Ivete Castro Terra repudiou um casamento que tentaram lhe impor aos quinze anos. Isto lhe valeu a pecha de ovelha negra da família. Não contente com isto, mais tarde se casou com um italiano anarquista que nem direito nossa língua falava: o Sr. Francesco Scorsi. No início do século XX isso nã...Continuar leitura
Ivete Castro Terra repudiou um casamento que tentaram lhe impor aos quinze anos. Isto lhe valeu a pecha de ovelha negra da família. Não contente com isto, mais tarde se casou com um italiano anarquista que nem direito nossa língua falava: o Sr. Francesco Scorsi.
No início do século XX isso não era o destino que se esperava de uma moça estudada e descendente de uma
tradicional família mineira. E minha avó foi deserdada.
Mas quando isto ocorreu ela já tinha mudado para junto ao grande amor de sua vida: para Avaré
no interior de São Paulo onde meu avô trabalhava construindo pontes na região. Isto implicava em ausências de sua casa; ausências que se prolongavam devido à sua militância que muitas vezes exigiam a clandestinidade. Em uma delas, no início dos anos 30, minha avó, grávida, perdeu o bebê ao ser informada que haviam ateado fogo na cadeia que meu avô estava preso.
Suportava uma vida de privações, mas quando um seu recém nascido morreu de meningite, resolveu abandonar o teto conjugal e mudar com suas três filhas para Santo André, no início dos anos 40.
Por um breve período morou na Rua Belém e em seguida mudou para a Rua Visconde de Mauá, 172; em uma das casas da Tecelagem Ipiranguinha onde duas de suas filhas trabalhavam. Em 1950 minha mãe casa com um metalúrgico
e mudam para a atual Travessa Sorocabana, a alguns metros dali, onde, a 28 de Janeiro de 1955 nasci, segundo filho de operários.
Meu nome é Edir Linhares e cresci em meio
a uma comunidade que tinha as relações de trabalho como fator de coesão social.
Até 1964 tive uma infância democrática afetada pelo vigor do movimento sindical da época que nos alcançava através das conversas ouvidas entre os adultos sobre o assunto.
Dessas conversas sabíamos da participação dos outros pais nesses movimentos e daí que, para ofender mesmo um coleguinha, não xingávamos sua mãe; apelávamos para a suprema ofensa e dizíamos :
- “ Seu pai furou greve ! “ –
Seguia-se uma discussão entre os desmentidos da criança acusada e os testemunhos invocados entre os demais presentes que quase sempre concordavam com a acusação para jogar mais lenha
na fogueira. Um verdadeiro pandemônio que atravessava o dia afora.
Aos cinco anos o que
sabíamos de uma
greve era
que ela acontecia porque o patrão era mau e que o combinado coletivo para enfrentá-lo era mais importante que qualquer interesse pessoal. Nada além disto.
A importância da união coletiva e de uma greve era um valor afetivo que assimilávamos dos adultos que amávamos, nunca um conceito bem definido.
As crianças eram
impactadas mais pela emoção das falas dos adultos em
vários
dialetos. Eram de várias regiões do mundo e do país; todos foragidos da injustiça social e/ou
violência política e estas avarias na condição humana é o que os identificava como um sentimento comum.
E as crianças, melhor que ninguém, capturavam essa emoção e a traduziam em uma linguagem que transcendia a lógica das palavras, das frases.
Naquela rua havia famílias de varias origens: portuguesas, espanholas, italianas ,alemãs e brasileiros de vários sotaques. E os japoneses. Onde hoje é o Parque Central havia dezenas de chácaras deles e nossa diversão principal era pisotear suas plantações destruindo suas hortaliças e seu ganha-pão.
Fazíamos isso para que corressem atrás de nós, mas creio que, vindos de um país pequeno em um navio menor ainda, a ideia de serem acuados pela população enfurecida daquele imenso continente ocidental defendendo suas crias era uma imagem esmagadora.
Porém um dia perderam a paciência e começaram a atirar em nós com espingarda de sal.
Quanta emoção!!!
Fugimos com o coração palpitando e fomos contar a façanha para os moleques mais velhos. Estes nos instruíram como usar uma “ronqueira”; uma pistola artesanal improvisada com uma espoleta rudimentar na extremidade de um cano onde, na outra, colocávamos pólvora e chumbinhos, socavamos com um pilão e disparávamos contra os japoneses.
Foram as mães de ambas as partes (mãe não tem nacionalidade) que negociaram um armistício
e nos foi cedido uma área para o nosso campinho de futebol. Só soube deste acordo mais tarde; pois se soubéssemos que tínhamos conseguido aquilo à bala, certamente teríamos avançado em nossas pretensões.
Também tinha o Casarão dos Novita (onde hoje é o ginásio Celso Gama e a Casa Publicadora, onde hoje é o Shopping ABC). Ambas tinham excelentes pomares com cachorros.
Excelentes porque tinham cachorros.
O desafio era entrar no pomar, pegar as frutas, fugir dos cachorros e saltar o muro de volta. Ganhava quem trouxesse mais frutos.
Invariavelmente um cão nos pegava. Mas não eram os pit-bulls de hoje que estraçalham criancinhas. Simplesmente nos encurralava junto ao muro até a chegada do dono ou de um funcionário. Estes, fingindo irritação, nos perguntavam se queríamos levar uns sopapos ali mesmo ou que chamassem nossos pais. Preferíamos leva-los ali mesmo porque os sopapos dos nossos pais eram de verdade.
Eu, Claudio e Renato, em
torno dos cinco anos, frequentávamos a turma dos de oito porque nossos irmãos mais velhos faziam parte dela. Como mascotes. Mas tínhamos nossas atribuições para fazer jus ao privilégio. Nas tardes quentes de janeiro, quando a molecada derretia estendida em torno do campo de futebol, sem coragem para encarar uma pelada, de repente se ouvia:
- “ Edir, o Renato disse que você é um filho da .... !”
Fingíamos que não ouvíamos mas a voz repetia:
-“ Edir . . . . . . . . . . “
Sabíamos que era mentira e que os mais velhos precisavam da diversão de uma boa briga para espantar o tédio.
Levantamos sem o menor ânimo e os primeiros golpes eram chochos sob a vaia dos assistentes. Mas de repente alguém acertava uma porrada de verdade e a briga começava, sob os guinchos e uivos da platéia; e só terminava quando um adulto passava por ali e acabava com a carnificina.
Eu já era um delinquente infantil e estava seguindo esta trajetória, prestes a assumir a liderança do grupo da turma de minha idade devido a ordem natural das coisas: o ritual de passagem dos mais velhos, de crianças a adolescentes. Em torno dos onze anos, eles estavam começando a se interessar por garotas.
Um dia eu, meu irmão e o Mauro estávamos no campo da Portuguesinha, um local ermo perto dali. A uns trinta metros, lá estavam também as duas irmãs italianinhas, com fama de namoradeiras fogosas.
Eram bem mais velhas,
uns catorze / quinze anos, mulheres feitas; e
entre olhares e risadinhas estavam dando mole para a gente.
Duas meninas para três meninos.
Então eu, entre os dois mais velhos, ouço:
- “Edir, vai embora
!”
Olhei os dois e do alto do meus oito anos, exclamei:
- “Por que eu ?”
- “ Edir, . . . vai. . . .embora !!!”
- “ Eu . . . . .não. . . .
vou . . . embora !!!”
-
“ EDIR, VAI EMBORA!!!”
- “ EU. . . . NÃO. . . . VOU . . . . EMBORA!!!”
E eu não ia e ali fiquei certo de que não teriam coragem de me bater na frente delas. A coisa de prolongou por uma meia hora até que ELAS foram embora.
Os três ficamos, estáticos, olhando elas desaparecerem . . . . . . . . .
.no horizonte e, . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . muito vagarosamente, . . . . de nossas ilusões.
Então eu, entre os dois, senti os seus olhos, . . . . . muito vagarosamente, . . . .
se voltarem para mim.
Olhos homicidas.
Nunca corri tanto em minha vida.
Mas não segui minha trajetória de crimes e a responsável por isso foi minha mãe. Em 1962, aos sete anos eu já era alfabetizado mas foi ela quem me ensinou a ler.
Jogou em minhas mãos livros que atiçavam minha imaginação: Julio Verne; Monteiro Lobato: Viriato Correa e outros.
Aos oito anos; já lia compulsivamente, desde os livros até os jornais por puro deleite do exercício da imaginação.
Se os livros ativavam a minha fantasia, as noticias dos jornais deslocavam a minha imaginação para territórios, embora distantes, eram reais e acessíveis. Eram o cardápio do mundo que um dia estaria a minha disposição.
Isso mudou radicalmente meus hábitos e para escapar aos chamados dos coleguinhas no portão, subia na laje sobre a cozinha
e me escondia atrás da caixa da água. Com
os livros, é claro !
Ninguém na casa sabia do meu esconderijo e, como não me encontravam, respondiam ás crianças que eu já tinha saído.
Além dos livros, minha mãe me proporcionou o contato com a
música. Segundo ela, só tinha dois tipos de música: a boa e a ruim. Então ouvíamos de tudo,
mas principalmente Tom Jobim, Dolores Duran, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Lupiscinio Rodrigues, Cartola, Glenn Miller e outros mestres do Jazz e do Blues: George Gershin, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Charlie Parker. Ray Charles e outros. Não tínhamos vitrola mas ela sintonizava as rádios espertas que tocavam boa música: Eldorado e Cultura entre elas.
Corria o ano de 1964 e veio o golpe militar. Minha mãe disse que o Exército estava nas ruas e imaginei a Rua Visconde de Mauá tomada por tanques militares. Subi à laje preocupado, tentando ouvir o ruído dos canhões. A nossa rua estava proibida e a rebeldia cultivada aqueles anos todos, prestes a brotar em seu ardor juvenil, estava esmagada.
Mas foi também neste ano que ouvi, pelo rádio, pela primeira vez os Beatles - “Os Reis do Iê- Iê- Iê” - . Depois assisti ao filme que ficou em exibição um breve período, Mas no ano seguinte vieram o disco e o filme “Help” . Desta vez ficou semanas no Cine Teatro Carlos Gomes e nas matinês de todo domingo o programa era sempre o mesmo: hordas de adolescentes confluíam de todos os cantos da cidade para lotar a platéia e curtir não o filme que já conhecíamos
de cor, mas as canções. Dançávamos ao som das músicas como em um show e aquilo era puro rock and roll na sua origem mais genuína, espontânea.
E a rebeldia cultivada
aqueles anos todos, reprimida pelo golpe militar, encontrava uma vazão.
Nesta época Santo André era uma vanguarda política e cultural e a efervescência da rebeldia que aqui se verificava estava no mundo todo :
estudantes, artistas, operários e intelectuais em todos os cantos do planeta se rebelavam contra a
fome, a miséria, a violência,
a Guerra do Vietnã,
a opressão militar, etc. .
Eu já tinha consciência dessas mazelas que há milênios assolavam a Humanidade,
consciência alimentada pela formação e pelos jornais, e achávamos
que a geração anterior com Caetano Veloso, Chico Buarque, John Lennon e Mick Jagger iriam dar definitivamente jeito na coisa.
E a nossa geração precisava apenas fazer a sua parte na rebeldia.
Em 1967 eu cursava o
ano do ginásio no Américo Brasiliense e tínhamos que usar
uniforme: calça azul de tergal, camisa social branca e uma gravatinha ridícula. As meninas, a mesma blusa branca e uma saia pregueada que descia até abaixo dos joelhos em pleno advento da minissaia.
Então todo dia na entrada o confronto: os meninos tiravam a gravata,
as meninas dobravam a cinta da saia até virar uma minissaia e tentávamos entrar. Era um cabo de guerra: os bedéis tentando segurar as portas para nos impedir e a gente empurrando. A coisa só se resolvia quando uma das partes cedia.
O espírito contestador, desde os portões do Américo Brasiliense até o resto do mundo,
foi crescendo mas o ano seguinte
veio Maio de 68 em Paris, a Primavera esmagada de Praga, o AI-5; depois a morte de Jimmy Hendrix, Janis Joplin e Brian Jones.
E em 1970 John Lennon atestou o óbito do sonho.
Eu já estava no primeiro ano do colégio á noite pois durante o dia
cursava o SENAI, experiência imprescindível para a educação de um filho de metalúrgico: conhecer o chão de fábrica, mesmo que depois ele vá para universidade como fui em 1973.
Mas a experiência do sindicalismo clandestino que se desenvolvia na fábrica; coisa que nós, moleques aprendizes do SENAI, só viemos a saber depois: e a militância estudantil
já engajada na UNICAMP em 1973, ano do assassinato de Alexandre Vanucci Leme,
já é outra história e fica para outra vez.Recolher