A LENDA DO HOMEM QUE DOMINOU A ÁGUA
Poucos dias depois do banquete de licantropos um lobo solitário perdia-se na vastidão da costa cercada dos mares bálticos, passando pela árvore frondosa que um dia fora filha de Afrodite, em direção a sua funesta imortalidade. Ouvia atentamente as canç...Continuar leitura
A LENDA DO HOMEM QUE DOMINOU A ÁGUA
Poucos dias depois do banquete de licantropos um lobo solitário perdia-se na vastidão da costa cercada dos mares bálticos, passando pela árvore frondosa que um dia fora filha de Afrodite, em direção a sua funesta imortalidade. Ouvia atentamente as canções das filhas de Oceano que bem longe atraíam naus feitas de cedro do Líbano, conduzidas por velhos lobos dos mares moradores de Tiro, contratados pelos Jônios por serem os mais experientes marujos e piratas que já existiram, apesar da sórdida compulsão de virar alimentação para as sereias de então. Pensava ser essa uma das mais tristes lendas de metamorfose, cantada pelo poeta romano Ovídio, até
aquele fatídico sábado cheio de cosmogonia aquática no prédio antigo onde os técnicos do grupo de engenharia acompanhavam o desenvolvimento das obras industriais da igualmente velha refinaria. Era um desses dias de serviço extraordinário, um desses plantões de fim-de-semana para acompanhar as empresas que estariam realizando serviços em algum lugar da gigantesca área industrial. O técnico passou com seu motorista em direção a um tranquilo dia de trabalho no interior da refinaria, acenando para os vigilantes da guarita que liberaram rapidamente sua entrada, passou pelo lago artificial com alguns patos e dois gansos alimentados por ração pelos funcionários e estacionou na parte de trás do prédio de engenharia.
Um dos patos levantou suas asas grasnando ameaçadoramente, já que imaginava ser ele o dono do antigo prédio, não somente do lago, por alguma razão que só os patos poderiam declarar.
O motorista possuía uma sala separada próximo a copa, enquanto que a sala do técnico ficava num corredor próximo a uns 120 metros. Antes de ir para a área industrial, distante dois quilômetros da entrada o técnico iria ao vestiário gigantesco para trocar de roupa e vestir seu surrado uniforme. O vestiário era dividido na parte onde ficavam os mictórios e os sanitários, no mesmo ambiente onde uma bancada de mármore abrigava três pais e um espelho de quase três metros de extensão. Duas luminárias tipo arandela iluminavam o espelho. Ao seu lado havia um pórtico sem portas e após o segundo ambiente, onde diversos armários metálicos guardavam equipamentos, capas e uniformes dos funcionários. Armários semelhantes aos dos clubes de natação.
Era só trocar o uniforme, e ir ao encontro dos grupos exercendo atividades para ver se as medidas de segurança, permissões de trabalho, e as questões de logística estavam encaminhadas... e pronto! – imaginava inocentemente - uma rápida inspeção e depois seria aguardar na base para contatos e resolução de eventuais problemas. Um dia fácil demais - pensava ele.
Antes, no entanto, foi até o vaso sanitário, aquele com a antiga válvula de descarga razoavelmente desregulada. Uma vez acionada uma determinada válvula levaria cerca de 15 minutos para parar com o processo de descarga. Um gasto desnecessário de água, em tempos de uso consciente de recursos naturais, principalmente em razão do vestiário de pertencer a uma instalação administrativa dentro de uma área industrial que era alimentada por um ramal cuja pressão era extremamente alta.
O técnico era oriundo da área de eletricidade. Questões com válvulas pertencem à outra área, denominada hidráulica. Era só uma questão técnica simples - imaginou. O técnico olhou para o sistema, desmontou a parte dianteira denominada espelho e começou a girar o mecanismo da válvula para tentar fechá-lo. São várias peças que formam o conjunto que compõe uma válvula de descarga. Mola, Parafuso Acionador. Cruzeta. Retentor. Conjunto do embolo. O numero de peças dá uma vaga noção da complexidade da válvula.
Após algum momento de aperto... Todas essas peças foram cuspidas para longe... Pela tremenda pressão da água e do jato de água estupendo que jorrava sem controle no rosto do infeliz individuo que por sinal, usava óculos fundo-de-garrafa.
Os óculos foram lançados longe pelo jato que a custo tentava conter com as mãos. Em vão. Virando-se para pegar os óculos ele afastou-se do jato, cuja pressão quase arrancou a porta, indo bater no imenso espelho do outro lado do salão.
A guerra aquática de dimensões jamais imaginadas nem pelas ninfas da água filhas de Oceannus, tivera inicio.
O técnico ainda tentou ver se conseguia manter um pouco de sua roupa seca, mas logo percebeu que isso seria impossível. Estava encharcado até o mais profundo de sua alma. Encontrou os óculos e logo que conseguiu enxergar através das suas lentes embaçadas. Começou a procurar as peças que em algum momento do passado formaram o dispositivo, agora absolutamente desmontado. Enquanto isso, a água de acumulava no vestiário aumentando de nível. Com alguma sorte, ele encontrou as peças. Talvez se conseguisse reencaixá-las... Foi o que tentou... Voltou para o box aberto, de onde jorrava a água descomunal e lutando bravamente para entrar, se aproximou da parede de onde saia o jato.
Com uma das mãos tentava tatear a saída de água e com sua outra reposicionar o mecanismo. Porém, a água batendo em suas mãos empurrava o mecanismo para trás fazendo um leque de água que varria as paredes do Box e batia em seu peito, dirigindo-se também para cima. E lá se foi os óculos, de novo, e lá se iam as peças, mais uma vez.
E a água subia dentro do vestiário. Então ele pensou – deve ter algum registro geral dentro deste vestiário. Pisando as poças formadas, com suas botas de couro cheias de água, olhava para as paredes onde havia os chuveiros e finalmente encontrou um registro. Cheio de incontida esperança, fechou-o completamente; Porém absolutamente nada aconteceu.
O jato de água aparentava estar mais poderoso que antes, batendo no espelho que indomitamente resistia enquanto a água corria torrencialmente pela bancada de mármore e pelo espelho, caindo perigosamente em direção às luminárias acesas. Momentos intensos como esse necessitam de uma análise fria e meticulosa.
Após dois segundos de intensa meditação ele chegou a conclusão que a situação era verdadeiramente desesperadora. Arrancando de si a camisa de mangas compridas de sua farda ele correu sem camisa pelo longo corredor em busca de um registro. Deu a volta no prédio e pelo lado de fora do banheiro.
Não encontrou registro algum.
Começou a imaginar como seria embaraçoso esclarecer como tinha transformado um setor inteiro em um lago gigantesco quando tivessem retornado cerca de 120 pessoas dó expediente normal de trabalho, na segunda-feira.
Então, voltou ao banheiro munido de intensa e profunda convicção. Aquela maldita válvula, em pedaços transformada, teria que ser acoplada naquela tubulação. E lá foi ele novamente rompendo as águas com o corpo semi-nu, de peito aberto, rompendo as águas com os braços e bebendo do leque que formava uma parede de água cristalina só visto deste modo em combates à incêndio com
mangueiras com
certas válvulas especiais.
Quase se afogou.
A água enchia o banheiro, já com cerca de oito centímetros de lamina d’ água. Seus pés pisavam com dificuldade o chão do vestiário. Ele escorrega e levanta-se. Sai correndo mais uma vez do banheiro, em estado de submersão, agradecendo a Deus o fato do piso do banheiro ser mais baixo do que o corredor e da divisão de um batente mais alto que o piso na entrada da porta do corredor.
O motorista. Ele lembrou-se do motorista. O técnico saiu correndo e entrou na sala de espera dos motoristas como se fosse o sobrevivente de um maremoto. O motorista olhou espantado para a figura molhada.
O técnico disse que estava havendo um vazamento no banheiro e perguntou se ele possuía alguma ferramenta. Na verdade o motorista possuía. Uma única ferramenta no porta-malas do carro. Um alicate.
Sem maiores esclarecimentos o técnico pegou o alicate e saiu correndo em direção ao corredor e do vestiário. A água já transbordava e inundava o corredor, logo iria entrar nos escritórios.
Era, talvez, sua ultima chance. Próximo a válvula desmontada, na parede, ficava um pequeno registro, o que estrangulava a passagem de água do conjunto da válvula.
Ele cortou o jato, atravessando-o com alicate, que o dividia em duas partes. Prendeu a respiração e começou a girar o pequeno registro.
A água começou a diminuir. O jato foi se encolhendo, cessando e então terminou...
Levou cerca de duas horas para que o ralo do banheiro desse conta de quase toda a água derramada. O espelho resistiu bem e milagrosamente as luminárias não explodiram. O técnico secou como pode o corredor, trocou de roupa entregou o alicate ao motorista e se despediu, naquela tarde, da refinaria.
Segunda-feira.
As dezenas de ônibus entram pelos portões principais, ele salta do seu ônibus normal (só utilizava motorista e carro nos plantões). Caminha em direção ao prédio, passando pelo pato mal-humorado e olha para o corredor com algumas marcas de água.
Em silencio ele suspira, sorri para o grupo que entra enquanto alguém comenta: - Nossa! Deve ter chovido muito neste final de semana... Então, sem se conter, ele começa a rir...Recolher