim. E aí, eu fiquei amiga de uns funcionários, então vez em quando, eu ia lá visitar e aí, um deles que virou um grande problema depois, virou um grandíssimo problema falou: “Por que você não faz um desfile com os travestis?”, “Nossa, demais! Demorou, vamos fazer”.
P/2 – O funcionário deu a ideia?
R – O funcionário. Mas ele era um funcionário diferente, ele era muito querido pelos presos, só que ele se apaixonou perdidamente por mim e ele começou a me enlouquecer, ele só me pegava quando ele queria, ele me dava castigo, então, eu cheguei a conseguir 15 mil canetas BIC, ele me deixou para fora. Ele era uma pessoa muito complicada e eu era totalmente refém dele, totalmente.
P/2 – Ele cuidava de você entrar ou não?
R – Ele cuidava do esporte. É o tal Rodamar do esporte, ele era muito querido, ele ajudou muita gente e a mim, ele ajudou, mas ele me prejudicou muito. Mas até então, a gente estava super amigo e tal, e aí, eu sacava, então eu tinha que pisar em ovos o tempo todo, sempre com muito cuidado com quem eu falava, com quem eu não falava… Era muito difícil. E aí, fomos… Ele só me levava para ver as meninas, as travestis, quando ele estava de bom humor, quando ele queria. Ele queria fazer uma moeda de troca, entendeu? Era terrível e como eu não cedia nunca, então ele… Mas foi rolando e aí eu chamei o Herchcovitch para fazer, mas ele foi com o Paulo Borges que é o bambambam da Fashion Week e eles foram com as assistentes para conhecer lá, para conhecer as meninas e tal e as assistentes passaram mal quando elas entraram, porque elas acharam que eles estavam presos e eles estavam soltos. elas começaram a passar mal.
P/2 – Ficaram com medo?
R – Ficaram com medo, em pânico e tiveram que sair e aí o Alê também já ficou meio assim, mas falou com elas, falou que ia fazer e aí, uma outra pessoa falou para ele não fazer porque era perigoso e tarará… Ele não fez, não quis fazer. Falei: “Nossa, que maus lençóis você me deixou”, aí eu tive que falar para elas que não íamos fazer. Nossa! Uma travesti brava, você não queira ver. Elas são as mais vingativas, elas chegam a moer vidro para você cheirar, é uma coisa assim, é terrível! Mas elas ficaram doidas! “Essa filha da puta, o que ela tá pensando que ela é?”, falei: “Calma. Primeiro, calma, porque não adianta nada ficar de piti aqui, vamos parar com isso, calma. Eu vou tentar achar outra pessoa, então vamos abaixar porque não adianta. Eu não tenho culpa, o cara desistiu, ele não vai fazer mais, vamos procurar outra pessoa”. E procurei. Eu tinha que ser firme, tinha que ser muito firme, porque senão, eles montavam em cima de mim. Então, se você não põe uma firmeza, eles: “Opa…”, tem que ser firme, porque senão… Imagina, são sete mil e quinhentos presos e você ali! Se você não pôr uma carcaça assim, de firmeza, eles montam.
P/2 – Mesmo os rapazes que faziam teatro, também era essa relação?
R – Ah, muitas vezes eu tive que ser muito firme, é assim… Rolou um problemaço porque eu emprestei o gravador para ensaiar, aí rolou um puta de um problema de que o porquê eu emprestei para um e não emprestei para outro. E esse também se apaixonou, paixão era básico, porque não tem mulher, alguns têm visita, alguns não, a gente tá ali, eles achavam que… Confundiam As Bolas. Achou que tá apaixonado. E aí, ele começou a falar que ia me causar problema na rua, eu: “Olha, meu, não tenho medo, pode parar, nem sei se vai me encontrar na rua”, então eu não tinha que ter medo, porque se eu demonstrasse medo, aí: “Ela tá morrendo de medo”, então eu não demonstrava medo. Esse dia que caiu o negócio, eu fiquei com medo.
P/1 – Mas deles ou do segurança?
R – Do que poderia… Eu não sabia quem era. Alguém derrubou, alguém cortou, subiu, cortou e derrubou. Não sabia, podia ser preso, podia ser funcionário… Não sabia. Mas geralmente, eu não tinha medo. Aí, eu achei o Sommer que foi maravilhoso e falou: “Eu vou fazer”, “Você não vai desistir, porque se você desistir, aí quem morre sou eu”, “Não, eu não tenho prazo, mas eu vou fazer”, “Então tá bom”.
P/2 – E como que vocês chegaram até ela para…?
R – Então, o Waldemar era um funcionário que era muito participativo. Ele era muito amigo dos presos, muitos presos gostavam dele, a maioria porque ele trabalhava com esporte, então ele que fazia os campeonatos, as grades ali, tal… Sempre ajudava alguma pessoa que estava com muita dificuldade. Então, ele era um cara muito firmeza com eles. E quando ele falou delas, eu falei: “Nossa, eu quero, eu quero conhecer agora”, e eu sempre quero tudo para agora, ele falou: “Não, agora não”, aí ele começou a usar do… De vez em quando, eu queria ir no amarelo… O prêmio máximo era quando eu conseguia ir no seguro, no amarelo.
P/2 – O quê que é esse amarelo? Explica.
R – Amarelo é o quinto andar, é o seguro, onde eles não podem sair dali. E eu gostava de ir ali.
P/2 – E o quê que você fazia lá?
R – Eu conversava com eles, você entrava ali era assim, era uma sauna, um cheiro terrível, mas você entrava, vinha aquele bafo! “Nossa, chegamos no amarelo”, aí eu ia de cela em cela, conversando e todos precisavam de alguma coisa: “Fala pra minha mãe não sei o que, não sei o que…”, porque não tinha celular na época, não tinha. “Leva essa carta para mim ou fala com o meu advogado”, era esse tipo de coisa, né?
P/2 – E você fazia?
R – Fazia. Eu… Até se não fosse prejudicar ninguém, eu fazia. Mas já pediram coisas indecentes, de levar um papelote, de não sei o que, aí: “Não, isso eu não vou fazer”, então…
P/2 – Sophia, você quando entrava, porque você estava lá trabalhando em teatro, mas você já estava além desse trabalho…
R – Já não estava mais no teatro.
P/2 – Você ia… qual era, assim, o pretexto, a motivação?
R – Aí, já era o desfile, nem tinha o desfile, mas já era o desfile. “Então, nós vamos fazer o desfile”, “Já estou fazendo o desfile”, não importa quanto tempo demore, vou fazer o desfile. E aí que começou a minha peregrinação por lá, porque quando eu aguardava o Sommer, ele ia uma vez a cada 15, vai. Então, quando ele ia eu tinha que fazer toda… Providenciar a ida dele, reunir os meninos. O Waldemar que me introduziu com as meninas e falou que ia fazer um desfile. E aí sim, ele me deixava com as meninas, ia fazer o corre dele, tal e eu ficava ali. Aí se eu saísse dali e fosse para outro lugar ali, ele ficava doido: “Como que você saiu?”, aí eu tinha sempre que obedecer: “Ok, amém…”. Bom, aí foi indo, foi indo, começamos a fazer o desfile efetivamente, que o Sommer foi lá. E aí, eu comecei a inventar coisas para fazer. Aí, eu comecei a reformar as escolas. Eu sempre fui muito boa para pegar recursos, recursos não, doação. Adoro assim… Não é que eu adoro, mas eu visto a causa. Então, eu comecei a achar material de construção, eu tive uma pessoa que tem muita condição e que me deu muito material, muito, muito assim…
P/2 – E reformava a escola de onde?
R – De todos os pavilhões.
P/1 – Cada pavilhão tinha uma escola?
R – Quando eu andava ali, vários vinham falar comigo sobre coisas diversas. E um deles era o Luiz Mendes que veio conversar comigo, não sei se era o Luís ou o outro, não sei o quê que era, não sei quem foi que falou assim: “Venha conhecer a situação das escolas”, aí eu comecei a entender que era isso, mas… Eram canos estourados e aí, quando o preso dava a descarga lá em cima, nossa, era horrível, horrível. Escola, né? E aí, eu falei: “Vamos reformar”, sem saber se eu podia, eu falava assim: “Vou ver se consigo”, porque eu sei que promessa é dívida. Então, vou ver se consigo, se eu conseguir, vamos tocar em frente. Aí, vamos fazer a enfermaria, a enfermaria tá precisando reformar também… Aí eu fui indo. E aí, eu resolvi oferecer cursos de pessoas que queriam conhecer, porque sabiam que eu trabalhava daqui… Que queriam conhecer lá, falei: “Então, você vai oferecer um curso, porque ir lá por ir, não vai, tem que oferecer um curso disso ou daquilo. O quê que você sabe fazer? Então tá, então… Que seja de um dia, mas se puder ir mais dias, melhor”. E aí, começou a vir um monte de cursos. Um monte de desenho, e de literatura. Interessante, como é um curso de literatura? Era o Fernando Bonassi que queria fazer… Foi convidado para fazer o roteiro do Carandiru pelo Hector Babenco e falou: “Eu preciso conhecer um pouco daquela realidade, vou oferecer um curso”, “Ok, curso de literatura”, tá, coloquei e aí, começaram a vir todos os professores e aí, eles tiveram acesso a mim e o Luiz Mendes era um deles.
P/2 – Professores que estavam morando lá?
R – É. Cada pavilhão tinha uma escola e várias igrejas. Então, tinha igreja de todos os tipos: evangélica, católica, candomblé, todas, todas. Então, na parte de baixo era o convívio em comum, onde eram as igrejas, as escolas, a enfermaria, onde ficavam os funcionários, enfim, a faxina, onde a faxina se reunia, tal. E aí, começou a oferecer cursos, foi ótimo. E aí, o Fernando começou a juntar… O curso dele era assim, ele ficava lá conversando com as pessoas. E eu deixava ele lá e falava assim: “Fernando, daqui três horas eu te pego”, aí já tinha muita coisa para fazer. Aí, realmente eu inventei muita coisa e realmente tinha muita coisa para fazer. E aí, era ver uma obra ali, como se fosse uma empreiteira. E aí, eu resolvi fazer um concurso de música…
P/2 – E o desfile estava rolando?
R – Rolando.
P/2 – Preparação do desfile?
R – Exatamente. Ixi! Rolou. Demorou oito meses. Aí, o concurso de música. Aí, espalhei em todos os pavilhões que podia ser qualquer tipo de música, peguei o Theo Werneck que é meu amigo, a gente pegou a Kombi que era do meu pai, que ele ia para o nordeste, a gente encheu de caixa de som, de mesas de som e fomos ao Carandiru na cozinha, que tinha sido uma cozinha e não era mais uma cozinha, com aquela acústica incrível de azulejos e vamos lá… Vieram mais de 150 pessoas. Era um monte. Era um monte e aí, começou, tudo quanto era música, tudo que você pode imaginar tinha. Aí lá por sei lá que horas era isso, veio aquela dupla e eu falei: “Opa! Ali tem coisa, ali é bom” e eu tenho esse tino. E aí, falei para eles: “Vocês são bons, hein, bons mesmo”, de todos aqueles foram os únicos que eu vi que tinha alguma coisa. E aí, não bobos nada, preso geralmente não é besta, né, e esses então… Foram embora, tal, no dia seguinte ou na semana seguinte, eles vieram me abordar assim, na radial ali, tal: “E aí, Sophia, tudo bom?”, “Tudo bem, e aí?”, “Então, você gostou?”, “Gostei muito”, “Então, você quer conhecer mais? Você tem que ir no pavilhão lá, conhecer, tal”, aí tinha que falar com o Waldemar, ainda era refém dele. O Waldemar não gostava muito deles, então ele não me levava, tinham todas essas questões. Aí, acabei conhecendo porque no mesmo andar, no mesmo pavilhão tinha um arquiteto… Ele era um peruano que eu tinha pedido para fazer uma maquete da cozinha, porque a minha ideia era fazer cursos, vários cursos profissionalizantes para o preso sair na rua e já ter trabalho na rua. Então, eu queria, inclusive, fazer com firmas, empresas para já vincular a empresa com o preso, o preso já sai, já pega… Essa era a minha ideia mor, assim, mas é um sonho, né? Enfim, e achamos o Júlio, peruano e aí, ele ia fazer uma maquete para mim e a maquete não vinha, mas demorou essa maquete, demorou e eu falei: “Waldemar, a gente tem que ver o Seu Júlio”, e numa dessas visitas, o Dexter me pegou e falou assim: “Sophia, vem aqui, vem conhecer”, e aí, o Waldemar estava meio assim, ele deixou, tal e aí, ele me colocou a fita e eu, realmente, achei muito bom e aí, seu Júlio, tal, tal… Aí, eu falei: “Nossa, é muita coisa, muita coisa e tal…”, e desci. E na mesma semana, conheci também por uma obra do destino, foi exatamente na mesma semana o dono de uma gravadora. Aí, eu cheguei nele e falei: “Olha, eu conheço um grupo que é muito bom, quer que eu te apresente?”, “Passa lá na gravadora e me traz uma cassete”, aí eu fui falar com eles, falei: “Conheci o dono de uma gravadora, interessa?”, “Não sei…”, “Por mim, realmente, eu não vou ganhar nada com isso, então se vocês tiverem… Quiserem, vocês me comunicam”, mas fizeram uma marra assim: “Não, porque não…”, eu falei: “Ok, tchau, fui”, e fui falar com o Seu Júlio. Cheguei no Seu Júlio e falei: “Seu Júlio, pelo amor de Deus, Seu Júlio, pelo amor de Deus, essa maquete sai ou não sai? Eu preciso dessa maquete. Por que você demora tanto? Por que o senhor é tão detalhista?”, ele fazia os azulejos! “Dona Sophia, a senhora não entende, a senhora tem que entender a minha profissão” “Ok, seu Júlio, eu entendo, mas qual que é a sua profissão?”, que eu nunca perguntava, o artigo, nunca! “Sou falsificador de cheque” (risos), aí eu falei: “Entendi, tudo bem, mas vamos acelerar, Seu Júlio, por favor”. E nisso, a dupla veio falar comigo que a gente tinha super interesse, aí eu falei: “Ah, mudaram de ideia, né?”. Bom, isso resumiu-se a um filme que tá aí, chama “Entre a Luz e a Sombra”, que é um filme super comprido, mas super profundo e que mostra um pouco dessa história, que o que foi essa dupla pra mim, o que foi essa dupla para os presos… Nossa, virou assim… Virou tudo e resumindo, eles lançaram com uma coletiva de imprensa de 70 jornalistas e eles começaram a fazer shows fora, entravam e faziam, entravam e faziam e aí, não queriam mais ficar dentro, né?
P/2 – Fala os nomes deles pra gente?
R – 509-E Dexter e Afro-X e aí, pintou Simony no meio, Simony casou com um deles e aí, começou a ficar complicado, aí começaram a dar entrevistas, milhões de entrevistas, Rede Globo, Conte Lopes, Serginho Groisman, foi um… Puta, azedou… acabou. Aquele programa Altas Horas acabou com tudo.
P/2 – Com tudo o quê? Explica, se você achar interessante.
R – Porque colocaram com o Conte Lopes que é aquele louco, matador da Rota, louco, já matou não sei quantos, na frente dos dois. E os dois e o Conte, colete a prova de bala, ali. Aaaah… O programa tem aí, foi horrível. Um chamando o outro de estuprador, o outro chamando de matador e aí, começou… E o diretor do presídio estava em férias e aí, quando ele voltou, ele falou: “O quê que foi aquilo?”, “Sinto muito”. Eu pedi para o Serginho não colocar. Pra ele não, pedi para a produtora dele, falei: “Não coloca que vai me prejudicar, vai prejudicar eles, eles vão ser perseguidos agora, eles andam na rua comigo, eles vão querer mata-los”. O cara é da Rota. O cara chamou ele de estuprador, nossa, foi horrível. Bom, acabou. Resumindo, acabou, eu tive que me afastar um tempinho. Acabou. E aí, eu só voltei quando estava implodindo para a gente fazer um registro imenso. Foi bem grande. A gente ficou uns meses olhando tudo quanto era buraco, mas para mim já não estava legal, porque a parte humana já tinha ido embora. A cada dia, iam montes, os bondes iam e aquilo ia ficando cada vez mais vazio e já não era mais o Carandiru, né? Já não era mais.
P/2 – Sophia, você quando eles começaram a fazer os shows e saírem sempre, você que ia sempre com eles?
R – Eu virei empresária deles. E não só. Eu me relacionei com um deles. Aí, melou tudo mesmo. Então, eu era empresária, mulher e tudo, tudo, tudo! Eles saíram por três meses, mas parece que foram cinco anos, foi muito… Eu não dormia… porque o show de Rap é sempre às três da manhã, quatro. Eles chegavam na cadeia para assinar às seis da manhã, saíam, já tinha um monte de coisa para fazer. Era… Olha, foi uma coisa… Foi um momento… Nossa, foi impressionante, eu esqueci de pagar conta, os meus filhos ficaram com a minha mãe nessa época, foi ótimo. Foi duro, foi muito duro. Marcou, foi muito forte. O filme ficou também muito forte, mas eu passei por maus bocados, foi duro. E aquilo, né, eu vou até a cabeça, eu me afundo totalmente e quando eu vejo, eu estou totalmente atolada e já não sei mais como sair.
P/2 – Você tinha já os filhos, você falou?
R – Tinha…
P/2 – Quantos?
R – Tinha dois. Eu tenho dois.
P/2 – Continuou com dois?
R – Ele tinha sete, oito e ela tinha 12, 11, 12.
P/2 – E você ficou quanto tempo pra gente ir organizando assim, esse período todo. Quanto tempo você, desde a primeira atividade até esse momento que você acabou de contar?
R – Ah, acho que foi… Eu devia ter 20, então 83, 84 até 2001. Mas tiveram interrupções, várias.
P/2 – Todas essas ações que você foi fazendo nesses quase 20 anos, aí acabou você fazendo, mesmo sem… Era uma… só você?
R – É.
P/2 – Você que tocava, você que coordenava, você que levava…
R – É.
P/2 – Nesse momento é você que tem que falar, eu pergunto assim, aí… Só fala um pouquinho como que você foi se firmando e se relacionando com o Carandiru? Quem era a Sophia depois das atividades de teatro?
R – Eu era um grão de areia mediante tudo aquilo. A minha vontade era um grão de areia, porque se a minha vontade fosse… Seria muito legal. Aquele projeto que eu tinha era muito legal.
P/1 – Qual?
R – O da cozinha, do tal da maquete, de fazer… Queria fazer uma padaria, queria fazer uma escola-padaria, mas, imagina, alguém chegou e falou pra mim: “Olha, a De Nadai que fornece comida, cuidado, hein”, “Ah, entendi”. Então, eu comecei a brigar por coisas muito grandes, eles não iam querer porque cada marmita daquela, eles ganhavam muito em cima. Então, era assim, eu comecei a voar um pouco mais alto e eles começaram a perceber que… Mas por que eles me deixavam? Porque eu também não nascendo idiota, eu conseguia computadores para a administração. O Itaú também me fornecia muito computador. Então, eu conseguia um monte de coisa de doação, entendeu? Mas eu sabia que eu pisava em ovos. Aí, um dia, eu consegui a minha libertação do Waldemar, cheguei na direção e falei assim: “Eu não quero mais andar com o Waldemar, eu preciso de uma carteirinha para eu andar sozinha. Eu quero andar sozinha lá dentro. Subir andar, não importa, eu vou subir andar, vou descer andar, vou onde eu quiser”. E consegui. E eu falei: “Eu não aguento mais andar com ele”, eles entenderam e tal. Então, foi indo. E eu comecei a ficar, assim, uma pessoa que ajudava as pessoas, né?
P/2 – Voluntária?
R – Sempre.
P/2 – Era esse… Eles te viam assim?
R – Eles não entendiam muito, eles não acreditavam muito que eu fosse voluntária e eles achavam que eu queria alguma coisa em troca. E aí, demorou muito tempo para eles entenderem que não tinha nada disso, tanto que quando o Dexter falou comigo: “Não sei”, ele chegou a consultar o Brown, que era um dos caras que produzia uma das músicas, e o Brown falou: “Não, imagina, ela vai querer dinheiro de você”, e aí, ele falou: “Não, o trabalho dela aqui é sério, ela reforma isso, faz aquilo…”, aí eles começaram a mudar um pouco o meu conceito. E aí, quando você já tem o respeito, só não quebre, né, porque daí vai tudo por água abaixo, mas isso eu sinto até hoje, porque eu não paro, eu não parei, eu parei lá, mas eu continuo na favela. E a favela é exatamente a mesma coisa, só que eles não têm grades. Não tem grades, mas tem, porque eles ficam lá e para pegar três conduções para vir para o lado de cá, eles não vêm. É muito caro, entendeu? Então é a mesma coisa.
P/2 – Qual favela, Sophia?
R – Eu estou na favela no Capão Redondo. Mas agora eu trabalho com as mulheres. Trabalho só com as mulheres e as crianças e aconteceu muito por acaso.
P/2 – Mas aí depois você fala. A gente vai voltar para o desfile…
P/1 – A Nádia tem uma pergunta também que é sobre como é que você começou a pensar em registrar essa memória?
R – Eu não sei quando foi, mas eu sei que eu tinha uma câmera e eu comecei a pensar: “Eu preciso gravar essas coisas”. Antes de ter implosão, do Carandiru fechar, bem antes. Eu levei a minha câmera e o Claudinho, um personagem do Carandiru, morava no Pavilhão oito, era o popular e ele… Eu falei assim: “Claudinho, eu preciso gravar”, “Vem comigo”, fui atrás dele com a câmera ligada e fomos subindo os andares com a câmera ligada, fomos subindo e tal… Passou o dia, no dia seguinte, eu chego lá, o Claudinho tá verde, daquele jeito assim, verde, me esperando na porta. Falei: “O que aconteceu?”, “Preciso falar com você urgente”, “O quê que aconteceu?” “Então, o que a gente gravou ontem…”, ele quase morreu, porque ele não pediu autorização para ninguém e lá, é o PCC que manda. Como é que você vai gravando? A gravação é a pior arma para eles! É o mais perigoso de tudo, não é uma arma, é uma gravação. Você aponta que ele tá naquele pavilhão para um outro cara que tá num outro presídio: “Onde está fulano?”, “Tá em tal pavilhão”, é uma caguetagem. Então, assim, ele tava em pânico! O quê que aconteceu? Aconteceu que juntou todos os faxinas… O quê que é faxina? Faxina é o cara que lidera, é o bambambã do PCC e do pavilhão. Juntou todos os faxinas para conversar comigo o quê que eu ia fazer com aquela fita. Eu falei: “Aí meu Deus do céu…”, se você me perguntar se eu fiquei com medo, hummm… Eu falei: “Não tenho nada a temer. Tá aqui a fita”, “Primeiro, nós vamos destruir e depois, o que você quer com isso?”, “Eu quero registrar, um dia isso vai ser importante”, “Mas não é assim, você vai entrando e vai registrando. Não é assim”, “Mas falaram que eu podia ir…”, nossa, eles me colocaram na parede mesmo. Na parede! Eu lembro que foi tenso. Foi tenso, tinha mais de 20 homens…
P/2 – E só você?
R – É. Foi tenso. O André estava comigo. Foi tenso. Depois de muita conversa, eles falaram assim: “Nós temos uma proposta”, “Ok. Que proposta?”, “Você vai comprar remédios pra gente, porque a gente tem dinheiro, mas não tem como ir lá comprar. E não é pouco, é muito”, “Ok. Mas eu preciso primeiro falar com eles lá, porque vou entrar com uma caixa de remédio? Como que eu vou entrar com caixa?”, “A gente não tem remédio, a gente tem dinheiro, mas você vai entrar com o remédio”, “Tudo bem, mas eu vou primeiro falar com a direção e vou avisar isso, ninguém vai se opor porque eu estou trazendo remédio”, e foi isso. Só que aí, já tinha celular, aí eles me ligavam na farmácia… “Oh fulano, o que você quer? Você quer o quê?”, era assim. Aí, virou uma coisa… Mas você acha que foi depois? Não, demorou um tempão. Aí, chegou uma hora que eu falei: “É o seguinte, já fiz tudo que vocês queriam, agora eu quero gravar. Chega. Três meses demorou. Eu falei: “Chega, deu”. E aí, comecei a gravar e aí, depois…
P/2 – Como que você gravava? Individualmente? O espaço?
R – A minha ideia era ir com a câmera como se fosse eu. Eu ia entrando e ia gravando, mas era difícil, ligava a câmera, já ficava mais difícil. É difícil… Mas depois, a gente foi conquistando, aí a gente começou a fazer, de fato, aí a gente soube que ia fechar e aí, a gente falou: ‘Bom, então temos que fazer esse registro mesmo dos lugares, de tudo”, por exemplo, a faxina, o dia de faxina que é sexta-feira, que é aquela foto ali. E aí, começou a pegar… assim, a pinga como que fazia, tudo isso, a gente começou a pegar. Pra mim, aquilo não tinha tanto valor, porque eu achava… Eu sempre falei isso, que o Sacramento fez um filme que chamava “Prisioneiros da Grade de Ferro”, e ele já tinha feito isso, pelo olhar dos presos. Ele entregou uma câmera na mão deles e eu achava que era mais autêntico, mas mesmo assim, a gente fez, mas eu não sei. Esse material ainda tá parado, enfim… É isso. E aí, registramos e acabou.
P/2 – Você estava quando teve o massacre?
R – Não. Não estava lá dentro. Eu estava muito próxima de uma mega rebelião, tava muito próxima e aquilo foi difícil. A Simony ficou lá dentro, foi todo um negócio.
P/2 – Tava próxima, mas não estava no prédio?
R – Não. Eu nunca fiquei refém. Teve uma vez que ia virar a cadeia e falaram para eu sair. Falaram: “Sai que vai virar a cadeia”.
P/2 – O quê que é virar a cadeia?
R – Rebelião. Quando matam alguém, matavam alguém ou iam matar alguém, no final, já não tinha muito isso, mas eu cheguei a ver muito morto de, assim, tem coisas que eles não perdoam.
P/2 – Por exemplo?
R – Estupro, por isso que agora tem artigo, cada um no seu… Estupro, caguetagem… Caguetagem eu acho que é pior ainda. Entregar outro, isso eu acho que eles não perdoam mesmo, isso eu acho que até hoje, eles matam. E roubar… Mas aí, já dava uma surra, essas coisas assim.
P/2 – A direção do Carandiru com você dava carta branca, desde que você falasse? Como que era essa relação?
R – Era boa. Era muito boa. Eles me permitiam muito. Eles sabiam que eu queria coisas boas, que a minha intenção era positiva, não tinha nada, não era uma coisa assim, para eu ganhar fama ou entregar alguma coisa que eu visse errado, nada disso. Eu deixava bem claro isso, então, me relacionava bem com eles e era até um problema, porque, muitas vezes, eu saía do presídio, ia na direção lá na frente e muitos presos viam, né? E aí, falavam: “A Sophia vai todo dia para lá, acho que ela vai entregar coisa da gente lá”, então tudo é um falatório, sabe? Tudo é um falatório e só você sabe que não, que você vai lá para pedir autorização para não sei o que, para não sei o que, sabe?
P/2 – E aí, a confiança foi…
R – Foi aumentando, você tem que ter… Você tem que mostrar que você tá ali para fazer aquilo, né? Você não pode pisar, senão…
P/1 – Então, a gente queria saber durante esses 20 anos que você trabalhou aqui, como é que estava a sua vida pessoal, sua vida particular… Enfim, o que você estava fazendo no lado de fora, né?
R – Então, eu acho que eu estava na época do circo. Teatro, circo. E no circo, eu conheci o pai dos meus filhos. Foi uma grande paixão, eu fui muito apaixonada por ele e…
P/2 – Como que era no circo?
R – O circo era um circo que tinha na ponte da Cidade Jardim, era um circo-escola, que hoje é Parque do Povo. E eu bati lá, fazia teatro, aí falei: “Eu quero conhecer o circo”, e muita gente de teatro ia para lá. E logo, conheci o Kiko, mas não foi logo de cara, não. Aí, a gente fez uma peça chamada “Sonho de Uma Noite de Verão”, na piscina e era todo o pessoal do circo, porque tinha todo o pessoal de salto na piscina, não sei o que, trapézio… Eu fazia trapézio. E aí, eu comecei a namorar ele e pra ele, eu seria mais uma das que ele… Ele também era assim, mais uma, mais uma… E eu: “Engano seu querido, não é bem assim, aqui é outro negócio”, e eu deixei claro para ele que eu queria ter filhos e ele achava que eu não ia engravidar, que não sei o que, e de fato, seis meses depois, eu engravidei e ele assustou demais! Ele se assustou muito, não estava preparado e ficou assim… Não ficou… Ficou muito em choque, muito impactado e saía… Assim, aí ele saía, voltava, saía, voltava de casa, a gente nunca foi oficialmente casado, a gente era namorado que morava juntos e tal. Mas foi muito difícil para ele, ele estava fazendo faculdade e eu grávida, ele não querendo aquilo direito, confuso e tal… Ela nasceu em casa, foi um parto incrível e, por sorte, ele estava fazendo o circo mesmo. Ele estava em turnê com o circo, circo brasileiro mesmo e ele tinha três dias de folga: segunda, terça e ela nasceu numa segunda e ele estava. Tiveram episódios horríveis no meio, assim, antes, da mãe dele querer ir atrás dele, a gente ia atrás dele, que não achava o Kiko: “Onde que tá o Kiko?’, mas no dia do parto foi incrível, foi maravilhoso, foi um parto em casa. Meu pai estava, minha mãe filmou e o meu pai perguntou: “E agora você acredita que tinha alguém aí dentro?’, meu pai deu uma nele, assim. E foi incrível, a Julia lindíssima, nossa, a Júlia é uma coisa, ela já nasceu linda, já nasceu sem nada de sangue, assim, linda, cabeluda. E ele ficou… Era assim, uma coisa… Ficou em choque, assim, né? Aí, eu fui tocando, eu era muito consciente de que ele não queria e eu queria ele perto. Então, quanto menos problema eu trouxesse para ele, melhor. Então, no parto por exemplo, eu falei: “Eu não posso gritar porque eu não quero que ele tenha uma má impressão”, então eu não gritei muito. Eu queria ele muito perto de mim, então eu ficava assim: “Kiko…”, então ele de vez em quando aparecia, de vez em quando sumia… Então era sempre assim, quando ele aparecia, era uma festa! Aí, foi indo que ele não sumia de vez, outro filho e aí, veio o menino, mas aí, ele já estava bem mais tranquilo, ele estava com o Cacá Rosset em turnê em Nova York, fazendo também “Sonho de Uma Noite de Verão”, mas não na piscina e ele foi mais de boa, assim, mas o Kiko foi um pai, assim, até quando eles eram pequenos, muito ausente e depois, quando o Jacques era maior e eu já sabia que o Jacques ia me dar trabalho, porque o Jacques sempre me deu bastante trabalho, eu tinha já claro na minha cabeça, quando ele começava a me dar assim… Adolescência, eu vou falar: “Kiko, é todo seu”, e foi exatamente o que eu fiz. Entreguei para o Kiko e o Kiko foi um maestro, pegou o Jacques para ser o primeiro assistente dele no circo, que ele já tinha montado uma escola de circo e aí, o Jacques começou a trabalhar com ele, que foi a melhor coisa que aconteceu. Eu cheguei a trabalhar com ele dando aula para criança e ele teve um câncer terrível de cérebro e morreu em dois anos. E deu uma desestruturação, foi um baque! Foi no ano passado e foi duro para os meninos, foi muito duro! A parte particular estava, mais ou menos, isso, eu fazia teatro, eu fazia… Mas o Carandiru sempre estava ali. Ia muito no Carandiru, tinha os meus filhos que eu sempre fui muito presente. Mas na época em que o Dexter… Que eu comecei a trabalhar com o 509, eu realmente fiquei ausente.
P/2 – Que idade eles tinham? Só pra gente situar…
R – Oito e doze.
P/2 – E você teve eles, você era nova?
R – Vinte e quatro.
P/2 – A Julia?
R – A Julia. Aí, foi duro porque eles, de eu ter me afastado, tiveram uma má impressão, porque terminou mal a história. Porque o Dexter era um artista que estava confinado e que estava, ao mesmo tempo, livre. Então, ele tinha que sair, entrar, sair, entrar… E aquilo para ele era, assim, a morte. Então, ele estava num conflito interno muito grande. Então, ele tá no auge da carreira, tinha que… E todo preso que sai, a princípio, ele não tem que voltar pelos outros presos, ele é vacilão, se ele volta. Ele tinha que voltar toda vez. Ele começou a ficar muito famoso, então ele começou a ter uma pressão interna absurda!
P/2 – Que tipo, assim que ele sofria?
R – Tipo assim: como que ele era famoso e os outros não eram? Os funcionários: como que o cara é mais famoso e eu não sou? Você tá ganhando muito dinheiro. “Aproveita e foge, você é vacilão…”, então era de tudo: pedidos, favores. Era um turbilhão. Então, ele queria entrar e queria… Não queria ficar. Hoje, eu entendo melhor isso, na época, eu não conseguia fazer pedido para todo dia, então eu comecei a inventar: “Entrevista na Rádio Comunitária…”, porque eu percebi que era um pânico, mas era um pânico mesmo, era um pânico. E aí, começou… Aí, se enfiou em droga, foi difícil e foi difícil. Terminou mal. Eu tive que abandonar. E aí, degringolou totalmente. Hoje, a gente se fala, ele me agradece muito, mas passou um tempo aí que era difícil, porque ele casou várias vezes e as mulheres tinham muito ciúmes de mim, me ofendiam e ligavam… Era um caos. Então foi duro, mas agora já tá tudo bem.
P/2 – Ele continuou? Ele ficou ainda?
R – Não, ele já saiu. Os dois já saíram. O Afro-X saiu antes porque ele tinha menos crimes, então era natural que ele saísse antes, mas ele não entendia isso e a população começou a falar que um teve mais privilégio do que o outro, enfim, um monte de coisa. Mas muita coisa não é verdade.
P/2 – Quando vocês se separaram, ele ainda não tinha saído?
R – Não, não, não. E foi duríssimo, porque acabou e ninguém que pegou conseguiu continuar. Não tinha jeito, não teve jeito.
P/2 – Por que você empresariava ele e aí, você…
R – Não só pela minha ausência, foi mais porque o que o sucesso deles foi capaz de fazer e realmente, aquela entrevista do Conte Lopes deu uma… Acabou com tudo ali.
P/2 – Se você puder só sintetizar. Acabou por quê? Além de tudo que você já contou, mas as consequências?
R – Eles não podiam mais sair, não podiam mais fazer show, não podiam mais fazer entrevista, eles ficaram presos, então da liberdade quase total, eles voltaram para o confinamento total e absoluto e pior, castigos, Presidente Bernardes, foi lá… Eles mandaram eles longe, eles queriam ver eles longe, eles não queriam mais essa história, essa falação, essa imprensa, vamos abafar e vamos espirrar!
P/2 – Isso, as autoridades?
R – Porque tomou conta quem não devia ter tomado, né?
P/2 – Mas você estava falando da sua vida. Aí, você… O Kiko…
R – O Kiko faleceu…
P/2 – Mas vocês se separaram?
R – Ah sim! A gente se separou quando o Jacques tinha um ano. E aí, eu já casei com outra pessoa que era um maestro, um músico, que foi assim, um anjo pra mim. Ele foi um anjo, ele me tirou assim, de um buraco. Ele sempre falava pra mim: “Para de fazer esse tipo de trabalho, isso não vai te levar a nada. Isso não vai te dar nada”. E de fato, é o que muitas pessoas falavam: “Para você mesmo, você não tá ganhando nada. Dinheiro…”, e eu não estudei nesse tempo todo, eu não… Era só vida, era só vivência, vivência, vivência e fora, os prejuízos que você tomava, né? Então, não eram flores. Era difícil. Então, mas eu estava lá porque eu queria, então eu mesma falava: “Eu estou aqui porque eu quero”, então, não reclama. Então, aí o Osvaldo começou a falar que eu tinha que parar com aquilo, as crianças começaram a falar que eu tinha que parar com aquilo e era difícil. Eu fui aos poucos largando, largando e não contente, fui para a favela, né?
P/2 – Ainda, você disse: “As pessoas falavam que eu não ganhava nada”, mas você via um propósito? Para você, você estava…
R – Muito forte. Era muito mais forte do que eu. Eu não conseguia parar. O fato de eu ajudar um, ajudar outro. Não era só ajuda, não era só assim, filantropia… Eu não sei o quê que era. Tudo dava certo, tudo dava muito certo. Eu colocava o dedo, dava certo. Então, fluía, mas para mim, talvez, não tivesse fluindo mais. Então, eu tive que parar. E um funcionário uma vez me falou: “Quando você entra aqui, a sua vida vira do avesso e você nunca mais vira”, e aquilo me assustou um pouco.
P/2 – E você acha que era isso, mesmo?
R – Quase foi isso. Quase foi isso. Demorou, hein! Eu demorei um tempão para conseguir reerguer. Foi duro, foi muito duro. Mas eu comecei a ir para… Eu não sei o quê que é, se é desde criança que eu convivo muito com… Uma viagem que a minha mãe me levou talvez já tenha despertado em mim um lado que ficou para o resto da vida, de pessoas humildes e como eu me sinto bem com essas pessoas, como eu preciso dessas pessoas.
P/2 – Que viagem?
R – Eu acho que foi para a Bahia e não tinha nada, a casa não tinha nada. Nada, não tinha nada do lado, não tinha nada, nada. Era só o barraco, assim, de terra batida e eu lembro que eu vomitei muito, eu comi muito salame acho que quando eu estava indo de ônibus, ou de carro, de ônibus. E vomitei muito, mas aquilo me marcou muito. Era muito humilde, mas era… Nossa, o sertão do sertão do sertão do sertão. Talvez aquilo, não sei, porque eu sempre quis estar perto de pessoas mais humildes… Na verdade, eu sempre soube conviver entre todas as classes, entre a classe mais alta, a mais poderosa e a mais humilde. Então, é uma coisa que eu sei permear muito bem. Minha mãe sabe fazer isso, ela me mostrou. E hoje, eu permeio muito, porque eu dou aula para pessoas com muito dinheiro e tem o meu lado da favela que é da favela. E a favela começou quando eu estava lá dentro, me perguntaram assim, um dos chefes lá, porque ele percebeu que o 509-E já estava a milhão, estava tudo andando… E eu era vista como se eu fosse uma fada, né? Assim: “Foi a Sophia que conseguiu”, e não era bem assim. Primeiro que o 509-E era bom, eles eram bons, então eu fiz a ponte, mas então parece que eu é que dei o talento para eles. Não é assim. Então, sim, eu me esforço para conseguir, mas tem também um outro lado. Então, ele veio conversar comigo falando assim: “Eu moro na quebrada, tal, não sei o que, e quero fazer uma festa quando eu sair daqui para a minha comunidade… Uma festa de rap e eu quero que você me ajude”, “Claro, lógico!”, saiu depois de um tempão e me procurou. E eu falei: “Eu quero…”, “Dinheiro não falta”, e não falta mesmo, o Partido tem bastante dinheiro. “Mas eu quero que você faça a grade e convide todos os artistas”. E aí, eu fiz a grade, e aí, veio Racionais, MV Bill, Thaíde… Eu ligava e falava… Foram todos! De graça, não cobraram nada, foi impressionante! E aí, essa festa durou anos! Anos. O Tico foi assassinado pela polícia…
P/2 – Esse dono da festa?
R – Que era o dono da festa.
P/2 – Todo ano ele fazia?
R – Todo ano!
P/2 – Com todos os cantores.
R – E aí, o Tico foi assassinado depois de três anos de festa e a gente continuou tocando e continuou e aí, eu comecei a virar linha de frente, mesmo, da festa. Eu comecei a organizar bem antes, tipo março já estava começando a organizar, fazia a grade das pessoas. Eu tinha uma amiga minha que fazia comigo que também é de lá, e ela já estava querendo sair: “Eu quero parar”, porque queira ou não, a festa é do Partido e queira ou não, se morrer alguém, quem vai ser a culpada? Eu. Aquilo começou a me assustar e eu via as armas, eu ouvia os tiros, as rajadas… Eu via. “Ai meu Deus do céu, se alguma coisa acontece aqui”… era muita sorte não ter acontecido nunca. Mas uma vez…
P/1 – E era para a comunidade?
R – Era para a comunidade. É enorme, enorme! O campo de futebol enorme! Enorme. Imensidão, o palco era uma coisa, o som era uma coisa, era tudo grande, grandioso. E uma vez começou a chover no meio do show, mas chover mesmo! E aí, é impressionante, eles somem, que parece rato que faz assim… sumiu, todo mundo sumiu. E os caras do som falaram assim: “A gente vai embora”, “Como assim, vai embora? Não, pelo amor de Deus”, “A gente vai estar desligando, porque se queimar isso aqui, a gente vai ter que pagar uma fortuna”, e aí, eu comecei a cancelar os artistas seguintes. Quando os bambambã lá souberam que eu estava cancelando: “Você tá louca? A gente paga o ano inteiro para essa festa acontecer e você cancelando? Você tá louca? Você tá pensando que você é o quê?”, “Então, tá, vai lá ver o som”, e aí, começou a ficar um clima meio tenso, eu falei: “Meu Deus do céu, onde que eu estou metida? Pra quê que eu estou fazendo isso?”. Eu comecei a ficar tensa, tensa, mas foi tudo bem, parou de chover, eu cancelei dois, aí vieram o resto e tal, tudo bem. No ano seguinte, a Patrícia já não queria mais fazer: “Não quero fazer”. Ela já começou realmente a se ausentar e aí, era dia das crianças, eu resolvi pedir para uma amiga minha jornalista que tinha feito uma matéria na Vejinha sobre brinquedos. Eu mandei um e-mail para todos os caras que ela conversou, às fábricas e um deles me respondeu. E aí, eu ganhei seis mil brinquedos, um caminhão, mas não é um Vuc, um caminhão grande. “Eu não tô acreditando. Onde que eu vou colocar esses brinquedos?”, “Posso levar para a comunidade?”, “Não pode levar para a comunidade que isso vai desaparecer em dois dias, não pode, você só pode levar no dia, no dia”. Olha, foi um negócio, mas foi uma loucura aqueles brinquedos, bonecas desse tamanho, tudo americano, uma loucura. E nesse show eu fechei com chave de ouro que daí, teve um entrevero terrível de uns caras, porque é aquela coisa, o poder é foda! Você dá o poder para uma pessoa, aí você vê… E aí, eles começaram a achar que eu tinha poder e eu não tinha poder nenhum, não era nada disso. Mas eu não conseguia mais encaixar as pessoas na grade e aí, um queria, outro queria, outro queria, eles começaram a achar que eu estava bambambã, falei: “Quer saber? Não quero mais fazer e não vou mais fazer, chega, acabou”, nunca mais fiz. E aí, eles me imploram para fazer e eu: “Não, nunca mais”. Mas teve uma outra festa que eu também não cheguei a fazer tanto quanto eu faço essa que é no Capão Redondo, que é a Quebrada do Brown também, é perto, e a gente virou super amigos, ele que falava que eu ia roubar o 509, a gente virou superamigo. A gente hoje em dia é super amigo, mesmo, ele me respeita muito e agora, eu faço um puta trabalho na comunidade lá. Foi do nada, eu falei: “Deolanda, quer ter aula de…? Eu dou aula aqui, você não quer ter aula?”, ela falou: “Quero”. Começou com duas mulheres e hoje tá com um monte e aí, eu faço a mesma coisa que eu fazia no Carandiru, eu levo convidados para dar aula disso, sábado agora vai uma bailarina que vai fazer uma puta…O Sommer vai fazer um desfile, foram duas pessoas, uma nutricionista e um pessoa ensinar a cozinhar. E é assim, o foco é saúde, se cuidar, autoestima, a mulher, a mulher ter o espaço dela, porque as crianças ficam esperando, né? “Tia, o que a gente vai fazer?”, tem uma caminhada enorme que a gente faz primeiro, depois, a gente vai na laje, chama “Treino na Laje”, e aí, a gente sobe para a laje e todo mundo faz agachamento… E as crianças já ficam esperando. Então: “Podemos ir na caminhada?”, tem mais criança que adulto agora, né? E para você ver que eles não têm nada, então, uma coisinha que você leve, já é uma atividade e então, estamos fazendo isso e tá crescendo e o Treino na Laje eu quero que fique grande mesmo, porque agora, eu quero ter ajuda de pessoas… Nem é de dinheiro, mas assim, parceiros, material de ginástica ou pessoas que venham sempre dar aula. Eu vou precisar de passarela para fazer desfile, então, isso tudo. Mas eu não consigo viver sem, não me pede para… Assim, para deixar, eu não vou deixar. Eu sou capaz de não ir num jantar para ir na favela, é fácil. É bem fácil, nossa não vou… Muito difícil eu deixar de ir, teve dias que eu tive que ir chovendo, eu fui, nenhuma das meninas queria sair de casa, eu falei: “Vocês não vão ficar em casa, eu vim de bicicleta até o Capão Redondo e vocês ficam em casa? Então, por favor, vamos sair. Aí, saíram cinco: “Tô com dor aqui, tô com dor aqui…”, mas é isso.
P/2 – Sophia, você falou que não consegue. A gente, nesse projeto, está justamente perguntando sobre isso, porque é uma forma de gestão que você faz. E você acabou de dizer: “Eu não consigo viver sem isso”. Essa gestão que você faz, se você puder explicar um pouco assim, como é que você conhece essas pessoas que são umas até famosas? Como é que você articula isso? Conhece desde criança? Porque você faz essa ponte…
R – Eu sou cara de pau.
P/2 – Então fala, você já conhecia?
R – Não conhecia. O Marcelo Sommer? Eu cheguei no ateliê dele e falei: “Oi, tudo bem? Eu sou Sophia”, cheguei no João… No Caco Barcelos cheguei assim, o Caco é o meu melhor amigo. Assim: “Tudo bem? Sophia, prazer, tudo bem?”, na cara dura, cara dura: “Preciso de você, tá acontecendo isso”. No Alexandre foi assim: “Preciso de você, eu trabalho no Carandiru…”, todo mundo abre um zoião desse tamanho e fala: “Oi?”, “Então, tem um desfile de travestis, quer fazer?”, e aí, ele falou: “Quero”, é difícil negar, porque a proposta é muito indecente, entendeu? Não é assim: “Alê, tem um desfile ali com umas menininhas lá do Morumbi…”, não é. É um desfile com travestis do Carandiru, porra mano, é o que é! O João Wainer que é o fotógrafo, foi assim também. Eu vi uma entrevista dele na televisão, estava passando na televisão ali, eu falei: “Opa”, com umas favelinhas no fundo, eu falei: “Essa favela me interessa”, e o João já estava fotografando favela também. É outro também que tem um… Ele e o Caco, o João e o Caco. O Caco já era meu amigo. Aí eu falei… Era um moleque, aí comecei… Na mesma hora, liguei para a Folha de São Paulo: “Por favor, o João Wainer”, “Tal andar”, “Você me passa o ramal dele por favor?”. “João, é a Sophia, tudo bom? Preciso falar com você”, “Cola aí”, “Tá bom”. “Oi João, é o seguinte, tô fazendo um desfile”, “Tô dentro”, é assim. Cara de pau mesmo. E a proposta é boa, eu sei que a proposta é boa e o Treino na Laje também é igual, mas eu sou… É assim, eu sou uma produtora que tem momentos que tem que ser chata. Então, eu ligo… Segunda-feira eu ligo: “Tudo bem para sábado?”, “Oi? Tudo bem? Vamos lá”, aí a pessoa quinta-feira me liga: “Nossa, não vai dar pra eu ir”, “Jura por Deus?”, aí é péssimo! Semana passada teve uma dentista que é minha aluna no Morumbi, eu falei: “Quer?”, “Quero”, “Quer mesmo, né? Tem certeza?”, aí fomos, por exemplo, não chegou todos os kits que ela levou, ela levou um kit para cada um de escova, flúor… Não tinha chegado, aí eu tive que cancelar e eles não gostam de decepção, sabe? Porque eu acho que já apanharam tanto na vida e eles começam a desacreditar, eu tenho que ser firme: “Olha gente, é o seguinte, são pessoas de primeiro nível que eu estou trazendo aqui, são pessoas que a consulta, eu não consigo pagar, tá? Então, queria que vocês entendessem que não é assim: estou à disposição. Não! Prometeram que vinham, tudo bem, mas podem acontecer imprevistos. A única que não tem imprevisto sou eu que pode ser que caia o mundo, eu venho. Mas acontece. Então, vamos de boa relaxar, tá? Aí, a bailarina também cancelou, elas nem ligam mais, elas nem contam mais. Então, vamos fazer o seguinte? A gente nem conta mais, se vier, é lucro. Aí, ela foi, a dentista e pior, ela vai atender um por um que tem urgência no consultório dela! “Eliane, você tem certeza do que você tá fazendo?”, porque vai ter um monte de gente com cirurgias caríssimas de implante, nossa, uma loucura! Mas então, agora é isso. As pessoas querem conhecer o outro mundo e têm medo. “Posso levar a minha câmera?”, ”Mano, pelo amor de deus, pode! É de boa lá. Já aconteceu de eu ser roubada lá na favela. Eu estava gravando nessa favela aí, nessa aí, eu estava no ponto de ônibus, voltando para casa, lá atrás, foi muito idiota o cara, né, vamos combinar! Eu estava gravando eles, a festa… Eles também têm uma festa igual da outra, só que bem menor, só que eu fiquei encantada com os dois que dirigiam a festa, são dois irmãos muito retos: não bebem, não fumam, não bebem cerveja… E convivem com o crime, assim, ali, parentes, presos, todo mundo fumando beck, cheirando e eles ali… Eu comecei a ficar impressionada com aquilo e como eles conseguiam imobilizar tudo para parar a rua, o DSV tem que ir lá trocar, o CET, o trajeto do ônibus… Eu falei: “Cara, como que vocês conseguem?”, e fui fazer um documentário deles. E estava gravando, gravei o dia inteiro. Estava no ponto de ônibus e me roubaram, levaram a câmera! Eu voltei e falei: “Ah, mas é besta, meu Deus do céu”. Falei: “Então, a câmera levaram, “Como assim?” “Levaram, eu estava no ponto, levaram.”, “Ah é?”, em dez minutos acharam o cara. Mas deram uma sova no cara! É isso. Então, é muito louco a favela. É uma coisa assim, que você fala… E tem o lado difícil… Tem um lado muito legal, mas quem vive o dia a dia da favela… A minha mãe acha que é linda a favela: “Porque é um glamour, não sei o que…”, porque a criança fica livre… Quando você começa a conviver com a favela e com o presídio, a mesma coisa, as fofocas vêm, mas nossa! Uma coisa! Uma coisa que é isso vira isso, não param de falar daquilo. “Gente, pelo amor de Deus, parem de falar disso. Vamos mudar de assunto?”, sabe, porque a fulana… E dá-lhe, nossa senhora… caramba! Mas é assim que eles vivem, só que para mim, não me faz bem isso, então eu falo: “Não fala comigo, não quero saber”, então eu só quero levar coisas que elas usufruam e olha, vazar. Porque senão, eu começo a ter esse tipo de convivência que eu não quero, de intriga um com o outro… Isso é intriga, tem muita intriga. Em qualquer comunidade tem, mas como lá, eles não têm privacidade, é um apinhado no outro. É assim, a porta desse dá para a porta do outro, não tem luz na casa, não entra sol. A viela que você anda é assim, cabe uma pessoa. Se você tivesse fugindo da polícia ali você estava lascado, ou você conhece muito… Você tá lascado, porque é muito estreito. Saneamento básico não tem. Então é assim, é cruel! Então, todo mundo sabe da vida de todo mundo, não tem assim: cheguei em casa, vou pôr os pés pra cima, não é! Aí, tem a criança que fica ali o tempo todo… É uma realidade dura e tá assim, atravessou a ponte, tá ali, da ponte para cá, da ponte para lá. Você atravessa a ponte, você já começa a perceber.
P/2 – E Sophia, você comparou com Carandiru, inclusive.
R – É igual! Vê se tem rico no Carandiru, não tem! Agora tem um pouquinho mais, mas mesmo assim, não é a cadeia do Carandiru, é a mesma população. População que não tem direito ao ensino, à saúde, e eles se viram muito bem, eles têm que querer muito para ser alguém, muito, com muito afinco. Muitos são trabalhadores, a maioria é trabalhador, poucos são do crime porque eles sabem que o crime não compensa, que o crime vai ser isso, não compensa mesmo. Ele vai ficar fugindo direto da polícia. É um saco, é um inferno. Então, é legal, a polícia dá batida direto neles, neles, né, a polícia com eles… Em vez de dar batida aqui, não, dá batida lá. Você apresenta o seu RG, estou limpo, é legal. Entendeu? Porque ficar fugindo da polícia é um inferno.
P/2 – E Sofia, voltando só. Eu ia pedir para você contar do desfile como foi depois o desfile, que a gente…
R – O desfile foi apaixonante.
P/2 – Onde foi? Foi lá, também?
R – Foi lá. Foi uma coisa, assim… Ele foi… Ele conversou uma por uma… Ele vai fazer a mesma coisa com as meninas. Ele conversou uma por uma e eu não participava disso, eu não soube disso direito, porque era… Eu estava muito na correria, quando eu chegava lá, então, eu falava: “Sommer, toma e…’, ele conversava com cada uma e perguntava o quê que ela queria ser: “Como que você se vê?”, “Me vejo como uma noiva”, a outra se via como a diaba, a outra se via como não sei o que. Então, cada uma foi um personagem. Foi incrível! E terminou com uma noiva, maravilhosa e aí, recebeu… Fernando Pires deu sapatos, perucas maravilhosas, cabeleireiros e todos foram, todo mundo de graça, tudo de graça…
P/2 – Roupas…
R – Tudo! O Sommer deve ter tido um gasto, né? Mas para ele ia ser legal. E ele fala até hoje: “A coisa mais forte que eu fiz na minha vida”, ele fala: “Você tem crédito comigo porque…”, só que a gente tinha um porém, a gente não podia divulgar, porque quem que ia querer divulgar um desfile de travestis naquela época? Não dava! E o Sommer levou alguém e eu fiquei puta com ele, porque ele divulgou no “Estadão”. Mas tudo bem. Já passou, Agora eu falo: “Agora Sommer, você pode divulgar até em Minas, divulga mesmo”.
P/2 – Mas quem que colocava algum empecilho para divulgar?
R – A Secretaria de Administração Penitenciária. Era essa a condição: pode fazer, mas não me divulga, se divulgar… Entendeu? Mas foi incrível! Visita de tudo quanto era jeito. Eu convidei um monte… Tinha muita gente. E a gente fez um leilão também de quadros, e com o Magalhães Gouveia, Roberto Magalhães Gouveia, um puta leiloeiro.
P/2 – Nesse dia?
R – No mesmo dia. E é isso. Eu convidava sempre assim, sempre o top. Ele não vai negar. Se tiver um pouquinho de interesse, ele aceita, entendeu?
P/2 – E agora na favela, a mesma coisa?
R – Mesma coisa. Eu convido sempre os tops, assim, o meu professor de ioga, pô, já foi umas três vezes, a bailarina tem que ser a melhor e eu não tenho dó, não, eu vou para as cabeças, mesmo.
P/2 – O quê que você mais aprendeu nessa vivência toda no Carandiru?
R – Respeito, assim, não humilhar ninguém. Eu tive algumas coisas… Teve um momento, um dia que a gente estava ensaiando teatro e eles ficaram até mais tarde e aí, eu acho que um deles aproveitou o tempo para ficar mais tarde ainda. E ele ficou preso numa gaiola assim, sabe? E aí, quando eu fui embora, ele ficou me chamando: “Sophia, vem aqui… olha onde eles me deixaram…”, e eu não tenho como interferir na regra do… E aí, no dia seguinte, eu chamei todo mundo e era muito grande o lugar, aí eu chamava todo mundo para vir assim e tal e de vez em quando eu usava um apito e era péssimo esse apito, porque depois eu vim saber que eles odiavam o apito, porque parecia polícia. Eu nunca me tocava disso. E nesse dia aí, eu falei assim: “Então, gente, aconteceu ontem uma coisa ruim e tal, o cara saiu e aí, ele foi fazer o corre dele e tal, aí ele ficou preso ali e ele quer que eu solte, eu não tenho condição, não dá… pô, o cara foi o maior vacilão…”, nossa senhora, por que eu fui falar aquilo? Assim, caiu o mundo, assim, sabe? Eu senti… Eu falei: “Meu Deus do céu, o quê que eu fui falar?”, sabe?
P/2 – Qual foi a reação deles?
R – Foi assim, como se fosse num estádio e um gol contra, sabe? Eu falei: “Nossa, essa palavra você não pode falar aqui, você não pode falar isso”, “Me desculpa”, mas você acha? Não adianta eu pedir desculpas, eu já falei! E depois lá? Quando ele chega e vão falar: “Sophia falou que você é vacilão…”, nossa senhora! Esse tipo de coisa, sabe, você tem que saber o que você vai falar, saber não ofender as pessoas, muito cuidado, porque são pessoas já muito humildes e isso é uma coisa que eu levo assim, sempre! Cumprimentar e saber… As pessoas são muito sensíveis, sei lá, acontecem umas coisas que você fala: “Não acredito nisso”, tipo, a pessoa não… Eu não cumprimentei a pessoa como ela me cumprimentou, a pessoa fica meio… Então, você tem que tomar cuidado com certas coisas de ação, de comportamento e não ofender, tratar todo mundo da mesma forma, mais ou menos, isso. Tem leis lá muito fortes, né, que realmente não pode contar de um pro outro, a caguetagem, né, a famosa! E é isso. Foi muito aprendizado, foi! Mas eu acho que eu precisava passar por isso, eu acho que era uma coisa que eu precisava passar. Não sei, eu tinha que passar por isso, não sei se foi um resgate, eu não sei. É a mesma coisa que perguntar para o Dráuzio: “Por que você trabalha até hoje no presídio?”, é a mesma coisa, a gente não entende muito bem. Deve ter alguma explicação, deve ter, certeza!
P/1 – Eu tenho uma pergunta, já meio que fechando, assim, até, porque a gente tá aqui dentro do Espaço Memória Carandiru e eu queria saber para você, o que é esse espaço, o quê que ele representa?
R – Esse?
P/1 – Esse aqui que a gente tá, né, porque ele é um fruto de tudo isso, também. E ele tem aí, uma história, a gente estava falando, ele é uma história para o futuro, então como é que você vê esse espaço? Esse aqui, que a gente tá, como ele está?
P/2 – Que história tem a ver com esse espaço? Como é que a gente faz essa relação?
R – Então, aqui tem trabalho de várias pessoas, do João, aquele é outro fotógrafo, e trabalho manual de várias pessoas também. Então, é um compilado de muitas pessoas que trabalharam, que moraram no Carandiru, que trabalharam no Carandiru e que também fizeram desse trabalho uma parte da sua vida. O João até hoje expõe essas fotos, revistas amam essas fotos, daquele dia que eu vi ele na televisão… Então é assim, deu muito fruto para várias pessoas e o mais lindo é as pessoas que eu consegui que conseguissem voar, né, que é o Talentos Aprisionados, tirei da gaiola e voaram. Então, isso me dá uma grande gratificação. Eu ouço, não sei, mas eu ouço muitas pessoas falando: “Você não tem noção de quantas pessoas você ajudou, uma coisinha que você fez aqui, uma coisinha que você fez ali, ou então…”, e eu não me poupo em ajudar. Então, isso sou eu, assim, então, se eu precisar ajudar, eu vou ajudar (choro/emoção), continuo ajudando, não sei o porquê. Eu posso estar na rua, se a pessoa precisar achar um negócio, não sei o que, eu vou dar a maior informação possível para a pessoa chegar. E acho também que a pessoa tem que ser… Eu dou a ponte, mas a pessoa tem que seguir. Eu não quero ficar de babá, não sou babá, eu abro a porta, mas eu tenho esse trabalho que eu estou fazendo agora é isso: tudo que eu aprendo, eu quero passar para elas. Então… E com eles foi igual. Não sei.
P/2 – Se a gente pudesse falar de liberdade, teve momentos que essa liberdade apareceu lá dentro ou ao contrário? Alguma sensação…
R – Eu nunca me senti presa lá dentro, né, porque eu não estava presa. E quando eu saía de lá, eu sabia muito bem que eu tinha um lugar para ir. Então, pelo contrário, quando eu entrava, eu estava muito… Eu percebia o valor que eu tinha. Eu acho que é isso, também. Então, a liberdade de você poder fazer o que você quer e você ainda ser reconhecida pelo o que você faz. Eu acho que isso é a melhor coisa para todo mundo, né? Quando a pessoa não tem reconhecimento, por mais que ela faça alguma coisa, a autoestima dela vai lá embaixo e aí, começa um processo de degradação, de depressão. Então, eu acho que isso é você gostar do que você faz, eu gosto muito e quanto mais você gosta, mais você é reconhecida. Então é isso.
P/2 – E pensando nas pessoas que você fazia esse trabalho, fazendo uma relação com elas, você vê alguma… Ou melhor, você vê alguma relação disso com elas? De uma situação que elas vivem também assim? Você falou em autoestima, falou em reconhecimento, falou em realização… se isso pode ser uma história, assim, que é assim que acontece ou não?
R – Não, as pessoas que eu ajudei, eu sei que eles estão muito bem. A dupla tá melhor que eu, quase, de dinheiro tá melhor que eu. Mas acho ótimo, acho legal e não preciso de tanto assim. E quem não está bem é por motivo de saúde que realmente… O Luiz Mendes é um cara que foi incrível o que aconteceu com ele, né, porque ele lançou o livro pela Companhia das Letras, quer dizer, não tem coisa melhor, né? Então, só que ele viveu 32 anos preso e ele causou mesmo, ele causou muito e então, a saúde dele, agora…
R – A condição de saúde que impede da pessoa ser tão melhor, mas eu sei que muita gente… assim, não é ajuda, é assim, se eu posso dar a dica, vamos lá, né? Vamos distribuir o que você sabe, não é nem dinheiro, é a ferramenta de como fazer: “Essa ferramenta, te dou a ferramenta, você vai lá e faz”.
P/2 – O Luiz Mendes, vocês também tiveram uma participação?
R – Sim! O Luiz Mendes foi aluno do Fernando Bonassi. E aí, o Bonassi… o Bonassi passou um tempo lá, passou uns… Ah, nem sei, mas passou um tempo, um bom tempo. E um dia, o Luiz… Ele era um dos professores, o Luiz e aí, ele que falou da escola, ele que foi o primeiro a falar da escola para mim, que tinha que reformar e tudo. E aí, o Luiz falou com o Fernando e, um dia, depois de muito tempo conversando com o Fernando, o Fernando foi muito… Ele teve uma conexão muito boa com eles, eram poucos, eram nove, mais ou menos. O Luiz entregou um calhamaço assim escrito à mão, com uma letra incrível, ele escrevia com a régua embaixo, assim. O livro pronto, pronto! Aí, o Fernando levou para o Schwartz que falou: “Vamos publicar”. E hoje ele é colunista da Trip e faz vários trabalhos, faz várias palestras. Tem outras pessoas que eu também sei que estão bem, a gente lançou um outro livro que era… Nem lembro direito. Eram poemas, poesias assim. Mas assim, o que podia fazer, a gente fazia. Só que, além de ter que ter um certo talento para poder ganhar um pouco mais de espaço, tinha que conseguir alguém que… O outro lado da ponte, né? Então, eu tinha eles que tinha algum talento, então tinha que conseguir alguém aqui desse lado da ponte. De uma certa forma, eu conseguia para todo mundo que eu via que tinha talento, mas alguns ainda talvez não, mas o máximo que eu conseguia, eu consegui.
P/2 – Sophia, falando do Espaço Memória Carandiru, a Priscila já perguntou, mas eu vou pedir para você falar um pouco o quê que isso aqui, o que tem aqui representa pra você, quanto tudo isso que você construiu, revela coisas ou não? Um trabalho que depois, alguém fez a partir do que você construiu? Faz a liga com o Espaço Memória se você puder.
P/1 – O Espaço enquanto Museu, né, como é que você vê?
P/2 – Assim, de tudo que você fez, tem coisas aqui. O quê que isso tem a ver, resumindo, tá, a pergunta é a seguinte: o quê que o Espaço Memória Carandiru tem a ver com o que você contou pra gente até agora?
R – Eu acho que a gente coletou várias coisas, né, objetos pessoais deles, um filtro, tem um filtro que foi feito com o meu nome ali. Essas camisetas. A gente ia passando e a gente ia pedindo as coisas: “Podemos ficar com isso aqui?”, um chuveiro, as armas… Foi bem no finalzinho isso, né? Porque eu não tinha essa ideia de que ia fechar, eu fiquei sabendo mais pra frente. Então, é um período que já estava muito no final, né? Se eu soubesse antes, eu poderia ter coletado muito mais! Eu acho que a história tá mais aqui, né, ela tá mais dentro. Tanto que eu vi, mas eu vi muito
, assim, né? A história tá aqui, tá muito aqui, tá muito dentro de mim, eu ganhava muitos presentes que eles faziam manualmente, mas, por exemplo, se eu vejo aquilo que eles faziam na Educação Física é muito engraçado, né? E eu vi aquilo sendo movimentado, eu vi aquilo… Eu lembro deles treinando, eles treinavam pesado. Então, pra mim isso tá parado, é uma coisa parada. É legal que é uma memória, mas tá parado, né? Tá parado. Então, eu lembro deles fazendo aquilo… Então, me remete ao tempo que eu estava lá e, por exemplo, tinha um quarto de pipa só com pipa, muita pipa, mas assim, era muita pipa e nas paredes, um monte de mulher pelada, né? Mas era um cenário, o Carandiru era um cenário. As portas pintadas, era incrível, mesmo! A criatividade deles… Não de todos, mas é uma coisa assim, não só a criatividade, como também a inteligência. Só que eles usam de uma maneira errada, mas eu cheguei a ver túneis de fuga que você fala: “Não é possível”, eles reproduziram a parede exatamente igual e fizeram o túnel naquele cantinho ali. Então assim, eles são engenheiros, são arquitetos, são… Só não tem diploma, né, têm diploma de ladrão (risos). Mas assim, senão eles não conseguiriam fazer o que eles fazem, né, os assaltos que eles fazem. Pô, tem assalto cabuloso, como eles falam, né? Mas eu sou muito mais da ação, entendeu? Eu sou mais da ação assim, quando eu vejo uma coisa parada assim, me dá um pouco de… Não sei, eu quero ver as pessoas aqui, eu quero ver isso se movimentando, é como se eu quisesse abrir aqui e movimentar de novo tudo e voltar àquela época que estava lá, né? Para quem não viu, quem não passou, dá para mostrar, mas não dá… Não dá porque o cheiro não tá aqui, as pessoas não estão aqui, principalmente, as pessoas, as vivências, né? Tá no que eles fazem, mas nossa, cada cabeça que tem lá, cada cara… Cada conversa que você tem, assim, cada pessoa, né, pessoas bacanas, pessoas também não bacanas. De tudo, é uma vida, mesmo. Como eu falei, eu não perguntava o artigo deles, né, nunca perguntei. Uma vez eu soube do pior artigo que podia saber, né? E foi péssimo eu saber porque daí, eu já via aquele cara como: “Porra, o cara estuprou…”, então eu preferia não saber, mesmo. E tratava todo mundo exatamente igual. E para mim, não interessava se ele estava preso, se ele não estava preso, ele era um ser humano. Agora, não vem ser folgado, tipo assim: “Eu tô precisando de uma oportunidade”, “Pronto, lá vem”, aí: “Você tem quantos irmãos?”, “Tenho sete” “E quantos são presos? Quantos estão no crime?”, “Eu” “Os outros estão… A oportunidade foi dada a mesma coisa e cadê? Não estão aqui”, então não vem com essa: “Olha os cordão de ouro que você tá…”, isso aí não é oportunidade, isso aí é folga. Então, eles são muito folgados também.
P/2 – E você chegava a ter esse diálogo?
R – Eu falei tudo isso. Então, eles sabiam que eu não era besta. Eu não tenho dó de você, não tenho dó de você porque você fez alguma coisa para estar aqui, não vem dizer que você foi esquecido, que foi por um engano, não é verdade. Então, eles perceberam já que não era dó que eu tinha, era uma outra parada. Então… E nunca tenho dó mesmo, não tenho dó mesmo, nem… São condições de vida, o cara procurou estar ali, ele não teve dó da mãe dele quando ele foi para lá, realmente, não teve porque a mãe dele passa por um perrengue para chegar lá e vê-lo, então tem um lado do preso que é um lado cruel! Cruel! Ele quer saber dele, exclusivamente, dele, não tá pensando no outro, mas não tá mesmo! E isso, as pessoas que conviviam comigo começaram a me falar, então você começa a perceber que existe um lado cruel, assim, que você tem que se defender, que você tem que saber se posicionar, porque senão, ele te engole e aí, já era. Já era. É isso, mas são ótimos, mas também são ligeiros, mas eu também sou (risos).
P/2 – Você quer falar… A gente já vai terminar daqui a pouco…
R – Eu acho que não, eu acho que eu falei tanto, né?
P/2 – Se tem alguma coisa que a gente não perguntou e você queria contar… Até mais do presente.
R – Não, hoje como eu falei, eu sempre tive atividade física junto comigo, desde a dança, eu descobri a ioga e que me deu assim, um norte, super norte assim. É uma ioga muito vigorosa e hoje eu vivo à base de dar aula de ioga, dança e tudo com o corpo, mas eu resgatei a minha vida, porque, de fato, eu trabalhei muito tempo me doando para eles e não pensei muito no meu sustento, na minha vida, no meu futuro e eu comecei isso muito tarde, quando eu consegui encerrar esse assunto e ponderar se eu faço de novo, que eu falei que eu continuo, mas não é todo dia. Então, é uma vez por semana, não que eu não trabalhe nisso durante a semana, mas eu não vou até lá, eu vou lá no máximo duas, se tem feriado, mas o resto eu vou ganhar dinheiro que é uma coisa que eu nunca fiz, nunca! E não é muito dinheiro, é um pouco de dinheiro, mas agora eu estou ganhando o meu dinheiro. E isso é uma coisa, assim, pelo o que eu fiz. Assim, tudo que eu; eu poderia ter ganho muito dinheiro, mas se eu ganhasse, se eu fosse contratada para fazer, eu não teria liberdade de fazer do jeito que eu fiz, de fazer como eu fiz. Então, eu fazia do jeito… Eu ia a hora que eu… Eu ia todo dia cedo, mas não tem ninguém: “Precisa fazer isso, precisa fazer aquilo…”, então isso é muito bom. É incrível! Você faz… E você trabalha mais ainda, né? Mais do que alguém que é contratado, porque eu tô aqui porque eu quero, quero que dê certo, então é isso. E agora eu tô super… Assim, estou bem no trilho assim, eu achei um trilho da ioga e dando aula, só que a idade vem, né? Então, assim, foi talvez fora um pouco da hora assim. Eu sinto, por mais que eu tenha muita disposição e o meu corpo responda muito, mas a gente sente, sente que tem certas coisas que as articulações já estão diferentes. Então, eu sinto que isso vai me prejudicar. Se eu tivesse feito isso que eu estou fazendo antes, teria sido melhor. Mas preferi trabalhar para os presos.
P/2 – E quando implodiu, você teve alguma reação?
R – Ah, já não era mais nada para mim. É o que eu te falo, quando aqueles meninos iam de bonde, aquela cena era muito forte! Era um pouquinho que ia cada vez, assim… Aqueles bondes assim, era terrível, que eles iam de cabeça pra baixo, mão pra cima, Rota, escudo, batendo, aquele drama, aquele teatrão, aquela coisa “maravilhosa”, aqueles camburões… Aquilo pra mim, pelo amor de Deus. E aquilo… Ali foi encerrando pra mim, foi matando, matando, foi um… Eu ia… Em cada bonde que eu via, era um que estava diariamente comigo e não podia nem falar com ele porque ele tava olhando para baixo, se olhasse, levava uma porrada, então… Aquilo já foi indo, foi indo, foi indo e foi dissolvendo, dissolvendo… E agora tá aí, muitos morreram, porque morrem mesmo, cedo e muitos estão aí, alguns têm contato comigo e é isso. Vida que segue, né?
P/2 – Então, você falou que já falou. Mais alguma coisa que a gente não perguntou que você quer falar?
R – Acho que não.
P/ 2– Sonhos?
R – Ah não! Agora estou nesse projeto aí, no Treino na Laje, eu quero que ele dê certo. Eu quero que replique em outras comunidades e que as mulheres tenham… não que sejam só mulheres, podem vir homens também, mas é assim, que eles pensem mais neles, na atividade física e pensar um pouco mais saudável, porque vai desde a alimentação até a atividade física, né, até a autoestima e tal. Eu me cuido muito, então é assim, não toma tanto refrigerante, não toma… E você começa a falar e falar e eles começam a escutar. É isso. Eu queria que replicasse mais, porque realmente, as favelas, elas têm uma alimentação péssima porque quer, porque não têm informação. Mas é isso, eu quero que isso dê certo, estou nessa pegada agora, disso. Adoraria se pudesse fazer… Se eu pudesse administrar isso, assim, por exemplo, se eu tivesse um lugar onde hoje é tal lugar, hoje é tal lugar, para ficar uma coisa assim, disseminar mesmo, em várias. E eu ser a pessoa que vai pilotando ali: “Tal pessoa vai em tal lugar…”, isso seria um sonho.
P/2 – Muito bom, então a gente tá concluindo. Sophia, o que você achou dessa entrevista?
R – Achei muito legal. Eu queria talvez… As pessoas me falam que eu tenho que escrever um livro, por isso que eu estou gravando aqui que é para… Apareceu várias vezes, né, tem uma pessoa que tá começando nessa aventura aí. Muita coisa eu esqueci, é uma pena, porque as coisas vão se dissolvendo, né? Foram anos intensíssimos, muito intensos, foram episódios que eu tive lá dentro muito intensos que eu não vou conseguir recuperar tudo, mas eu acho que esse tipo de entrevista vai recuperando, você vai puxando lá do fundo.
P/2 – Já tá aquecendo para o livro que vai ter muito mais páginas.
R – É!
P/1 – Você vai lembrar, viu! Você vai puxando, você vai lembrando.
R – O André… O André tem uma memória de elefante! Vocês tirem tudo do André, que o André sabe tudo!
P/2 – Mas, olha, para nós foi maravilhoso, viu! Muito obrigada.
P/1 – Uma delícia.
P/2 – Por mim, eu queria perguntar muitas coisas, mas a gente tem que seguir na cronologia e tal para também, abordar tudo…
R – Que ótimo, satisfez?
P/2 – Oh!
R – Então ótimo.
P/2 – Obrigada, viu, parabéns!
R – Imagina (risos).
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