Heranças e Lembranças
Entrevista com Alegra Saragossy
Entrevistado por Susane e Eva
Rio de Janeiro, 25/11/1987
Código da entrevista: HL_HV014
Revisado por Ligia Furlan
R – Esse daqui que se botava na minha casa.
P/2 – Ah, que lindo!
R – Quando uma noiva se casava, os pais davam isso para ela botar em cima da mesa, como carré de table, chemin de table. Era isso que botavam. Bordavam tudo em fio de ouro. Olha, eu vou mostrar aqui. Este aqui era... A noiva, quando ia pro banho, para tomar banho, que vai casar... Íamos aos banhos turcos, não tínhamos banho em casa, como aqui.
P/1 – Mas não é feito a Mikvá? Não era aquele banho religioso?
R – Religioso, sim. E a noiva tinha que se limpar com negócio todo de ouro.
P/1 – Olha, que maravilha!
R – Olha. Olha aqui, Susane.
P/1 – Que coisa!
P/2 – Dona Alegra, e quem bordava isso?
R – Ah, tínhamos pessoas que bordavam.
P/2 – Fora de casa?
R – Fora de casa, fora de casa. As turcas que bordavam.
P/1 – E isso aqui, por exemplo, esse pano, esse roxo, era só judeus também que tinham esses costumes? Era uma coisa de judeu?
R – Só judeus, só judeus.
P/2 – E colocava aonde, esse pano roxo?
R – Botava em cima da mesa, carré de table, botavam na parede, onde queriam.
P/1 – Toda noiva ganhava isso?
R – Toda noiva ganhava isso.
P/2 – Desse mesmo tamanho?
R – Mesmo tamanho. Tinha colchas disso, colchas de cama disso.
P/2 – Não eram as próprias judias que bordavam?
R – Não, não, não, eram só as turcas. Tinha muita judia que bordava também, mas as turcas que bordavam, também, isso. E isso aqui: todas as cortinas que tínhamos em casa, tínhamos que amarrar com essas coisas assim, fazer um nó bem bonitinho (risos). Todo o trabalho. Olha aí, Susane. Espia Susane, todo o bordado, vê.
P/1 – A senhora sabe fazer esse bordado?
R – Eu não. Eu bordava outras coisas, isso não.
P/1 – Esse pano era para quê?
R – Esses panos eram para botar em...
Continuar leituraHeranças e Lembranças
Entrevista com Alegra Saragossy
Entrevistado por Susane e Eva
Rio de Janeiro, 25/11/1987
Código da entrevista: HL_HV014
Revisado por Ligia Furlan
R – Esse daqui que se botava na minha casa.
P/2 – Ah, que lindo!
R – Quando uma noiva se casava, os pais davam isso para ela botar em cima da mesa, como carré de table, chemin de table. Era isso que botavam. Bordavam tudo em fio de ouro. Olha, eu vou mostrar aqui. Este aqui era... A noiva, quando ia pro banho, para tomar banho, que vai casar... Íamos aos banhos turcos, não tínhamos banho em casa, como aqui.
P/1 – Mas não é feito a Mikvá? Não era aquele banho religioso?
R – Religioso, sim. E a noiva tinha que se limpar com negócio todo de ouro.
P/1 – Olha, que maravilha!
R – Olha. Olha aqui, Susane.
P/1 – Que coisa!
P/2 – Dona Alegra, e quem bordava isso?
R – Ah, tínhamos pessoas que bordavam.
P/2 – Fora de casa?
R – Fora de casa, fora de casa. As turcas que bordavam.
P/1 – E isso aqui, por exemplo, esse pano, esse roxo, era só judeus também que tinham esses costumes? Era uma coisa de judeu?
R – Só judeus, só judeus.
P/2 – E colocava aonde, esse pano roxo?
R – Botava em cima da mesa, carré de table, botavam na parede, onde queriam.
P/1 – Toda noiva ganhava isso?
R – Toda noiva ganhava isso.
P/2 – Desse mesmo tamanho?
R – Mesmo tamanho. Tinha colchas disso, colchas de cama disso.
P/2 – Não eram as próprias judias que bordavam?
R – Não, não, não, eram só as turcas. Tinha muita judia que bordava também, mas as turcas que bordavam, também, isso. E isso aqui: todas as cortinas que tínhamos em casa, tínhamos que amarrar com essas coisas assim, fazer um nó bem bonitinho (risos). Todo o trabalho. Olha aí, Susane. Espia Susane, todo o bordado, vê.
P/1 – A senhora sabe fazer esse bordado?
R – Eu não. Eu bordava outras coisas, isso não.
P/1 – Esse pano era para quê?
R – Esses panos eram para botar em cima daquele, e outros para enfeitar a casa. Olha aqui.
P/1 – Que coisa, dona Alegra! Tudo era bordado a ouro.
P/2 – Dona Alegra, vamos mandar lavar isso.
R – Não, tem que deixar, não se lava. Não, não se lava. Olha aqui, Susane. Susane, espia. Dizem que antiguidade não se lava, se deixa aí apodrecer (risos).
P/1 – Não mexe não. Dona Alegra, é uma coisa maravilhosa esses panos. Lindos, esses panos.
R – Pois é, muito bonitos esses panos. Esses dois paninhos eram para amarrar assim as cortinas.
P/1 – As cortinas. Por que, dona Alegra?
R – Esta era a toalhinha que se botava para quando... Temos um banheiro que se botava assim para limpar as mãos, era isso, para limpar as mãos (risos). Isso tudo era pra limpar as mãos. Olha aqui, se botava nesse lugar. Nos banheiros não tem aquelas coisinhas? Botava aí, pra limpar as mãos.
P/1 – Que coisa linda isso.
R – É isso tudo, todo bordadinho à mão. Olha aqui esse, eu já tirei quantas daqui botei... Fiz aplicações em outro lugar. Tirei daqui, fiz aplicações em uma sacola de… Onde se bota o talit, fiz aplicação para botar na sacola de veludo.
P/1 – E a senhora tem essa sacola?
R – Não, essa sacola já não está... Meu neto perdeu. Foi para a sinagoga, perdeu.
P/1 – Está vendo? Ela enfeitava essa coisa do pão. Que lindo! Tudo isso é fio de ouro, né?
R – Fio de ouro, é fio de ouro.
P/1 – Agora, me diga uma coisa. A senhora devia, então, ser uma moça rica. Ou todas as moças...
R – Olha, eu vou dizer uma coisa. Papai era um homem de posição. Tínhamos uma fazenda muito grande, casas muito grande, tínhamos uma loja muito grande também. Loja que na frente tinha uns dezenove empregados [do] papai. Era sapateiro, fazia sapatos novos.
P/1 – Sapataria. Por que ele fazia sapatos?
R – Sapataria. E atrás da sapataria tinha um lugar bem grande que criava pombos. Criava-se pombos atrás da loja.
P/2 – Em que cidade?
R – Olha, era Esmirna, mas umas horas depois de Esmirna. Naquela época... Não sei, era de ônibus, não me lembro. Era de carroça, de charrete. Eu sei que eram umas cinco horas de Esmirna para a nossa terra, mas a fazenda era... De onde estávamos, lá, era meia horinha de charrete para estar na fazenda, na beira da praia. Tínhamos charrete...
P/1 – Ah, na beira da praia?
R – Na beira da praia. Tínhamos charrete, tínhamos lancha. Era uma coisa maravilhosa. Todos chegavam na minha casa e queriam ficar aí, era uma beleza. Era uva, figo, maçã, pera, romã, tudo, plantação disso tudo! E depois papai mandava um homem para plantar melancia, melão, de tudo! Só não plantava carne. Os peixeiros, nós dávamos cestas cheias de uvas para os peixeiros que puxavam arrastão, e eles nos davam peixes. E nós dávamos uvas, figos para eles. Fazíamos a troca. Era um lugar maravilhoso. Depois disso, chegavam as visitas para nós e a casa não era muito grande, não dava para todos nós, e a visita... Nos fundos era grande, tinha um lugar muito grande no terreno, e fazia esse... Como se... Cara...
P/1 – Caramanchão?
R – Esse negócio tinha duas (fechadas?) __________, assim, como fazem os que vão acampar.
P/1 – Barracas.
R – Barracas. Mas assim, grandes. Se botava lá dentro camas e mesas e tudo. Cunhadas, irmãs que não tinham lugar para onde ir, botávamos aí o pessoal todo. Era uma coisa maravilhosa.
P/1 – Sua família eram em quantas pessoas dentro de casa?
R – Em casa éramos papai, mamãe... Éramos seis...
P/1 – Seis filhos?
R – Seis. Três e três, seis. E minha avó, o casal. Éramos dez pessoas.
P/1 – Os avós moravam em casa?
R – É, moravam conosco. Moravam com papai, o pai dele e a mãe. Moravam conosco. O pai e mãe de mamãe eram de Esmirna, já tinham morrido. Eu quase não conheci eles. Quando chegamos aqui, éramos novinhos. E, de repente, papai resolveu... Quer dizer, meu irmão, todo dia, [mandava] cartas e cartas, “papai, vem para aqui...”. Naquela época, em 1935, meu irmão ganhou quinhentos contos. Quinhentos contos, naquela época, era uma fortuna.
P/1 – Mas ele ganhou como?
R – Ganhou da loteria.
P/2 – Ah, loteria (risos).
R – Vinha a revista e o retrato deles. E ganhou a loteria. Quando ganhou esse dinheiro, ele comprou uma casa. Comprou sabe o quê? A Santa Branca. A Santa Branca – com a Barbosa Freitas – meu irmão que comprou, com aquele dinheiro.
P/1 – Aquela Casa Santa Branca, lá na cidade, na Rua do Ouvidor?
P/2 – De tecidos?
R – Na Rua do Ouvidor, de tecidos. Nós não sabíamos. Quando começou a dizer para vir para cá, que queria que viéssemos aqui... Mas olha, Susane, papai não queria. Estávamos muito bem de situação. Meu irmão Alberto tinha loja maravilhosa. O Isaac, o outro, trabalhava com ele. Não havia necessidade para vir aqui, mas ele insistiu tanto... “Papai, estou louco para ver vocês. Eu não tenho família aqui, estou querendo tanto ver vocês.” Papai ficou com pena, sabe. Ele não queria. Vendeu tudo: fazenda, lojas, casas, tudo se vendeu. E estávamos prontos: “Vamos nos preparar para embarcar pro Brasil.” Olha, Susane, foi uma coisa fora do comum. Em uma sexta-feira de tarde veio uma carta dele, que estava louco de alegria, que estava indo com lancha no meio do mar para receber o navio, de alegria que estava. Sexta-feira. Segunda-feira chega um telegrama: Leon faleceu – este irmão que nos trouxe aqui. Leon faleceu. Olha, Susane, ficamos loucos. Dizíamos que era mentira, que fizeram maldade, que alguém fez maldade. Mandamos um telegrama, ida e volta, aller et retour, veio a resposta de que faleceu. E papai dizia: e agora, como é que eu vou ir ver isso? Já vendemos tudo. Chegaram todos os que compraram né, disseram: "olha, o senhor Veici" – se chamava Veici – “não se incomode que todos vamos devolver, todos vamos dar de volta, não precisa se incomodar. A fazenda, a loja e as casas: tudo vai ser devolvido. O senhor, se resolver ficar, está tudo de volta.” Papai disse: "Não, não adianta. Pelo menos não vi... Vou ver as crianças. Já vendi tudo, não quero saber. Quero ver as..." Deixou quatro, dois e dois: quatro filhos. Então ficamos hospedados na casa da minha irmã, até chegar o navio, e nós embarcamos para cá. Nós embarcamos, e foi um embarque muito triste. Chegamos aqui, ele já tinha preparado uma casa na Rua Doutor Satamini. Uma casa maravilhosa, perto da Praça Afonso Pena... Não, na esquina, quase esquina da Doutor Satamini. Uma casa muito bonita. Já fomos para lá e já estamos... Papai não se conformava, coitado. Dizia que não se conformava, não se conformava. Ia todo dia em Gomes Freire, tinha a loja do Salvador Esperança e do meu irmão, eram sócios. Sentava na porta... Ele não se conformava, coitado. Dizia: "Não adianta viver. Ele não está. Acabou, minha vida acabou. Se foi a minha vida.'' E foi assim. Ficamos um ano e pouco com minha cunhada. Minha cunhada, a irmã de Salvador, de nervoso, ficou... Foi internada. E deixaram as crianças também, estavam no colégio interno, as crianças. E mamãe e papai não quiseram ficar mais aí. Viemos para Gomes Freire. Sabe a Gomes Freire, em cima do Salvador? Onde era a loja de Gomes Freire, em cima tem um sobrado muito bonito, três quartos, sala bonita, cozinha, tudo. Diz: "Olha, então, vamos fazer uma coisa, Seu Veici'' – falou Salvador para o papai – “Já que o senhor não pode ficar lá, então vamos para a Gomes Freire. É melhor. Ficam aí morando, está pertinho de todos.” Fomos para a Gomes Freire. E eu esperei passar um ano... Ele morreu dia sete de março de 1935. Sete de março ele faleceu, e eu me casei oito de março, um ano depois, para passar o luto.
P/1 – Que idade a senhora tinha quando veio?
R – Eu era noiva, tinha 25 anos.
P/1 – A senhora já veio com 25 anos pro Brasil?
R – Com 25 anos. Com meu noivo, para casar.
P/1 – E lá, dona Alegra, o que a senhora fazia até essa época? A senhora estudava?
R – Bom, estávamos na Aliança Francesa. Lá só tinha colégios turcos, e papai nunca quis nos botar em colégio turco. Tínhamos colégio… Aliança Francesa, Vurla, onde nós morávamos...
P/2 – Ubla, que chama?
R – Vurlá, Vurlá. Então a guerra...
P/2 – Vurlá?
R – Vurlá, com “V”.
P/1 – ‘V-U-R-L-Á’? (soletrando)
R – É isso mesmo, Vurlá. Agora, quando acabou... Que começou a guerra, os colégios fecharam, em 1914.
P/1 – Ah, a guerra de 1914.
R – De 1914, não tínhamos colégio. Então, na guerra de 1914, fecharam os colégios, já não tinha colégios, aí papai nos mandou à Esmirna. Tinha uma irmã de mamãe, aí mandou Alberto e a mim para o colégio, para a Aliança Francesa, para acabar de estudar. Estudamos lá.
P/1 – A senhora era que número na família? Eram seis... A mais velha, a do meio? Qual era a sua situação na família?
R – ‘Pela última’.
P/1 – Ah, penúltima.
R – Penúltima (risos). Meu irmão, Alberto, o mais novo de todos. Tinha uma irmã no Uruguai, faleceu há pouco tempo, coitada. Tinha outro no Israel, faleceu há pouco tempo. Agora somos só dois irmãos aqui.
P/1 – Agora, o seu pai já tinha nascido na Turquia?
R – Sim, todo mundo nasceu na Turquia.
P/1 – E os seus avós?
R – Todos na Turquia.
P/1 – Quantas gerações, Dona Alegra?
R – Eu não sei se são três, quatro gerações na Turquia. Porque somos da Inquisição, descendentes de lá. E meu marido também era de lá da Zaragoza. Eu sou Saragossy porque meu marido era de lá, a família dele. E [de] lá na Zaragoza ia na Espanha, quando vinha uma família muito à la haut, botavam o nome da cidade. Era obrigado a botar o sobrenome da cidade, e eles eram Saragossy, o meu marido.
P/2 – E a senhora, a sua família era de onde?
P/1 – Também da Espanha.
R – É, também da Espanha.
P/1 – Então fugiram da Inquisição.
R – Da Inquisição. Quem sabe quantos aqueles departes... Não.
P/1 – Então são muitas gerações na Turquia.
R – Muitas gerações. Ficamos todos na Turquia. Porque foi uma parte da Turquia, outra parte para a Polônia, outra parte... Foi assim, e foi naquela época da Inquisição. Uns vieram para cá, outros para lá. Se dividiram.
P/1 – E o seu pai? Quer dizer, o seu pai já tinha essa boa situação da sapataria. Mas era do avô, também, essa sapataria?
R – Não, não, era do pai mesmo. E o avô fazia esse negócio, mas depois ficou muito velho, papai ficou fazendo a mesma coisa que o avô.
P/1 – E a sua mãe? A família da sua mãe também veio da...
R – Vieram todos daí. A família de mamãe era Algaci, não era Algamis. ‘Algaci’, com ‘c’. Era a família da mamãe, e assim ficamos aí anos e anos.
P/1 – Agora, a senhora se lembra, na Turquia, por exemplo, da senhora como judia, nesse lugar onde estava... Era muito separada dos turcos ou tinha relação? Como é que era?
R – Completamente separada. Éramos assim: nós, os judeus, éramos mais perto dos turcos; os gregos eram mais longe. Era grego e turco em Vurlá, nós éramos… A nossa casa ficava aqui. Do lado de lá era tudo turco, do lado de cá era tudo grego.
P/2 – Isso era só em Esmirna?
R – Não, Vurlá. Em Vurlá.
P/2 – Sim, mas nessa região, né?
R – Sim, nessa região da Turquia, Esmirna. Sim.
P/2 – É nessa região que tinha esse negócio dos gregos e dos turcos?
R – É, isso mesmo. Tínhamos os gregos. E nós nos dávamos muito, muito com os gregos. O lugar mais bonito que havia, os negócios mais de luxo eram do lado dos gregos. Porque os turcos eram tapados sempre, sempre tapados (risos). Palavra de honra. Eram tapados. Agora, os gregos tinham... Que cinemas, que teatros, que... Confeitarias, lojas de tecidos maravilhosas, do lado dos gregos! E do lado da Turquia eram todos meio... Sabe como é, trabalhavam, mas papai era dos melhores que havia no trabalho dele – de todos.
P/1 – Ele mesmo fazia ou ele só tinha a loja?
R – Não, ele cortava. Ensinou os empregados a cortar os sapatos, costurar nas máquinas. Tudo tinha na loja. E tinha mais... Como vou dizer? Tinha dois mouros, ensinou esses mouros a trabalhar. E eles eram loucos por papai, esses mouros. Só ele que ensinou os mouros a fazer tudo, e eles faziam tudo maravilhosamente bem. Costuravam, tinha... Agora, como no Natal tinha muito trabalho, ele trazia trabalho em casa, de noite, para costurar sapatos. Costurados à mão, todos. E trazia dois, três rapazinhos para fazerem em casa. Tínhamos um quarto só para eles. Eu estou lembrando disso tudo... Era muito frio, de morrer; caía aquela neve, botávamos bacias no quintal para colher a neve, e nós brincávamos com aquela neve. Íamos tirando, botávamos açúcar, comíamos (risos). Quer dizer, açúcar... Este pilão… Lá na minha terra não tinha açúcar assim fino não, eram pedras. Comprávamos, socávamos e aí fazíamos o açúcar. O sal eram pedras grandes assim, os pedaços. Socávamos, era para socar. Isso era socador disso tudo: açúcar, de sal, de tudo isso. Era. Estou lembrando disso tudo.
P/1 – A comida na sua casa era comida típica turca ou era comida judia?
R – Espanhola. Tanto é que quando veio a Gracia – que foi à Espanha –, trouxe um livro e disse: mamãe, é comida espanhola que vocês faziam, não é turca. Não é turca, é comida espanhola. Toda comida espanhola, sim.
P/2 – Toda comunidade judaica fazia isso?
R – Toda, toda comida judia...
P/2 – Mantinha...
R – Mantinha naquele... Não trocava este caminho, não se trocou nada.
P/2 – Nem grego, também? Quer dizer, não faziam comida grega?
R – Não, não. Comida grega não fazíamos muita não.
P/1 – O que tinha vindo da Espanha estava sendo mantido.
R – É isso, dentro de casa era isso: tudo da Espanha se fazia.
P/1 – E que língua falavam em casa?
R – Espanhol.
P/1 – Espanhol ou ladino?
R – Espanhol. Ladino eu não sei como é. Falávamos espanhol como falam na Argentina. Falávamos também... A nossa língua, em casa, era espanhol, só que troca algumas coisinhas, algumas palavrinhas trocava. De nós, de Espanha… Ladino é que se chama isso?
P/1 – É, eu acho.
R – É ladino? Então... Falamos espanhol. Todos falávamos espanhol.
P/1 – E na rua, falava-se turco? A senhora sabia falar turco?
R – Perfeitamente. Turco, grego. Espada, né. Grego e turco. Tínhamos vizinhos turcos, vizinhos gregos, e essa fazenda que nós tínhamos era uma fazenda que só tinha uma família de judeus: nós. O resto era todos gregos. E ninguém dizia que nós éramos judeus, todo mundo dizia que éramos gregos. Ninguém dizia, palavra de honra. E um dia vieram aí alemães, quando começaram a chegar aí eram unidos com os turcos, sabe...
P/2 – A senhora se lembra o ano?
R – O ano deve ser... Eu vou dizer uma coisa que... Depois da guerra de 1914, depois da outra guerra que houve dos gregos com os turcos. As guerras dos gregos com os turcos. Porque o grego ocupou a Turquia, naquela época. Saiu o grego daí, né. O grego ocupou a Turquia e o turco saiu, se foram para Anadón, para dentro da Turquia, chamava-se Anadón. E depois de anos, outra vez, deu a volta. Vieram outra vez: o turco ocupou e o grego saiu. E nós vimos quando o grego saiu e o turco chegou, nós estávamos em casa. As bombas sendo jogadas e passando por cima da casa... Caiu até uma bomba dentro da minha casa, caiu no poço. Tínhamos um poço no meio do quintal, e caiu uma bomba dentro do poço. Começaram a bombardear. Bombardeavam das naves inglesas e bombardeavam os aviões. Tinha uma canção que cantavam: “ta pretendiendo escapemonos, nos bombardeo de ingles. Parmina! Por uma parte las naves, Parmina! E por otra la avión, por otra la avión, por otra la avión” (cantando). De um lado nos bombardeavam os ingleses... Bom, o inglês era contra a Turquia. Nos bombardeavam o inglês e do outro lado os aviões voando. Quando se dizia que já iam começar a bombardear, mandavam fechar tudo e fugir de onde estávamos, da capital. Fugíamos para as montanhas. E eu era pequenininha, meu irmão me segurava aqui no ombro – esse que morreu – para atravessar os rios. E ficamos nas montanhas por quase um mês. Levamos farinha, levamos azeitonas para poder comer... Não tínhamos mais nada. Era na montanha que vivíamos um tempão. Até que acabou a guerra. Essa foi na guerra de 1914, a guerra de 1914, eu me lembro.
P/1 – Agora, havia nessa guerra alguma coisa especial contra os judeus, não?
R – Não.
P/1 – Não. O problema lá eram os turcos, os gregos, os alemães. Mas o judeu ali não...
R – Não, não. Não faziam...
P/1 – E na sua família alguém lutou nessa guerra?
R – Na minha família... Um irmão de papai lutou nessa guerra, e papai foi para a guerra, coitadinho. Mas não ficou muito tempo (risos). A guerra acabou, ele voltou. Não o reconhecíamos quando voltou. Ai, veio num estado, coitado... Dizíamos: esse papai não é papai. Levaram, o serviço militar o levou.
P/1 – Obrigatório.
R – Obrigatório, sim. Naquela época houve muita coisa assim. E depois acabou a guerra, acabou tudo. Veio o grego, foi o turco, sai o turco, veio o grego (risos). E nós passamos aqui, naquela... Agora, na Segunda Guerra Mundial nós já estávamos aqui. Em 1935 saímos de lá: cinco de junho de 1935. Em 1935 chegamos aqui no Brasil.
P/1 – E me diga uma coisa. Naquela época, tinha alguma coisa de antissemita lá? Contra judeus já?
R – Bom, sempre tinha alguns. Sempre queriam ver os judeus... Todos. Os gregos e os turcos não gostavam, queriam acabar com os judeus. Sempre tinham inveja, minha filha. É que nós nos dávamos muito com eles, nós não tínhamos nada, mas tinha famílias que não se davam bem mesmo aí com os turcos.
P/2 – E o que acontecia?
R – Não, não, nunca aconteceu...
P/2 – Era mais o ambiente, mas não ação?
R – Era um ambiente... Não, não. E era assim... Meu irmão se lembra de muita coisa de lá, mas eu quase já não me lembro.
P/1 – A sua vida, por exemplo, a senhora ia à escola, na Aliança Francesa. E em casa, a senhora trabalhava dentro de casa? Ajudava?
R – Sim. Saíamos do colégio... Mesmo mamãe tendo uma empregadinha em casa para ajudar, eu ia direitinho para a cozinha para ver como é que faziam as comidas para eu aprender. Eu era pequena e, naquela época, ia ver o que ela estava fazendo. Tanto é que mamãe me comprou uma frigideirinha, panelinhas para eu fazer comidinha, porque já viu que eu era louca para... Eu tinha dez, doze anos, eu já fazia massa folhada em casa. Eu que fazia, a menor de todos. Me chamava de manhã, batia assim na porta, mamãe: “Alegrica, anda, levanta, está na hora.” Me levantava para fazer a massa folhada. Primeiro tínhamos os fornos em casa, de pá, aqueles fornos grandes. E depois da guerra não... Papai já não estava, foi para a guerra e tal, começamos a mandar na padaria. Quando fazia essa massa folhada, umas trouxinhas de massa folhada, até que chegava em casa o tabuleiro, a metade já tinham comido, já sabiam que era da minha casa (risos).
P/1 – Qual era o nome da sua mãe?
R – Gracia.
P/1 – Ah, (Dona?) Gracia... E Safira, tinha alguém?
R – Safira, mãe do meu marido. Safira Saragossy a mãe dele.
P/1 – E os seus irmãos, qual era o nome dos seus irmãos?
R – Alberto e Isaac. Alberto e Abraham. E sabe [de] quem era o nome dele lá na minha terra? Dizem que tinha Rafalati, o rabi. Rabi, sabe o que é?
P/1 – Sei, o rabino.
R – Um rabino muito grande, que não conhecia nem dinheiro, de tão sábio que era. Tanto que o retrato está na casa do meu irmão, parece. Com aquela coisa aqui, o rabino. E mamãe estava esperando o neném – esse Alberto –... A tia desse rabi gostava muito da mamãe. Disse: “Gracia, você está esperando neném?” Disse: “Estou.” “Pois, se é menino, vamos botar o nome de Abraham Palati. O Abraham foi meu filho.” Por isso que botaram o nome de Abraham Palati. E ele... Não é por ser meu irmão, [mas] eu nunca vi um homem assim: correr para tudo. Ele não deixa missa que tenha que ir. O outro, que morreu, que tem enterro, tem que correr... Eu não sei como esse rapaz aguenta! Para tudo corre. E agora já está aposentado. Era da Barbosa Freitas, depois da Barbosa Freitas. Tinha, na avenida... Como é que se chama? Eu me esqueci a loja que tinha. Loja muito bonitinha e grande. Ah, meu Deus! Eu esqueci. Esse esquecimento que eu tenho e que é... Eu estou esquecendo todos os anos.
P/2 – Isso é normal.
P/1 – Ah, dona Alegra, a vida anda muito complicada. A gente esquece mesmo. Eu também esqueço.
R – Não sei se é a velhice... Não sei o que é. E eu tomo Hydergine, já tomo para não esquecer. Onde era essa loja? Ó, meu Deus! Na Praça Tiradentes não tinha uma rua para cima, grande? Na Praça Tiradentes...
P/1 – Santana?
R – Não, outra. Uma rua bem grande, para cima. Aí era a loja.
P/1 – Uruguaiana.
R – Uruguaiana! Era a rua Uruguaiana. A loja, me esqueci o nome da loja. Era do meu irmão, tinha loja. Ele se aposentou. O outro também se aposentou, tinha loja de tecido em Gomes Freire, mas agora se aposentou. É peixeiro. Joga arrastão, joga tarrafa aqui o dia todo. De manhã cedinho já está jogando tarrafa. Já fez 90 anos... 89, quase 90.
P/1 – Me diz uma coisa. A senhora noivou com 25 anos?
R – Não, antes. Estivemos dois anos namorando e três anos noivos. Eu tinha vinte anos, mais ou menos.
P/1 – Como é que era isso, dona Alegra? Alguém apresentava? Como é que foi?
R – Não, o namoro [meu e] de meu marido foi assim... Porque esse foi casamento de amor, minha filha, desses de novela. Foi de amor, o meu namoro foi assim. Meu irmão vendia roupas prontas, confecção, e o tio de meu noivo, do Avner, meu marido, ele tinha, em Esmirna, confecção grande, e ele era o gerente da confecção.
P/1 – O seu marido, o Avner?
R – Meu marido, o Avner. E quando chegava o fim de semana, ele chegava à nossa fazenda e fazia as cobranças de meu irmão. Ele cobrava. Nós estávamos em casa ainda, não estávamos na fazenda naquela semana, estávamos em casa, em Vurlá, e ele veio. Veio de repente na casa, me trouxeram o Avner. Meu irmão, Alberto, trouxe meu noivo aí. Não era meu noivo... Um rapaz bonito, lindo rapaz. Eu olhei para ele... Eu estava lavando o quintal, com uma blusinha vermelha – me lembro, isso não me sai da cabeça, Susane –, e eu corri, entrei na cozinha, tirei os tamanquinhos, tirei a blusa, endireitei a cabeça. “Está bom”. E mudei de vestido, entrei para dentro, Alberto me apresentou. Disse: “Olha, o Avner é filho de dona Safira Saragossy, de Esmirna. Ele é gerente de... Ele vem cobrar a minha _________. Eu gosto muito dele.” Olha, minha filha, a primeira vez que ele me viu e eu, a primeira vez que o vi, fiquei louca da vida. Era uma coisa fora do comum. E ele, a primeira vez que me viu, da segunda vez já me mandou carta.
(FIM DO LADO l)
(LADO 2)
R – Eu tinha um primo... Dois primos, aliás, de boa posição. Um filho da irmã do papai, outro filho do irmão do papai. E papai queria porque queria me casar com um filho... Com um sobrinho, com o filho do irmão. Disse: “O que é que tem, Alegra? Um rapaz bom, ele gosta de você.” Eu disse: “Papai, eu gosto como um primo. Não gosto... Não tenho amor, não gosto como...”. Então ficou por isso mesmo. Naquela noite o rapaz foi em casa jantar, o Avner, meu noivo, meu pai ele: “Escuta, Avner. Você conhece o Simon?” “Sim.” “E o Isaac?” “Conheço.” “Que tal, os rapazes?” Disse: “Maravilhosos, eu gosto muito.” “Está aí: ela não quer. O Simon é louco por ela!” Sabe o que que ele respondeu? “O senhor está com pressa, deixa. Ela não quer.” Eu não queria. Mas já estávamos namorando, eu já ia para Esmirna, me hospedava na casa dele.
P/1 – Sem seu pai saber?
R – Sem papai saber. Eu já estava namorando. Eu ia na casa de uma tia, ele vinha na casa dessa tia, me pegava, me levava na casa dele. Depois, quando papai já começou a adivinhar as coisas, mamãe disse: “Você não está pensando? Eu acho que esse rapaz está gostando da Alegra, e ela gosta dele.” Disse: “Será?” “É”. E foi quando [ele] foi na sinagoga, fez uma prece a Deus rogando para que seja feliz, se é isso mesmo, que seja feliz e tal. Não passou um mês, mais ou menos, ele já mandou avisar... Pediu-me em casamento para papai. Veio em casa, veio a mãe. Me mandou uma caixa... Ainda está guardada a caixa de bombons que me mandou, está guardada ainda.
P/1 – Ah, quero ver (risos).
R – Palavra de honra. Já está velhinha. Eu vou trazer. Uma velha e ____________ me mandou. E as minhas primas, que gostavam muito dele, elas eram loucas por ele. Ele era muito bonito naquela época. E as minhas primas, quando viram a caixa de bombons chegar – estavam lá em casa, não saíam de casa, sempre gostavam de ir na minha casa –, dizem: “De onde é isso?” “Então...” – falou uma menina, filha de uma vizinha minha – “O Avner que mandou, a pediu em casamento.” “Como? Ele mentiu tanto para nós que não tinha nada com Alegra!” “Então eu dou os parabéns a esse rapaz, que mentiu para todos e a ela não enganou. Enganou todos vocês e a ela não enganou.” Isto não me sai da cabeça, Susane. E começou. Ficamos noivos, tal, uma beleza. Eu ia à Esmirna, ia para a casa dele...
P/1 – Ele tinha que idade?
R – Ele? Novo também. Ele era novo, havia acabado o serviço militar. Muito novo, era muito amigo do Alberto. Éramos da mesma idade. Agora estou me lembrando... Era da mesma idade que meu marido. E foi assim, foi assim, minha filha.
P/1 – Foi uma linda história, porque foi esse amor até…
R – É um amor... Sabe como dei amor. Um amor... Quando saía na rua, dizia: “Olha, Alegra, não dê uma volta muito grande, porque mamãe não gosta, papai não gosta.” Ele é que não gostava. E ele era bonito. Não é por falar, muito bonito. E não é por falar, eu parecia uma bonequinha, não é por falar...
P/1 – Era bonitinha, então.
R – Por onde passávamos, dávamos o braço para caminhar, e os turcos, os gregos também diziam: “Mas como Deus faz isso? Botar dois bonitos em um lugar...” Eles falavam em turco: “Como, Alah, Alah, como fazem isso, botar dois bonitos num lugar?” Ele era louco atrás de mim e eu era louca atrás dele.
P/1 – Mas foi sempre, né, dona Alegra?
R – Sempre, sempre, até o final, coitado. Ele era louco. Louco, louco por mim. Ele dizia: “Vai jogar, vai passear, antes de eu chegar você tem que estar em casa”. E mamãe me ensinava: quando vou esperar marido, tenho que me preparar, bem penteadinha, bem arrumadinha. Ele já me comprava vestidos bonitos para casa, porque ele gostava de me ver sempre bonita. Era assim. É isso. Coisas da vida, que a gente vai...
P/1 – A senhora foi muito feliz com ele.
R – Muito feliz. Demais. Imagina, tem 22 anos que perdi ele, que ele faleceu.
P/1 – E lá, por exemplo, durante o namoro, como era o namoro lá? Saíam sozinhos?
R – Saíamos. Cinema, e tudo, sozinha. Não era proibido não.
P/1 – Eles eram mais adiantados que a gente...
R – Nada, minha filha. Saíamos ao cinema sozinhos. Eu ia ao cinema, ele vinha na casa da minha tia, me pegava, me levava ao cinema, me trazia de novo para casa. Era assim. Não havia escondido não.
P/1 – Agora, os amigos, tudo, todos eram judeus. Não havia nada com os turcos?
R – Todos judeus, todos judeus. Não tinha nem turcos nem gregos, todos judeus. Éramos todos judeus.
P/2 – Havia casamentos, às vezes, mistos?
R – Muito raro. Ainda! Só me lembro de uma moça muito bonita, era cunhada de minha irmã, os turcos roubaram ela. A pegaram, levaram...
P/2 – Raptaram?
R – Raptaram. Casou... Depois eu me lembro que me encontrei com ela um dia neste banho turco. Era muito bonita. Ela estava aí, eu olhei... Meu Deus do céu, eu era menina, mocinha ainda. Disse: “Joia, você aqui.” “É, não deixaram...” Eu disse: “Por quê?” “Ah, ___________ os turcos faziam negócio, faziam uma vez, os turcos.” Eu disse: “Você é turca? Você o que é? Você é judia?” E ela, coitada, foi muito infeliz. Era linda, linda moça. Era uma irmã do marido da minha irmã. _________, Gabriela, se chamava Gabriela. Essa só que eu me lembro que os turcos raptaram, outras não havia.
P/1 – Agora, por exemplo, na sua casa, dona Alegra, eram religiosos?
R – Sim, muito religiosos.
P/1 – Ah, é?
R – Mamãe era mais religiosa do que papai.
P/1 – Mamãe é que era mais religiosa?
R – É, mais religiosa. Não havia o taref, era tudo kasher. Sábado, acender as velas, e todos...
P/1 – Ah é?
R – É. Não se fazia queijo em casa. Não se botava dois pratos para cada um na mesa. Acabou a comida de queijo, tira o prato. E comida de carne... Era muito religioso. Mamãe, então, mais religiosa ainda. Ele, de vez em quando, era mais moderno, sabe, queria enganar. Um dia quis enganar a mamãe, tapeou ela. Havia um açougueiro muito bonito, uma carne maravilhosa. Ele dizia: “Nós só tomamos acém, tomamos este, não tem carne assim bonita. Esta carne, então, ela fala com o açougueiro. Me dê um quilo desta carne, que eu vou levar.” Taref, era taref. Ele trouxe a carne. Mamãe abriu: “Essa carne não está parecendo carne kasher. Carne kasher não tem assim...” E tapeou direitinho que era kasher. Disse: “Você pensou que me enganava? Você não me engana.” Pegou a carne, deu para a vizinha turca: “Esta carne vai para a casa da vizinha.” Não deixou em casa. Era assim.
P/1 – E as festas assim, Chanukah, tinha tudo?
R – Ah, Chanukah, todas. Chanukah acendíamos... Cantávamos todos os filhos com papai para acender as chanukiás. Era uma maravilha, era sim. Eles eram religiosos. Também nos ensinaram isso tudo: Pessach, Rosh Hashaná, Yom Kipur.
P/1 – E tinha uma sinagoga?
R – Sinagoga, uma beleza de sinagoga.
P/1 – É? Com um rabino, aquele Ravi? Tinha algum rabino?
R – Tinha, tinha rabino sim. Só uma coisa que lá na minha terra não se usava... Longe, longe daqui. Quando morria alguém, não se enterrava com caixão, enterravam na terra. O caixão tiravam, guardavam de novo para outro. Não se enterrava com o caixão não, na minha terra.
P/2 – Não? Enterrava na terra mesmo?
R – Na terra, tinha que estar na terra.
P/2 – Ah, encostado na terra...
R – Sim. A mortalha, com a mortalha e tudo na terra. Não se enterrava com caixão não, na nossa terra.
P/1 – Mas tinha cemitério separado de judeus?
R – Sim, de judeus, só de judeus. Cemitério enorme dos judeus. Tinha os turcos, tinha os gregos, tinha os judeus.
P/1 – Os judeus eram respeitados?
R – Éramos, respeitavam muito. Cada um fazia o que bem entendia, eram todos respeitados.
P/1 – Por que a senhora não é muito religiosa?
R – Bom, aqui eu sou... Era. Meus irmãos são muito religiosos. E eu, por causa deles, sou religiosa. Eu não como carne, isso... Porco, nem linguiça, nem salame: nada disso entra aqui em casa. Todas essas coisas não entram aqui em casa, porque não me acostumei desde pequenininha, não como. Carne não, kasher, carne taref; kasher não. E faço tudo. O que posso fazer, faço.
P/1 – E o seu casamento já foi aqui?
R – Sim.
P/1 – Onde a senhora casou?
R – Eu me casei na Rua Santa Alexandrina, na casa de Salvador Esperança. Uma casa muito grande, que me fizeram um tálamo, fizeram tudo. Arrumaram todo o tálamo da noiva e fizeram a festa no jardim. Era em casa que me casei. Eu me lembro disso tudo.
P/1 – A senhora tem Ketubah, tem o contrato de casamento?
R – Quem sabe onde está guardado? A Ketubah se dá para outra. Não sei a quem dei a Ketubah, eu acho que dei para outros. Lá dão para a família, dão para... Eu ainda vou perguntar com quem está o meu Ketubah.
P/1 – Pergunta, dona Alegra. Eu gostaria de ver.
R – Eu vou perguntar. Eu vou perguntar com quem está meu Ketubah. Eles vão me dizer. Seria interessante. Foi um casamento muito bonito.
P/1 – E lá, quando se casavam, casam dentro da coisa judaica, né, dona Alegra?
R – Lá na minha terra, às vezes, todo judaico. Todo. E depois...
P/2 – Dona Alegra, por que seus irmãos vieram para o Brasil?
R – Viemos toda a família.
P/2 – Não, mas o primeiro. Por que ele escolheu o Brasil?
R – Eles falavam do Brasil... Ah! Aí tem uma história. Ele veio para o Brasil, ele tinha uma namorada, namorou ela por quase três, quatro anos. E essa namorada... Não sei se vocês conhecem Salomão Hazan, que tinha joias?
P/1 – De nome.
R – É, então. Essa namorada disse: “Leon, você sabe que nós vamos para o Brasil?” – E ela era namorada de quantos anos – “Você vai dar um jeitinho, você vai na frente, nós vamos depois.” De repente, um dia: “Papai, vou para o Brasil.” “O que que o senhor vai fazer? Vai acabar com o serviço militar. Já está com loja, tudo direitinho, com seu cunhado... Para que é que você vai para o Brasil?” “Não, não. Eu vou para o Brasil.” Depois que soubemos que ela ‘meteu foguinho por baixo’ para ele vir pro Brasil, para ele vir para cá. Quando veio para aqui, acontecia uma coisa: ele ia… Foi na loja dos irmãos dela, se apresentou e tal, mas não olharam com cara muito boa para ele. Ele não conhecia, e aí meu irmão... Ela mandava cartas, ele nem recebia, não sei o que faziam com as cartas dele. Depois ele faltava... Ah! Foi na casa de Salvador Esperança. Quando foi na casa de Salvador Esperança, estava na Pensão Italiana, diz ele: “Leon, não fique mais aí, meu filho. A casa nossa é grande. Vem para aqui, fica por aqui e tal.” Mas eles já botaram o olhinho em cima pra irmã dele, queriam casá-lo com a irmã. E ele não falou nada. Como não recebia cartas dessa Perla, essa de Hazan, essa que botou no caminho, não recebia cartas... Às vezes vinha cartas. Onde mandava as cartas, desapareciam. Devia ser que escrevia cartas pelos irmãos e tal, não recebia, aí ele já desistiu. Já que fizeram isso, deixa por aí. A moça é boa e tal, se casou, é irmã de Salvador Esperança. E o que que Deus faz... Eles já tinham chegado depois, essa Perla, os pais, todos chegaram. Se encontram no casamento do meu irmão, estiveram no casamento dele, palavra de honra. Eu acho que fizeram o casamento naquela rua que dá perto da Gomes Freire, aquele grande, uma rua por aí, que tinha uma sinagoga grande. Não sei aonde é.
P/1 – No templo? [Rua] Tenente Possolo?
R – Tenente Possolo. É, eu acho que é Tenente Possolo, é isso mesmo. Se fez o… Não, não. Não era Tenente Possolo. Era outro lugar que se fez o casamento... Eu sei que casou e a vida nossa foi assim.
P/2 – Dona Alegra, e qual foi a sua primeira impressão quando a senhora chegou aqui no Brasil?
R – Olha, eu, quando cheguei... Ainda não tínhamos chegado aqui, estávamos em Pernambuco. Saltamos do navio. De repente, veio tanto preto, tanto preto. Ficamos apavorados de ver preto (risos). Nossa terra não tinha pretos. Todos vestidos de branco, todos pretos. Quando chegamos aqui no Brasil, quando íamos sair do navio, aí vimos todo o pessoal branco, brancos. Nós chegamos vermelhinhos, vermelhinhos, do lugar – naturalmente – aí, lugar frio. Não sabíamos o que era rouge, não sabíamos o que era batom, não sabíamos nada. Era tudo _________. E: “Será possível? Todos são amarelos aqui?” (risos) Todos são amarelos. Mas depois nos acostumamos, devagarzinho. Nos acostumamos direitinho. Eu, a primeira vez que botei batom: “Não, eu não quero não.” “Um pouquinho de batom, vamos botar.” “Fica feio...” E ainda tenho o retrato de onde está o retrato da noiva, ia mostrar para vocês. Eu devia tirar, não me lembrei. Eu vou tirar, vou trazer.
P/1 – Quer que eu lhe ajude?
R – Não, não, querida.
(interrupção de fita)
(recomeça com áudio muito baixo)
R – Isso aqui, sabe o que é? Esse, sabe o que é? Esse aqui é...
P/1 – Olha. Meu Deus! (risos)
R – Esse está com meu irmão. Era de minha casa e mamãe deu pra _________.
P/1 – É de ouro. Que maravilha isso.
R – Todo de ouro. Este está com meu irmão, é lembrança. Eles deram na sinagoga. Ela é muito religiosa.
(Áudio muito baixo, inaudível).
R – Esse é da casa do meu pai.
P/1 – __________. Todo mundo tinha? Não tão bonito.
R – Não, não eram todos que tinham. Olha aqui o botão de cima, aqui, olha.
P/1 – Coral, né. Isso é ouro, né, dona Alegra?
R – Ouro, filigranas.
P/1 – Era da sua casa, do seu pai?
R – De papai.
P/1 – E agora é do seu irmão.
R – Quando chegamos aqui, mamãe deu para o meu irmão, esse Alberto.
P/1 – Como é o nome dele? Alberto? Alberto de quê, qual é o sobrenome?
R – Algamis, Alberto Algamis. Ele é casado com a filha do...
P/1 – E lá vocês usavam isso, os seus pais usavam?
R – Sim, e aqui também. Meu irmão levou para a sinagoga, ficaram loucos de ver tudo.
P/1 – Agora, isso a senhora não sabe se seu pai tinha recebido dos pais?
R – Não sei. Eu sei que era de casa. Deve ser do pai dele, talvez passaram de pai pra filho.
P/1 – E eles trouxeram quando vieram?
R – É, quando vieram. Eles trouxeram tudo isso.
P/1 – 1935, né? Vocês vieram direto para o Rio?
R – Sim. Cinco de junho de 1935, direto pro Rio.
P/1 – Hoje em dia o seu irmão continua usando? Leva na sinagoga...
R – É, leva para a sinagoga. Porque é lembrança da mãe, do pai, não tem onde deixar.
P/1 – Agora, a senhora pode me explicar o que é isso, esse pergaminho colorido?
R – Eu não sei ler isso. Hebraico eu não sei ler. Tinha que ser pergaminho para essas coisas de…
P/2 – Porque ele está separado.
R – Para essas coisas tem que ser tudo pergaminho.
P/1 – Agora, a capa dessa... Cadê aquela caixa? Aquela caixa é de que, de cobre?
R – Não, a caixa é de lata.
P/1 – Ah, acho que isso não é lata não, é pesado...
(Inaudível)
R – Estava na casa da Safira. Eu levei para a Safira botar aí. Quando saímos da Tijuca para a minha casa... Porque estava na minha casa, na minha sala, quando nós nos mudamos para cá. O francês, _________, trouxe os tapetes, uma beleza de tapete, e vendeu para o meu marido. E aquele tapete não dava aqui para nós, era pequeno.
P/2 – Ah, esses tapetes grandes, que a gente bota na parede...
R – É, isso tudo têxtil. E ele botou... Quando tinha, eu mandei para Lagoa, pra Safira. Quando saiu de lá, que veio para cá, o maluco do marido... Ele morreu, morreu de câncer também. É uma mala, um baú enorme que veio de lá, esse baú. Um baú muito bonito, era todo... É um baú muito bonito.
P/1 – E o Shabbat, dona Alegra, a senhora tem candelabro de shabbat? Trouxe de lá?
R – Sim, o candelabro de lá.
(Inaudível)
R – ...Fazia assim, assim, assim, em meia hora já estava tomando café. Saía de lá quente, quente.
P/1 – Porque lá também se bebia muito café, né?
R – É, é.
P/1 – Vocês não bebiam chá? Mais café?
R – Não havia... Não tinha café assim moído ainda. Tinha em grão, só em grão, nunca assim, moído. Não. Aí era café. Que chá: café e leite, só. __________. Era café mesmo... Esse é de meu irmão.
P/1 – Mas todo mundo fazia isso? Ou era...
R – Não, não, todo mundo fazia. O costume da terra era esse, e este moinho não era assim. Era dourado, dourado. Porque primeiro guardaram aí no canto e pronto. Ficou preto também.
P/1 – Se limpar não fica dourado?
R – Fica, fica.
P/1 – Porque hoje em dia ele não usa mais.
R – Não usa mais.
P/1 – De que material é essa? Bronze?
R – Bronze. Limpo, você vê. E dourado, olha aqui.
(Inaudível)
P/1 – Isso veio com a sua família também, e deu para o seu irmão?
R – Chegamos todos juntos. Ficaram solteiros quantos anos, juntos, morando. Depois se casou [um], casou outro. Papai, mamãe e meu marido...
P/1 – Eu queria que a senhora contasse a história dessa toalha. Como é que se usava?
R – Olha, usava quando ia ter a noiva, que ia tomar banho de noiva, que ia levar para o banho turco. Era __________ banho. Uma coisa maravilhosa. Eram os (banheiros?) todos de mármore, com um tampo de mármore e uma pia grande. Tinha uma pia no meio, grande, e um banco deste lado, outro deste lado, para sentar-se e lavar-se.
P/1 – Era preciso tomar banho nua?
R – Não. Como botam agora para ir à praia.
P/1 – Pano?
R – Um pano. É, era assim. Para entrar no banho era assim. Depois tirava-se para lavar-se.
P/1 – Toalha.
R – Toalha. Se usava isso para... E outra para a cabeça. Uns dias antes do casamento se tomava banho para casar.
P/1 – Depois a senhora continuou usando?
R – Não.
P/1 – E esse banho, dona Alegra, a noiva ia, ia quem mais? A mãe da noiva, a sogra, todo mundo?
R – A mãe da noiva, todo mundo. A família, todos iam.
P/1 – Dentro do banho?
R – Dentro do banho. A noiva...
P/1 – Aí iam todas as mulheres da família?
R – Todas as mulheres da família para o banho da noiva.
Recolher