O Quadro de Couro Osvaldo Fabbrini 17/10/1999 Por volta de 1968, eu e meu amigo Reinaldo, montamos um atelier de artesanato em couro que denominamos informalmente de “DÁ-SE UM JEITO”. Naquele tempo eu com 14 anos e o Cabelo com 17 (esse foi o apelido que o Reinaldo ganhou da tu...Continuar leitura
O Quadro de Couro
Osvaldo Fabbrini 17/10/1999
Por volta de 1968, eu e meu amigo Reinaldo, montamos um atelier de artesanato em couro que denominamos informalmente de “DÁ-SE UM JEITO”. Naquele tempo eu com 14 anos e o Cabelo com 17
(esse foi o apelido que o Reinaldo ganhou da turma
escolar, já que tinha cabelos lisos e compridos) passávamos os dias no “DÁ-SE UM JEITO”,
fazendo cintos, bolsas, almofadas, medalhões, sandálias, tiaras e tudo mais que nossa inspiração ou
nossos clientes pedissem. Era uma sociedade bem organizada. Eu “administrava” a produção e ele as vendas. Às vezes cada um
ingeria-se na atividade do outro, mas nunca houve qualquer problema por isso. Num desses momentos de inspiração o Cabelo achou - esquecido num canto - um retalho de couro de sola, apanhou uma série de tranqueiras de nossas caixas de surpresas, tais como: purpurina, correntes enferrujadas, tintas de várias cores, extrato de nogueira, cola, rebites, chave velha, engrenagens de relógios quebrados, etc. e, com uma lâmina de sapateiro, pôs-se a trabalhar. Eu, usando uma sovela, costurava uma almofada
de couro e, entre um ponto e outro, espiava a produção do Cabelo. Ele ficou horas trabalhando e continuou no dia seguinte para dar o acabamento à sua obra. E não esqueceu de colocar um gancho para que se pudesse pendurá-la na parede. Ele mostrou-me o resultado do seu trabalho e perguntou o que eu achava. Respondi meio que automaticamente: “é, ficou legal”, embora eu não visse muito significado na “peça”. Era um pedaço de couro retorcido, cortado de forma totalmente irregular, nem retangular, nem quadrado, nem redondo, enfim era todo torto, pintado com várias cores e escurecido com extrato de nogueira que dava-lhe um certo ar sombrio. Haviam ainda todos aqueles artefatos pendurados ou incrustados e o brilho esmaecido de purpurina, formando um conjunto que causava certa estranheza. A Praça da República no centro de São Paulo era o local de exposição e venda de nosso artesanato. Lá surgiu, de modo espontâneo, uma feira de arte, onde se reuniam hippies, artistas, turistas, enfim todo tipo de gente disposta a ver, vender ou comprar os produtos ali existentes e numa manhã de domingo, como era de costume, estávamos lá: eu, o Cabelo e todas as peças produzidas na semana. As pessoas iam comprando nossas almofadas, bolsas, cintos etc. e olhavam surpresas para aquele quadro de couro, que fazia questão de chamar atenção dos que por ali passavam. Até que um senhor se deteve por um longo tempo a examinar a obra. Em seguida me chamou e pediu para que eu explicasse o que significava. Eu me senti entre que perplexo e desamparado, mas não por muito tempo, pois num instante estava ali o Cabelo. Ele viu quando eu fui chamado e veio correndo.. prá
minha sorte Minha ansiedade e curiosidade eram grandes, quando o Cabelo passou a explicar a obra. Percebi que tinha um fundo filosófico. Não era mesmo prá ter um estilo bem definido, por isso sua forma era irregular. Ele se pôs a falar com certa dose de emoção, explicando em resumo que “...o quadro refletia a sociedade na qual vivíamos; as velhas engrenagens dos relógios representavam o meio no qual estávamos inseridos e que muitas vezes nos forçavam a tomar rumos indesejáveis no transcorrer de nossa existência; as correntes eram barreiras a serem vencidas para que pudéssemos alcançar a Luz, ali representada de forma bastante discreta por purpurinas coladas sobre um fundo multicolorido; mas isso só seria possível se pudéssemos achar a chave que possibilitava abrir esse caminho...” Eu sentia muita sinceridade nas palavras do Cabelo e aquele senhor também; tanto que adquiriu o quadro com satisfação e ainda continuou proseando com meu amigo, que insistia em detalhar ainda mais o significado do seu quadro de couro. Fiquei até meio chateado em ver a obra abandonando seu autor e percebi que eu fora muito superficial na minha "avaliação” inicial.
Só mais tarde pude entender com mais clareza aquela situação. O Cabelo dera vida àquela obra já no primeiro momento em que se pôs a
executá-la. O significado de cada detalhe foi por ele sentido interiormente. Eu lembro-me do quadro de couro em muitas situações cotidianas, quando muitas vezes não procuramos enxergar os detalhes que podem dar um sentido expressivo às nossas vidas. Aquele quadro deu seu recado e por certo ainda hoje dever adornar alguma parede, revelando ou guardando seu segredo para um visitante ocasional....Recolher