Projeto Vale Memória
Depoimento de Mário da Gama Kury
Entrevistado por Paula Ribeiro e José Carlos Vilardaga
Rio de Janeiro, 02/08/2001
Código: CVRD_HV091
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Andrea Afonso
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Paula Ribeiro
P/2 – José Carlos Vil...Continuar leitura
Projeto Vale Memória
Depoimento de Mário da Gama Kury
Entrevistado por Paula Ribeiro e José Carlos Vilardaga
Rio de Janeiro, 02/08/2001
Código: CVRD_HV091
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Andrea Afonso
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Paula Ribeiro
P/2 – José Carlos Vilardaga
R – Mário da Gama Kury
P/1 - Boa tarde, senhor Mário.
R - Boa tarde. Com essas pessoas tão agradáveis, a tarde só pode ser agradável.
P/1 - Muito obrigado. Eu gostaria então de começar o seu depoimento, pedindo que o senhor nos desse o seu nome completo, a data e o local de nascimento, por favor.
R - Mário da Gama Kury. Nascido em Sena Madureira, então território do Acre, hoje Estado do Acre.
P/2 - A sua data de nascimento?
R - 30 de dezembro de 1922.
P/1 - E seus pais, o nome deles e a profissão?
R - Minha mãe – primeiro as senhoras, não é? Maria Celecina da Gama Kury e meu pai, em compensação, um nome bem pequenininho Elias Kury.
P/2 - O senhor conhece um pouquinho a origem da sua família, a história de seus avós, do seu pai, a história familiar?
R - O meu pai veio para o Brasil na época áurea da borracha, ele morava lá no Líbano, onde ele nasceu e houve uma emigração em massa para aqui, porque tinha a borracha, que era ouro, praticamente ouro e também a madeira de lei que era muito apreciada para exportação.
P/2 - Tem ideia de quando foi a vinda dele para o Brasil?
R - Bem, eu nasci em 1922, ele deve ter casado aí por volta de 1920 e acredito que foi em torno de 1920, um pouco abaixo de 1920.
P/1 - E seu pai veio para se estabelecer nessa região do Brasil?
R - Veio, era o ouro, a borracha era o ouro e durante alguns anos foi, mas depois apareceu a borracha sintética e morreu (risos). Ele ainda ficou uns anos lá porque as madeiras também eram muito apreciadas, mas viemos para Santos, em São Paulo, onde minha mulher tinha uns parentes e lá estudei. Em Sena Madureira mal tinha o primário e meu pai fez questão que eu e meus irmãos estudássemos.
P/1 - Em quantos irmãos vocês são?
R - Mais dois homens e uma menina. Somos então três homens e uma menina.
P/2 - Como o pai do senhor conheceu sua mãe?
R - Numa cidadezinha pequena como Sena Madureira, que de cidade só tinha o nome, ele conheceu… todo mundo estava indo para aquela região por causa da borracha que valia ouro, valia ouro. Depois desapareceu aquela importância da borracha porque se descobriu a borracha sintética, mas ele já estava lá e foi ficando; e ficou muito tempo lá com a família toda.
P/1 - E, os seus avós, o senhor conheceu?
R - Conheci, os maternos.
P/1 - Pode nos contar um pouquinho quais são as suas lembranças dos avós?
R - Ah, dos avós... principalmente da minha avó materna que era muito severa, mas a essa severidade eu devo ter continuado os meus estudos e ser, devo muito a ela. Mas, fora dessa severidade, com os estudos ela era um anjo, era um anjo. Então de lá, a uma certa altura quando desapareceu a importância da borracha, com o aparecimento da borracha sintética, nós viemos para o sul onde os nossos avós estavam e lá estudamos, e depois meu pai morreu e minha mãe ficou durante muito tempo e, fazendo muita questão de todos, era básico que nós estudássemos, continuássemos a estudar, isso ela fez e nós devemos a ela essa severidade, no resto era ótimo, mas nos estudos não, muito severa.
P/2 - O senhor lembra da viagem, da saída do Acre e a vinda para o sul, o senhor lembra dessa viagem?
R - Lembro, lembro e é muito interessante. Há um período da cheia dos rios que é a época de chuvas mais fortes, então viemos até o que se chamava “a Boca do Acre”, que era onde o rio Acre desembocava e lá tomamos um navio relativamente grande e viemos até Belém. Em Belém viemos para onde estavam nossos avós maternos e aí conhecemos o mar, conhecemos uma coisa... o encontro do rio Negro com o rio Amazonas. O rio Amazonas barrento e o Negro águas escuras mesmo e por muitos e muitos quilômetros ficavam aquelas manchas pretas, verdadeiramente pretas no rio até elas se diluírem na enormidade do Amazonas.
P/2 - Da própria cidade o senhor tem lembranças?
R - Sena Madureira? Lembro, lembro, lembro.
P/2 - Como era? Era uma cidade pequena?
R - Pequeníssima. Só se chamava cidade porque não tinha nada maior (risos). Mas muita gente estranha isso, mas tem três meses de frio forte, um frio muito forte que vinha da Cordilheira dos Andes. E, então, nós... era junho, julho e julho era aquele frio tremendo e depois era bem agradável, dormia-se bem. Depois vinha aquele calor, os nove meses restantes de muito calor, mas para criança é tudo igual.
P/1 - Como era a sua casa?
R - Uma casa de dois pavimentos, meu pai tinha a loja, ele importava produtos de Manaus e Belém e exportava os produtos de lá, principalmente a borracha e castanha, a castanha chamada do Pará, que era muito… ainda hoje muito apreciada. E foi lá, foi assim. A certa altura os nossos avôs aqui do sul não se conformavam em ficar com a minha mãe, a filha deles, separados e fomos embora. Também já estava decadente, absolutamente decadente… a borracha e já não tinha valor e viemos para cá. Mas o meu pai nunca se conformou com isso e foi, digamos assim, acabando consigo devagar, mas fez questão de minha mãe e de meus avós. Ele deixou alguns recursos, não é, para que nós estudássemos. Isso era básico e estudávamos em colégios de freiras e depois viemos diretamente para Santos onde estavam nossos avôs... lá continuamos a estudar.
P/2 - Também em colégio religioso?
R - Não, não, aí não. Aí pronto.
P/1 - Ainda em relação à cidade Sena Madureira, o senhor saberia dizer se haviam outros imigrantes, seu pai tinha um grupo de descendentes de libaneses na região?
R - Não, não. Ele
dizia que antes, no auge da borracha, que quando ele chegou lá não estava tão intenso o comércio da borracha. Mas aquilo ali vinha gente de todo o mundo, era uma Meca. Era um negócio terrível. Mas a certa altura minha mãe pressionava muito porque os pais dela, os parentes dela estavam em Santos e fomos para lá.
P/1 - E a língua falada em casa, era o português?
R - Era o português. Ele falava um português perfeito, nem parecia que era libanês.
P/2 - E tinham costumes libaneses na sua casa?
R - Não, absolutamente era local, eram costumes locais. Ele fez questão que não tivéssemos, digamos, vontade de conhecer outra língua, era só o português, talvez porque o meu pai falasse muito bem o português e lá ficou ele.
P/1 - Mas ele comentava alguma coisa sobre as memórias do Líbano, ele contava... seus pais...
R - Falava, falava muito... o inverno, a neve que era uma beleza, era muito alta a cidade onde ele morava. E era como ele dizia: “Saí do paraíso que era lá, para o inferno que era o calor do Acre” (risos). É, mas era quente danado. Fora de junho, julho e agosto que tinha os ventos dos Andes, era muito quente, muito quente.
P/2 - E Santos?
R - Santos? Estudamos, viemos para isto, não é? Mas, minha mãe não se conformava e meu pai fechou lá aquelas atividades e veio para cá com a minha mãe para cá, onde nós estávamos e lá moramos, estudamos até que com a morte do meu pai paramos um pouco de estudar. Já tínhamos feito os primeiros dois anos de ginásio e acabamos o ginásio, cada um… eu que era do meio, o mais novo não quis... ele gostava muito de lidar com eletricidade, coisas práticas, ele não quis outra coisa. O Adriano não, o Adriano tornou-se professor e por aqui ele ainda é professor, ainda é professor.
P/2 - A família veio para o Rio em algum momento ou não, foi uma opção do senhor a vinda para o Rio?
R - Não, não, a família veio toda para o sul quando o meu pai morreu e lá ficou, em Santos, nós viemos para aqui onde tínhamos tios, nós ficamos com eles e depois começamos a trabalhar, mas a minha mãe fazia questão que trabalhássemos e continuássemos os estudos. Nunca abriu mão dessa parte.
P/1 - Qual foi a época, quantos anos o senhor tinha quando o senhor veio para o Rio de Janeiro?
R - Acho que foi coisa assim de 1933, 34, eu tinha meus onze, doze anos e por aqui ficamos.
P/1 - Mas vieram a se juntar à família do pai ou da mãe?
R - Da mãe, do pai não tinha ninguém no Rio, ninguém aqui, só ele. Tinha no Maranhão que talvez ainda existam, esses maranhenses, numa cidadezinha chamada Balsas no Maranhão. Mas eu nem os conheço. Tão longe, não é?
P/1 - O senhor conhece a origem do nome de vocês?
R - Kury? É, senhor, pessoa assim de posses, era o Kury, eram os Kury.
P/2 - E no Rio a família veio morar aonde, em que local do Rio?
R - Lá perto da Praça da Bandeira, mas depois tínhamos mais parentes em Santos e São Paulo e então fomos para lá e lá estudamos. Primeiro no Ginásio Municipal Santista dos Maristas, não é? Mas, isso durou pouco porque minha mãe não tinha profissão, não tinha nada, era apenas dona de casa e nossos avós não eram muito abonados e, então, paramos de estudar de dia e eu e meu irmão mais novo continuamos a estudar. O mais velho, o Eduardo era mais objetivo e até hoje é bem diferente de mim e meu irmão. Nós somos mais dados às letras, digamos assim. Ele não, ele gosta de trabalhos manuais. E desenvolveu isso muito bem lá em São José dos Campos onde até hoje está. O Adriano aqui, eu também aqui, minha irmã também.
P/2 - Então, o senhor saiu do Rio... o senhor foi de Santos para o Rio e do Rio voltou para Santos, foi essa a trajetória?
R - Para Santos.
P/2 - Ah perfeito, o senhor terminou os estudos em Santos?
R - Em Santos, o ginásio. Aqui no Rio eu trabalhava e estudava.
P/2 - O senhor trabalhou com o quê, qual foi o primeiro trabalho que o senhor teve?
R - Olha, o trabalho é uma coisa tão desagradável que eu nem me lembro (risos). Passar dos estudos, né?
P/2 - Coisa ótima, memória seletiva.
R - Mas fizemos tudo isso, a minha mãe muito severa nessa parte, vocês têm que estudar, vocês não podem deixar de estudar. E, a não ser o Eduardo que por vontade própria dele, que ainda hoje lida com esse negócio de eletricidade e tudo mais e está muito bem lá em São José dos Campos.
P/2 - Mas o senhor pensava em uma carreira já senhor Mário, que o senhor queria ter ou alguma coisa que o senhor queria fazer?
R - Eu sempre quis ser advogado. Cheguei a advogar alguns anos, mas depois fui pegando empregos, trabalhos melhores, mais promissores, estudamos e fiz a Faculdade Nacional de Direito, me tornei advogado. Trabalhei algum tempo como advogado, trabalhei na advocacia. E fomos assim levando a vida.
P/1 - Mas o senhor como estudante da Faculdade de Direito morava onde? Morava em que bairro da cidade?
R - Na Tijuca, na rua... não me lembro do nome da rua não, mas eu sei que era na Tijuca. Rua Uruguai. Lá da Tijuca até, até ali por perto da Rua Barão de Mesquita. Rua Uruguai, rua Uruguai.
P/1 - E como era o ambiente da Universidade naquela época que o senhor estudou?
R - Eu achei muito bom, gostava muito, professores ótimos. Fiz muita amizade com os professores, um deles, esse eu nunca me esqueço, é o San Tiago Dantas, ele gostava de ver a intensidade com que eu estudava. Eu devo muito a ele, muito a ele. Francisco Clementino San Tiago Dantas, nunca o esquecerei.
P/2 - Ele dava aula de...?
R - Direito Civil, um grande professor.
P/1 - Mas como era o ambiente, era um ambiente de muitos debates? Vocês como jovens naquele momento...
R - Havia debates, principalmente no Direito Criminal. Demóstenes, como é o resto do nome? Não me lembro mais, eu me concentrei tanto com o Direito Civil que era do San Tiago Dantas que... Oscar da Cunha que era do Processo Civil que eu estudei com muito gosto que enfim.. não tinha, todos os professores eram muito bons... muito bons.
P/2 - E quando o senhor foi advogar, o senhor escolheu o Direito Civil?
R - Direito Civil.
P/2- O senhor chegou a montar escritório? Como o senhor atuou?
R - Arranjei um emprego porque precisava arranjar dinheiro, sustentava meus irmãos mais novos e minha mãe que já era viúva e... mas fui até o fim na Faculdade Nacional de Direito, não tinha à noite, era só diurno. Então, lutando muito, trabalhava, mais de noite porque de dia era para estudar. Mas valeu a pena porque a minha formação se deve muito ao professor San Tiago Dantas.
P/1 - Em que ano o senhor se forma, o senhor se lembra?
R - Em que ano... Em 1960. Ou seja, você não estava nascida, você também não... (risos)
P/2 - E como é que a Vale surgiu para o senhor? Em que momento isso aconteceu, a sua ida para a Vale do Rio Doce?
R - A Vale do Rio Doce estava se formando naquela época e eu fui por um anúncio de jornal. Trabalhei nela até acabar essa parte. Até acabar com essa parte de estudos e ficou como eu lhe disse a marca muito forte do San Tiago Dantas, que foi excepcional na minha vida. Escreveu muito pouco, mas o pouco que escreveu é ainda hoje aproveitado. Deixou coisas muito boas.
P/1 - Antes do senhor ir trabalhar na Companhia Vale do Rio Doce, já ouviu falar no nome dessa empresa?
R - Estava se formando, fui por um anúncio de jornal. Estava formando...
P/1 - O senhor lembra como é que era, estavam pedindo que tipo de profissional? Eles estavam querendo recrutar que tipos de pessoas para trabalhar nessa empresa em formação?
R - Eu isso não me lembro muito bem não, isso já...
P/1 - O senhor foi trabalhar em que função? O senhor se lembra qual foi a sua primeira atividade dentro da Vale do Rio Doce?
R - Escriturário, por onde se começa geralmente, não é? (risos)
P/1 - Que prédio que era, em que lugar do Rio que era?
R - Ali na Praça da República, numa esquina que eu acho que ainda está lá, ainda está lá.
P/1 - Perto do Campo de Santana?
R - No Campo de Santana. Ainda tem, ainda tinha umas janelas no Campo de Santana. Acho que ainda existe o prédio, deve estar lá e talvez ainda seja a Faculdade Nacional de Direito.
P/2 - O senhor comentou que entrou na (?) como desenhista.
R - Como desenhista.
P/2 - Por quê? O senhor tinha habilidade com desenho? O que o senhor desenhava?
R - Tinha porque quando eu não estava lendo, eu estava desenhando, não é? Desenhando o que me dava na cabeça, o que me dava na cabeça. Mas gostava muito de ler, a minha paixão… Ainda hoje é a minha distração principal, é ler.
P/1 - Mas enquanto trabalhava na Vale do Rio Doce tinha tempo para leitura, para estudos ou não? A vida era dedicada ao trabalho?
R - Aí eu sacrificava um pouco o sono, dormia tarde e acordava cedo. Estudava e… e não deixava de cumprir meus deveres escolares. E depois tive a sorte de ter bons professores. Na Faculdade Nacional de Direito foi uma coisa... foram professores ótimos. Não esqueço os bons professores que tive e eles vendo, talvez vendo a minha vontade de aprender, eles também me ajudavam muito.
P/1 - De que forma?
(PAUSA)
P/1 - Depois a gente vai comentar sobre o livro, por que que quis escrever o livro... vamos aguardar só um pouquinho...
P/1 - O senhor escreveu com alguém o seu livro ou escreveu sozinho?
R - Só.
P/1 - Sozinho! Foi a pedido de alguém da empresa?
R - Não.
P/1 - Não! O senhor teve vontade! Então vai contar para a gente quando estiver gravando porque que deu vontade de escrever o livro. Porque não é todo mundo que tem vontade de escrever um livro, né?
R - É..
P/1 - O senhor tem filhos?
R - Não.
P/1 - O senhor na Vale do Rio Doce, fez que trabalho lá na Vale?
R - Eu fui, era na época da guerra, 1950, por aí assim e precisavam, saiu um anúncio que precisavam de pessoas qualificadas para trabalhar lá em Vitória no Espírito Santo. E fui para lá e nunca mais larguei a Companhia da Vale do Rio Doce e gostei, felizmente, do serviço e gostavam muito de mim e eu gostava muito de todos eles. E como disse, os estudos para mim eram base e tive dos professores um interesse também muito grande… Acho que o professor quando vê que o aluno é interessado, ele se concentra naquele aluno que é mais interessado e com isso... só não fiquei mais aprofundado em algumas das... dos estudos porque não tinha um interesse maior… foi aquele do Direito Civil porque era o San Tiago Dantas que era o professor. Realmente um homem de grande influência na minha vida, foi de grande influência na minha vida.
P/2 - O senhor nunca chegou a usar o Direito dentro da Vale do Rio Doce? O senhor trabalhou como advogado dentro da Vale?
R - Às vezes eu era consultado mas diretamente não. Diretamente era mais de administração da empresa.
P/1 - Quem eram os seus colegas? Lembra o nome dos seus colegas que trabalhavam com o senhor lá em Vitória?
R - Sabe que não me lembro! Porque muitos deles estavam apenas fugindo da convocação; na guerra houve uma convocação...
(PAUSA)
R - ...com respeito. Eles queriam era fazer o curso, sair de lá como advogados da casa e acabou e então tive esta aproximação de San Tiago Dantas e aí então a coisa se firmou ainda mais, não é? Morreu muito moço o San Tiago Dantas, foi uma pena.
P/2 - O San Tiago Dantas ajudou a construir o porto de Santos, como ministro?
R - Como ministro ajudou muito, ajudou muito... San Tiago Dantas. E Vitória era por onde saía o minério da Companhia. Construiu-se o terminal de Tubarão e com isto a Companhia se transformou em uma grande empresa.
P/1 - O senhor acompanhou um pouco desse crescimento?
R - A partir mesmo do zero. A companhia estava mais interessada no transporte do minério de ferro para o porto de Tubarão em Vitória. Não tinha grandes interesses de desenvolver nada mais. Mas Vitória desenvolveu muito com o minério de ferro, a saída do minério de ferro. Ainda hoje exporta, ainda hoje exporta.
P/2 - O senhor nesse tempo já tinha entrado na área comercial?
R - Já, eu fui quase que diretamente para a área comercial.
P/2 - O senhor quer contar um pouco sobre a sua carreira nessa área comercial?
R - Nesta área comercial eu tive uma sorte muito grande e trabalhava com muito afinco também, né? E tanto assim que trabalhei muito no exterior, dentro da Companhia Vale do Rio Doce, nas filiais do exterior e depois, só mesmo na aposentadoria é que eu passei a trabalhar mais aqui no Brasil. Muito tempo eu trabalhei no exterior.
P/1 - Que país?
R - Alemanha, Dusseldorf, onde eram os escritórios da Companhia, basicamente era a Alemanha a maior consumidora. Depois era o Japão, fui muitas vezes ao Japão também e ainda hoje cultivo boas amizades lá, não é?
P/2 - O senhor se lembra como é que eram as negociações do minério de ferro?
R - Era a parte que eu gostava mais, que eu gostava mais.
P/2 - O senhor gostava de negociar o minério? Como isso era feito?
R - Todo ano tinha a negociação dos preços que era o mais importante. E então nós nos deslocávamos daqui para o exterior, eles de vez em quando vinham para aqui para naturalmente ver em que condições estavam as minas, e também muito interessados, e durante a guerra nós fizemos, a Companhia fez muita amizade, digamos assim, foi muito fiel no cumprimento dos contratos. Isso é que é importante, é importante.
P/2 - Os encontros se davam anualmente?
R - Anualmente
P/2 - E nos encontros se sentavam à mesa?
R - À mesa. Num ano aqui, outro lá em Dusseldorf na Alemanha. Nessa ocasião que se ia à Alemanha fazia-se visitas para outros países para que não parecesse que Dusseldorf era mais importante que a Companhia Vale do Rio Doce.
P/2 - Por quê, tinha essa suspeita?
R - Os escritórios lá sempre ficaram nas mãos da Companhia apesar de muitos se oferecerem sempre para trabalhar conosco, mas nos mantivemos sempre independentes. E nessa parte eu tenho a satisfação de ter sido um dos impulsores dessa liberdade da Companhia de negociar e não ser simples fornecedor da matéria prima. É, foi muito bom.
P/2 - A pressão dos compradores era muito grande?
R - Era muito grande. Eles não queriam que a Companhia Vale do Rio Doce negociasse diretamente, queriam através de representantes, para ganhar dinheiro também, além de comprar o minério, queriam vender também para outros países da Europa, Estados Unidos também. Mas foi uma.. eu tive muita sorte, muita sorte, muita sorte.
P/2 - E fechar esse preço, era muito difícil todo ano ou ano?
R - Dependia naturalmente das condições econômicas daquele _______. Por exemplo, durante a guerra, embora muito minério tenha ido ao fundo torpedeado os navios japoneses... os alemães principalmente, os japoneses ainda não estavam muito importantes, quando da desembocadura de Vitória, do porto de Vitória, muito, muito navio foi afundado.
P/2 - Pelos submarinos, pelos navios alemães?
R – Pelos navios alemães.
P/2 - Minério da Vale?
R - Minério da Vale, minério da Vale, não é? E ainda hoje a Companhia é uma grande fornecedora de minério de ferro para os Estados Unidos e Europa. Mas o maior consumidor é o Japão, apesar da distância (risos).
P/1 - Nesse período de guerra, o senhor chegou a ir à Alemanha ou não?
R - Fui, fui sim. Fui...
P/2 - Os americanos na Vale do Rio Doce, o senhor lembra? Os diretores americanos, o senhor lembra deles? Chegou a entrar em contato com eles?
R - Nós não tivemos diretores americanos. De nenhuma nacionalidade. A Companhia sempre brigou por vender ela mesma o seu minério, não admitindo intermediários e ainda hoje é assim, ainda hoje é assim.
P/1 - Nessas reuniões para discutir preço, qual era a língua falada?
R - Inglês.
P/1 - O senhor fala inglês?
R - Falo.
P/2 - Que outras línguas o senhor fala?
R - Francês, gosto muito. Basicamente francês e inglês. Além do português é claro (risos). Procuro falar bem, não é?
P/2 - O senhor se lembra do maior contrato que tenha fechado? Ou um novo país que tenha aberto o mercado?
R - Japão. Custou, mas com a proporção que o Japão desenvolvia a sua siderurgia, como no princípio a Companhia foi muito leal a eles, fornecendo minério, fazendo todo o esforço para atender porque no início os europeus não queriam que o Japão se desenvolvesse, não queriam que a siderurgia japonesa se desenvolvesse, mas a Companhia fielmente fornecia. Durante a guerra muito minério afundou aí, pelos japoneses, muitos navios japoneses foram afundados, mas foi muito importante e continua sendo muito importante o mercado japonês.
P/1 - O senhor trabalhou muitos anos na Companhia da Vale?
R - Trabalhei de mil novecentos e quarenta e tantos, vamos dizer 1950, até mil novecentos e setenta e tantos. Já tinha passado dos trinta anos. Abriram uma exceção porque o limite na Companhia para trabalhar era sessenta anos, mas eu e mais um pouco que já trabalhávamos antes dessa resolução, continuaram.
P/1 - O senhor trabalhava muito?
R - Trabalhava. Na hora de trabalhar, trabalhava.
P/1 - Muitas horas por dia?
R - Não tinha horário. Para os mais altos assim não tinha horário não.
P/1 - O senhor já era casado?
R - Eu casei em 1975.. não, não, não, não, 1955.
P/2 - O senhor conheceu vários presidentes da Vale do Rio Doce?
R - Conheci.
P/2 - Tem algum que o marcou especialmente?
R - Eliezer Batista. Um homem notabilíssimo, Eliezer Batista.
P/1 - Por que ele lhe marcou?
R - Pela energia e inteligência. Que são duas coisas que nem sempre andam juntas. Eu viajava muito com ele na época das negociações de preços e ele marcou realmente a minha vida, o Eliezer.
P/2 - Aí o senhor sai em 1976? Porque, a aposentadoria, o senhor se aposentou?
R - Me aposentei e passei a fazer o que eu sempre fiz, traduzir... clássico.
P/2 - O senhor sempre..?
R - Sempre… os livros.
(Problema técnico)
R - ...e num dia, lá em cima _______ eu peguei um livro, li e tentei ler... O alfabeto era diferente e comecei a falar com papai sobre isso e ele: “Você, quando crescer, procure ler esses livros, porque esses livros que nunca desaparecerão, (são eternos). E estão aí firmes.
P/1 - O senhor ainda tem algum exemplar que era do seu pai?
R - Não, quando ele foi para Sena Madureira, ele foi largando essas coisas completamente.
P/2 - O senhor aprendeu o grego quando? O interesse pelo grego ao longo da vida?
R - Ao longo da vida.
P/1 - Trabalhava na Vale do Rio Doce e estudava grego?
R - Estudava em casa. Lia, mas quando eu comecei a ler esses, quando eu comecei a tentar ler os caracteres que são tão diferentes, eu achei tão fácil, como se sempre tivesse lido aquilo. Hereditário, (risos) meu pai também gostava muito da literatura grega.
P/2 - E o senhor foi traduzir que obras? Que obras o senhor foi traduzir e...
R - Ah, isso não acaba mais (risos).
P/1 - Cita uma, cita uma para a gente?
R - Do teatro grego tem muita coisa. Édipo Rei, que é uma das que eu considero uma das mais importantes, tem também de... vamos...
P/2 - De História, o senhor publicou?
R – Tucídides, Heródoto e Políbio. Eu gostava muito desses historiadores gregos. Traduzi os principais e também eu não perdia de vista outros autores, não só os gregos. Mas a minha paixão eram os gregos, são os gregos ainda. Grego clássico, do grego moderno, zero!
P/2 – E, esse livro da Vale, como é que surgiu a ideia do senhor escrever?
R – O Glaycon de Paiva, grande amigo, ele sempre dizia: “Ô, Mário você é o único literato daqui de dentro. Você tem que fazer um livro sobre a Companhia”. E tanto repisou que eu me convenci de que convinha. Qualquer dia eu pergunto por que o senhor não faz? Porque eu já estou muito velho. Talvez não acabe nem o manuscrito. Mas eu peguei, fiz e aí está ele.
P/2 – Mas como é que foi que o senhor fez a pesquisa para esse livro?
R – A minha pesquisa foi relativamente pequena porque estava tudo na minha cabeça. Eu vivi tudo aquilo, ninguém me disse nada. Eu vi e ouvi aquilo tudo, não é?
P/1 – Documentos, o senhor pesquisou em documentos?
R – Não, não, não. Não houve praticamente necessidade porque foi tudo vivido. Em vez de perguntar eu já tinha vivido aquilo. E também talvez um pouco de hereditariedade porque o meu pai gostava muito dos gregos clássicos e ele sempre dizia: “Meu filho você precisa ler isto!”. Me pôs aquilo na cabeça e aquilo ficou, não é?
P/1 – Quando o senhor escreveu esse livro da Vale, como é que era? Trabalhava todo dia no livro? Tinha disciplina de escrever todo dia tantas páginas..., trabalhou por temas?
R – Tinha, sempre. Não, não, foi saindo... eu vivi tudo aquilo que eu estava escrevendo, então foi fácil, foi fácil.
P/1 – Ficou satisfeito com o resultado?
R – Gostei muito e ainda hoje o pessoal novo que entra lá já vai lendo o livro.
P/2 – Atualmente o senhor mora onde?
R – Aqui em Copacabana, na Rua Hilário de Gouveia. Quando vocês quiserem dar o prazer da presença...
P/2 – E como é que é o seu dia a dia? O que é que o senhor faz?
R – Bem, fácil também. Continuo lendo muito os livros que eu gosto. Nunca li por obrigação. Ando muito, procuro andar muito, para a cabeça funcionar bem, os pés também têm que funcionar. Meus hábitos são... não fumo, nunca fumei... tentei imitar os que fumavam mas a certa altura deixei e nunca mais quis saber de fumar. Bebo pouco, gosto muito de um bom vinho, mas moderadamente, não é?
P/1 – Gosta de sair para jantar, para comer fora?
R – Não, eu gosto mais de comer em casa. E quando saio a minha vontade é de ficar por ali mesmo, na Polonesa. Na Polonesa, além de eu ir lá, eu vou buscar a comidinha que eles vendem para fora e como em casa. (riso)
P/2 – Bom, Seu Mário, então vou fazer a última pergunta para o senhor. O que o senhor achou de dar essa entrevista para a gente?
R – Eu gostava tanto da vida que eu levava quando trabalhava que recordar dela para mim é ótimo! É ótimo. A minha vida está muito marcada, de hoje, a minha vida está muito marcada pela vida passada.
P/1 – E gostaria de deixar alguma mensagem para esses novos funcionários da Companhia Vale do Rio Doce, ou para a equipe da Vale do Rio Doce?
R – Eu gostaria de dizer que eles tratassem a Companhia da Vale do Rio Doce que apesar de hoje estar na mão de particulares, aquela turma toda que ainda ficou lá mantém muito o amor pela empresa. O amor por qualquer que seja a empresa em que se esteja, é preciso trabalhar com amor, sem isto nada se faz. É só isso que eu teria dito, não é?
P/1 – Deixa eu virar aqui? Ah! Joia!
P/2 – Então, a gente agradece muito. Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de falar?
R – Muito obrigado, eu já falei, Acho que falei até muito.
P/1 – Não, foi ótimo. Muito obrigada pela sua participação.
R – O nome de um dos meus professores era Haroldo Valadão, não, então os companheiros diziam: “Então, você é parente do Haroldo Valadão?”. “Não!” “Então, você é o caladão, não é?” (riso)
P/2 – Obrigado, seu Mário.Recolher