Plano Anual de Atividades 2013
Projeto Nestlé - Ouvir o Outro – Compartilhando Valores – Pronac 128976
Depoimento de Telines Basílio do Nascimento Junior
Entrevistado por Tereza Ruiz
São Paulo, 05 de agosto de 2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista NCV_HV_043_ Telines Basílio do Na...Continuar leitura
Plano Anual de Atividades 2013
Projeto Nestlé - Ouvir o Outro – Compartilhando Valores – Pronac 128976
Depoimento de Telines Basílio do Nascimento Junior
Entrevistado por Tereza Ruiz
São Paulo, 05 de agosto de 2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista NCV_HV_043_ Telines Basílio do Nascimento Junior
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
P/1 – Primeiro, Carioca, vou pedir para você dizer pra gente o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Telines Basílio do Nascimento Júnior, mais conhecido como Carioca. Eu nasci no dia seis do 12 de 1964, no Rio de Janeiro, município de Nova Iguaçu.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe e, se você se lembrar, também data e local de nascimento deles.
R – Meu pai nasceu no Espírito Santo, no dia cinco de outubro de 1926, o nome é Telines Basílio do Nascimento. Minha mãe, Filomena Boschetti do Nascimento, nasceu dia dois de dezembro de 1926, ambos falecidos.
P/1 – Sua mãe nasceu onde?
R – Minha mãe nasceu em Presidente Prudente, São Paulo.
P/1 – O que seus pais faziam?
R – Minha mãe era do lar e meu pai era fiscal municipal de obras da Prefeitura Municipal de Nova Iguaçu. É meio complicado falar da minha mãe, porque essa é a mãe número dois, na verdade eu tive três mães. A minha mãe que me gerou, ela era Teresa Monteiro do Nascimento, de quem eu me lembro muito pouco, faleceu eu tinha quatro anos de idade, aí meu pai casou pela segunda vez. A Filomena Boschetti, que a gente chamava de Nena, foi quem me criou. E depois meu pai se divorciou e casou novamente, e eu tive uma outra mãe, que terminou já na minha fase de adolescência até eu sair de casa. Eu tive três mães e uma mais maravilhosa do que a outra, sou um privilegiado.
P/1 – Sortudo.
R – É.
P/1 – Como é o nome dessa terceira mãe?
R – Dessa terceira é Maria Laurentina de Souza.
P/1 – Conta um pouco pra gente como seu pai e suas mães eram de temperamento e personalidade.
R – Eu acho que meu pai foi o homem mais inteligente que eu conheci na vida, não só inteligência que ele aprendeu ao longo do tempo, mas na forma de lidar com as pessoas. Ele tinha uma facilidade, uma forma de envolver a todos com seu discurso, era uma pessoa maravilhosa e muito querida por todos, principalmente pelos filhos. A minha primeira mãe eu não me lembro nada, mas a minha segunda mãe ela era do lar, uma pessoa bem rígida, disciplinadora, mas que tinha muito amor, muito carinho, principalmente por mim, porque ela não podia ter filho e ela me criou como filho com muito amor, muito carinho. Ela me preparou para encarar esse mundão de Deus. E a minha mãe número três já foi num momento que eu estava saindo da adolescência, vindo para a fase adulta, tivemos algumas rusgas, discussões, eu adolescente muito jovem não entendia muita coisa, mas que agora, ao final da vida do meu pai, que meu pai faleceu em 2010, ela mostrou para mim o quanto ela amava meu pai. E eu pude (emocionado) entender o porquê que meu pai estava com ela. Sabe, isso foi, os dois últimos anos da vida do meu pai serviu para a gente se aproximar, a gente se perdoar e eliminar tudo o que houve entre a gente e a gente criar um relacionamento que dura até hoje. Eu resolvi que ela tinha que me adotar como minha mãe, hoje eu chamo ela de mãe. É mais ou menos isso.
P/1 – Seu pai adoeceu, foi isso?
R – Meu pai teve um problema de diabetes, sofreu com essa doença durante 17 anos. Nos últimos seis anos de vida ele teve que amputar um dedo, perdeu a visão, ficou quase seis anos sem enxergar, foi uma fase bem complicada. Mas ao mesmo tempo, principalmente para mim, que vim pra São Paulo, fiquei quase seis anos sem voltar lá, sem dar notícias, e quando eu soube dessa fase dele, eu resolvi me aproximar novamente, e aí eu estava lá todo mês, se precisasse ir mais vezes no mês eu ia. E a gente se aproximou muito, a gente pôde se conhecer melhor, né? E o principal, a gente conseguiu falar que se amava.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Eu tenho dois irmãos. Eu sou o caçula de uma família de três irmãos. Meu irmão mais velho é o Cléber, Cléber Monteiro do Nascimento, ele é de 1950; o do meio é Clairton Monteiro do Nascimento, ele é de 1953. Mas com a morte da minha mãe número um a gente se afastou muito, sabe? Por um período a gente foi criado por uma tia, e meus irmãos foram um para cada lado. Então, a gente não é uma família unida, se ama, se conversa, de vez em quando a gente se encontra, mas não tem aquela proximidade, sabe? Eu acredito que foi muito pela perda que a gente teve da nossa mãe muito novo, e acabou cada um trilhando um caminho diferente.
P/1 – Você tem alguma recordação dessa fase, quando você perdeu a sua primeira mãe?
R – Eu tenho da época que eu morei na casa da minha tia. Eu me lembro que a minha tia, eram dois irmãos casados com duas irmãs, e eu me lembro que a minha tia levou a gente pra casa dela mesmo com uma dificuldade danada que ela tinha dez filhos, levou mais três pra lá. Tinha dia, eu me lembro, isso eu me lembro muito claramente, que tinha dias que a gente comia arroz e farinha, mas todo mundo comia igual e todo mundo comia. Isso marcou muito. De vez em quando dá uns flashes dessa época. Eu me lembro muito bem da minha tia, ela era muito parecida com a minha mãe, mas sempre tratou a gente igual aos filhos, de forma igual, se tivesse que corrigir ela corrigia; se tivesse que dar um tapa, ela dava; se tivesse que comprar uma roupa, ela tinha que comprar pra todo mundo. Então sempre me lembro disso.
P/1 – Conta pra gente um pouco como é que era a casa que você passou a infância. Como era a casa, o bairro, descreve um pouco.
R – Aí eu vou ter que falar da mãe número dois (risos). Era um terreno muito grande, a gente tinha vários pés de laranja, tangerina, manga, jaca, era como se fosse um sitiozinho. E tinha um campo perto de casa, onde eu batia minhas peladinhas todo final de tarde, às vezes eu me atrasava, porque tinha horário, né? Com relação a horário meu pai era bem: “Você pode jogar bola, mas volta tal hora”, às vezes passava um bocadinho e do muro ele já gritava: “Ô, perdeu a hora!”. E a gente corria muito em volta, em casa mesmo meus amigos estavam sempre lá, a gente estava sempre aprontando algumas artes, toda criança faz. Pipa, soltava muita pipa. Mas naquela época não tinha tanto fio, não tinha tanta casa, então, a gente ia para o campo e ficava brincando. Minha infância foi muito gostosa, muito gostosa mesmo.
P/1 – Qual era o bairro?
R – Era em Queimados, no Rio de Janeiro. É um bairro da baixada fluminense, na época era bairro, agora é um município.
P/1 – E como era o bairro? Descreve um pouco o bairro, o aspecto mesmo, e a casa, você falou um pouco desse quintal.
R – A minha casa era uma casa de dois cômodos, onde tinha o quarto, meus pais dormiam lá, eu dormia na sala, eu sempre, até por falta de espaço mesmo a gente tinha que ficar na sala, mas eu já gostava que na época tinha uma televisãozinha preto e branco que meu pai tinha acabado de comprar, aí dava para assistir os filmes. Minha casa era uma casa de telha, onde não tinha água encanada, mas a gente tinha um poço que puxava a água para alimentar o sistema hidráulico da casa. O bairro era um bairro bem carente, as ruas todas de chão. Eu estudava bem próximo, durante oito anos eu fiz todo o meu primeiro grau numa escola chamada Centro Educacional Betel, onde o meu ciclo de amizade se formou ali, porque primeiro todo mundo estudava, os colegas próximos, todos estudavam lá, e lá a gente começou a construir uma amizade maior, porque a gente tinha campeonato de futebol de salão, campeonato de handebol. Foram oito anos que a gente passou, a turma bem unida, bem junta, aprontando mil e uma, faz parte, né? (risos)
P/1 – Quais são suas primeiras recordações da escola, as primeiras lembranças que você tem?
R – As primeiras lembranças da minha escola? Foi quando eu estava na sétima série, que eu já tinha meus 13 anos, por aí e foi quando houve a separação do meu pai e a gente foi morar em um outro bairro. Eu ia para essa escola, só que em vez de eu ir para a escola eu ia para a casa da minha mãe número dois. E aí eu quase perdi o ano. Quando chegou no terceiro bimestre meu pai foi chamado na escola, eu ia acabar perdendo o ano por falta. Tomei um sacode, meu pai me encheu de porrada, e eu aí eu passei dia e noite estudando, eu falei: “Eu não vou reprovar”. E consegui passar. Essa é a fase que eu mais... toda vez que vem, até mesmo para corrigir um filho, eu tenho um filho “aborrescente” de 15 anos, e quando eu tenho que citar um exemplo desses, isso sempre vem à mente, a primeira coisa que me vem à mente é isso.
P/1 – Você teve algum professor marcante?
R – Tive vários. Eu tive na minha primeira série uma professora de nome Angela que foi quem me alfabetizou, me tratou com muito carinho, me escolheu pra ser o orador da sala, sempre que tinha Dia das Mães, Dia dos Pais, era eu que ia lá, preparava um texto para decorar, porque tinha que ser decorado. Eu lembro muito dela, e lembro de uma professora que eu tive na quarta série, Sônia, que era muito, ela era muito interativa, ela fazia várias atividades com os alunos. Ela casou e veio morar em São Paulo, aí a turma ficou muito triste, foi uma perda. E na minha sétima série o professor José Carlos, um professor de Matemática, foi quem chamou meu pai porque falou que eu tinha um potencial muito grande e eu estava perdendo aula, que eu poderia até recuperar, os professores ajudariam, mas eu tinha que estudar. Esse professor me marcou muito também pela persistência que ele teve comigo, por acreditar. São professores que marcaram muito.
P/1 – Você falou um pouquinho, há pouco, das brincadeiras de infância, citou jogar bola, pipa. Queria que você falasse um pouco mais do que você brincava e com quem você brincava.
R – Eram dois grupos, tinha um dos vizinhos, que a gente todo dia a tarde queria jogar uma bola e o dono da bola queria ir para o campo levar a bola, mas chegava lá e não tinha menino. Ele dava um chutão pra cima, quando a bola batia no chão a gente já ouvia: “Opa, já tem bola no campo” e a gente ia para lá. Ali a gente passava tardes, se divertia, a gente arrumava o campo, fazia aquele mutirão. Acho que desde aquela época eu já tinha o espírito de cooperativismo. Dali a gente: “Ah, vamos parar de jogar bola, vamos brincar de pique bandeira”, não sei se aqui em São Paulo tem isso.
P/1 – Tem.
R – Pique bandeira, queimada. E pipa, né? Época de pipa, porque todo ano tem várias, na época de criança tem várias épocas, tem a época que é bola de gude, a gente se reunia para jogar bola de gude; tem época que é peão, a gente ia rodar o peão. Tem época que é pipa, que normalmente é nas férias. A gente era da moda, está na moda vamos jogar, vamos brincar. E sempre aquela galera. E na escola tinha um outro grupo que era o grupo que se organizava, através do professor de Educação Física. A gente tinha um time de handebol que a gente disputava campeonato, futebol de salão. Depois a gente começou a praticar um pouquinho de vôlei também. Mas são turmas diferentes e em momentos diferentes.
P/1 – Você torce para qual time?
R – Ah, eu sou Flamengo até morrer (risos).
P/1 – Você se lembra como você se tornou flamenguista?
R – Na verdade o meu pai era torcedor do América, América Futebol Clube. E eu, como todo filho, eu era América, isso nos meus sete, oito anos. Meus irmãos eram flamenguistas e meu irmão falou um dia para mim: “Eu vou te levar num jogo no Maracanã”. Aí pra mim foi a maior emoção, Flamengo e Fluminense no Maracanã. E aí, o Flamengo e o Zico deram um show, o Zico fez quatro gols, foi um amistoso, e eu não deixei mais de ser flamenguista. E foi bacana porque eu nunca tinha ido no Maracanã, naquela época não passava jogo na televisão, também não tinha nem noção como era. E aí, meu pai que me desculpa, mas eu tive que me tornar um torcedor rubro negro.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu tinha uns oito anos, mais ou menos, nessa época, pra nove anos. E na época que eu morei no Rio eu era um “flanático” porque jogo no Maracanã de segunda-feira eu ia ver. Passei a frequentar, torcer e entender um pouquinho do clube. Aí também um grupo de amigos que a gente: “Tem jogo no Maracanã? Vamos embora”, tinha semana que a gente ia duas vezes na semana, mas quando não dava, pelo menos no final de semana a gente ia, era sagrado.
P/1 – E você tem um ídolo no futebol?
R – No futebol? Eu tenho. Arthur Antunes Coimbra, o Zico.
P/1 – E por quê?
R – O Zico é um exemplo de atleta. Como jogador de futebol eu não me lembro de ter visto outro igual, mas ele não é só isso. O Zico é família, ele é casado há 30 e poucos anos com a Sandra, criou a família dele de uma forma, sem se envolver com imprensa, tumulto. Ele é um exemplo de profissional, de chefe de família. São ídolos assim que nós estamos carentes.
P/1 – E Carioca, nessa fase de infância ainda, eu queria saber se você se lembra de alguma história, alguma recordação, alguma coisa marcante que você tenha vivido nessa fase de infância. Essas coisas que depois a gente se lembra pro resto da vida, sabe?
R – O que eu não esqueço é uma família que morava próximo, que eu não me lembro nem mais o nome, sabe? Mas teve uma época que os pais desses colegas foram viajar e eles ficaram com a gente. E aí foi um mês tão bacana, tão harmonioso, sabe, tão feliz, que quando eles foram embora, eu choro até hoje, porque eu lembro, porque foi uma emoção de todas as partes (emocionado), e a gente acabou se perdendo. Eles se mudaram, não sei para onde foram, nunca mais tivemos contato, mas eu lembro dessa época por causa das brincadeiras, a gente ia dormir até tarde, que a gente ia dormir mais tarde, que a gente acordava mais tarde, a gente almoçava junto, brincava junto, isso me lembra e me marcou muito.
P/1 – Eram amigos?
R – Eram amigos dos meus pais que precisaram se ausentar e deixaram, acho que eram cinco filhos, dois meninos e três meninas. Foi um mês muito bacana, acho que eu nunca tive umas férias tão legais.
P/1 – Conta um pouco o que você faziam juntos, o que você lembra?
R – A gente ficava brincando, a gente brincava de tudo.
TROCA DE BATERIA
P/1 – Só para retomar, Carioca, você estava contando dessas férias que você passou com esses filhos dos amigos do seus pais.
R – Isso. E a gente brincava de tudo, a gente brincava de pique, se escondia, o nosso terreno tinha bastante fruta, então, era época de férias, a gente passava a tarde lá comendo laranja, tangerina, subindo no pé de manga, sabe? E isso era legal, isso foi um momento que quando eu paro para lembrar da minha infância, eu sempre lembro desse momento que me marcou muito.
P/1 – Quando criança, você lembra o que você queria ser quando crescesse? Você tinha algum sonho?
R – Eu tinha o sonho de ser médico pediatra.
P/1 – E você lembra por que médico pediatra?
R – Não, eu acho que porque eu sempre tive muito afeto com criança e as crianças sempre se aproximaram de mim. Eu botei isso na minha cabeça, que eu queria ser médico. E médico pediatra. Mas aí a gente vai passando, a gente acaba esquecendo, não dá tempo.
P/1 – E nessa fase não mais da infância, mas da adolescência e juventude, o que mudou na sua vida? Porque é uma fase de transição forte, em termos de lazer, se você saía, passeava, o que fazia como os amigos, o que mudou em termos de práticas na sua vida?
R – A primeira mudança foi justamente a separação dos meus pais. Meu pai se separou eu tinha 12 anos. Eu fui para um outro bairro, um pouco mais distante e eu me afastei um pouco daquele pessoal que nós fomos criados juntos, essa coisa toda. E começamos a ter um outro relacionamento, que também começava sempre pela peladinha do final da tarde, então, tinha que bater uma bolinha, tal. E a gente começou a época das discotecas, primeiro frequentando as matinês, depois indo pro baile noturno. Essa era uma das principais diversões. Com 13 pra 14 anos foi meu primeiro trabalho registrado, e aí eu já passei a me distanciar um pouco, eu só via esse pessoal uma vez por final semana, porque eu trabalhava de segunda a sábado, mas o nosso encontro mesmo era no baile. Eu sempre descansava no domingo e à noite a gente ia no baile. E no baile tentava arrumar umas namoradinhas (risos). Depois tive um problema que eu fui apresentado à droga muito cedo, me envolvi com a maconha um bom tempo, e aí a minha adolescência teve uma mudança muito drástica por causa disso.
P/1 – Que idade você tinha nesse momento?
R – Eu tinha 15 anos.
P/1 – Vou te perguntar um pouco, tudo bem se a gente conversar um pouco sobre isso?
R – Pode. Não tem problema nenhum.
P/1 – Só vou voltar um pouquinho, queria que você contasse primeiro essa questão dos bailes. Queria que você me dissesse que bailes eram esses, onde vocês iam, como é que era?
R – Na época, você lembra da época de Os Embalos de Sábado à Noite? Aquilo foi uma febre no Rio, várias casas noturnas foram criadas, e no bairro onde eu morava nessa época também tinha uma equipe de som chamada Scorpions, que toda sexta, sábado e domingo fazia baile. E a gente ia pro baile dançar, tinha muito passe, aquele monte de gente dançando igual. E aí apareciam as menininhas pra dar namoradinha também, que fazia parte do show. E a gente começou a conhecer outras pessoas, mudando o pensamento, achando que já era um adulto. E acabava primeiro a gente tomando o que a gente chama da “samba”, que é vodka com Coca-Cola, depois cerveja, depois outra bebida mais forte, até chegar o momento que eu fui apresentado à droga. E aí mudou bastante, porque não por preconceito dos amigos, que eram do bem e que não iam para esse lado, mas a gente mesmo, acho que na paranoia, a gente acaba se afastando porque acha que está todo mundo com raiva e acaba criando um outro círculo de amizade e foi isso.
P/1 – A questão dos bailes, você se lembra o que tocava de música?
R – Ah, eu era fã de Bee Gees, Village People, Donna Summer, que é música boa até hoje, né? Mas banda nacional, sinceramente, eu não me lembro, mas eu gostava muito de Bee Gees, sempre fui fã, acho que sou fã até hoje.
P/1 – Tem uma canção preferida, alguma coisa assim?
R – Ah tem, Night Fever.
P/1 – Mas tem alguma história relacionada a essa canção?
R – Não, acho que mais a fase de baile mesmo, que a gente ia pro baile, tinha aquela equipe, tinha uns quatro, cinco, que a gente estava sempre criando uns passos diferentes, chegava lá no meio e dançava e o pessoal vinha querendo aprender, acho que é mais por causa disso. E o filme, né? O filme Os Embalos de Sábado à Noite a gente viu várias vezes e ficava buscando, saía uns livrinhos com o passo a passo, como é que os caras dançavam, a gente comprava, estudava, aprendia e ensaiava. Essa música marca muito.
P/1 – Você gostava de dançar?
R – Gostava. Gostava muito.
P/1 – E cinema você frequentava também? Você falou de Os Embalos de Sábado à Noite.
R – Isso. Meu primeiro filme que eu vi no cinema foi King Kong. Fomos eu e um amigo ver, eu nunca tinha ido ao cinema. Bem legal. A gente viu os outros filmes...
P/1 – Você se lembra como você se sentiu, no King Kong? Como foi a experiência, o dia que você foi, você tem recordação?
R – Naquela época, mesmo não tendo o conforto dos dias de hoje, mas era uma sala completamente, tudo novo pra mim. O lanterninha, que tinha o lanterninha, que ficava acendendo, vendo se estava fazendo alguma coisa errada, mostrando o pessoal lá. Isso foi bem legal porque eu só tinha visto o filme no telão numa padaria que tinha perto de casa e tinha uma cara que comprou um projetor – isso eu era molequinho, vou falando as coisas e vou lembrando, era menininho – aí todo sábado ele passava um filme diferente. Mas eram bancos de madeira que juntava a meninada lá e cobrava, como se fosse hoje um real, cobrava para entrar e o pessoal via sempre um filme diferente. Mas o problema dele é que ele passava muito filme de faroeste, mas era legal.
P/1 – Era na padaria que ele projetava?
R – Não, ele tinha um terreno do lado, aí ele cobriu, fez uns bancos de madeira e abria lá. Cabia umas 20, 30 pessoas, mas estava sempre cheio.
P/1 – E esse cinema que foi o primeiro que você foi e viu o King Kong, você lembra qual era o nome, onde era?
R – Era Cine Verde, em Nova Iguaçu.
P/1 – Existe ainda?
R – Boa pergunta, quando eu for lá eu vou dar uma olhadinha para ver se ainda tem, eu não sei mais (risos).
P/1 – E você comentou um pouquinho sobre essa experiência com as drogas que mudou bastante coisa na sua adolescência. Queria que você me contasse, se você quiser e se lembrar, qual foi a primeira experiência, como foi a entrada na sua vida.
R – Olha, na verdade, um amigo já usava e a gente estava junto num momento que a gente estava vindo do baile, no caminho, tranquilo, sossegado, no caminho pra casa e ele falou que tinha. Eu falei: “Pô, quero ver”. E aí ele falou: “Vou apertar um baseado”, apertou o baseado, fumou, fumou e falou: “Toma”. E você sempre, agora que cai a ficha, né? Porque a gente não quer ficar pra trás, não quer dizer que é bobão, careta, esses bagulhos todos e fui lá. Foi uma vez, foi na outra, depois ele sempre oferecendo, depois eu já arrumava dinheiro e mandava ele comprar. E o dia que ele não aparecia na minha casa eu ia na casa dele, e aí foi aumentando o grau de envolvimento, coisa que a gente tem que falar, sabe, mas lembrar não é bom. Hoje pra mim serve como experiência e eu poder testemunhar, mas não foi legal. Não foi legal porque eu perdi muita coisa, perdi amigos, me afastei por algumas vezes das pessoas que mais me amavam, sabe? Criei uma falsa ilusão, que no início é muito legal, bacana, dá uma onda, mas depois você cria uma dependência e isso faz mal. E cara, eu usei tanto tempo, sempre buscando nas favelas no Rio onde estava melhor, pra onda ser sempre mais. E teve uma época que eu comecei a passar mal, me sentir mal, não sei se eu via até bicho, falei: “Vou parar com isso”, mas eu sentia a necessidade de continuar e ter uma outra droga, passei a usar cocaína. Usei cocaína muito tempo também. E foi indo de uma maneira que eu fui cheirando tudo o que eu conquistei e me afastando cada vez mais das pessoas, me envolvendo com pessoas de outros princípios. Sempre fui muito respeitado, muito querido, graças a Deus, o meu erro foi fazer isso, mas eu sempre trabalhei honestamente.
P/1 – E você se lembra em que momento você teve um ponto de virada nesse processo que você está contando, que você falou: “Não, não dá mais mesmo”.
R – Eu me lembro, lógico.
P/1 – Conta pra gente como...
R – Foi o nascimento do meu filho caçula. Ele (emocionado), o meu filho é um marco na minha vida. Ele vai fazer 16 anos agora em outubro. O nome dele é Marcos e ele é um marco na minha vida, porque quando ele nasceu eu resolvi mudar, sabe? Dar um basta, pegar o que era bom e largar o que era ruim (emocionado). Desculpa. E eu disse que ele teria muito orgulho de mim e eu estou pagando aquilo que eu cumpri porque hoje eu sei que o meu filho me tem como o herói dele. Eu trabalho nesse ramo de lixo, reciclagem, há 23 anos. Trabalhei como carroceiro, puxei muita carroça na rua. E a primeira palestra que eu dei foi numa universidade e eu levei meu filho comigo (emocionado). Ali, eu percebi o quanto ele estava orgulhoso de mim, sabe? O quanto ele sente orgulho de mim. Mas acho que eu precisava que ele viesse, sabe, para eu poder me reciclar. Acho que depois que ele chegou é que eu pude perceber que eu tinha que me reciclar, que eu estava parado no tempo, precisava fazer mudar as coisas.
P/1 – Quantos anos você tinha, Carioca?
R – Eu vou fazer 50 em dezembro, meu filho tem 15 eu tinha 30 e poucos anos, 35, próximo dos 36.
P/1 – Ele é o seu primeiro filho, seu único filho?
R – Não.
P/1 – Ele é o caçula, você falou, né?
R – É. Eu tenho no meu primeiro casamento um filho que mora no Rio, Cleiton, está com 28 anos. Nesse segundo casamento a minha esposa já tinha uma menina. Pra você ver como são as coisas, essa menina, não fui eu que adotei ela, foi ela que me adotou, ela me escolheu para ser pai dela. Eu nem conhecia a mãe dela, eu trabalhava num ferro velho aqui próximo e ela sempre passava por lá, o tio dela também era carroceiro, trabalhava comigo e ela sempre passava lá pra levar uma comida pro tio, um café, uma coisa, e a gente sempre conversava. Aí o tio dela falava assim: “Ele tem uma letra legal, ele deve ter estudado”. Um dia ela tirou a dúvida, pegou um papel, pegou uma caneta: “Escreve qualquer coisa aqui”, aí eu escrevi qualquer coisa. Ela: “Pô, que letra bonita que você tem”. Aí começamos a conversar, ela ia lá e a gente batia papo. Ela tinha um trabalho da escola para fazer e perguntava se eu sabia fazer, eu falava: “Acho que sei, traz aqui que eu te ensino”. Ela ia lá e eu ensinava. E essa menina foi pegando um carinho por mim que um dia ela falou: “Se eu tivesse um pai, eu queria que meu pai fosse igual você”. Aquilo ficou na minha cabeça e a gente sempre, pegamos essa amizade, tal, às vezes tinha reunião de escola de pais e ela perguntava se eu podia ir (risos). Acho que ela falava muito no meu nome lá na casa dela e ela tinha o quê? Na época ela tinha 12 anos. A mãe dela ficou preocupada: “Eu quero conhecer esse cara. O cara é carioca, chega aqui, faz amizade com a minha filha de 12 anos”. Tudo bem, fui na casa dela, tomei um café, bati um longo papo com a mãe dela, tal e a gente foi pegando amizade, conversando e hoje é minha esposa. Mas foi ela que me escolheu pra ser pai dela.
P/1 – Qual é o nome das duas?
R – A minha esposa é Margarida.
P/1 – E a sua filha?
R – É a Joselma. Chama de Josi. E é muito legal. Ela tem um filhinho, meu netinho.
P/1 – E Carioca, deixa eu perguntar. Eu perguntei se ele era seu único filho, mas você tinha dito que ele era caçula. Mas para perguntar assim, você já tinha outros filhos, mas por que ele trouxe esse seu desejo tão forte de mudança? O que aconteceu de diferente nesse momento?
R – Eu achava que não tinha mais escapatória para mim, eu ia ter que ficar naquela vida ali, continuar e aquilo não ia mais mudar, não ia ter mudança. Minha mudança foi quando minha esposa falou que estava grávida. Eu parei pra pensar o que traria pra mim mais um filho. Poxa, eu era carroceiro, puxava carroça na rua, não tinha um emprego. Falei: “Meu Deus, o que eu vou fazer? Preciso ter força e saúde pra continuar trabalhando”. E aí quando veio aquele trocinho, pequenininho, bonitinho, eu falei: “Não, eu preciso dar uma mudada na minha vida, eu preciso fazer alguma coisa”. Não sei, eu sempre acreditei muito em Deus, sabe? Eu acho que, não tem nem explicação pra te dizer a luz que brilhou em mim assim, sabe, e falou: “Cara, teu momento é agora”. E aí, alguns anos depois me apareceu aqui a cooperativa, a oportunidade da gente vir pra cá. E o divisor de água na minha vida é justamente esse, é o Marcos, é a cooperativa. Depois disso as coisas vêm acontecendo, lógico, evidente que a gente também faz por onde, as coisas vêm acontecendo assim que tem dias que eu acordo de manhã e fico duvidando, sabe? Eu não deveria fazer isso, mas eu fico duvidando sim: “Pô, caramba, até há pouco tempo não tinha nem perspectiva de vida, de dias melhores”. A gente morava num barraquinho, eu moro aqui na favela, era favela, agora é apartamento. Barraquinho de madeira com cada rombo desse tamanho, que a gente tinha que cortar papelão. Aí mudar tudo, a gente conseguir fazer com que as pessoas percebam que a gente tem uma importância, que o nosso trabalho é importante tanto para o meio ambiente, quanto principalmente para a geração de trabalho e renda, dar oportunidade ao trabalho social que a gente faz. Isso, às vezes eu tento buscar uma explicação, mas eu não consigo. Eu acho que, primeiro, que a gente tem um pouco de corresponsabilidade, que a gente faz e gosta do que faz, mas eu acho que tem uma ajuda divina muito grande nisso tudo.
P/1 – Eu vou querer conversar contigo sobre detalhes, essa coisa da cooperativa e tal. Só vou voltar um pouquinho, eu avancei porque você falou do seu filho, mas você falou pra mim, ali lá nos 13, 14 anos, que foi seu primeiro trabalho, né?
R – Foi.
P/1 – E aí eu queria que você me contasse que trabalho foi esse, o que você fazia, como é que surgiu?
R – No Rio tem uma rede de supermercado chamada Casas Sendas, que é o sobrenome de uma família muito famosa de lá. E o símbolo desse supermercado é um marreco. Eles contratavam na época, não tinha essa porcaria de direito de menor e adolescente, que os caras não podem trabalhar, né? Naquela época, com 13, 14 anos a gente podia ser registrado. E a Casa Sendas contratava menores para serem marrequinhos. O que é marrequinho? É aquele menininho que levava os carrinhos de compra nos carros das madames, sabe? A nossa função era essa, ficava parado na frente dos caixas, quando a madame saía, a gente pedia, dava licença pra ela, pegava o carrinho e levava até o carro dela, arrumava no porta-mala. Era esse o trabalho que a gente fazia. Mas eu mesmo, eu adorava, porque a gente ganhava na época um salário mínimo, mas de gorjeta das madames, que as madames acabavam se acostumando com a gente, a gente ganhava muito mais. Era um trabalho bem legal. Eu trabalhei até completar quase 18 anos, porque quando está próximo de completar 18 anos eles desligam porque a gente está em fase de alistamento militar, essas coisas todas, aí é desligado. Mas quando passou, eu completei a maioridade, voltei pra lá de novo, aí trabalhei como repositor. Sempre mesmo fazendo um monte de coisa errada, eu sempre trabalhei, trabalhei muito.
P/1 – E você se lembra, nesse primeiro emprego, o que você fez com os primeiros salários?
R – Ah, meu primeiro salário eu lembro sim. Meu primeiro salário eu comprei um monte de coisa que eu sabia que meu pai gostava, que eu gostava também, enchi umas três, quatro bolsas e levei pra casa.
P/1 – Mas que coisas que eram?
R – Ah, bolo, doce... meu pai gostava de tomar um vinho, eu comprei um vinho pro meu pai. Comprei um monte de chocolate pra mim. Comprei uns três carretel de linha para soltar pipa. Então, só besteira (risos).
P/1 – Ah, não era besteira, coisas do gosto (risos). Foi assim que você gastou seu primeiro salário.
R – Meu primeiro salário foi assim.
P/1 – E depois você falou que ficou lá até os 17, aí saiu essa fase de alistamento. Você estudava também na época? Você continuou estudando?
R – Eu estudei até... eu parei um ano, quando eu terminei o meu primeiro grau eu fiquei parado um ano. Aí voltei a estudar e terminei o meu colegial, meu segundo grau, eu terminei com 18, 19 anos.
P/1 – Na época certa, praticamente.
R – É. Fiz Senai.
P/1 – Em que momento você entrou no Senai?
R – No Senai foi justamente nesse ano, eu tinha 15 pra 16 anos. Abriu um Senai lá perto, em Nova Iguaçu, e aí eu consegui, nesse período que eu fiquei sem estudar, eu consegui fazer o Senai, eu fiz Serralheria Industrial. Também não me pergunte, porque não me serviu pra nada. Quer dizer, tudo serve para alguma coisa, né, mas eu nunca trabalhei como serralheiro industrial.
P/1 – Foi um ano mais ou menos?
R – O curso foi, um ano.
P/1 – E depois você terminou o colegial, você continuou trabalhando nesse supermercado até que idade?
R – Trabalhei até meus 21, 22 anos.
P/1 – E quando você saiu de lá você foi fazer o quê?
R – Eu fui trabalhar na fábrica da Antarctica. Inaugurou uma fábrica da Antarctica em Jacarepaguá, no Rio, e eu trabalhei lá um ano e pouco, dois anos.
P/1 – Com o que você trabalhava lá?
R – Eu trabalhava na linha de produção de cerveja.
P/1 – Com que função?
R – Eu era operador de máquina, na época eu trabalhava na máquina lavadora de garrafa. Tinha até um salário legal, mas o horário é que na época era muito ruim, eu trabalhava à noite. E no Rio tinha um problema que era muito quente e lá a gente não consegue dormir durante o dia, isso foi me fazendo mal, eu chegava a passar mal à noite. Não dormia de dia, trabalhava à noite, acabei pedindo para sair.
P/1 – E da lá você pediu para sair e foi trabalhar com o quê?
R – Ih, eu já fiz tanta coisa. Eu já fui promotor de vendas, trabalhava numa empresa, posso falar o nome da empresa
P/1 – Pode.
R – Trabalhava numa empresa como representante de vendas da Kitano, do gênero alimentício, trabalhei um tempo. Depois eu fui trabalhar como segurança em uma outra rede de supermercados. Depois eu fui trabalhar na Barra da Tijuca como repositor também no hipermercado.
P/1 – Qual foi o momento que você começou a trabalhar como catador? Você me disse que trabalhou um tempo como catador, né? Como você chegou nisso?
R – Eu sempre tive um sonho de vir pra São Paulo, sempre. Mas não tinha coragem. Até que um dia eu tinha acabado de ser demitido dessa empresa que eu era repositor no hipermercado, estava com um dinheirinho e falei: “Eu vou pra São Paulo pra fazer um teste para ver como é lá”. Aí vim com a cara e a coragem. Cheguei na Rodoviária do Tietê, comprei um jornal; isso era um sábado de manhã que eu cheguei aqui. Comprei um jornal, eu vi uma pensão ali no centro, próximo do Glicério. Tinha uma pensão ali pra alugar, era baratinha, aí fui lá, conversei com o proprietário, aluguei, falei: “Segunda-feira eu vou correr atrá de um emprego”. Passei uns três, quatro dias comprando jornal, ia atrás, fazia uma inscrição aqui, fazia outra ali e nada. Até que um dia andando na Lapa tinha esse pessoal que fica na rua com quadro, aí tinha lá: “Precisamos de estoquista para cozinha industrial”. Vou lá. Fiz a ficha, fiz a entrevista, me chamaram, na época para uma empresa de nome, eu vou lembrar... eles ganharam uma licitação para fazer um trabalho, as refeições da Eletropaulo e eu comecei a trabalhar com eles. Trabalhei três meses, eles recidiram contrato com a Eletropaulo, mas não me mandaram embora, me mandaram trabalhar lá no Hospital das Clínicas, no prédio do subsolo, embaixo tinha o refeitório. Grupo Palheta! É uma empresa da Bahia que só faz refeições, trabalha com cozinha industrial e eles têm também uma rede de fast food, se não me engano. Eu trabalhei bastante tempo com eles, quase quatro anos. E aí começou a se modernizar o negócio, na época a gente controlava o estoque por cardex, papelzinho e tal, e começaram a informatizar todo o processo, a cozinha mesmo foi toda informatizada, começaram a aparecer aquelas comandas, que você digitaliza, era tudo comanda de papel. E quando a empresa quer se modernizar exige que seus funcionários se reciclem, né? E eu parei no tempo. E eles me mandaram embora. Eu tinha uns mesesinhos de seguro-desemprego, falei: “Não vou procurar emprego agora, vou pegar minhas parcelinhas todas”. O tempo foi passando, e a gente vai procurando depois que passou, começou a procurar emprego e não achava. E aí um amigo meu, um vizinho, ele era carroceiro e falou: “Cara, lá no ferro velho onde eu vendo meu material tem carroça lá. Você deixa seu RG lá e...”
TROCA DE CARTÃO
P/1 – Se você puder retomar, você estava contando que você tinha um vizinho que era carroceiro.
R – Isso, aí o vizinho que era carroceiro falou comigo para eu ir lá com ele no ferro velho, que o dono do ferro velho emprestava a carroça pra você trabalhar, era só você deixar o RG com ele, você podia trabalhar o dia todo, mas de noite, quando acabasse o trabalho, você tinha que vender o material para ele. Foi quando eu comecei. Primeiro dia foi uma negação, porque a vergonha impedia de catar o material, dava vontade até de rir. A gente foi acostumando, começamos a trabalhar. No início comecei a trabalhar junto com ele e eu não sei se o negócio já estava na veia que eu não larguei mais.
P/1 – Conta um pouco como era esse dia a dia, esse início que você mencionou. Como é o trabalho, qual é o trabalho?
R – O trabalho é você pegar uma carroça, você já deve ter visto o catador com uma carroça daquela na rua. Ou você coleta o que o pessoal já deixou do lado de fora, o lixo do lado de fora, principalmente nas empresas, ou você tem um relacionamento bacana e você consegue fazer intimidade com um porteiro de um prédio, com o dono de uma oficina mecânica que vai te doar essas coisas. E a gente vai conquistando isso aos poucos, sabe? Mas é um trabalho bem cansativo, a gente anda muito, sabe? A humilhação. Quantas vezes a gente é ofendido, o pessoal zomba até, mas que dava para levar um qualquer pra casa, isso que era o mais importante naquele momento. A gente honesto tem que trabalhar, tem que alimentar a família, a gente se submete a esse tipo de coisa. Aí a gente foi indo, foi indo, foi indo, o tempo foi passando, a gente se acomodando, e carroceiro eu fui, catador eu sou. Mas hoje eu tenho como dizer pra você, com orgulho, porque a questão de resíduos sólidos na cidade, no Brasil e no mundo, os governantes estão vendo com mais cuidado, mas naquela época lá atrás a gente não se tornou, eu mesmo não me tornei um catador preocupado com as questões ambientais, com recurso natural, nada disso. Por que a gente se torna catador? Por causa da fome e da miséria, tá entendendo? Então a gente tem que procurar uma maneira autossustentável, ou que pelo menos se aproxime de você não vir a deixar sua família passar necessidade, então foi por isso que eu me tornei. Mas tenho o maior orgulho do que eu fui, do que eu sou, porque muito me ajudou e muito me ajuda a questão que o pessoal chama de lixo, pra mim eu fiz ele virar um luxo.
P/1 – Você comentou desse começo, que foi difícil porque era uma coisa nova e é de bastante exposição também. Queria que você me dissesse, se você lembra de alguma história que você tenha vivido nesse começo e que tenha sido uma coisa marcante, uma situação?
R – Eu acho que a gente estava fazendo uma coleta de material em uma empresa, a gente meio sujo, e o zelador pediu pra que a gente subisse até um determinado andar que tinha bastante caixa lá, alguém que tinha acabado de se mudar. E só tinha um elevador, elevador social e de serviço, nesse prédio aqui em Santo Amaro. E quando a gente estava no prédio, se não me engano era o terceiro andar, quando a gente estava lá saiu uma moradora, ela abriu a porta pra sair e quando a gente estava carregando o material pro elevador, ela se assustou de uma maneira que ela chegou a gritar. Acho que meu colega era mais escuro, da cor negra, eu também moreno e ela achou que a gente era ladrão, que a gente ia roubar, ia fazer alguma coisa. Voltou correndo, acho que ligou pra portaria, subiu o porteiro, subiu o zelador também, que foi quem havia autorizado a gente. E aí o pessoal falou para ela o que a gente estava fazendo ali, que a gente estava catando, e o meu amigo queria até xingar ela, falar alguma coisa e eu, naquele momento a palavra que eu tive foi: “Olha senhora, a senhora me desculpe, a nossa intenção não era essa. A gente está aqui pra tirar esse material porque pra senhora pode ser lixo, mas pra gente é a única fonte de renda que a gente tem”. Nesse momento me deu vontade de abandonar, sabe? De parar. Mas eu não podia fazer isso porque eu não tinha outra renda. Isso eu lembro até hoje, fora outras caminhadas por aí, que a gente ia pedir em alguma empresa, alguma oficina, e o pessoal quando via ou quando ouvia o colega me chamar de Carioca, quantas vezes eu não ouvi falar: “Isso é fugitivo. Deve ter vindo do Rio corrido, por isso que está aqui”. Entendeu, essas piadinhas, essas coisas, ao mesmo tempo são tristes, mas servem de motivação pra gente não desistir. Eu sabia que alguma coisa boa vinha por trás disso tudo, Deus não ia me abandonar desse jeito, eu estava ali pra pagar alguma coisa ou sendo colocado à prova. Mas situações bem complicadas.
P/1 – E na rua, circulando na rua?
R – Na rua o que tinha era os motoristas xingando a gente, a gente queira ou não é um veículo que ocupa espaço, então pessoal xinga, faz piada, usa palavras bem humilhantes. Quantas vezes chamaram de burro sem rabo, galinha comeu... são apelidos que marcaram, mas hoje eu tenho que dar risada (risos).
P/1 – E nessa época que você começou, você trabalhava em que região? Ali no Glicério mesmo?
R – Eu trabalhava aqui na Zona Sul.
P/1 – Em que momento você muda para cá? Você disse que começou numa pensão lá no Glicério. Por que esse sonho de vir pra São Paulo? Primeiro queria te perguntar isso.
R – Acho que São Paulo é a cidade das oportunidades, né? Desde pequeno a gente ouviu falar que São Paulo, a geração de renda, os empregos eram melhor remunerados, tudo isso vem criando um corpo dentro da mente da gente e a gente tem, eu tinha esse sonho: “Um dia eu vou pra São Paulo, um dia eu vou pra São Paulo”. E quando eu vim saindo, quando eu vim pra cá e vim morar no Glicério, eu passei no Glicério na verdade muito pouco tempo, fiquei um mês, um mês e pouco só, porque quando eu arrumei o emprego nessa cozinha industrial, era pra trabalhar aqui, na Zona Sul, na Avenida Nossa Senhora do Sabará, na Usina Piratininga. E aí era mais fácil eu vir pra cá do que vim de lá para cá todo dia, porque eu tinha que chegar aqui às cinco horas da manhã. Eu falei: “Vou arrumar um lugarzinho lá próximo”, e daí eu fiquei.
P/1 – E você começou a trabalhar só na Zona Sul e ficou por aqui mesmo.
R – E fiquei por aqui mesmo.
P/1 – Queria saber um pouco assim, você falou que você tem um primeiro filho, teve um primeiro casamento é isso?
R – Isso, isso.
P/1 – Quando foi? Acontece em São Paulo esse primeiro casamento ou foi no Rio?
R – Foi no Rio. E eu acho que o que ajudou para que eu criasse coragem e viesse pra cá foi a separação.
P/1 – A sua primeira esposa, como vocês se conheceram?
R – Trabalhando junto, a gente trabalhava no supermercado. Mas já era uma época bem complicada, eu estava numa fase com muita droga, um cara chato, acho que não fui nem um bom marido, sabe? E foi desgastando, desgastando, desgastando, a gente ficou junto casado um ano. Acho que bem na lua de mel ela engravidou, nove meses depois nasceu o meu filho.
P/1 – Você lembra do nascimento, você acompanhou o parto?
R – Sim, sim, a gente estava junto.
P/1 – E como é que foi? Desse primeiro filho.
R – Olha, foi bem legal. Apesar de não ter sido uma criança que foi programada, a gente não planejou, mas foi muito legal. Ele foi muito querido, a gente passou os nove meses curtindo mesmo a gravidez, eu sempre fui muito meloso, acompanhava todos os pré-natais eu acompanhei, não faltei a nenhum. E por coincidência, o dia que ele nasceu eu tinha ido em Madureira, lá no Rio, tinha saído do trabalho e ia comprar um filtro pra casa e ela estava lá na mesma loja, que ela achou que eu ia esquecer e ia comprar o filtro também. Falei: “Pô, que bom que a gente se encontrou, vamos embora juntos”. Quando chegou em casa a bolsa estourou, aí já foi aquela correria toda, aquela loucura.
P/1 – O parto você acompanhou?
R – Não. Não tive coragem não. Eu fiquei do lado de fora.
P/1 – E você lembra a sensação de ver seu filho pela primeira vez? Segurar no braço?
R – Ah, não dá pra explicar, não dá. Até porque acho que é um momento que não tem narração. É uma coisa tão prazerosa, tão gostosa, tão diferente que não dá para explicar como é a sensação de ser pai. Eu sei que é muito gostoso, muito gostoso.
P/1 – Como é o nome desse seu primeiro filho?
R – Cleiton. Cleiton Mariano Sousa do Nascimento, 28 anos, casou tem seis meses, casou agora.
P/1 – E vocês ficaram juntos um ano.
R – Um ano e pouquinho, aí separamos, voltamos mais um tempinho, sabe? Tentamos. Tentamos. Mas aí não deu certo. Mas hoje somos amicíssimos, nos falamos constantemente quando não por telefone, WhatsApp, e-mail. Acho que foi bacana. Ela hoje tem a outra vida dela, eu tenho a minha.
P/1 – E depois da separação você veio pra São Paulo, você estava falando.
R – Vim pra São Paulo, conheci minha esposa aqui.
P/1 – Queria que você contasse um pouco como foi, já faz muitos anos que você trabalha como catador. Queria que você me dissesse quando é que foi, teve esse primeiro momento difícil, você contou pra gente, quando que mudou essa chave, você decidiu que ia continuar trabalhando com isso mesmo e quando você fez a transição de começar a perceber o potencial do trabalho?
P/1 – Olha, primeiro momento marcante foi quando há 13 anos começou-se a discutir o Plano Diretor Executivo da cidade, que ele é de 2002. Em 2001 começou-se a discutir, criar grupos de trabalho para discutir, debater essas coisas todas. E em 2002, quando foi assinado pela então prefeita Marta Suplicy o Plano Diretor Executivo, ele abriu a obrigatoriedade do município apoiar grupos de associações ou catador, ou cooperativas de catadores de material reciclado. E aí a gente começou, através da subprefeitura de Santo Amaro, que ajudou a fazer o mapeamento dos catadores da região e começou-se então uma formação que foi até ministrada pela CUT, pra gente entender o que é Cooperativismo, qual é a responsabilidade de cada um, direitos e deveres. E esse grupo começou com 45 catadores e foi acabando, acabando, acabando, era todos os sábados esse curso; o pessoal foi saindo, foi saindo, sobraram 25. Aí o curso começou a ser mais constante e mais direcionado pra criação de uma cooperativa porque nós não tínhamos nem cooperativa e nem associação. E pra que esse grupo não se dissolvesse, a CUT conseguiu pagar a condução do pessoal que ia pro curso e uma cesta básica para quem tivesse mais de 75% de presença. Aí todo mês dava uma cesta básica e pagava a condução do pessoal. E foi quando, em 31 de agosto de 2003, a gente conseguiu constituir a Coopercaps. A Coopercaps foi criada dia 31 de agosto de 2003. Mais precisamente no dia 15 de dezembro de 2003, a gente conseguiu um convênio com a Prefeitura Municipal de São Paulo, que é onde a gente está aqui. Mas no início foi muito difícil. Nossa. A gente não sabia de nada.
P/1 – Deixa eu só te perguntar uma coisa antes...
PAUSA
P/1 – Antes de você continuar me contando desse início da estruturação, queria que você me dissesse, antes vocês trabalhavam cada um por conta própria, era isso?
R – Isso, isso. Na verdade, eu fiquei 12 anos trabalhando como catador avulso na rua. Depois o dono do ferro velho que eu trabalhava me chamou para trabalhar com ele e eu fui trabalhar interno, deixei a rua e comecei a auxiliá-lo. Depois ele abriu um outro ferro velho e eu era uma espécie de gerente dele, até que apareceu essa oportunidade e eu acreditei no projeto, um projeto bacana, interessante, até porque numa cooperativa não tem a figura do patrão. A gente veio pra cá, como eu estava falando teve essa formação, a cooperativa se constituiu, três meses depois conseguiu um convênio com a prefeitura. E nesse convênio a prefeitura paga luz, água, aluguel, IPTU e ainda fornece os caminhões para que nós possamos fazer as coletas domiciliares de porta a porta. Mas no início foi muito difícil, sem experiência nenhuma, sem visão nenhuma de negócios, a gente não sabia a dimensão do nosso negócio.
P/1 – Conta um pouco como é que foi, os desafios que vocês enfrentaram.
R – Ah, vários. Primeiro, a prefeitura, com a pressa toda de montar, porque queira ou não isso é um marketing no quesito social, principalmente tratando do partido que era da prefeita na época. E eles se esqueceram do principal, que era formar líderes dentro da cooperativa e formar gestores para que administrassem a parte contábil, financeira, parte operacional. A gente não sabia disso. Viemos 25 catadores, que sabem separar o material e conhecem o material, mas não sabem administrar, não sabem tirar a diferença de despesa, o que você está gastando demais, o que deu, como é que a gente vai ratear esse dinheiro, proporcional ao volume trabalhado por cada um. E isso foi difícil. Até que a prefeitura conseguiu intervir e trouxe uma pessoa pra cá e começou formação, começou a detectar dentro do grupo quem tinha mais habilidade para a parte administrativa, quem tinha mais habilidade para a parte financeira, quem tinha mais habilidade na área produtiva, para ser um líder e fazer todo o processo funcionar, mas isso demorou tempo, demorou quase dois anos. A gente trabalhava aqui dois, três meses pra na hora de distribuir, distribuir 50, 60 reais para cada um. Então, o pessoal foi saindo, só ficou quem acreditou no projeto, pouquíssimos. Hoje aqui tem eu, tem mais a Gil, tem mais o seu Zé Inácio, temos três da fundação.
P/1 – Desse grupo inicial sobraram três.
R – É. O pessoal foi desistindo e a gente foi tendo que pegar outras pessoas. Pela dificuldade é que você vê como o trabalho começa a ganhar outra dimensão, porque o trabalho não passou mais a ser com finalidade de catador, passou a ser um trabalho social, que a cooperativa abriu para egressos do sistema prisional; se a gente não der oportunidade para esses caras, eles vão fazer as mesmas besteiras que fizeram antes. A gente começou a trabalhar com jovens, primeiro emprego, 18 anos, até porque a gente tem três comunidades próximas. Então se a gente não for lá e buscar o jovem, ele vai se perder no meio do caminho. A gente começou a trabalhar com senhores que passaram de uma faixa etária e para o mercado de trabalho eles já são velhos. O nosso trabalho passou a ser socioambiental, e aí que começou a criar diferença, porque começaram a aparecer lideranças, pessoas que estavam com aquela liderança escondida, ou que já eram líderes de outros locais e a gente começou a montar um conselho administrativo forte, aberto. Começamos a trazer parceiros.
P/1 – Quando você fala em parceiros é que tipo de parceria?
R – Parceria de uma maneira bem ampla, parceiros pra nos ajudar em máquinas e equipamentos, parceiros para nos dar formação. E foi quando em 2008 eu resolvi que
estava pronto para assumir a presidência da cooperativa. A gente aqui tem uma forma de trabalho bem democrática que a cada dois anos vence o mandato do conselho administrativo, precisa se fazer uma mudança de um terço desse conselho administrativo, mas nessa eu já estou no meu terceiro mandato. Em 2008 a gente começou a fazer algumas ações mais empreendedoras, mais ousadas; conseguimos uma verba através de um projeto que a gente fez no BNDES, que é uma verba a fundo perdido para compra de máquinas e equipamentos, isso deu um salto de qualidade no nosso material. A gente conseguiu agregar valor, a gente conseguiu aumentar a mão de obra daqui, gerar mais porta de trabalho e acabou que o município de São Paulo prestou atenção nisso. Em 2009, a Prefeitura de São Paulo estava fazendo 40 anos de cidade coirmã com Osaka, no Japão. E aí veio um grupo da Prefeitura de Osaka pra cá, juntamento com a JICA, que é a Japan International Cooperation Agency, uma entidade japonesa que faz trabalho focado na gestão de resíduos sólidos urbanos em vários países do mundo, principalmente nos países da América Latina e países de terceiro mundo. Eles vieram pra cá e a prefeitura escolheu a gente, até porque a gente já começava a se destacar no cenário de cooperativas de resíduo sólido, de catadores. E a prefeitura escolheu a gente, para que a gente fosse piloto de um programa de educação ambiental que eles iriam trazer pra cá. Como é esse programa? Esse programa é justamente para que a gente pudesse adequar a nossa linguagem pra fazer um trabalho com as crianças das escolas da região. E começou a preparar, criou-se um grupo de educação ambiental aqui na cooperativa de catadores que teve essa formação. E o trabalho se destacou a ponto da Prefeitura de Osaka convidar a Prefeitura de São Paulo para ir pra lá e levar um representante de uma cooperativa de catadores, e eles me escolheram, eu estava na hora certa, no lugar certo. Me escolheram, eu fui pro Japão.
P/1 – Conta pra gente como foi essa viagem, como foi a experiência no Japão.
R – Olha, começar que eu nunca tinha andado de avião na minha vida, já começa por aí, você não imagina você pegar daqui de São Paulo pra França foram 12 horas, da França pra Tóquio mais 13, e de Tóquio pra Osaka mais uma hora e 20 minutos, sem contar o tempo de espera no aeroporto. Quando eu entrei dentro do avião a primeira vez, olha, eu acho que eu levei 12 horas orando, porque foi tanto medo e tanto pavor. E o mais engraçado é que eu falei: “Eu não posso dar mancada”. Eu nunca andei de avião, não sentamos juntos, o pessoal, que fui eu e mais dois da prefeitura, mas não sentamos juntos, eu vou ter que copiar o que a menina do lado faz, né? Eu vi ela prendendo o cinto, eu falei: “Opa, já sei onde é, vou prender o meu também”. Tinha uma televisão, aí eu vi ela procurando um botão embaixo, eu só de olho nela, eu falei: “Eu vou ligar a minha também”. Na hora que chegou a primeira refeição, eu falei: “E agora meu Deus?”. A menina baixou a mesinha, eu estou só copiando ela, fazendo o que ela faz. E o medo? Sem contar o medo que meu Deus do céu, mas conseguimos chegar lá.
P/1 – E como é que foi o chegando lá? A impressão da cidade.
R – Olha, primeira coisa eu fui daqui lá pensando que eu não devia ter ido, que não era eu para ser escolhido, que eu não queria ir, eu queria era voltar pra casa. Porque é assustador. É uma outra cultura, você vê aquele pessoal todo, apesar de todo o apoio, de um simples intérprete até questões de logística, de acomodação, essas coisas todas. Mas eu queria era voltar, não queria estar lá, eu estava com medo (risos). E o pessoal tão legal comigo. Na primeira refeição que eu fui fazer eu fiquei pensando: “Meu Deus, se me derem aqueles pauzinhos para eu comer, como eu vou comer com aquele troço?”. Mas não, a intérprete perguntava: “Você quer garfo, você quer faca?”, eles me deram essa liberdade. E eu tive duas apresentações que eu fiz, uma para a Secretaria do Meio Ambiente e a outra numa empresa lá. Eu fiquei lá 28 dias, na minha primeira semana o secretário do meio ambiente de Osaka me ofereceu um curso rápido de 15 dias de resíduos sólidos urbanos. E eu sempre brinco com o pessoal da prefeitura, que eles que foram na minha aba, porque eles ganharam também. Pra mim, pô, não tem, acho que um momento tão marcante na minha vida, sabe? E o carinho, o respeito, eles quando vêm ao Brasil eles me procuram, tem um representante que fica em Brasília e está sempre preocupado comigo. Depois disso teve o V Fórum Internacional Brasil-Japão de Resíduos Sólidos.
PAUSA
P/1 – Você estava falando do fórum.
R – Isso. Aí teve no Rio de Janeiro o V Fórum Internacional Brasil – Japão, que falou sobre resíduos sólidos e tinha representante do mundo inteiro, sabe? Expert, só fera, na gestão de resíduos sólidos do mundo e o único catador convidado pra dar uma palestra e falar um pouquinho do trabalho que a gente desenvolve aqui fui eu, a convite da JICA. Isso me encheu de orgulho e uma motivação, porque até então eu sabia que eu tinha um entendimento, eu tinha um conhecimento prático, mas me faltava a técnica. Aí um amigo da prefeitura falou: “Cara, você fala bem, você é um cara extrovertido, não tem vergonha, você chega e dá o seu recado, conhece muito o que você está fazendo, volta a estudar, cara”. Eu fiquei pensando, pensando, pensando e eu falei: “Quer saber? Eu vou ver o vestibular desse troço pra ver se é fácil, se não é”. Pra turma de gestão tinha 60 e poucos alunos, eu fiquei em quarto. Isso 27 anos sem estudar. Eu falei: “Quer saber? Agora eu vou. Passei, agora eu vou”. Consegui me formar, para mim também foi muito difícil. Difícil financeiramente, difícil o horário, sabe? Momentos que deu vontade de desistir, eu falei: “Não, se eu vim até aqui, se eu estou aqui é porque eu tenho que fazer”. Aí consegui me formar.
P/1 – Qual era o curso?
R – De Gestão Ambiental na Unisa, Universidade de Santo Amaro.
P/1 – E a faculdade mudou a sua perspectiva do trabalho, você acha?
R – Ah, com certeza. Sabe, com certeza. Ela me abriu a mente para eu começar a me preocupar mais com as leis, com as discussões públicas. É discutir políticas públicas. Eu tinha uma visão de que eu era apolítico, que eu não deveria me envolver, mas eu percebo que hoje as discussões públicas são de muita importância. E a gente conseguiu um respeito a ponto de ser ouvido, as nossas ponderações, as nossas colocações são ouvidas porque a pessoa começa a escutar a história, ele começa a te respeitar mais. Esse semestre agora eu iria fazer uma pós-graduação, mas infelizmente o trabalho não vai me permitir, mas, se Deus quiser, eu vou fazer no ano que vem. A universidade me abriu caminhos de uma forma, pra você ter ideia, o TCC que eu fiz, meu trabalho de conclusão de curso, ele chamou atenção do corpo de professores que viram, não só o pessoal que estava na banca, mas o pessoal que viu, e os professores da Unisa fizeram um livro, Estudos Sobre o Meio Ambiente Empresarial Moderno, e me convidaram para que eu pudesse fazer parte de um dos artigos. E aí, pô, eu tive uma publicação no livro, depois eu mostro pra você a capa pra você ver. E isso a gente também tem que aproveitar. Uma coisa que eu aprendi é que a gente tem que falar aquilo que a gente faz, aquilo que a gente sabe fazer, porque isso acaba tornando um marketing pessoal, e através desse marketing pessoal a gente consegue atrair parceiros, a gente consegue atrair cursos. Através dessa capacidade de gestão nossa a gente se envolveu com o pessoal da Fórmula 1, a gente se envolveu na Fifa Fan Fest. Então, todos os grandes eventos que hoje a cidade de São Paulo faz, ela não deixa a Coopercaps de fora. Por quê? Porque ela sabe que a gente é profissional, que a gente é sério, que nós somos uma empresa.
P/1 – Conta um pouco pra gente o que a Coopercaps faz hoje, como ela está estruturada, o que é a Coopercaps, como é o trabalho de vocês, como está organizado esse trabalho, pra gente conseguir ter uma visão geral mesmo. E qual é o trabalho de uma cooperativa de coleta?
R – Para eu falar, primeiro do que é a Coopercaps hoje eu tenho que fazer um resumo rápido do PGIRS, que é o Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos da cidade de São Paulo, que foi lançado no dia dois de abril desse ano. O PGIRS tem uma proposta ousada que é saltar dos 2% que a cidade hoje recicla pra 10% até 2016. E isso fez com que a prefeitura tenha que se preocupar com processo de educação ambiental, de formação e de informação para que toda a população da cidade de São Paulo entenda a importância que é a coleta seletiva. Primeiro, coleta seletiva solidária não existe sem associações e cooperativas de catadores. E aí, a nossa cooperativa começou a se destacar nesse cenário, começou a ter uma visão diferenciada a ponto de que para que a prefeitura salte dos 2% atuais pros 10% daqui a dois anos precisou mecanizar em uma boa parte da região de São Paulo esse processo de coleta seletiva e de reciclagem. Então a prefeitura criou duas centrais mecanizadas de triagem que têm uma capacidade produtiva de 250 toneladas por dia. E a que foi inaugurada agora dia 16 de julho, quem vai fazer a gestão da cooperativa somos nós. Então é um processo europeu que é completamente diferente de tudo aquilo que a gente vê, principalmente aqui, que é um trabalho mais manual. Lá não, lá já é um trabalho que é feito de forma mecanizada e que a nossa função como catador lá é justamente dar a nossa experiência que nós adquirimos ao longo desses anos todos, que o nosso trabalho é um trabalho de controle de qualidade que faz com que os cooperados, com o conhecimento deles, o que é passível de ser reciclado o cooperado passa, o que não é, o cooperado tira. Então ele faz um processo inverso e isso vai fazer com que a coleta seletiva consiga chegar a esses 10%. A função de uma cooperativa de catadores é justamente gerar emprego e renda, além da parte ambiental. A gente ouve muito falar em sustentabilidade. Os três pilares da sustentabilidade são o quê? O econômico, o social e o ambiental. E justamente as cooperativas e associações de catadores, eu acho que são as empresas mais sustentáveis do mundo, porque a preocupação de uma cooperativa de catador é justamente com a pessoa, com o ser humano, a gente precisa primeiro se preocupar em gerar renda para o cidadão, em gerar oportunidade de emprego para esse cidadão, para que ele possa ter a consciência ambiental. A gente só consegue formar um catador associado numa cooperativa, mostrar pra ele a importância do trabalho dele, quando a gente consegue trazê-lo, resgatar a cidadania que ele perdeu lá atrás. Então, esse é o principal papel da coleta seletiva solidária.
P/1 – Você falou desse aspecto social, que começa por isso. Eu queria perguntar se você se lembra de alguma história nesse tempo todo que você está aqui, de alguém que tenha chegado pra vocês, tenha entrado pra cooperativa, de uma mudança e transformação na vida dessa pessoa. Nesse aspecto que você me diz mesmo, uma história.
R – Tem várias, tem várias. Primeiro que tem pessoas aqui que vieram de situação de rua. Essas pessoas conseguiram emprego, conseguiram melhorar a qualidade de vida dele. Hoje alguns já são casados, conseguiram constituir família. A gente tem cooperado que trabalha aqui com a gente que era morador de albergue, que a gente tem parceira com albergue. Cada passo, cada degrau que esse cara sobe é uma vitória nossa.
P/1 – E tem alguém que tenha sido mais marcante para você? Um caso específico.
R – Tem. Esse cooperado saiu daqui, ele foi trabalhar registrado. Esse cara hoje tem 47 anos de idade. Ele passou 19 anos da vida dele preso. E aí esse cara saiu, é José Eustáquio o nome dele. Esse cara saiu da cadeia a última vez e falou assim: “Carioca, me ajuda”. Sabe aquela desconfiança? Porque a gente sabe, a gente é da comunidade, a gente conhece. Sabe aquela desconfiança? Vou ajudar esse cara e ele vai aprontar comigo. E esse cara falou: “Me ajuda, cara, eu não quero mais voltar pra lá. Se eu ficar aqui sem emprego, sem dar comida pros meus filhos eu vou roubar de novo”. Eu falei: “Cara, eu vou te dar uma oportunidade, pode ser até que eu me arrependa amanhã, e eu acho que eu vou me arrepender amanhã”, falei pra ele. Ele falou: “Não, você não vai se arrepender comigo”. Ele me chamava de tiozinho. “Você não vai se arrepender comigo não, tiozinho”. Esse cara ficou com a gente aqui três anos, mas cada carrinho que ele conseguia comprar para o filho dele, ele vinha aqui dividir com a gente. Cada roupa que ele comprava pro filho dele, uma televisão que ele comprava, ele vinha dividir com a gente. Então, as vitórias dele eram minhas. Hoje eu sou amigo pessoal dele, ele frequenta minha casa, eu vou na casa dele. Eu sei que, não eu, não quero que fique marcado que foi o Carioca, mas a cooperativa conseguiu ajudar esse cara a mudar a vida dele. Quantos filhos esse cara tem que ele nem conhece? Daquelas meninas que vão na cadeia e fazem essas coisas todas, sabe? Hoje ele tem uma família, tem filhos lindos, sempre que está de folga passa aqui pra dar um abraço, pra ver a gente. Chega aqui falando alto, aquela festa. Mas esse cara é como se a gente estivesse conquistando aquilo ali que ele conseguiu, sabe? Como é que fala aquele jogo novo agora? O Xbox que ele comprou pro filho dele, ele conseguiu comprar televisão de plasma, e ele chegava aqui, sempre que ele chegava aqui, que ele fazia qualquer coisa: “Fiz isso, consegui isso”. Então, pra nós... Conseguiu montar computador, já tem computador na casa dele, pega uma peça daqui, pega outra que o pessoal joga fora, ele junta. Quer dizer, é vitória nossa. Ele teve a humildade de compartilhar com a gente, mas a vitória é dele porque se ele não quisesse, se ele não chegasse naquele momento: “Eu não quero mais”, hoje ele estaria, talvez, hoje lá de novo preso. Mas isso aí eu acho que é uma das histórias mais bonitas que tem da minha vida.
P/1 – É incrível mesmo. E conta pra gente, Carioca, pensando na gente que é leigo mesmo, que não conhece de perto o trabalho de vocês, e pensando na Coopercaps, como é que é o trabalho de vocês, o cotidiano, da coleta até o beneficiamento? Qual é o trabalho da cooperativa?
R – Olha, nós temos hoje nove caminhões que são locados pela prefeitura e mais um que é próprio, então, hoje temos uma frota de coleta com dez caminhões. Nós fazemos aqui na subprefeitura de Santo Amaro, Capela do Socorro, mil e 500 ruas semanais. A gente conseguiu criar uma equipe que faz toda a divulgação, mapeamento e a parte de logística desses caminhões para que a gente consiga atender da melhor maneira possível a população da nossa região, da nossa comunidade. E isso, em média, de 400 toneladas por mês, que a gente consegue evitar que esse material vá para o aterro sanitário. Eu fiz a adesão de 30 cooperados e hoje estamos com 105 pessoas trabalhando aqui diretamente, somando a matriz e a filial que é na Central Mecanizada de Triagem. Então veja você, a coleta seletiva, primeiro que o lixo urbano é uma coisa impactante demais em todas as cidades. Se você chegar numa cidade e essa cidade estiver mal administrada na gestão do seu resíduo, a primeira coisa que você vê não é a praça, não é o lago, não é o mar, é o lixo. Então, a gente consegue hoje levar para a população a necessidade da coleta seletiva. Muitos entendem que a gente consegue fazer com que eles façam a adesão à coleta seletiva pela consciência ambiental, mas isso é complicado de se fazer. A outra parte que a gente consegue sensibilizar é porque eles sabem que o nosso trabalho é um trabalho de geração de emprego e renda, que a gente precisa ter núcleos, cooperativas, associações em cada bairro, justamente para dar oportunidade pra cidadãos e cidadãs que queiram trabalhar e que não têm outra fonte de renda, não tiveram oportunidade de sentar numa sala de aula pra se formar, pra ter uma formação profissional, nem nada disso. Então, o nosso trabalho tem essa preocupação. Eu acho que eu até fui pra outro lado, você me fez uma pergunta...
P/1 – Não, tem tudo a ver o que você falou, mas eu queria saber onde vocês coletam?
R – Nós coletamos em um mil e 500 ruas aqui da subprefeitura Capela do Socorro. Fechamos uma parceria tem cinco anos com uma ONG no Morumbi chamada Recicla Morumbi, então, começamos na época com seis condomínios, hoje já estamos com quase cem, 90 e poucos. A gente tem uma parceria com a Companhia do Metropolitano de São Paulo, que é o Metrô, a gente faz coleta nos pátios Itaquera, Jabaquara e Capão Redondo; a gente tem parceria com a CPTM, com a Braskem, com a Pepsico, esses são parceiros que apoiam a gente no crescimento profissional em um todo, e aí a gente consegue captar cada vez mais resíduos, gerar novos trabalhos, pensar em criar outras filiais.
P/1 – Só para eu entender, quando você fala rua, você quer dizer residência, é tudo, o que está incluído?
R – Rua. Em algumas ruas a gente faz coleta em dez residências, em outras em cinco, outras em 15, em 20, mas nós atendemos hoje um mil e 500 ruas da região.
P/1 – E comércio, empresa, como entra isso? Também está incluído nessas coletas da rua?
R – Na verdade, a gente faz esse tipo de coleta com o nosso caminhão próprio, porque existe uma lei municipal que as cooperativas conveniadas, ou melhor, as empresas que são grandes geradoras, que geram acima de 200 litros de lixo por dia têm que contratar uma empresa. E aí, a gente como cooperativa e com autonomia que a gente tem, a gente não pode usar o equipamento público, mas com o nosso caminhão a gente pode fazer coleta nessa pessoal, então nós fazemos também. Tem vários parceiros, tem Mitsubishi, a _1:37:14_, a Toyota, esses só alguns parceiros que a gente fala, mas são vários. E tem momentos que a gente tem que indicar outras cooperativas porque a gente não tem suporte para a gente poder estar fazendo isso. A intenção nossa é tentar fazer um planejamento para o próximo ano para que a gente consiga também levar outra filial, investir, pegar alguém que apoie, uma empresa que tenha preocupação ambiental e que queira apoiar o nosso projeto; de repente bancar um outro galpão em um outro lugar para que a gente possa ampliar cada vez mais e gerar novos postos de trabalho, mais renda, e ajudar o meio ambiente.
P/1 – Que tipo de resíduo sólido vocês coletam e o que acontece quando o resíduo chega aqui na Coopercaps?
R – A cooperativa de catadores trabalha com resíduo seco, então, todo resíduo seco passível de ser reciclado a cooperativa coleta.
P/1 – Por exemplo?
R – Por exemplo, papelão, plástico. A madame tem na sua cozinha aquelas embalagens de Cândida, de sabão líquido, pote de manteiga, material de escritório que você joga fora, caderno, livro, uma coisa assim. Vidro, de uma maneira geral. Latas de ferro, latinha de alumínio, isopor. Fração seca a gente coleta todo tipo de material. E quando esse material chega aqui, sempre quando eu vou fazer a parte de educação ambiental eu deixo bem claro pra pessoa que está interessada em praticar a coleta seletiva, fazer duas separações em casa só, resíduo seco, a fração seca e a fração úmida. A fração úmida o caminhão passa no seu determinado dia; a fração seca, encaminha para a cooperativa de catadores, que aqui somos especialistas e fazemos a separação de forma correta. A família dos recicláveis é muito grande. Pra você ter uma ideia, existe uma NBR 10004, que classifica por cores a separação de resíduo. Você vai no condomínio, o cara compra o kit daquele com quatro, cinco cores diferentes, numa empresa. É um custo desnecessário, porque ao chegar aqui esse material é separado por tipos diferentes. Então não adianta eu orientar você separar só o plástico, porque só o plástico tem X opções diferentes de separação que agrega valor, que tem que fazer isso na cooperativa porque agrega valor na hora de comercializar esse material. Então é muito mais fácil e muito mais motivante pra pessoa que quer praticar a coleta seletiva fazer só duas separações, porque não vai ocupar muito espaço, o seu custo é menor, e quando chegar aqui a gente faz a separação. Vou te dar um exemplo bem prático: papel. Papel aqui a gente tem que fazer uma separação do papelão ondulado, que são aquelas caixas de papelão; a gente separa o papel branco que é caderno, material de escritório, essas coisas todas; a gente separa revista e jornal. E o papel misto que são as caixas de ovo, caixa de achocolatado, o mais fino. São cinco separações diferentes, cinco preços comercializados diferentes e que somos só nós que temos a técnica de fazer esse trabalho, que vamos separar pra agregar valor. Se a gente mistura tudo o comprador pode até levar, mas com o preço bem diminuído, entendeu? Então na cooperativa precisa fazer a separação pra agregar valor. E se a gente for pedir isso em uma aula de educação ambiental, numa palestra, pedir para os moradores fazerem isso, é completamente desumano e ninguém vai querer, né? Então a gente orienta que faça duas separações, seco e úmido; o seco destina para a cooperativa de catadores e úmido, a prefeitura está com um projeto agora que vai começar a fazer reciclagem do resíduo úmido. Ou seja, transformar em adubo a parte orgânica do lixo que nós geramos.
TROCA DE CARTÃO
P/1 – Você falou um pouco dessa coisa da coleta, onde que coleta, o que coleta. Eu queria que você falasse um pouco pra gente, de um jeito resumido, de uma maneira geral mesmo, esse material chega aqui e tem as etapas. A coleta é uma delas, aí triagem, depois vocês fazem o beneficiamento. O que são essas etapas e como vocês fazem isso?
R – Você quer saber os processos da cooperativa.
P/1 – Isso, de uma maneira geral, da coleta até a comercialização.
R – Começa com a coleta, aí tem a fase de separação, ou triagem, do material. Da triagem do material ele se subdivide, uma parte vai pra prensa e a parte de plástico vai para uma outra equipe que faz a separação dos polímeros, que tem que ter uma técnica mais apurada porque o polímero é mais difícil de compreender, os plásticos de uma maneira geral. Depois que sai dessa separação dos plásticos, também passa pela prensagem. Saindo da prensagem ele passa pela área de armazenamento. A gente tem o estoquista que faz o controle do estoque. Saindo da parte de estoque, ele passa aqui pra administração, que a gente tem uma auxiliar administrativa que faz o controle desses resíduos e passa pra parte de comercialização. Hoje a gente conseguiu eliminar a figura do atravessador. Atravessador era aquele que impedia que as cooperativas se aproximassem das indústrias compradoras de material reciclável. Tinha uma figura no meio, hoje a gente conseguiu pular esse atravessador e consegue mandar diretamente para as indústrias. Tem uma pessoa que faz essa parte de comercialização, que é a parte de vendas, porque são vendas agendadas, programadas. Mais ou menos são esses os processos.
P/1 – Está ótimo. Eu queria que você falasse um pouco dessa coisa assim, essa sala está cheia de coisas que vocês encontraram no lixo, que a gente estava conversando no começo. Nesses anos todos que você trabalha com isso, que tipo de coisas vocês encontraram nesse lixo que fosse curioso, inesperado, tem algumas coisas que tenham sido mais marcantes?
R – Tem bastante coisa, mas basicamente o que está aqui mostrando para vocês. O que chamou atenção numa feira que eu fui fazer um seminário numa faculdade foi que eu levei duas coleções completas que a gente achou do Jorge Amado; e os alunos ficavam desesperados: “Por que, meu Deus, que alguém faz isso?!”. Mas são livros que a gente acha ao longo do tempo, curiosidades, coisas feitas a partir do material reciclável, que fizeram e jogaram fora e a gente vai aproveitando. A história mais ou menos está aqui ao longo desses dez anos que a gente está aí, são coisas que alguns parceiros, parceiros assim, são artesãos da região que fazem trabalhos manuais com material a partir do resíduo reciclável e a gente doa esse material pra eles e eles dão alguma coisa pra gente, pra gente mostrar e divulgar o trabalho deles.
P/1 – E você mesmo, você lembra de alguma vez, nesses anos todos de trabalho como catador, de ter encontrado algum objeto que tenha sido surpreendente, ou alguma coisa que você tenha levado pra você.
R – Ahhh, tem várias. O mais impressionante foi uma tartaruga, que eu fui abrir o saco, estava com material reciclável dentro, quando eu abri e virei, caiu de costa uma tartaruga balançando a perninha assim, ó, e eu levei pra casa.
P/1 – Estava viva, tadinha.
R – Estava viva. Mas aqui, na cooperativa, o mais curioso foi gato. A gente achou quatro gatinhos, bem pequenininhos, no meio do material reciclável. A gente triando o material, alguém escutou um chorinho e falou: “Pera aí, tem alguma coisa aqui”, abriu e quatro gatinhos. A gente alimentou eles e depois, pode percorrer a cooperativa que você vai ver, já estão criados. Uma cadelinha que a gente chama de Madonna, botaram ela no meio do material reciclável aí, ela não tinha nem pelo mais, aí a gente cuidou, criou, hoje faz parte da cooperativa já. São as coisas mais interessantes. Mas tem o pessoal que costuma diariamente, um acha dez, outro acha cinco. Relógio, celular, então, aparecem coisas bem interessantes. De dinheiro a animal.
P/1 – E esses livros que vocês vão recolhendo como foi essa ideia de começar a guardar os livros. Você estava comentando que...
R – Tinha uma pessoa que trabalhava aqui, um rapaz muito culto, Joaquim. E aí ele teve a ideia de pedir a um outro cooperado para fazer essas prateleiras e a gente ia juntando os livros. E foi juntando, foi juntando, foi criando corpo, foi um falando pro outro, o pessoal lá está juntando livro, tem uma biblioteca, o pessoal lá quer fazer isso. E acabou ganhando até notoriedade perante a própria parte municipal, que o pessoal acha uma iniciativa muito interessante, que um cooperado teve e que as outras administrações que venham mantêm e tentam fazer uma coisa melhor. Até porque a gente tem pouco espaço aqui, mas quem sabe um dia que a gente estiver em um outro espaço maior a gente possa fazer um espaço de leitura, criar um espaço de leitura, incentivar a comunidade que está no entorno da cooperativa pra poder ir lá buscar, ler. Apesar que o fácil acesso à internet prejudicou muito as bibliotecas, essas coisas todas, mas ainda tem muita gente que gosta do hábito de ler um bom livro. E a gente sempre acha, acha um livro e que acha que tem qualidade, que esse livro pode vir auxiliar alguém a gente guarda e deixa aí. Sempre aparece alguém que se interessa, pede pra levar e fala que vai ler e depois devolve; o outro troca, então, a gente vai criando esse hábito e é bem bacana porque a gente consegue envolver bastante pessoas.
P/1 – Essas pessoas que pegam os livros e procuram é mais o pessoal da própria cooperativa, quem que é?
R – É mais o pessoal do entorno, moradores da região que fazem essa procura. Cooperados, poucos têm o hábito de ler, até porque eu acho que o fácil acesso à informação é muito rápido, e o tempo também, acaba tirando esse prazer que é poder ler um bom livro.
P/1 – Agora eu quero conversar um pouco contigo, a gente vai encaminhando para a última parte da entrevista, sobre a relação de vocês com a Nestlé, especificamente. Entender um pouco qual é a relação da Coopercaps com a Nestlé, ou a sua relação com a Nestlé. Como começou isso?
PAUSA
P/1 – Se você puder contar um pouquinho pra gente, Carioca, o que é o Cempre, qual a função e a relação que vocês têm com o Cempre.
R – O Cempre é o Compromisso Empresarial para a Reciclagem, parceiro nosso já há alguns anos, inclusive alguns trabalhos que eles lançaram para fomento das cooperativas, pra capacitação e formação de cooperativas, alguns equipamentos, algumas ferramentas de trabalho em uma cooperativa, eles pediram autorização para que nós cedêssemos esse material para eles e a gente passou para eles, gentilmente, e eles servem nas cartilhas que eles têm para capacitação e formação de grupos de catadores. A gente tem um relacionamento bem interessante, porque existe essa troca, sabe, sempre que tem um parceiro, sempre que precisa trazer alguém de outros estados para conhecer uma cooperativa, eles sempre indicam a nossa e pedem autorização, sabem que as portas estão sempre abertas. É um relacionamento bem bacana. A gente conseguiu aproximar, através da Coopercaps também, conseguiu levar associações e grupos de catadores para que tivessem formação com eles. Então, é uma parceria de troca e a gente se sente muito lisonjeado e privilegiado de ter eles como nossos parceiros.
P/1 – Só para eu entender um pouco melhor essa coisa, eles fazem uma espécie de mediação entre as cooperativas e as empresas, é isso?
R – Isso. Eles têm várias empresas associadas, dentre elas a Nestlé, que devido até a Política Nacional de Resíduos Sólidos, à Logística Reversa, que essas empresas devem e têm obrigação de investir em cooperativas e associações de catadores até por causa do trabalho que nós prestamos, de forma indireta, pra eles, retirando as suas embalagens do meio ambiente. E a função do Cempre é justamente identificar para essas empresas as cooperativas que possam vir a receber esse aporte, não aporte financeiro, mas através de uma formação, de uma capacitação, de máquinas, de equipamentos. E como parceiro do Cempre a gente está sempre indicando, buscando, apesar que a gente tem cobrado do Cempre que a gente tem precisado de mais, mas a gente conseguiu essa aproximação, esse respeito. Eu acho que isso é muito bacana dentro de uma parceria, a gente considera o Cempre como nosso parceiro.
P/1 – E do seu ponto de vista qual que você acha que é a importância dessa aproximação entre as cooperativas de catadores e as empresas? Qual a importância dessa relação?
R – Eu vou falar a importância pra empresa. Primeiro, a empresa deve procurar essa parceria com as cooperativas e associações de catadores porque a gente tem muito mais condições de dar um feedback com relação a um determinado tipo de embalagem de algum produto que eles tenham. Não existe especialista melhor para poder orientá-los na hora de se criar uma embalagem. Porque existem vários designs, modernos, mas que talvez não seja um resíduo de fácil comercialização, que facilite a vida do catador quando chega. Porque a cadeia roda de uma maneira que o último ponto que ela chega antes de voltar para a indústria é na cooperativa. Então a gente tem esse feeling, essa possibilidade de dar o feedback melhor para as empresas; para a empresa é muito importante essa aproximação deles. E também é importante para eles valorizarem o trabalho de logística reversa que nós fazemos pra eles. Em contrapartida, para a cooperativa, a gente ainda carece de muita formação, de capacitação, a gente carece de entender que isso é um negócio, e pra se fazer a gestão de um negócio precisa de formação, de capacitação, de qualificação, de equipamentos melhores. Então, as cooperativas precisam abrir suas portas pra que essas empresas entrem de corpo e alma, afim de realmente diagnosticar qual o problema de cada cooperativa. Porque cada cooperativa, cada associação, ela tem um problema diferente. E ela precisa entender que tanto cooperativa, quanto empresa, elas precisam se aproximar porque a cadeia gira de uma forma que vai da indústria, vai pra empresa, vai pro distribuidor, vai para na mão do consumidor, o consumidor manda para a cooperativa de catadores, que está fazendo um trabalho de logística reversa para as empresas. E aí cabe a nós identificarmos e mandar esse material de novo para a indústria. A empresa tem que entender que prestamos um serviço pra eles, e precisa se aproximar e procurar se aproximar, eu acho que é através não só do Cempre, mas das cooperativas que têm um bom relacionamento dentro, procurar parceiro, procurar identificar os problemas, sabe, fazer uma grande discussão e dar suporte pra nós, catadores. A gente precisa ser melhor orientado para que a gente possa tocar o nosso negócio sem pedir esmola, ficar correndo com o pratinho. Nós não somos coitados, nós somos profissionais em meio ambiente, profissionais em resíduos sólidos urbanos, precisamos ser tratados como tal.
P/1 – E pra sociedade como um todo? Quais os benefícios que essa aproximação traz?
R – Olha, pra sociedade é justamente o efeito negativo que a má gestão do lixo causa. As cidades hoje, principalmente São Paulo, que é uma mega cidade, tudo aqui é enorme, tudo aqui é excessivo. Não tem mais espaço para aterro sanitário. A sociedade precisa entender que precisa investir na cadeia de reciclagem, para que o ciclo de vida dos resíduos tenha essa constância e não vá parar no aterro sanitário; que vá para o aterro sanitário aquilo que realmente é rejeito, que não tem reutilização e reaproveitamento. E aí a sociedade entender o nosso papel. Qual é a visão que a sociedade tem que fazer, ver de nós, catadores, de nós cooperativa? Você deveria, no momento que tiver oportunidade perguntar para a sociedade de que forma ela nos vê. Eles têm que ter o entendimento da importância do nosso trabalho, e aí sim a gente consegue decifrar esse enigma. Porque a gente sabe que não tem mais áreas para construção de aterro sanitário; a gente precisa cada vez mais aumentar esses índices que são insignificantes para uma cidade como a nossa, São Paulo recicla 1,8% dos seus resíduos, é muito pouco. A gente está anos luz atrás dos países europeus, das cidades mais modernas, mas a gente precisa fazer alguma coisa. Então, acho que a sociedade precisa explicar pra nós qual é a visão que ela tem, pra que a gente possa ter com mais clareza uma visão e dizer pra sociedade o que a gente acha deles, mas eles têm que valorizar e assumir a importância do nosso trabalho pra sociedade de uma forma geral, eu acho que é isso.
P/1 – Eu vou agora encaminhar pras duas perguntas finais.
R – Mas você falou que era a última!
P/1 – Não, falei que estava chegando no final (risos).
R – Você não acaba não?! (risos).
P/1 – Agora são só duas mesmo, mas antes de fazer essas duas eu queria saber se tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado e que você gostaria de falar.
R – Eu acho que você perguntou tudo, só não perguntou da minha avó.
P/1 – E você quer falar dela pra gente?
R – Eu não lembro, eu não lembro.
P/1 – Não? Às vezes você tem alguma história marcante com ela. Não?
R – Não lembro, desculpa.
P/1 – Tá bom. Então, a penúltima pergunta é quais são seus sonhos hoje.
R – Hoje?
P/1 – É, quais são seus sonhos, no geral.
R – Olha, meu sonho pessoal é fazer acontecer a minha consultoria. Eu criei uma consultoria, tem um ano, ela é especializada em gestão de resíduos sólidos urbanos, consegui trazer grandes profissionais, mas ainda não temos a visibilidade, ou a divulgação ainda não chegou a ponto da gente ter constância no nosso trabalho, eu poder viver disso. Não que eu queira abandonar a cooperativa, mas eu quero poder ter uma qualidade de vida melhor e poder dar uma qualidade de vida melhor pra minha família e poder passar para empresas que me contratarem, para as cooperativas de catadores para eu poder dar o meu trabalho, a minha contribuição com a experiência de vida que eu tenho, tanto na parte teórica quanto prática do assunto. Isso é um sonho pessoal meu, mas estou batalhando para que ele se realize. O sonho coletivo é transformar a Coopercaps em modelo de gestão, modelo de organização e poder replicar isso para esse Estados que estão tão carentes, que ainda tem um monte de lixão, catador em cima do lixo convivendo com os urubus, com os ratos, sendo atropelado pelos caminhões. Eu queria poder levar isso pra eles, porque eu tenho a mesma língua deles e eu sei falar com eles. Queria levar pra eles a importância de se organizar, de ter uma sociedade cooperativa, de unir forças que eles vão conseguir, que eles vão ter uma vida melhor. Eu tenho um sonho de que as pessoas respeitem o catador, independente se for um catador avulso que trabalha na rua, se for uma catador que trabalha no lixão, ele precisa ser respeitado. As pessoas precisam entender a importância do nosso trabalho. E o principal, ele não se tornou catador porque ele quis se tornar catador, foi por causa da fome, da miséria, da exclusão, da falta de oportunidades. Não basta criar bolsas pra dar uma migalha pro cara, tem que se criar oportunidades; não tem que dar o peixe, tem que dar a vara e botar esse pessoal pra pescar. Mas existe um nicho muito grande dentro do nosso lixo, o nosso lixo é muito rico. O Brasil deixa de produzir 12 bilhões, segundo a ministra, por ano, de recuperar. O poder público tem uma dívida histórica com essa categoria, sempre fizeram pelo meio ambiente e nunca foram reconhecidos. Então é um sonho que eu tenho de poder levar essa mensagem pra todo mundo. Eu tenho um outro sonho que é que os catadores que trabalham recebam um pagamento pelos seus serviços ambientais e urbanos que prestam. Porque nunca foi remunerado. E a contribuição socioambiental que as cooperativas, as associações, os catadores avulsos prestam pro nosso Estado, pro nosso município e pro nosso país é muito grande, precisam receber. E estariam recebendo uma coisa justa, honesta, não uma simples bolsa. Acho que é a mensagem que eu queria deixar. Eu quero agradecer pela oportunidade que vocês têm me dado.
P/1 – Tenho mais uma que é a final, agora é a final, eu prometo (risos). Como foi contar a sua história?
R – Olha, confesso que no começo trava, né? É complicado a gente falar de si mesmo, abrir o coração para uma pessoa que a gente está vendo pela primeira vez. Mas eu acho que eu fiquei bem à vontade, você me deixou bem à vontade. Não é nem contar minha história, é dar um testemunho mesmo, porque talvez, tomara que alguns jovens possam ver e entender que existem caminhos que eles podem ser mais longos, mas que eles têm muito menos espinho do que se for direto. A gente tem que compartilhar as situações boas e ruins para que, principalmente os jovens, porque eu me preocupo muito com os jovens, sabe? Que eles possam perceber o grande mal que é essa coisa chamada droga, e que a maior droga de tudo é a gente ser fraco. Acho que é isso.
P/1 – Está certo. Muito obrigada, então, a gente encerra aqui.
FINAL DA ENTREVISTARecolher