Eu sou a primeira de catorze filhos. Quando a minha mãe me teve, ela tinha apenas doze anos, era uma criança. Por isso, ela teve que me levar pra casa da minha avó, que me criou até os seis anos. Esse tempo foi maravilhoso, minha avó só tinha eu de netinha. Os meus tios eram já adolescentes e...Continuar leitura
Eu sou a primeira de catorze filhos. Quando a minha mãe me teve, ela tinha apenas doze anos, era uma criança. Por isso, ela teve que me levar pra casa da minha avó, que me criou até os seis anos. Esse tempo foi maravilhoso, minha avó só tinha eu de netinha. Os meus tios eram já adolescentes e eles tinham muito carinho e cuidado comigo. Eu tinha muito amor, muita atenção. Não me faltava nada. Hoje eu tenho 43 anos. Quando eu olho pra trás, eu me lembro dessa época, porque foi a única época feliz da minha vida.
Mas uma tia fez intriga com a minha mãe, dizendo que eu não era bem tratada lá e minha mãe me buscou de volta. Eu tinha só seis anos. Foi horrível, horrível! A situação na casa da minha mãe era muito precária. Eu passei por coisas que eu, na casa da minha avó, nunca tinha passado. Passei frio, passei fome, eu não tive mais amor, eu não tive mais carinho. Minha mãe tinha muitos filhos na época, então ela não conseguia acalentar a todos. Eu era a mais velha, eu tinha que ter aquela responsabilidade de ajudar, de cuidar, então eu era muito infeliz, pois ainda tinha o meu padrasto, que era violento e me batia muito.
Fugi de casa pela primeira vez quando tinha dez anos. Não suportava mais as agressões do meu padrasto. Não pude mais continuar estudando quando fui trabalhar de empregada doméstica. Com catorze anos, fiquei grávida do meu primeiro filho. O pai de meu filho me abandonou antes mesmo do bebê nascer. As dificuldades para seguir adiante me levaram a ter mais dois relacionamentos. Todos os dois me batiam muito, me espancavam. Quando me cansava de tanto apanhar, eu denunciava e acabava ficando só, com mais filhos e com mais dificuldades financeiras. Me sentia como se tivesse sido abandonada.
Por causa de uma dessas agressões, tive um ferimento no olho que acabou infeccionando no hospital. Perdi a visão desse olho, mas foi por causa dele que tive ajuda de uma associação de deficientes e consegui um quiosque para trabalhar e, graças a esse quiosque, estou conseguindo, sozinha, criar meus oito filhos.
Quando descobri que o meu filho Davi estava usando crack, foi um susto violento. Eu perdi o chão, não acreditava que aquilo estava acontecendo. Então decidi buscar ajuda e acabei sendo encaminhada pro Conselho Tutelar. Dali, me encaminharam para o CRAS, depois pro CREAS. Até que conheci o TRANSFORME, uma instituição que acolhe adolescentes que mexem com drogas e, também, crianças que são abusadas sexualmente. Lá, eu consegui apoio, mas não fiquei tranquila, eu fiquei me perguntando: “E depois, quando ele sair daqui?” Então, continuei procurando um caminho, uma solução definitiva. Então eu pensava: “eu não tenho base, não tenho estrutura. Ele é um menino muito agitado, não consegue ficar parado, o que é que eu vou fazer?”
Conversando com um aqui, outro ali, um coleguinha dele, de lá do TRANSFORME, falou assim: “Olha, eu sou de um projeto do SESI que se chama ViraVida. Se eu fosse você, correria atrás. Se você conseguir lá, ele vai ter uma bolsa, ter psicólogo, vai fazer curso profissional, vai passar o dia inteiro estudando.” Era tudo o que eu precisava naquele momento: que o meu filho saísse da internação no projeto de desintoxicação do crack já com uma inscrição no Vira Vida. E eu sempre ali, orando pra que ele conseguisse a vaga.
Foi só depois que o Davi entrou no ViraVida que ele criou coragem pra me contar o que acontecia com ele nas ruas. Eu ouvia falar, perguntava, ele sempre negava. Mas é lógico que eu sabia que, com certeza, ele sofria. Recentemente, ele se abriu comigo. Me contou como e porque começou a usar o crack, o que ele passou, o que ele viu... Falou que não é nada bom, que é um inferno essa vida.
Agora mesmo o Davi fez uma viagem pro Pará, pra levar a história da vida dele. Ele se sente importante com isso, porque hoje pode falar assim: “Eu passei por isso, hoje eu não estou mais vivendo isso!” E ele se sente valorizado por isso. Alguém está reconhecendo que ele mudou, que ele está se preparando para ser reintegrado na
sociedade.
Então tem pessoas que desistem do seus filhos, que agridem, que acham que a agressão vai fazer ele mudar. De forma alguma. Se eu tivesse agido com violência com o Davi, ele não estaria hoje bem do jeito que está. Então eu, graças a Deus, tive essa oportunidade de abraçar o meu filho, de dizer que amava ele, que amo e que aquilo ali ia passar. Tudo passa, nada permanece.
E as pessoas precisam saber que, se você buscar ajuda, você encontra. Eu encontrei. Eu encontrei a igreja, eu encontrei os órgãos públicos como o CRAS, CREAS, ADOLESCENTRO, TRANSFORME, ViraVida... São muitas portas. Agora, você tem que ir atrás, você tem que falar sua história. Há pessoas que ajudam e há muitas pessoas que ficam contra. Quando eu consegui essas ajudas, eu me agarrei nelas. Eu me segurei nessas ajudas e tô segurando até hoje. Agora, com meus três filhos menores, eu tô de olho, tô de antena ligada. Não quero que aconteça com eles tudo o que os irmãos mais velhos sofreram.
Nesta entrevista foram utilizados nomes fantasia para preservar a integridade da imagem dos entrevistados. A entrevista íntegra, bem como a identidade dos entrevistados, tem veiculação restrita e qualquer uso deve respeitar a confidencialidade destas informações.Recolher