Projeto Memórias do Comércio 2020-2021 – Ribeirão Preto
Entrevista de Carlos Eduardo Lopes
Entrevista MCHV_033
P1 – Carlos, primeiro eu gostaria de te agradecer muito por ter aceitado o convite. O Memórias do Comércio é um projeto de longa data, do Sesc e do Museu da Pessoa, desde 1994, já passou por muitas cidades do estado de São Paulo e esse ano nós estamos fazendo Bauru, Ribeirão Preto e São José do Rio Preto. E todo projeto Memórias do Comércio as entrevistas ficam no portal do Museu da Pessoa, que é o maior museu de história de vida do mundo e fica também no Sesc, _________ (01:01) pelo Sesc e geralmente... esse ano é atípico, né, por causa da pandemia, mas sempre, cada projeto Memórias do Comércio, de cada cidade, dá origem a um livro bem legal do Sesc, que eu acredito que, acabando a pandemia, a gente vai conseguir fazer. É um livro da editora do Sesc, bem chique, bem legal, qualidade muito boa, com o resumo de tudo isso que você vai falar pra gente aí, vai estar quando for lançado, esperamos. Então, eu vou fazer uma claquete aqui, pra começar. Então, vamos lá!
Projeto Memórias do Comércio de Ribeirão Preto 2020/2021
HV – História de Vida 033
Carlos Eduardo Lopes – Palacete 1922
Transcrito por Selma Paiva
Carlos, pra começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, a data de nascimento e o local que você nasceu.
R1 – Carlos Eduardo Lopes, eu nasci no dia 4 de novembro de 1960, na cidade de Ribeirão Preto.
P1 – Legal. E qual o nome do seu pai e da sua mãe?
R1 – Meu pai é João Adriano Lopes e minha mãe Marli Silva Lopes.
P1 – E você teve contato com seus avós? Você sabe o nome de todos eles?
R1 – Sei. Da minha mãe é Amália e José e do meu pai é Rosa e José também.
P1 – E seus avós já moravam em Ribeirão Preto ou eles vieram de fora, em alguma imigração ou vieram de outro ______ (03:07) do Brasil?
R1 – O meu avô paterno veio de Portugal quando era criança e se estabeleceu em Ribeirão Preto e a minha avó materna, os pais dela eram italianos.
P1 – Você sabe o que eles faziam? Eles vieram pra Ribeirão fazer o quê?
R1 – Meu avô eu não sei como ele começou, na sua adolescência e tudo o mais, mas ele tinha uma carvoaria, então ele fazia carvão e vendia carvão e lenha pras pessoas. E o meu avô materno foi motorista de ônibus intermunicipal. Então, ele era motorista de jardineira, na época, que era o nome que se chamavam os ônibus.
P1 – Sim. E você teve alguma tradição desses antepassados, assim, portugueses, italianos? Tinha alguma comida especial? Algum tipo de festa, que remetia a esses ancestrais, a esses lugares?
R1 - Não, né? Porque, na verdade, na época, Ribeirão Preto, a cidade, era pequena quando eu era criança e a gente ficava muito, os finais de semana, em sítios, em chácaras. Então, era aquela comida de sítio, né? Galinha, porco, verduras. Então, essa era a tradição.
P1 – Ah, que legal! E o seu pai e a sua mãe faziam o que, profissionalmente?
R1 – O meu pai era militar da Polícia Militar, bombeiro e minha mãe era dona de casa.
P1 – E quando você nasceu, você lembra da casa que você morava, que bairro que era? Como era o lugar?
R1 - Me lembro. Era na Rua Dom Alberto Gonçalves, nos Campos Elíseos, né? A casa era do meu avô e era a casa vizinha onde meu avô morava.
P1 – Sim. E como era o ambiente lá? Devia ser bem diferente de hoje, que Ribeirão Preto virou uma baita de uma cidade grande. Como era o ambiente, a rua, na sua época de infância?
R1 – Era assim: eu vivia na rua, né? Com quatro, cinco anos de idade, eu ficava o dia todo na rua, na época não tinha pré-escola, né? Então a criança ia pra escola só com sete anos. Então, até os sete anos eu vivia na rua, brincava na rua, tinha muita terra, muitos pés de fruta, grama. Então, a gente jogava bola, corria com os meninos ali do bairro e não tinha problema, por exemplo, de trânsito. Então, eu me lembro que os meus pais não se preocupavam, eu com cinco anos, indo dois, três quarteirões longe de casa, porque não havia nem a possibilidade de violência e nem sofrer qualquer acidente com trânsito, né?
P1 – Ai, que legal! E o bairro que você morava já tinha asfalto ou ainda tinha rua de paralelepípedo, pedra, terra? Como era?
R1 – A minha rua, até um quarteirão passando a minha casa, era asfaltada. Depois já eram ruas de terra. E, na época, tinha muitas casas que o chão ou era de solo batido, ou mesmo de tijolos.
P1 – Legal. E você brincava do que, nessa época? Na rua? Porque naquela época as crianças ficavam bem livres, né? E quem vivia no limiar da cidade, como você, vivia uma vida muito livre, ia pro meio do mato, ia pescar ou tinha várias brincadeiras que hoje já não existem mais. Você lembra do que você brincava com seus amigos?
R1 – Olha, a maior parte do tempo era futebol, porque a gente fazia campinho e jogava futebol; bolinha de gude; aquele esporte que a gente chamava de bets, que punha uma latinha de cada lado e, com uma bolinha, a gente tentava derrubar a latinha. Então, esses eram os principais. E aí também tudo isso, da gente explorar os lugares, ir atrás de pés de frutas, subir em mangueira, goiabeira. Então, eram essas aventuras aí de descobrir frutas e desvendar, porque eram, os quarteirões, cheios de mato, então a brincadeira era fazer essas aventuras. Pegava um cabo de vassoura, pensava que era um cavalo e a gente ia no meio do mato desbravando. (risos)
P1 – Legal, muito bom. E o seu dia a dia, como era, assim? Você acordava cedo, ia pra escola ou brincava e depois ia pra escola? Como que era?
R1 – Na época, no primário, que foi da primeira até a quarta série, eu estudei no Sesi, que era na Rua São Paulo. E devia ter uns dez quarteirões da minha casa. Então, de manhã eu brincava, aí ia pra casa, tomava banho, almoçava e ia pra escola. Então, eu ficava à tarde na escola. E aí saía da escola às cinco horas da tarde, chegava em casa, trocava de roupa e ia pra rua novamente, até escurecer.
P1 – E você tem irmãos?
R1 – Eu tenho uma irmã, mais nova.
P1 – E na escola você estudou no Sesi, na primeira fase, depois você foi pra qual escola?
R1 - Eu fui pra Escola José Martiniano de Souza, que era conhecida como Industrial, que tem em Ribeirão Preto até hoje, na Rua Tamandaré. É uma escola técnica estadual. Então, de manhã eu tinha o currículo normal do ginásio e à tarde eu tinha aulas de marcenaria. Então, eu fiquei, durante dois anos, fazendo marcenaria à tarde.
P1 – Legal. E você se identificou mais com o que, na escola? Que tipo de disciplina você gostou mais? Alguma coisa que já te orientou pra o ramo que você ia seguir? Teve isso, assim?
R1 – Na verdade, eu tinha muita facilidade com as matérias exatas, né? Matemática, Física, né? E gostava muito também de desenhar. Então eu, em casa, lia muito gibi, na época do primário e parte do ensino do ginásio, eu lia muito gibi. Então, eu ficava desenhando muitos personagens dos gibis. E depois, na época do ginásio, a Editora Abril tinha uma coleção que toda semana ela lançava um livro infanto-juvenil, então eu passei a ler esses livros, sempre li muito, né? Então, passei do gibi pra esses livros e depois continuei lendo muitos livros, né? (risos)
P1 – Está certo. E aí, naquela época, era muito comum as crianças e os jovens terem um trabalho dentro de casa ou senão o pai já colocava pra trabalhar. Como você vivia nesse meio, assim? Você já começou a trabalhar em casa ou arrumou um emprego enquanto estudava ou só depois?
R1 – Não. Na verdade, assim, o meu pai começou a trabalhar com meu avô com oito anos de idade, né? E o meu pai acreditava que a gente tinha que estudar. Então, primeiro lugar era o estudo. E eu, quando terminei o ginásio, fui pra escola de cadete do exército em Campinas e então, na escola de cadetes, eu já era suficiente economicamente, né, porque eu tinha onde morar, eu recebia um salário. Então, nessa época, eu não dependia mais dos meus pais. Dependia, assim, como menor de idade e tudo mais, mas economicamente eu já tinha condição de me sustentar.
P1 – E você ficou nessa escola militar em Campinas por quanto tempo?
R1 – Por três anos. Porque, na verdade, como meu pai era militar, desde criança eu queria ser militar. Então, por isso que eu entrei na escola de cadetes. Mas depois, durante o curso, eu fui vendo que aquilo não era a minha vocação ou era diferente daquilo que eu tinha imaginado. E aí eu sabia que eu tinha que sair, mas não sabia direito o que fazer. Mas aí, como eu era homem e, na época, as profissões para homens eram Medicina, Engenharia ou Direito, no início da década oitenta, o que estava muito em alta era Engenharia Mecânica e Engenharia Elétrica. E, como eu tinha facilidade com exatas, gostava de desenhar, falei: “Vou fazer Engenharia, né?” Mas aí eu pensei: “Se eu for fazer Engenharia Mecânica e Elétrica, eu penso que eu vou ter que trabalhar pra alguma empresa, pra alguém, pra alguma indústria”. Aí eu optei por fazer Engenharia Civil, porque eu entendi, na época, que eu teria mais liberdade no trabalho, do que fazendo Mecânica ou Elétrica e aí eu fui fazer Engenharia Civil na Unicamp, porque já era uma cidade que eu conhecia. Então, eu prestei vestibular e fui fazer Engenharia Civil na Unicamp.
P1 – E lá em Campinas você gostou de lá, pensou em ficar lá pra sempre ou você ficou mesmo só pra fazer a faculdade?
R1 – Na verdade, Campinas foi uma diferença muito grande de Ribeirão Preto, né? Porque Ribeirão Preto é uma cidade muito quente. E as pessoas, por ser uma cidade muito quente, ficam mais na rua, parece que é mais fácil de você socializar. Em Campinas, uma cidade mais fria, casas mais fechadas, as pessoas, à noite, ficavam dentro de casa, não ficavam nas calçadas. Então, eu não senti, assim, esse acolhimento. (risos) Mas, na época, o curso de Engenharia Civil da Unicamp era em Limeira. Então, um ano e meio, que era o curso básico de todas as engenharias, era em Campinas. E depois, a faculdade de Engenharia Civil, mesmo, era em Limeira. Então, depois de um ano e meio, eu fui morar em Limeira, pra fazer a faculdade de Engenharia Civil lá. E aí, em Limeira, depois que eu me formei, continuei morando em Limeira por um tempo, trabalhei na prefeitura de Limeira, trabalhei também como autônomo, mas aí eu me casei e voltei pra Ribeirão Preto.
P1 – Você se casou lá em Limeira?
R1 – Não, eu me casei em Ribeirão Preto. Mas quando eu me casei em Ribeirão Preto, eu morava ainda em Limeira.
P1 – Sim. E como você conheceu sua esposa? A gente sempre pergunta isso.
R1 – A minha esposa foi porque meu pai trabalhava no Bombeiro um dia e folgava dois, que era uma escala de 24 por 48. E, na época, tinha caminhão e vendia areia e eu era o cobrador dele. (risos) Então, eu saía pra fazer as cobranças. E tinha um cliente que sempre comprava areia e tinha uma moça nesse lugar e eu a conheci por conta disso, né? De fazer as cobranças.
P1 – Certo. Aí começou a namorar, deu certo e...
R1 – Isso. Aí eu namorei época de faculdade, depois que eu me formei, arrumei emprego, nós nos casamos.
P1 – Sim. Como é o nome dela, pra deixar registrado aqui?
R1 – É Iara, mas depois nós nos separamos. Depois de um tempo, a gente se separou.
P1 – E você tem filhos?
R1 – Eu tenho três filhos. Dois filhos, um é engenheiro e a outra é arquiteta, desse meu primeiro casamento e tenho uma menina ainda de dois anos, do segundo casamento.
P1 – Está certo. E aí, depois dessa fase de Limeira... em Limeira você já estava trabalhando como engenheiro, né?
R1 – Isso. Trabalhei como engenheiro e comecei a dar aula à noite, de Matemática, numa escola técnica lá em Limeira.
P1 – E aí, como é que foi a volta pra Ribeirão? Por que você decidiu?
R1 – Porque ela tinha ficado grávida e queria ficar próxima da família dela. Aí eu consegui um emprego de calculista de estrutura metálica, então fui trabalhar numa empresa de estrutura metálica.
P1 – E aí, como é que foi essa fase? Você voltou pra Ribeirão, começou a trabalhar nessa empresa e onde é que vocês foram morar?
R1 – A gente morava também nos Campos Elíseos, mas aí um pouco mais perto da Avenida Mogiana, que era mais próximo de onde eu trabalhava, porque eu trabalhava próximo ao aeroporto de Ribeirão Preto.
P1 – E como foi a sequência da sua vida profissional?
R1 – Bom, depois eu comecei, quis montar uma empresa minha, então eu montei uma construtora, mas como eu trabalhava, eu não tinha condições de sair do meu serviço e ir pra construtora, porque teve um período aí que eu ia ficar sem poder receber, né? Aí consegui um sócio que tinha se formado em Economia, amigo meu de adolescência e nós abrimos a construtora, né? Então, nós começamos a fazer obras particulares e, juntamente com isso, eu também continuei dando aula de Matemática. E aí depois o meu sócio faleceu, teve um câncer no fígado, aí eu continuei, né? E teve muitos percalços porque, na verdade, eu era engenheiro civil e quem cuidava de toda a administração e entendia, era ele. E, na época também, foi a época dos diversos planos econômicos, que a cada ano tinha um plano diferente. Então, eu tive muitos apertos financeiros por conta disso, não sabia administrar, né? Não entendia de administração, aquele monte de leis que o governo mudava constantemente, mas sempre continuei dando aula e fui gostando muito de dar aula. Me sentia e me sinto muito bem dando aula, né? Aí teve um ano que eu não me lembro qual, que houve uma mudança na lei e quem era formado em Engenharia, por exemplo, não poderia dar mais aula de Matemática. Precisaria ter licenciatura. Aí eu fiz Pedagogia e tirei licenciatura em Matemática também e fui me envolvendo com a educação. Aí, depois, na Pedagogia, eu tive aulas de Psicologia, gostei muito, aí fiz faculdade de Psicologia também e, no final, assim, nos últimos anos, (risos) eu fiquei dando aula de Filosofia num cursinho que chama Centro de Apoio Popular, em Ribeirão, que surgiu dentro da USP de Ribeirão Preto, que dá aulas pra alunos que não podem pagar o cursinho. Então, pra alunos que têm dificuldades financeiras, não tem condições de pagar cursinho e já faz aí quase 16 anos que eu faço parte desse cursinho.
P1 – Certo. E na faculdade você chegou a dar aula também? Em universidades?
R1 – Não. Porque, na verdade, eu até pensei em fazer mestrado, mas aí eu optei por fazer uma outra faculdade, ao invés de fazer o mestrado, quando eu fiz a Psicologia.
P1 – Essas faculdades já foram todas em Ribeirão? Você fez aí?
R1 – É. Só a Engenharia que eu fiz em Campinas, o restante foi tudo em Ribeirão e depois, também, em 2013, eu, junto com outras pessoas, nós montamos um Instituto de Psicologia em Ribeirão Preto, que chama Instituto de Psicologia Avançada de Ribeirão Preto e a gente atende pessoas também em vulnerabilidade social. Então, a gente, no início, começou atendendo gratuitamente, aí depois nós vimos que isso não funcionava no processo terapêutico, então nós começamos a cobrar de cinco a sessenta reais e a pessoa começou a aderir à terapia, porque quando era gratuito, parece que ela não aderia ao processo. (risos)
P1 – Ou só ia quando queria, né?
R1 – É. Então, parece que esse processo dela pagar alguma coisa, a faz ter um comprometimento com o processo.
P1 – Ótimo. E aí, como é que você entrou no mundo comercial? Porque o Palacete 1922 eu achei maravilhoso. A gente estava fazendo pesquisa em Ribeirão, achei um lugar lindo. E esse foi o seu primeiro comércio ou você teve antes?
R1 – Não, foi o primeiro porque, na verdade, por conta da Psicologia, das aulas de Filosofia, essas coisas todas, então você vai aprendendo o valor do patrimônio de uma cidade. Então, eu aprendi isso ao longo do tempo, o quanto isso é importante. Da mesma forma que uma família é importante pra construir a identidade de uma pessoa, de um filho, então uma criança, um adolescente, a família, quem quer que seja: família natural, adotada ou quem faz as vezes da família, é de fundamental importância pra construção da sua identidade. E eu fui percebendo que, pra construção da cidadania, o patrimônio histórico é de fundamental importância, ele é essencial porque, se não há esse patrimônio histórico, você não consegue construir a cidadania. Porque você precisa ter, pra gente poder ser, a gente precisa conhecer e entender o nosso passado, ver o nosso passado. E eu percebi isso porque eu atendi muitas crianças adotadas, na época, que nós ficamos por cinco anos atendendo aquelas crianças que eram retiradas dos lares pela Justiça, por maus tratos, violência, abuso e iam pra uma casa da prefeitura. Então, nós atendíamos essas crianças, até que elas ou voltassem pra algum familiar ou fossem adotadas. E a criança, quando é adotada, a maioria delas, quando chega na adolescência, que ela está ali concluindo o seu processo de formação da identidade, ela sente a necessidade de conhecer seus pais biológicos. E aí começa a ter um conflito com os pais adotivos, porque os pais adotivos têm um medo que ela vai de encontro aos pais biológicos e vai deixar os pais adotivos. Então, a gente atende os pais, os filhos, mas, na verdade, o que o adolescente precisa é colocar um rosto nos seus pais, porque ele tem só uma fantasia dos seus pais biológicos, que ele nunca conheceu. Então, pra ele, colocar um rosto no pai biológico, é de extrema importância na facilitação da construção da sua identidade. E eu vi que o patrimônio histórico é esse rosto do cidadão. (risos) Porque, se o cidadão nasce e junto com ele nascessem todos os prédios da cidade, ele não conseguiria formar sua cidadania. Então, ele precisa desses rostos que vieram antes dele, que são esses prédios antigos, que contam a história da cidade e das pessoas que viveram na cidade, pra formar a sua cidadania. Tanto é que a gente faz isso na nossa casa. Nós temos patrimônio histórico da nossa casa que constituem a nossa família, a nossa identidade familiar, não é? A gente guarda uma cadeira que foi do avô, aquela cadeira velha, que não tem valor comercial nenhum, mas é aquele patrimônio histórico da família que está ali, guardado. Uma joia, um brinco, um colar, as fotos, a memória fotográfica, é de extrema importância. Então, nós guardamos. A gente vai lá e vê quem foi minha bisavó, meu avô, como é que eles se vestiam, onde morava. Então, eu aprendi isso, graças aí a Filosofia, a Psicologia, eu fui aprendendo isso. E quando eu vi essa casa em Ribeirão Preto, que estava à venda, eu percebi em mim um valor imenso naquela casa. Porque eu vejo assim: é como um quadro. O quadro não tem valor material nenhum, mas as pessoas pagam milhões por um quadro, né? (risos) Não pelo seu valor material, mas por aquilo que ele representa e, pra mim, aquela casa representa um pedaço da história de Ribeirão Preto. Então, eu vi que a gente tinha a possibilidade financeira de adquirir a casa e aí nós adquirimos a casa sem saber o que ia fazer com a casa. Mas é como se eu tivesse encontrado uma joia ou um quadro de imenso valor, eu falei: “Poxa, eu tenho condições de comprar isso, eu acho isso maravilhoso, tem um valor pra mim” e nós compramos. E aí, depois, é que nós fomos pensar o que fazer com a casa.
P1 – Sim. E a casa estava bonita ou ela estava meio estragada, meio abandonada? Como que ela estava?
R1 – Na verdade, o seguinte: o dono da casa, que foi o Jorge Lobato, faleceu em 1965, aí ficou um filho dele morando na casa, solteiro, que não casou e ele faleceu em 1991, mas antes dele falecer, ele já não cuidava da casa, ele já não usava manutenção na casa. E depois que ele faleceu, a casa ficou fechada. Então, a casa ficou fechada de 1991 até 2015, quando nós adquirimos a casa.
P1 – Sim. Aí, então, você teve essa possibilidade de comprar, mas você já vislumbrou que você ia ter que gastar um dinheiro pra reformar, pra restaurar a casa?
R1 – Isso. A gente sabia por que a casa, por ser patrimônio tombado, isso que eu acho que é ruim, mas que é no país todo: todo patrimônio tombado desvaloriza, tem um valor de mercado menor do que um imóvel não tombado. Por exemplo: esse imóvel que nós compramos, que está numa área de dois mil metros quadrados no Centro de Ribeirão Preto, eu acredito que ele tenha o valor aí de um quarto do valor do que se ele não fosse tombado, se as pessoas pudessem demolir a casa e fazer um prédio. Então, nós compramos a casa e sabíamos que teria um gasto pra restaurar e aí nós fomos procurar, através de uma faculdade de Arquitetura de Ribeirão Preto, eu fui me informar quem é que entendia de restauro e eles me indicaram um arquiteto da Unicamp, o Marcos Tognon, aí nós o contratamos e ele que nos orientou e fez toda a supervisão do restauro. Também nós fizemos um convênio com a Faculdade de Arquitetura de Ribeirão Preto, na qual eles fizeram todo o levantamento histórico da casa, monitoraram todo o trabalho de restauro e, durante as etapas de restauro, eles foram fazendo visitas monitoradas. Então, aos sábados, eles colocavam na internet, as pessoas reservavam o horário que ia fazer a visita e, de hora em hora, as pessoas iam chegando e ia tendo essa visita monitorada pela casa. Nós chegamos a ter mais de mil e duzentas pessoas, num sábado, visitando a casa.
P1 – Pra ouvir a história da família?
R1 – Isso.
P1 – Que legal!
R1 - Porque a casa está no imaginário das pessoas de Ribeirão Preto porque, como ela está ali, central, então todas as pessoas sabem da casa, a casa tinha um mau cheiro terrível, porque tinham muitos pombos, então os pombos defecavam pela calçada e você não podia nem passar pela calçada. Então, todo mundo tem essa memória da casa, do mistério da casa, como é que era dentro da casa e aí o imaginário vai longe. Então, a gente recebe visitas de muita gente que vai lá e fala: “Nossa, eu sempre sonhei em entrar nessa casa, em conhecer essa casa”. Então, ela está, mesmo... por exemplo: tem tese de TCC, de formando em Arquitetura, sobre a casa. Então, tem vários trabalhos feitos por conta da casa.
P1 – Carlos, no Centro de Ribeirão eu percebi, eu já tinha ido pra Ribeirão, mas sem o olhar histórico e aí, quando começamos a fazer esse trabalho, eu fui com o olhar histórico e eu percebi que tem muito patrimônio ainda pra ser preservado, pra ser restaurado. Daquela parte dali da Praça XV em direção à rodoviária, tem vários prédios antigos, inclusive em volta da Praça XV ali ainda tem casarões. Antes de você se interessar por esse assunto, você passou a vida em Ribeirão, você tinha noção desse tesouro que, realmente, como você falou, dá uma identidade pra cidade? Você tinha noção? Existia alguma coisa educacional na cidade, que fazia as pessoas olharem pra isso?
R1 – Não. Não havia nada. E não há nada, porque eu percebi - porque depois que eu comprei a casa, aí você começa a ter um outro olhar sobre a cidade e as pessoas – que Ribeirão Preto é uma cidade muito pobre em cultura. Então, nós não temos nada praticamente e as festas, as poucas festas populares que nós tínhamos, por exemplo, acabaram por falta de recursos. E lá, por exemplo, teve um caso em Ribeirão Preto que o proprietário da casa ficou sabendo que a casa dele ia ser tombada, ia ser publicado no Diário Oficial e, na noite, ele contratou uns tratores e foram lá e demoliram a casa, antes que ela fosse tombada. Então, lá, na verdade, tem um ranço dos proprietários com o poder público, quanto ao tombamento. Então, as outras casas preservadas lá, nós temos a biblioteca, que é da Fundação Sinhá Junqueira; temos o Quarteirão Paulista, a Pedro II, o Palace, que é da prefeitura, o prédio do Pinguim; temos a Casa da Memória Italiana também, que é de uma família, Biaggi, mas são poucas coisas. O que acontece muito: sábado e domingo as pessoas nos ligam, porque eles procuram no Google, achando que lá é um museu. Então elas veem lá Palacete, tal, pensam que é um museu e ligam: “Queria saber se está aberto pra visitação” e eu falo: “Você pode vir visitar, mas na hora que o restaurante está aberto, porque nós não temos ainda condição de fazer esse trabalho de deixar pessoas lá, pra fazer esse trabalho de visitação”. Aí a pessoa fala assim: “Mas onde eu posso ir, então?” e eu não tenho nenhum lugar pra indicar em Ribeirão Preto. Domingo de manhã eu não tenho nenhum lugar pra indicar em Ribeirão Preto, onde a pessoa possa fazer um passeio cultural, por exemplo.
P1 – Mas você, com a mentalidade que você adquiriu, através da Psicologia, com a história que você falou da identidade da cidade, de dar uma cara pra cidade, toda aquela parte ali pra baixo que está deteriorada, o Hotel Brasil, aquela parte lá embaixo, aquilo, na sua opinião, não pode, restaurado, gerar lucro pra alguém?
R1 – Sim, mas é aquilo que eu disse pra você com relação ao valor. Então, eu fui aprendendo o valor do patrimônio histórico. Então, eu vejo que as pessoas que fizeram riqueza em Ribeirão Preto, não se desenvolveram culturalmente. Então, pra elas, aquilo é uma casa velha. Então, não tem valor nenhum pra elas. O que elas gostam é de prédios novos. Apesar de ter essa contradição que elas vão na Europa tirar fotos dos prédios antigos, em Ribeirão Preto elas gostam dos prédios novos. E, pra elas, prédio antigo é casa velha. Então, é claro que em Ribeirão Preto tem muita gente muito rica, Ribeirão Preto é uma das cidades mais ricas do estado mais rico do país, então tem muita gente que teria recursos, que não faria diferença nenhuma pra eles em termos do seu patrimônio, restaurar um prédio desses. Agora, em Ribeirão Preto, ali, que vai da Praça XV até a rodoviária, todos aqueles prédios que você conheceu, tem trezentos, quatrocentos imóveis que é de um dono só, que é tudo alugado, então a pessoa não tem interesse, não dá valor. Então, mas é claro que a gente percebe que, no mundo todo, o Centro da cidade deixou de ter o valor comercial, mas o turismo gastronômico e cultural tem trazido muita riqueza pra cidade.
P1 – É isso que eu ia te perguntar: como engenheiro e como interessado no assunto, como proprietário do Palacete 1922, não existe nenhuma política pública pra transformar esses espaços em lugares que vão chamar turistas, consumidores de comida, de arte, de cultura? Que são esses espaços. Você vai em Ouro Preto, o dinheiro vem disso, né? E não existe uma política pública orientada nesse sentido? Uma vontade pública nisso?
R1 – Não. Eu conversei com a secretária da Cultura, porque o ano que vem vários desses prédios completam cem anos. Então, eu conversei com a secretária da Cultura de nós começarmos, esse ano, a fazer um projeto pra comemorar o centenário desses prédios e, junto com isso, fazer esse circuito cultural e gastronômico no Centro de Ribeirão Preto. Mas isso ainda está no início do início. A gente tem que chamar a Associação Comercial, a prefeitura e outras pessoas, pra poder fazer esse projeto. Eu espero, como tem prédios que são da prefeitura e também vão fazer cem anos, que esse centenário possa ser o estímulo que falta pra gente concretizar esse objetivo.
P1 – E falando especificamente do seu espaço, do Palacete 1922, qual é a história dele? Você deve saber. A família era do café? Como é que era?
R1 – O Jorge Lobato nasceu em Taubaté, era primo do Monteiro Lobato e o pai do Jorge Lobato foi prefeito da cidade do Rio de Janeiro. Então, o Jorge Lobato foi pro Rio, fez Engenharia Civil no Rio de Janeiro e ele foi pra Ribeirão Preto, pra trabalhar na construção da estrada de ferro, não é? E aí ele casou com a Ana Junqueira, que era filha do coronel Joaquim Diniz da Cunha Junqueira que, na década de vinte, era um dos homens mais poderosos do país. Ele tinha uma extensão de terra imensa. Então, ele tinha um poder econômico e político muito grande. Então, o Jorge Lobato, junto com ele, controlava a cidade de Ribeirão Preto. O Jorge Lobato foi vereador, foi presidente da Câmara Municipal, ele foi dono da primeira rádio de Ribeirão Preto, a PRA-7 e a sétima rádio do país, porque na época só tinha rádio em Salvador, Rio e São Paulo. Por isso que é PRA-7, porque é sétima do país. Pra demonstrar a potência econômica que era Ribeirão Preto na época. E ele foi fazendeiro, agricultor, exportava café, teve casa bancária, ele tinha uma fazenda em Sertãozinho, ele engarrafa água mineral, que chama água mineral Palmital. Todo mundo que tem mais de cinquenta anos em Ribeirão Preto conhece essa marca. Então, ele foi uma pessoa muito atuante na cidade. Ele deu aula na Escola Otoniel Mota, que é uma escola que, nessa época, era referência da cidade. Então ele, depois de casado, já estava com os três filhos crianças na idade de dois, três anos, ele constrói essa casa. E ele contrata o maior escritório de arquitetura da época, que era o escritório do Adhemar de Moraes, que era em São Paulo, que fez as principais obras do país na época. Então, ele projetou o Palacete Jorge Lobato, o projeto é bem parecido com o da Casa das Rosas, na Avenida Paulista, em São Paulo, que é o mesmo. Ele fez o Teatro Municipal, a catedral de Campinas. Então, ele fez, assim, uma quantidade imensa de obras na época. E essa casa teve o objetivo de se buscar uma arquitetura nacional, brasileira porque, na época, se copiava tudo da Europa. E Ribeirão Preto também não fugia disso. Copiava tudo, principalmente de Paris. Tanto é que Ribeirão Preto ficou conhecida como A Pequena Paris, porque tudo era importado da França.
P1 – Era eclético, que chamava? Um estilo eclético.
R1 – Isso. Aí, essa casa teve essa intenção, de se criar uma arquitetura nacional. Então, ela é uma casa mais limpa, não tem tantos adornos. Pra época era uma casa supermoderna, porque ela fez a separação da área social e da área de serviço, dos quartos. Então, os quartos ficam em cima e a área social e a de serviço embaixo. E ela também tinha dois banheiros: um embaixo e um em cima. O que, pra época, era uma coisa assim moderníssima. Além de algumas coisas. Por exemplo: ela tinha, na cozinha, porque do lado da cozinha era o quarto da cozinheira. E tinha um hall que dava entre a cozinha, o quarto da cozinheira e a despensa e, nesse hall, tinha lá um quadrinho com números, cada número indicava um cômodo e, atrás do número, tinha uma bobina de cobre. Então, a pessoa, onde ela estava, apertava um botão, essa bobina de cobre esquentava e iluminava o número. Então, o funcionário sabia em qual cômodo ele estava sendo chamado.
P1 – Olha! Isso era moderníssimo, pra época.
R1 – Era. (risos) Os vitrais, todos, da casa, são franceses. Então, a maioria das coisas vieram da Europa.
P1 – É muito bonito! E você acha que é único esse estilo? Ele criou? Tem até algum nome, assim? Ou não?
R1 – Tem um nome, mas eu não me lembro agora, viu? Mas está no nosso site, porque o pessoal da Arquitetura lá identificou esse nome. A Casa das Rosas é do mesmo estilo, da Avenida Paulista.
P1 – Mas em Ribeirão é única, né?
R1 – É única em Ribeirão Preto. Tinham outras, mas foram demolidas.
P1 – E esse arquiteto chegou a morar em Ribeirão?
R1 – Não, São Paulo. Pra você ter uma ideia, na época, o escritório dele na década de vinte, tinha 22 arquitetos trabalhando.
P1 – Carlos, aí vocês adquiriram a casa. E aí, como é que vocês conversaram entre vocês aí? Você tem sócio ou você faz isso com a sua atual esposa? Quem é?
R1 – Não. Sou eu, a minha filha, o meu filho e a minha esposa.
P1 – Pra ficar registrado, o nome do seu filho, da sua filha e da sua atual esposa.
R1 – Meu filho é Hector ______ (45:09) Lopes, aí eu tenho a Ingrid _______ (45:12) Lopes, que é arquiteta e a minha menina, que é Isabela Garcia Lopes e a minha esposa chama Miriam Terra Garcia Lopes.
P1 – O pessoal todo é meio pro lado da Arquitetura ou não?
R1 – Não. A minha esposa é psicóloga. Aí meu filho é engenheiro e a minha filha é arquiteta. Aí nós começamos a pensar, porque a gente queria que a casa tivesse vida e que fosse autossustentável. A gente não queria que fosse uma casa museu, com dinheiro a fundo perdido. A gente queria que ela fosse viável economicamente. E aí nós começamos a pensar que tipo de comércio poderia ter ali pro imóvel ser viável economicamente. Foi aí que, no meio de tantas conversas, surgiu a ideia do restaurante. Porque alguém falou que a história de um povo você pode contar por vários vértices. Você pode contar a história de um povo pela música, pela arquitetura, mas você também pode contar a história do povo pela sua comida. Então nós falamos: “Bom, então é isso: vamos contar a história de Ribeirão Preto através da comida”. E aí nós contratamos uma professora do Sesc, de gastronomia, porque meu filho fez um curso de gastronomia no Sesc. Na verdade, ele chegou a fazer três cursos: de gastronomia, de barista e um outro que eu não me lembro agora. E aí essa professora nos ajudou, contratamos também um professor de História, um chef de cozinha e aí ficamos praticamente um ano elaborando esse cardápio. Então, o que nós fizemos? Essa professora pesquisou que tipo de alimentos que se comia na década de vinte em Ribeirão Preto, buscou cardápios da época e tudo o mais, então nós pegamos os alimentos que se consumia na década de vinte e fizemos pratos contemporâneos, mas usando esses ingredientes. Então, na época, por exemplo, como não havia refrigeração, não tem nada de frutos do mar, nada que venha de longe, era tudo o que se consumia ali na região: os peixes são do rio da região e os alimentos são ali. Então, o que nós fizemos? Nós temos a nossa própria horta no restaurante, a gente cultiva lá os nossos temperos; nós fazemos o nosso catchup, que é feito de goiaba; nós fazemos o nosso vinagre, da jabuticaba colhida dos pés das jabuticabeiras da casa, nós fazemos o licor de jabuticaba. Então, tudo aquilo que é possível fazer ali, nós fazemos. Fazemos a massa, molho de tomate, diversas coisas ali.
P1 – Carlos, essas coisas que você falou, vocês inventaram? Ou isso já existia na tradição culinária de Ribeirão?
R1 – Como assim?
P1 - Por exemplo: o vinagre de jabuticaba já existia ou vocês inventaram?
R1 – Olha, eu não sei se ele já existia, mas o nosso chef de cozinha é uma pessoa muito estudiosa, então ele que foi desenvolvendo todo esse processo. Mas, com certeza, se não existia o vinagre de jabuticaba, ele deve ter pegado algum outro semelhante, pra poder fazer.
P1 – Sim. O catchup de goiaba, por exemplo, essas coisas eu nunca tinha ouvido falar, mas existe alguma comida que seja típica de Ribeirão? Você acha?
R1 – Olha, assim, Ribeirão Preto sofreu várias influências. Nós recebemos um cônsul italiano lá num domingo e ele disse que, na década de vinte, em Ribeirão Preto tinham mais imigrantes italianos do que pessoas nascidas no Brasil. Então, ele falou que a vinda dos italianos pra Ribeirão Preto provocou uma mudança muito grande na alimentação. É claro que eu me lembro, por exemplo: a gente comia muita coisa feita da farinha de milho, porque como não tinha a farinha de trigo, então eles introduziram a farinha de milho. Então, polenta e uma série de outras coisas da farinha de milho, né? Mas, assim, eu não sei de uma tradição de uma comida de Ribeirão Preto. Isso eu não tenho conhecimento, se tem uma comida tradicional. Eu sei que o que as pessoas comem é arroz, feijão, carne, mas um prato que você pode caracterizar da cidade, eu não tenho conhecimento.
P1 – Mas vocês tiveram, pelo que você me contou, essa preocupação de ser um cardápio que pudesse refletir um pouco o que era a década de vinte, né, mesmo assim?
R1 – Isso. Então, nós pegamos os ingredientes. Quais eram os ingredientes? Porco, frango, a carne de boi e peixes ali dos rios. Então, os nossos ingredientes, são esses ingredientes simples. Nós não temos nenhum ingrediente importado, sofisticado. Mas os pratos são extremamente contemporâneos e sofisticados. Então, por exemplo... e o nosso cardápio a gente começa nas entradas, prato principal e sobremesa e cada entrada vai contando um pedaço da história de Ribeirão Preto. Então, a gente tem o nome da entrada, por exemplo, Entre Rios. Antes de se chamar Ribeirão Preto, recebia o nome de Entre Rios. Então a gente tem lá a descrição do prato e temos também a origem do Entre Rios, a parte histórica da cidade. Então, se você quer conhecer como Ribeirão Preto se formou até a década de vinte, é só ler o nosso cardápio, que tem a história lá com os nomes. Então, por exemplo: nós temos um prato lá que a gente faz com o stinco, que é a canela do porco. Stinco é italiano e significa canela. Então, é a canela do porco. Nós temos uma coisa, porque é assim: a dinâmica da casa nós chegamos a entrevistar duas pessoas que trabalharam na casa, uma senhora que hoje tem mais de oitenta anos, mas ela trabalhou na casa quando ela tinha 13 anos, na época que a Ana Junqueira ainda era viva. E depois entrevistamos uma outra senhora, mais nova, que trabalhou na casa com o filho do Jorge Lobato, até o filho falecer. Então, duas vezes por semana vinha, da fazenda do Jorge Lobato, as frutas, verduras, as carnes, leite e a Ana Junqueira, no porão da casa, fazia o queijo, os doces, fazia tudo ali. E o nome dela é Ana Junqueira e ela era Sinhá Ana, que acabou virando Sinhaninha, então ela era conhecida como Sinhaninha. E aí nós temos uma sobremesa que chama Sinhaninha, que tem uma degustação de quatro doces, né, que é doce de mamão, doce de leite, doce de abóbora, que eram os doces que ela fazia no porão da casa. Então, é mais ou menos isso.
P1 – Carlos, vocês criaram isso em conjunto, com os filhos?
R1 – Isso.
P1 – Tem um mestre-cuca lá, o chef de cozinha?
R1 – É, tem o chef de cozinha, que é o Danilo Sakamoto. O Danilo é de Franca, fez Administração na USP em Ribeirão Preto, mas como ele sempre gostou de cozinhar, fez curso, se formou e trabalhava em São Paulo, no Red Bull Station, que também é um prédio histórico tombado e, num andar desse prédio, funciona um restaurante e aí, como ele tinha intenção de voltar pra Ribeirão Preto, ele era conhecido do meu filho e aí deu certo dele vir pra Ribeirão Preto e nós o contratamos um ano antes de abrir o restaurante, pra gente poder fazer todo esse processo.
P1 – E, Carlos, como foi essa aventura? Você não é do ramo do comércio.
R1 – Não.
P1 – Você entrou no ramo do comércio, precisa de contabilidade, fazer propaganda, como é que vocês pensaram tudo isso? Como que foi a divulgação de que seria um restaurante, chamar o povo pra vir? Como foi isso?
R1 – Na verdade, desde quando nós compramos a casa e demos a entrada no projeto na prefeitura e as pessoas começaram a ter conhecimento, a gente foi notícia durante sempre, pelo menos uma vez por mês a gente era notícia na TV, no rádio, nas revistas, porque como o descaso é muito grande pelo patrimônio histórico, então de repente aparece alguém querendo restaurar e não é com recurso do governo, isso virou notícia. Então, muita gente procurou, institutos, o pessoal quis participar, muita gente nos ajudou. Então, a gente foi notícia o tempo todo. E aí vamos fazer o restaurante. Nós fizemos... durante o processo de restauro, houve muitas exposições artísticas, que a gente cedia a casa. Então, houve várias exposições artísticas e sempre era notícia. Teve feira de artesanato. Então, a gente estava sempre na mídia. E aí o restaurante, a própria mídia divulgou. Nós nunca gastamos recursos com propaganda, porque o prédio já era notícia sempre, na mídia.
P1 – E a parte administrativa? Como você pensou isso aí?
R1 – Eu já tinha uma experiência da parte administrativa da construtora, em termos de administração, RH, financeiro. A professora do Sesc, a Edna, nos ajudou também nessa parte da administração de um restaurante, que é diferente, né? Tem suas peculiaridades. Então, ela nos ajudou muito, conviveu conosco desde o primeiro momento, até depois da inauguração. Então, ela participou de todo processo e foi nos orientando, a gente também foi buscando orientação, às vezes contratava uma assessoria e a gente foi formando toda a equipe e todo o processo.
P1 – Certo. Aí abriu em 2015, né?
R1 – Não. Em 2015 nós adquirimos a casa. Aí, o projeto demorou dois anos pra ser aprovado pela prefeitura, porque como isso é uma coisa inédita, nem eles sabiam como fazer, eles tiveram que constituir uma equipe técnica pra poder analisar o projeto e o Compac, que é o Conselho do Patrimônio Histórico tinham que se reunir, então foi um processo muito moroso, por falta de não ser uma coisa habitual para o poder público. E depois nós ficamos dois anos e meio restaurando, fazendo restauro e então nós inauguramos, em novembro de 2019. E aí nós ficamos lotados todos os dias, até março de 2020, quando foi fechado, por conta da pandemia.
P1 – E aí abria todo dia, domingo também?
R1 – De terça-feira a domingo. A gente abria no almoço de terça-feira a domingo e no jantar de quinta-feira a sábado.
P1 – Aí lotou?
R1 – Lotou. Começou a ter procura de empresas pra fazer eventos. Por exemplo: toda semana pessoas nos procuram pra tirar foto, já teve gravação de banda de rock, pessoas que vão casar vão lá tirar foto, escolas da região estavam levando seus alunos lá pra fazer visita, mas aí tudo isso foi interrompido (risos) por conta da pandemia.
P1 – Aliás, é uma pergunta que a gente faz pra todos os comerciantes, todo mundo que a gente está entrevistando: quando começou a pandemia, você pensou o quê? O que você fez?
R1 – Na verdade, no primeiro momento - porque nós fechamos no dia 15 de março de 2020 – o que nós fizemos? Até trinta de março os funcionários ficaram em casa e nós pagamos normalmente. Aí, depois, nós conversamos com eles que, na verdade, ninguém tinha férias, porque a gente tinha acabado de abrir. Aí nós conversamos com eles, eles falaram: “Olha, então vamos fazer o seguinte: ficar em casa trinta dias, como se fossem férias antecipadas e vamos acertar assim”. Falei: “Bom, então tudo bem”. Porque a gente se reuniu pra buscar uma solução, porque era uma coisa inédita, eu também não sabia o que fazer, então a gente tomou uma decisão em conjunto. Aí, nesse período das férias, teve aquela lei do governo bancando parte do salário dos funcionários. Então, o governo pagava 70% do salário dos funcionários e a gente completava o restante. Aí, depois, nós reabrimos. Acho que foi em outubro de 2020, a gente reabriu novamente, mas as pessoas - como nosso público é adulto e de família – não vão, porque elas estão se precavendo. Então, hoje, quando nós abrimos, o nosso movimento era cerca de 10% do nosso movimento anterior da pandemia. Mas nós estamos aí há vários meses no prejuízo, porque ficou essa história de abre e fecha e a gente perdeu muita mercadoria, porque você compra mercadoria e fecha, aí a gente está naquela esperança que vai abrir e você acaba até esquecendo a mercadoria e, quando você vai ver, já venceu. Então, nós estamos assim, né? Agora a gente foi várias vezes refazendo nosso planejamento, porque a gente esperava: “Daqui quatro meses vai estar tudo bem”. Daí a pouco você mudava de novo o planejamento. (risos) Agora a gente já está planejando pro segundo semestre poder ter, pelo menos, um movimento que não fique no prejuízo. Então, esse é o nosso planejamento atual.
P1 – E, no caso de vocês, não funciona muito fazer o delivery, essas coisas, né? Porque o que importa, mais, é o cardápio, a história, a casa.
R1 – É esse conhecimento, essa experiência. Então, as pessoas vão lá, elas querem ouvir, conhecer, andar pela casa. Então, por exemplo: foi uma senhora lá comemorar o seu aniversário, que ela nasceu em 1922, então ela foi lá comemorar seu aniversário lá na casa. Foi uma senhora lá que ela nasceu na casa, porque ela era da família Junqueira e morava na fazenda e, quando a mãe dela estava pra dar a luz, ela foi lá na casa e nasceu lá num dos cômodos da casa, com uma parteira. Então, as pessoas vão lá, contam histórias, doam coisas. Foi uma pessoa lá e falou: “Eu tenho dois quadros aqui que quem pintou foi a neta do Jorge Lobato, eu quero doar aqui pra casa”. Foi uma outra artista também, uma pintora, doou um quadro. Às vezes a pessoa doa objetos. Então, eu acho que o que nós... até foi assim: esse arquiteto Marcos Tognon... porque nós fizemos o restauro baseado num processo internacional de restauro. Ou seja: envolvendo a comunidade no processo de restauro. Por isso que nós fizemos as visitas, as exposições de arte. Porque a comunidade participou do processo. Então, muita gente entende que aquilo também faz parte dela, que ela também contribuiu, então elas querem ver o negócio acontecer. Por exemplo: quando nós fechamos, muita gente mandou mensagem, ligou, falou: “Não, fica firme, nós estamos torcendo por vocês”. Então, foi muito legal isso.
P1 – Sim. E logo mais, acredito que, pelas vacinas, que pros mais velhos já chegaram, você já vai poder ter um público de gente mais velha, acompanhando a vacina, talvez. Vocês já estão programando isso?
R1 – Eu acredito que a gente, à medida que for diminuindo o número de mortos, porque isso que vai dar uma segurança, acredito, pras pessoas. É claro, com a vacina e a diminuição de número de mortos, acredito que as pessoas vão voltar, porque as pessoas estão tendo essa necessidade, de estar junto com outras pessoas. E o que aconteceu nesses meses que nós abrimos, agora nós estamos fechados novamente, porque todo o estado de São Paulo está fechado, nós realizamos muitos casamentos. Então, casamentos pra grupos de vinte, trinta pessoas, a família mesmo e muita gente, nós realizamos aí, nesse período, cerca de 12 casamentos, que o pessoal gostou, porque o cenário é muito bonito pras fotos. Então, as pessoas, com pouca gente, nos procuram pra fazer casamentos.
P1 – Carlos, e você continua dando aula, trabalhando como psicólogo, continua seu trabalho na casa que recolhe as pessoas carentes?
R1 – É, continuo atendendo como psicólogo e atualmente eu não estou dando aula. Eu faço parte, ainda, da diretoria lá do cursinho, mas não estou dando aula, porque como o restaurante começou a abrir à noite, então aí eu não tinha disponibilidade.
P1 – E o seu público, assim, esquecendo a pandemia, no momento que estava cheio de gente, de novembro a março, é qual, assim? É todo mundo que se interessa por História, por gastronomia, mais elevado financeiramente ou não, vai todo mundo, como é?
R1 – Na verdade, porque assim: o nosso restaurante é nível A, em termos da decoração, do enxoval, dos talheres, da qualidade dos produtos e da apresentação dos pratos. E também da nossa equipe, porque é chef de cozinha, toda uma estrutura, então isso tem um custo. Só que nós trabalhamos com ingredientes que não têm um valor alto e nós, também, como produzimos muita coisa e plantamos uma parte das coisas, então nós conseguimos ter um restaurante classe A com um preço menor do que os restaurantes semelhantes, de mesmo nível. Então, a gente consegue ter um público de C a A. Só que esse público é mais amadurecido. Ou pela idade, ou pela vida, porque a gente recebe jovens lá, mas você percebe que são jovens com outra cabeça. Jovens que são mais maduros, que têm preocupação com a cultura, com a História. Então, por exemplo, lá... porque Ribeirão Preto é a cidade dos botecos. Aqueles botecos, onde as pessoas ficam nas calçadas, acho que por conta do calor, então todo mundo quer ficar tomando cerveja e chopp na calçada, tal. Então, ele não é esse tipo de público. É um público mais maduro, de quarenta anos pra cima, os jovens são a minoria. E o que a gente tem? No almoço de semana, de terça-feira a sexta-feira, iam executivos ou pessoas que trabalham ali no Centro ou em outras áreas, almoçar ali. Professores, muitos, porque tem a ver com a cultura. Funcionários públicos. E, à noite, eram famílias e grupos de amigos. E o domingo era família, grupos de família, avós, pais, crianças. Então, é mais ou menos essa a dinâmica. Agora nós estamos com dois projetos, nós construímos um prédio no fundo da casa, onde a gente vai fazer uma casa de café, que é pra contar a história do café de Ribeirão. Então, isso a gente vai esperar normalizar tudo, o movimento voltar pra, depois, inaugurar essa casa. E, junto com isso, a gente fez um projeto também, que é no porão da casa, que quem nos orientou sobre isso foi uma professora de Turismo lá de Brasília, a respeito do que eles chamam de experiência. Então, com horário marcado, a pessoa vem, a gente vai contar sobre a história da casa, vamos passar algum filme e aí ela vai aprender a fazer o licor de jabuticaba, a gente vai ensiná-la a fazer, ela vai fazer, vai levar pra casa pra concluir o processo e aí a gente vai contar a história do café, os vários tipos de grãos, os sabores, os processos de preparo, fazer uma degustação e o almoço, por que o que a gente pensou? Como tem essa carência em Ribeirão Preto, por exemplo: uma família que tem filhos aí na idade escolar quer fazer um passeio cultural com os filhos, eles não têm onde ir. Então, a gente quer fazer esse passeio cultural da família, que possa ir lá um grupo de quatro, seis pessoas e fazer esse processo lá no porão da casa.
P1 – Entendi. Carlos, agora, na retomada, acho que nunca - pelo que você me contou – precisou fazer propaganda em jornal, rádio, revista, TV, nada?
R1 – Não, nunca fizemos.
P1 – A propaganda já veio direto, com a própria singularidade da casa, né?
R1 – Isso. E porque também a casa está num ponto que a quantidade de pessoas que passam ali diariamente é muito grande. E porque a casa, também, já tinha um histórico de diversas reportagens, eu pesquisei isso no Google, muitas reportagens anteriores falando do descaso da casa. Que nem o poder público, nem os proprietários não davam atenção pra casa. Então, ela já tinha um processo grande. E a mídia tem dado esse apoio muito grande, por conta desse processo que nós fizemos.
P1 – Que legal! A gente sempre faz essa pergunta pra todos: o que você gosta de fazer quando você não está trabalhando? Qual é seu lazer? Você gosta de ouvir música, passear? O que você gosta?
R1 – É, eu gosto muito de viajar. É claro que isso a gente não faz toda hora, (risos) mas se fosse meu lazer preferido, é viajar e conhecer lugares. Conhecer gente, culturas. Então isso eu acho uma coisa muito rica. Agora eu gosto muito de música, ouvir música, leitura, estar com as pessoas, às vezes jogar um baralho, essas coisas.
P1- Que legal! E outra coisa que a gente pergunta pra todo mundo é sobre o futuro, mas você já falou as ideias novas do café, da experiência sensitiva no porão e é engraçado que muitas pessoas, quando eu pergunto isso, falam que pretendem expandir, fazer uma rede, tal. No seu caso, é impossível, porque a casa é o maior chamariz do seu negócio. Mas seria interessante que, em Ribeirão Preto, mais pessoas tivessem a sua iniciativa, porque tem muitos lugares que dá pra ser transformado em cafés, em lugares culturais, em restaurantes e um comércio acaba chamando o outro.
R1 – É verdade. Eu acredito que tem várias pessoas em Ribeirão Preto esperando ver se o nosso vinga, sabe? (risos) Então, eu acho que, se o nosso der certo, vai estimular muitos empresários de Ribeirão Preto a fazerem isso. Porque agora uma coisa que eu tinha certeza que ia acontecer e aconteceu: que esse processo que nós fizemos agregou valor a nós, como pessoa. Então, as pessoas vão lá e nos agradecem pelo que nós fizemos. Então, eu penso o seguinte: se uma empresa faz isso e coloca o escritório dela lá num imóvel desse, ela não precisa transformar em museu, mas que ela restaura e coloca o escritório dela lá, eu acredito que isso agregaria um valor enorme pra marca dela. Então, eu acho isso estranho, o pessoal ainda não perceber isso. (risos)
P1 - E ainda bem que o seu negócio já deu certo, né? É que teve a pandemia, mas as pessoas vão. Quer dizer que existe um público pra isso, né?
R1 – Existe. Inclusive teve gente, quem tem comércio em Ribeirão Preto, porque os restaurantes de nível A estão na zona sul da cidade, então eles falaram pra nós que o pessoal classe A não iria lá no Centro da cidade, principalmente à noite. Tanto é que nós fizemos uma carta de vinhos mais acanhada, por conta disso. E aí, não, o pessoal classe A vai em peso, foi em peso no restaurante. E aí eu fiquei sabendo, um cliente, uma sexta-feira à noite foi lá, no final me chamou e falou assim, elogiou, elogiou: “Olha, é muito legal tudo, tal, mas a sua carta de vinhos é um pouco acanhada. Você tem que (risos) ampliar um pouco mais a sua carta de vinhos, que você vai atender melhor esse tipo de público”. E aí nós refizemos a nossa carta de vinhos.
P1 – Que legal! Carlos, estamos chegando mais no fim da entrevista, tem alguma coisa que você gostaria de falar sobre o restaurante, sobre o negócio, que a gente não perguntou?
R1 – Não. Eu acho que eu disse tudo. E ressaltar isso: a importância do patrimônio. E o que eu acho que seria legal de se fazer um trabalho é de se tirar essa ideia que patrimônio histórico é museu, porque muita gente que vai lá e pessoas até de um nível legal, pensam que aquilo lá é da prefeitura. Eles nem sabem que patrimônio histórico pode ser privado. E eles nem imaginam que pode funcionar o comércio. Eles entendem que patrimônio histórico só pode ser museu. Então, isso acho que dificulta um pouco, essa falta de entendimento.
P1 – Exatamente. Eu te agradeço muito pela entrevista, te parabenizo pela iniciativa, eu achei linda a casa, achei lindo o Centro de Ribeirão Preto. Mesmo a parte que está degradada, eu já achei bonita. Mas acredito que isso vai chamar mais gente, pra tentar essa aventura de pegar um lugar histórico lá de 1890, 1910 e botar pra funcionar e restaurar. Acho que vai ser muito positivo. Agradeço muito a você, viu, Carlos?
R1 - Eu que agradeço.
P1 - Nosso fotógrafo vai te ligar e marcar um dia pra vocês fazerem uma sessão...
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