P/1 – Senhor Aurelino, o senhor fala pra mim o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Local de nascimento: interior do Piauí, São Raimundo Nonato, que é uma cidade histórica, é patrimônio histórico da humanidade, Parque Nacional da Serra da Capivara, você deve conhecer.
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P/1 – Senhor Aurelino, o senhor fala pra mim o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Local de nascimento: interior do Piauí, São Raimundo Nonato, que é uma cidade histórica, é patrimônio histórico da humanidade, Parque Nacional da Serra da Capivara, você deve conhecer.
P/1 – Que dia que o senhor nasceu?
R – Dez de maio de 1935.
P/1 – E o seu nome completo é?
R – Aurelino Soares da Silva. Filho de José Honorato da Silva e Ana Ribeiro Soares.
P/1 – O seu pai nasceu lá também.
R – Nós somos todos de lá. Meu pai era agricultor, pequeno agricultor na região e criador de alguns animais, como cabra, suínos. Eu com sete anos de idade já iniciei ajudá-lo na atividade dele. E o transporte da época era jumento, o meu pai tinha uma frota de 32 jumentos. E nós fazíamos o transporte de tudo o que se produzia na região pra cidade mais próxima, que eu era do município de São Raimundo mas a agricultura era um pouco distante e a gente fazia o transporte em lombo de jegue, chamava cangalha, botava e transportava da região que se produzia pra feira de São Raimundo Nonato. Isso no sábado, aos sábados ou domingos, não me lembro bem. Isso nos anos 40, por volta de 42. Com sete anos eu já acompanhava meu pai.
P/1 – E ele plantava o quê?
R – A região plantava, nós chamávamos macaxeira, que é mandioca. E tinha uma espécie de moinho que beneficiava-se a mandioca e fazia a farinha de mandioca pra vender na feira. Se produzia milho, feijão e muita mandioca. Nós só não, meu pai tinha uma certa liderança no meio dos agricultores e no meio da família e meu pai arrebanhava tudo o que se produzia na região e levava pra cidade. E eu já o acompanhava naquela época.
P/1 – E como é que o senhor ia, era em cima do jumento?
R – Ia em cima do jumento, no meio da cangalha. O meu pai ia a cavalo e eu e mais uns primos íamos nas cangalhas, que não iam só os nossos 32, iam os de outros também, era uma frota muito grande de jegue.
P/1 – O que é todo mundo junto?
R – Primos.
P/1 – Mas por que as pessoas iam?
R – Pra ajudar. Porque a gente saía, vamos dizer, saía na sexta-feira no final da tarde, por volta de um determinado horário à noite a gente parava pra dormir pra ficar até umas cinco horas da manhã pra depois tocar e chegar na feira. Então tinha que tirar as cangalhas, desmontar os jumentos e no dia seguinte ter que botar a cangalha de novo. Não sei se você sabe...
P/1 – Eu sei porque eu cresci lá. É uma carga, né?
R – Você conhece por lá, conhece alguma coisa?
P/1 – Sim.
R – É uma carga, só que é uma de um lado e outra de outro. E aquilo era pra tudo, você ia buscar água na fonte, que não tinha água, tudo era. Não era longe, mas era feito daquela maneira. Tudo o que se fazia na região era em lombo de jegue.
P/1 – Aí o senhor dormia olhando pro céu.
R – Dormia ao relento.
P/1 – E você se lembra de alguma história que você passou nessa época com o seu pai? Como era isso, você gostava, você brincava com isso ou trabalhava mais?
R – Mais trabalhava do que outra coisa, mas como tinha lá, chama-se cacimba. Cacimba é onde quando chove se armazenava água. Essa eu ajudei a fundar, carregava a padiola e nós fundamos uma cacimba praticamente na nossa área e a gente tomava banho na cacimba. E o que mais se fazia também era caçar, chamava-se badoque, parece aquele negócio de flecha mas é um cordão, no meio tem um recepientezinho e você coloca as pedras e caçava muito rolinha, jandaia, periquito. Até os dez anos eu fiz muita coisa.
P/1 – O que o senhor fez?
R – Esse tipo de coisa. Esse tipo de trabalho. Não é todo mundo que tem chance de fazer tudo isso até os dez anos de idade.
P/1 – É verdade. E como era a feira? O senhor se lembra como é que era?
R – Muito vagamente. Mas é uma feira comum como outra qualquer, os caras iam lá e como nós tínhamos preço e quantidade eu até tinha um pessoal que comprava pra revender, mas não era na feira, eles levavam pra revender depois. A gente levava muita coisa pra época e pro lugar que era, era muita coisa. Disso eu me lembro. E nós tínhamos os irmãos da minha mãe que moravam aqui já no interior de São Paulo, em Pereira Barreto, no Noroeste. Eu não tenho comprovação, mas teve uma época que o meu pai, solteiro, esteve aqui em São Paulo, tinha um tio meu que morava aqui também, eu não tenho confirmação 100%, mas dizem que ele trabalhou na construção da Via Anchieta. Quando solteiro, isso nos anos 30. Eu sou o filho mais velho, ele deve ter casado em 1934. Mas por volta de 1930 ele esteve aqui e trabalhou na construção da Via Anchieta.
P/1 – E como é que era dentro da sua casa, como era a sua casa lá no Piauí?
R – A gente não passava necessidade. Lá os que não tinham muitos recursos dormiam em esteira. Nós já dormíamos em rede. Eu sou o filho mais velho, eu saí de lá com dez anos, os outros eram tudo abaixo. Depois minha mãe teve mais um filho aqui em São Paulo. E como a minha mãe era rendeira e fazia rede nós dormíamos em rede. E eu ajudava a minha mãe a fazer o cabeçalho da rede porque tinha que esticar o barbante, aquela que vai pra fazer o cabeçalho da rede (risos), já não lembro mais o nome. E eu ajudava ela também na manufatura. E ela fazia rede pra vender.
P/1 – Também.
R – Também.
P/1 – Você ajudava seu pai, sua mãe.
R – Ajudava meu pai e minha mãe. E puxava a enxada também. Fazia tudo. Agora os garotos de hoje (risos). Isso foi até 1945. Nós tínhamos esses nossos tios, um morava em São Paulo e o outro morava no interior. E em janeiro de 1945 esse meu tio, irmão da minha mãe, foi lá, passou uns dias e tal, voltou e quando voltou já influenciou a minha mãe e a gente já começou a se preparar pra vir embora pro interior de São Paulo.
P/1 – Antes de chegar lá eu queria perguntar um pouquinho mais sobre onde você morava lá. Como era?
R – Morava em casa própria, área grande. Nessa mesma casa a gente tinha pés de frutas como manga, cajueiro, plantava melancia. Porque não tinha problema de terra, né? Cajueiro, pé de imbu, imbuzeiro. Sabe o que é imbu?
P/1 – Sei.
R – Como é que chama? Lá chamava atã, aqui é pinha, né?
P/1 – Não tem problema se não lembrar.
R – Mas plantava todos os tipos de coisas.
P/1 – E como era a cidade lá?
R – São Raimundo já era uma cidade maior, mas no municipiozinho que a gente morava já era roça. Em volta da gente tinha uma distância de, vamos dizer, quatro, cinco quilômetros. Lá não era nem quilômetro, na época se chamava légua. Cinco léguas, seis léguas.
P/1 – E onde fica esse lugar que você mora no Piauí? É no meio do Piauí?
R – Não, é divisa com a Bahia. Se você procurar, dá uma olhadinha no mapa, lá tem São Raimundo Nonato lá. Acho que é sul do Piauí.
P/1 – Entendi, sul do Piauí.
R – Essa região fica mais ou menos a 100 quilômetros do rio São Francisco, era légua, a 100 léguas, onde hoje tem a barragem de Sobradinho. Remanso. Remando não chega a 100 quilômetros.
P/1 – E fala como é o seu pai e a sua mãe, o humor deles? Eram bravos, tranquilos?
R – Minha mãe era quem comandava tudo. O meu pai sempre foi uma pessoa muito pacata, minha mãe era quem tomava todas as decisões. Tanto que meu pai tinha a informação, que atualmente é um polo agrícola muito grande no triângulo de Maranhão, Tocantins e o Piauí, atualmente é um grande centro produtor agrícola, mas meu pai já tinha informação de lá e a vontade dele era ir pra lá, mas minha mãe, pelo fato de ter os irmãos aqui em São Paulo disse: “Não, nós vamos pra São Paulo”. E por isso que nós viemos. Mas quem mandava mesmo em nós, não era só naquela época não, a minha mãe que mandava (risos).
P/1 – E você teve irmãos?
R – Sou gêmeo.
P/1 – Você é gêmeo!?
R – Sou gêmeo. Só que minha irmã morreu com seis anos. Iracema, Marina, Gerci. Tem um outro falecido (fala baixo)... cinco irmãos, com a gêmea seis irmãos e um faleceu precoce, sete irmãos! Um faleceu precocemente e a minha irmã gêmea morreu com seis anos.
P/1 – E ela morreu de quê?
R – Na época a gente não sabia porque não tinha recurso nenhum, se hoje já não tem tanto, imaginou 70 anos atrás? Não sei, não me lembro.
P/1 – E vocês estavam vindo pra São Paulo. Como é que foi a viagem?
R – A viagem é histórica, bastante histórica. Porque na época não existia transporte, não tinha meio de transporte nenhum. Alguns que vieram vinham de jumento até... nós subimos o rio São Francisco, como os meus ancestrais todos subiram o rio São Francisco. Só tinha esse meio de transporte, o rio São Francisco. Na cidade de Remanso você pegava o vapor que saía de Juazeiro, onde o São Francisco desagua e ele subia. Nós pegamos, o nome do vapor acho que era Cotegipe, está exposto até hoje, vinha até Pirapora. Subia o São Francisco, depois você procura lá que você vai ver os nomes das cidades de Remanso até Pirapora, tem Cidade da Barra, Bom Jesus da Lapa. Então eu subi o São Francisco em 1945 e tenho grandes lembranças porque tinha classe de cima e a classe de baixo e a comida era feita na classe de baixo e de vez em quando caía água lá de cima (risos), caía no que você estava fazendo. Mas foi uma viagem, pra gente com dez anos, eu me lembro bem, uma viagem muito interessante.
P/1 – O que o senhor viu que te chamou muito a atenção?
R – A viagem em si, o rio como um todo, você subindo o rio, o pescador. Tudo o que você vê hoje na televisão eu vi ao vivo com dez anos de idade subindo no rio São Francisco. Paramos na cidade de São Jesus da Lapa que até hoje tem uma gruta lá que é visitada por ser, dizem que acontecem milagres lá do Senhor Bom Jesus da Lapa, não sei se você já ouviu falar. Já ouviu falar? Fica na cidade de São Jesus da Lapa, isso já na Bahia. Depois, da cidade de Pirapora, aí pegamos um trem. Nós demoramos praticamente 40 dias pra chegar até o destino. São Raimundo Nonato – Pereira Barreto. De Pirapora nós pegamos um trem até São Paulo, aqui em São Paulo tinha um monitor que nos levou até a estação da Luz. Na estação da Luz nós pegamos um outro tem e fomos até o ramal que tem adiante de Araçatuba, chama-se Lussanvira. E de Lussanvira até Pereira Barreto nós fomos de charrete. Então nós viajamos do município, pra chegar na cidade de Remanso a gente veio a cavalo e jumento. Era uma odisseia pra chegar onde nós chegamos: nós viajamos de jumento e cavalo até o porto da cidade de Remanso, pegamos o vapor em Remanso pra descer em Pirapora, na cidade de Pirapora nós pegamos o trem até aqui a estação do Norte. Da estação do Norte nós fomos subindo aqui a rua Mauá pelo trilho até a estação da Luz. Da estação da Luz nós fomos até, passando por Araçatuba e depois o ramalzinho que tem lá no rio Tietê, chama-se Lussanvira. E depois a cidade é Pereira Barreto, que é perto de Andradina. Isso demorou 40 dias e 40 noites. Então você vê como é comprida.
P/1 – E quem estava? Você, seu pai, sua mãe?
R – Eu, meu pai, minha mãe. Meu pai trouxe mais uns dois ou três primos conosco, que eram sobrinhos do meu pai e da minha mãe. Eu não me lembro, acho que eram dois ou três, dois eu tenho certeza, que eram filhos de irmão da minha mãe. E naquele tempo também não existia mala, você trazia dentro, chama-se matulão, era um saco, você pegava o que tinha, jogava dentro do saco, fechava.
P/1 – O saco era feito de quê?
R – Esse saco comum, desse saco branco. Mas a turma chamava, quando você transformava ele em mala, que não era mala, chamava-se matulão.
P/1 – Vocês carregando tudo pra cima e pra baixo.
R – Carregava aquilo pra cima e pra baixo na cabeça, eu mesmo cheguei a carregar. Minha mãe era quem comandava, minha mãe, meu pai. Ficamos esperando. Ah, e as passagens, o governo dava passe. Quando chegamos em Pirapora o governo dava o passe do trem e nós ficamos uma semana em um albergue que tinha em Pirapora, que hoje não tem mais, esperando liberar o passe pra gente embarcar pra ir pro destino. Nós ficamos acho que uns dez dias por lá, e dormindo no chão.
P/1 – E como é que foi a viagem de trem?
R – A viagem de trem, aquela novidade, normal. Chegava em Bauru, você trocava de trem, ia para uma outra plataforma. Está até hoje lá a plataforma.
P/1 – No mesmo lugar.
R – Mesmo lugar.
P/1 – Mas você já tinha visto um trem na sua vida?
R – Nunca. Não tinha visto nem veículo, só conhecia jumento e cavalo.
P/1 – Você disse que era normal, mas você nunca tinha visto um trem na época.
R – Não, não. Antes de chegar aqui não tinha visto nada. Lá no interior do Piauí só via o sol e a lua. Já imaginou o que era o interior do Piauí há 70 anos? Na época da guerra, inclusive.
P/1 – Era simples?
R – Pra você ter uma ideia a primeira, lá chamava alpercata, não era sapato. A primeira alpergata que meu pai conseguiu comprar foi quando nós viemos pra São Paulo, eu tinha dez anos. Até então se andava descalço, era comum, não tinha, não se preocupava.
P/1 – E foi uma mudança enorme então, você chegou em São Paulo o que o senhor achou da cidade, o senhor se lembra?
R – Você imaginou um cara com dez anos? Era tudo novidade, um negócio fantástico, com dez anos de idade. Nós chegamos aqui no dia 21 de junho de 1945, no dia em que terminou a Grande Guerra. Eu me lembro num filme a minha tia que era casada com meu tio, ela era baiana, mas a alegria dela de nos ver e ela gritava porque a nossa chegada e o término da Segunda Guerra Mundial, 21 de junho de 1945.
P/1 – O pessoal comemorou em São Paulo também o fim da guerra?
R – Lá na cidade?
P/1 – É.
R – Eu acredito que sim porque lá era a maior colônia japonesa do Brasil, acho que 70% de quem vivia lá era japonês. A imigração japonesa foi forte lá pra Pereira Barreto, pra esse ramal de trem da Noroeste do Brasil.
P/1 – Mas em São Paulo, na cidade de São Paulo, vocês chegaram que dia?
R – Na cidade de São Paulo eu vim na frente, em 1950. Aí eu arrumei emprego por aqui, trabalhei por aqui quase um ano, me organizei por aqui, eu tinha um tio aqui que me deu uma mãozinha. Aí eu me organizei. Nessa altura nós estávamos já de 45 a 50, eu já tinha feito o primário.
P/1 – Lá em Pereira Barreto.
R – Lá em Pereira Barreto, quatro anos de primário, quatro anos o primeiro lugar da classe. Os quatro anos. A escola tinha grupo de escoteiro e eu tocava corneta e comandava a turma do escoteiro.
P/1 – Eu estava perguntando de São Paulo porque você disse que antes de ir pra Pereira Barreto você chegou em São Paulo.
R – Eu conheci só chegando...
P/1 – Só passando assim.
R – Só passando aqui embaixo, aqui na estação do Norte. É aqui atrás, você sabe onde é, não sabe?
P/1 – Estação do Norte não.
R – Aqui no Largo da Concórdia.
P/1 – Ah, sei!
R – Ali não tem uma estação?
P/1 – Sim.
R – Só ali e subiu por aqui, pela rua Mauá e fui até a estação da Luz.
P/1 – A pé mesmo.
R – Eu vim conhecer São Paulo cinco anos depois. A pé. Aí eu vim conhecer com 15 anos de idade, em 1950. Mas nessa altura eu já tinha feito o primário lá em Pereira Barreto. Vim pra cá, um tio meu me deu a mão.
P/1 – E nessa andada que você deu aqui, logo que você chegou em São Paulo, na estação do Norte, você lembra como foi? Você ficou chocado ou não, como é que foi isso aí?
R – A gente não tinha muito porque como a gente não vinha sozinho, a gente era migrante, tinha um guia, um monitor. O monitor só pegava as pessoas, que vinha mais gente, só pegava as pessoas e levava. Porque a maioria ia pro interior. No nosso caso mesmo, como a gente ia pro interior, tinha que pegar outro trem, o monitor nos pegou e não deu pra ver nada. E acompanhando a linha do trem subindo a rua Mauá.
P/1 – E você chegou lá em Pereira Barreto, vocês foram morar onde, trabalhar com o quê?
R – Meu pai vendeu tudo o que tinha lá e ele apurou o equivalente, no dinheiro da época, 13 cédulas de...
P/1 – Da nota da época.
R – Como é? Que na época o mil-réis terminou em 49. Era cruzeiro. Ele apurou 13 notas de mil cruzeiros, que eles chamavam de abobrinha. Era amarelinha. E com esse dinheiro o meu pai comprou uma propriedade, era tudo, dava pra comprar muita coisa, e montou um estabelecimento, um comércio, uma espécie de um bar. E eu fui ajudar no bar e entrei na escola. Nós chegamos em junho, mas entramos na escola em 46 – 46, 47, 48 e 49. Em 49 eu me formei no primário.
P/1 – Como era a cidade de Pereira Barreto?
R – Pereira Barreto é uma cidade colônia japonesa, produzia muito amora para fabricar tecido, uma frutinha. E o que mais eles produziam? E comércio. O rio Tietê passa praticamente dentro da cidade de Pereira Barreto, é perto de Andradina e de lá mais pra frente vai pra Três Lagoas. E lá em Pereira Barreto eu trabalhei com meu pai em bar, engraxate, puxei água pra professora em poço, fui coroinha, puxava água do poço pra levar pro padre na igreja (risos). Trabalhei na tosa da amora que precisava, chegava e tinha que cortar, aí era foice, puxei enxada. Trabalhei em outros bares. Trabalhei em um cartório.
P/1 – Em cinco anos isso tudo.
R – Em cinco anos eu fiz tudo isso. Trabalhei no cartório (risos). Fui aprendiz de marceneiro, aprendiz de mecânico, aprendiz de alfaiate. Você sabe qual é o primeiro fundamento para o cara que é aprendiz da alfaiate? Ele tem que aprender a fazer a casa, coser a casa. Isso aqui não é uma casinha? Agora é com máquina, mas antigamente você fazia com agulha, você fazia o terno, né? Não aprendi nada (risos).
P/1 – Era difícil?
R – Não, é porque eu não tinha vocação nenhuma, né? Então eu fui aprendiz de alfaiate, aprendiz de marceneiro, aprendiz de carpinteiro.
P/1 – Por que tanta coisa?
R – Porque você precisava ganhar, ganhar alguma coisa. E tinha vontade de aprender alguma coisa. Mas era menino, um cara com 12 anos, 13 anos. Na época do algodão a gente colhia algodão. Depois quando acabava a colheira você ia carpir pra deixar a terra em ordem pros donos da terra. E não era sempre que tinha esse tipo de serviço. Meu pai fazia empreitada também, depois que ele vendeu o bar. Enfim, contando, tudo eu fiz um pouco, mas nunca me... e estamos chegando então em 1950. Em 1950 eu vim pra São Paulo, fui trabalhar de aprendiz de marceneiro aqui na Indústria de Móveis Valério aqui no Canindé. O mestre de obra, com o tempo eu fiquei conhecendo, depois de muito tempo, era pai do Gilberto di Pierro, ele é da televisão, o Giba, o Giba 1. Isso em 1950. Depois de 1950 eu comecei aqui em São Paulo, mas eu estava sozinho. Saí da indústria de móveis e fui trabalhar de mensageiro da Western, entregando telegrama. Daquele vez foi muito bom porque eu conheci tudo de São Paulo, dos 15 aos 17 anos eu conheci tudo de São Paulo.
P/1 – Você andava tudo.
R – Tudo porque você tinha o bonde. O escritório da Western era na rua XV de Novembro. O cara te dava os telegramas: “Hoje você vai pra Zona Leste”, nem falava Zona Leste: “Você vai pra Penha”. Você saía da Praça Clóvis e ia na Rangel Pestana de bonde. Então você ia pra Belém, voltava, Vila Maria, voltava. E ia até a Penha com os telegramas, entregava o último telegrama que tinha lá no largo da Penha e voltava de bonde para a Praça Clóvis. Se você era escalado pra ir pra Zona Norte você pegava o bonde Voluntários da Pátria e ia até a Olavo Egídio, que o bonde ia até lá, até a Casa Verde. Se você era escalado pra ir pra...
P/1 – Oeste.
R – Pra zona Sul, você pegava o... vamos dizer, pra Pinheiros, por exemplo. O bonde saía sempre da Praça João Mendes. Consolação...
P/1 – Rebouças?
R – Rebouças não, virava na avenida Angélica e descia a rua Cardeal Arco Verde. Largo de Pinheiros. Aí na volta, você voltava pela Pinheiros. O bonde descia a rua Cardeal Arco Verde e subia a Rua Pinheiros. Quando não ia até o Sumaré, que o Sumaré também tinha. Quando você ia pra avenida Santo Amaro descia a avenida Brigadeiro Luís Antônio e ia descendo nos Jardins, por ali. Quando você ia pro Jardim você descia a rua Augusta. E como eu trabalhei quase um ano na Western e eu era muito bem relacionado com os caras que distribuíam, os despachantes que davam o itinerário, eles me davam sempre um monte, eu era muito esperto, muito interessado, por isso que eu conheço São Paulo de norte a sul, do jeito que você imagina. Ah, antes da Western eu tive um emprego na rua Barão de Paranapiacaba, auxiliar de copeiro. Fiquei seis meses. Eu agora não me lembro, mas eu sei que aqui eu fui aprendiz de entregador de tintureiro também, mas por poucos meses também.
P/1 – Tudo isso entre 15 e 17 anos.
R – Onde eu parei na vida foi quando eu vim pra cá. Vamos chegar aqui. Depois de tudo isso aí surgiu no Diário Popular uma oferta, alguém procurando office-boy pra entregar correspondência aqui no meio. E eu vim pro jornal. E eu posso contar a particularidade?
P/1 – Pode.
R – Fui entrevistado. Eram dois sócios, um gostou de mim, o outro também gostou de mim. Mas tinha um sócio que devia ser preconceituoso, ele falou: “Não pega esse cara porque ele é preto” (risos). Você imagina isso? Sacanagem. Bom, mas aí o outro sócio falou: “Não, mas ele tem uma qualidade que nos ajuda muito, ele é mensageiro da Western. E pelo fato dele ser mensageiro da Western conhece tudo quanto é lugar”, naquele tempo não era só aqui na zona cerealista. A partir daí começou a aumentar a zona cerealista. “Vamos pegar”. Isso em setembro de 1952. A partir daí eu comecei, aí começou a zona cerealista. Agora da zona cerealista você pergunta o que você quer saber (risos).
P/1 – Sim. Mas antes de chegar na zona cerealista eu queria que você falasse um pouquinho como era São Paulo na época, quando o senhor chegou e começou a conhecer mais.
R – São Paulo na época devia ter por volta de três milhões de habitantes. Você podia andar qualquer hora em qualquer lugar que não tinha ninguém na rua pra te incomodar, não tinha problema de segurança, não tinha gente que ficava na rua querendo viver de pegar as coisas da rua. Só conhecia um ou dois e um era uma polonesa que era imigrante que catava jornal no centro da cidade, entre a Praça da Sé, rua XV de Novembro, rua Boa Vista, por ali.
P/1 – E onde que tinha coisas pra se divertir, onde o senhor ia?
R – Mas aí já é depois que eu vim pra cá. Até os 17 anos eu só trabalhei. Jogava futebol, que a gente foi morar na Zona Norte, no Tucuruvi, e a gente jogava futebol lá no Tucuruvi, Vila Medeiros, Vila Gustavo. Você conhece a Zona Norte?
P/1 – Não.
R – Até os 17 anos só jogava futebol.
P/1 – Mas nesse tempo da Western.
R – Na época da Western.
P/1 – Você morava lá com quem?
R – Aí meus pais já estavam em São Paulo.
P/1 – E como era essa casa?
R – Casa pequena, dois dormitórios, uma família toda.
P/1 – Seus irmãos todos.
R – Todo mundo. De vez em quando dormia numa esteirinha no chão.
P/1 – E você torcia para algum time na época?
R – Eu passei a torcer pro São Paulo por causa do Leônidas da Silva.
P/1 – Ah, é?
R – É (risos).
P/1 – Como assim?
R – Ele era muito famoso, se falava muito nele e eu tinha curiosidade, tal e me tornei sãopaulino.
P/1 – Você gostava de ver jogo, de ouvir jogo?
R – Ia, mas não tanto. E na época pra você ir no Pacaembu você ia de bonde, pegava o bonde e ia de bonde camarão, descia na Angélica e ia até o Pacaembu. Mas poucas vezes, nunca fui muito de ir, ser fanático por futebol.
P/1 – Entendi. Mas você trabalhava bastante mesmo.
R – Só trabalhei.
P/1 – Mas São Paulo era bonito, você gostava de andar pelo centro, como é que era?
R – Eu vivia no centro porque pelo fato de eu trabalhar na Western, eu trabalhei um ano, chegou o final do ano, num período eles deram o centro, que era o centro velho e o centro novo, então pra ir pro centro novo você atravessava o viaduto do chá, que antigamente era tudo concentrado Praça da Sé, XV de Novembro, rua Direita, Quintino Bocaiúva, Boa Vista, enfim. Depois veio o centro novo, atravessou o viaduto do Chá, mais ou menos na década de 40 pra cá, aí vem. Aí vem 24 de maio, Barão de Itapetininga, Sete de Abril, Conselheiro Crispiniano, Praça da República e vai que vai. Ah, quando ia pra Lapa você subia a São João e o bonde ia até a Lapa. Tudo isso eu fiz (risos). Hoje nem que você queira fazer você
consegue (risos). São Paulo era uma cidade tranquila e chegando gente. Nordestino vinha muito, hoje já nem vem.
P/1 – Você parou de estudar aqui, você foi...
R – Eu tentei alguma vez conseguir fazer aqueles que em um ano você faz quatro? Madureira, Madureza... mas pouca coisa e não consegui, não fiz. Só fiquei no primário mesmo porque eu só estudei até o primário.
P/1 – O seu pai era comerciante?
R – Meu pai foi comerciante lá em Pereira Barreto, mas lá no norte ele era comerciante de coisinha. Lá no Pereira ele tentou mas ficou só uns dois anos e depois foi ser operário.
P/1 – E aqui em São Paulo?
R – Aqui em São Paulo ele era operário, ele fazia entrega de um empório, ele entregava numa charrete em um empório que tinha lá na Vila Mazzei.
P/1 – As coisas eram feitas a cavalo na época.
R – Na época pra região ele fazia num cavalo.
P/1 – Mas tinha carro já em São Paulo.
R – Tinha, mas muito pouco. Lá na região perto de casa se tivesse cinco automóveis era muito. E era gente que fazia... Carro particular você não tinha quase nada nos anos 50. Tinha pro lado de cá, mas pra região onde eu morava, na Vila Gustavo, quase não tinha.
P/1 – E como era esse bairro que você morava na Zona Norte?
R – Estava iniciando. O ônibus saía daqui da Praça dos Correios. Pra Santana já tinha bonde, Santana já tinha um progresso grande. Mas depois você passava Água Fria, Tucuruvi, Vila Mazzei, Vila Gustavo, Vila Galvão, Vila Medeiros. Você não conhece nada da Zona Norte?
P/1 – Só Tucuruvi mesmo.
R – Eu morava adiante de Tucuruvi, mas a minha referência eu pegava ônibus no Tucuruvi ou pegava um trenzinho, que tinha o trem da Cantareira. Na época tinha o trem da Cantareira que vinha até aqui, na rua João Teodoro.
P/1 – Antes da gente entrar na zona cerealista, só uma última pergunta que eu esqueci de fazer. Você falou que os seus ancestrais subiram o rio São Francisco também.
R – Sim, meus ancestrais subiram o São Francisco.
P/1 – Mas como assim, seus avós fizeram esse mesmo caminho?
R – Meu avô com meus tios. Subiram o São Francisco. Em 1930.
P/1 – E foram pra onde?
R – Foram pra Pereira Barreto. Meu pai subiu o rio São Francisco na década de 30.
P/1 – Mas ele voltou depois.
R – Depois ele voltou e casou.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Não, eu não era nascido (risos).
P/1 – Eles nem contaram.
R – É que moravam tudo mais ou menos na mesma região, meu pai morava numa região e minha mãe numa outra. Mas era tudo muito pequeno, eles se conheceram e casaram.
P/1 – Bem, agora vamos entrar na zona cerealista.
R – Na zona cerealista eu entrei nessa história que eu te contei.
P/1 – Em 52.
R – Em 52. Rua Paula Souza, 313.
P/1 – Era a firma.
R – O escritório da empresa era um escritório de representação na rua Paula Souza, 313.
P/1 – E como eram as ruas na zona cerealista nessa época?
R – Hoje é tudo igual. A rua Mendes Caldeira não existia, era um cerradinho de mato que ia até lá em cima na Monsenhor Andrade. Não existia essa rua. Eu me lembro que deve ter uns 40 anos que fizeram essa rua. Essa rua que está lá não era nem Eurípedes Simões de Paula, era rua Américo Brasiliense, que tem lá em Santo Amaro. Então vamos lá. Eurípedes Simões de Paula, Benjamim de Oliveira, rua Álvares de Azevedo, que depois mudaram pra Polignano. Rua Assunção, aí termina a zona cerealista. Rua Santa Rosa subindo até a Monsenhor de Andrade. E tinha a zona cerealista alta, que era na rua Paula Souza, Plínio Ramos e Antônio Paes. Na verdade quem trabalhava com cereais começava na rua Paula Souza, 47, Miguel Carlos tinha cerealista, tinha gente que trabalhava com cereais. Na rua Cantareira tinha gente. Naquela época nem... os grandes se falava Secos e Molhados, tinha grandes empresas na época, era F Monteiro, Dias Martins, J Alves Veríssimo, J Araújo Pinto, Martins Fadiga, Silvestrini, Andrade Rabelo. O sindicato foi fundado em... lá era zona cerealista alta e o baixo, se chama baixo clero, era aqui.
P/1 – Aqui onde?
R – Aqui na zona cerealista, aqui era o baixo clero, que a maioria eram italianos. Aqui não tinha tantos portugueses como lá em cima, aqui era mais os italianos.
P/1 – Quem dominava aqui?
R – O pessoal que veio de Polignano a Mare, que era Irmãos Fucci, Marziona, Labate & Scatigno, aqui na rua Santa Rosa. La Pastina. Aqui tinha um português, Nestor Pereira. Ali era Facciola, José Vanin, Vitor Centrone. Vai longe. Aqui já era um pouco misturado. Era
família Vituzzo, família Favano, os Vecchiatti. O que mais? Os Fucci, Colavitti eram os italianos.
P/1 – Tem vários nomes aí já.
R – Tem. Mercantil Noroara.
P/1 – Não dá pra lembrar de tudo, todo mundo.
R – Não, difícil.
P/1 – Mas eu acho engraçado você falar do baixo clero e do alto. O que diferenciava um do outro, era a quantidade?
R – Não, é porque lá em cima era região dos grandes comerciantes e 100% portugueses.
P/1 – Que eram essas duas que você falou.
R – Rua Paula Souza. Então você pegando a Rua Paula Souza, J M Pereira, Richard Saigh, Júlio Meca, Dias Martins, Veríssimo que era na esquina da rua Mauá com Plínio Ramos. Noroara. Da rua Cantareira também tinha J Araújo Pinto, Daniel Martins, F Monteiro. Tudo grandão. J Pires na Paula Souza. Tudo gente grande.
P/1 – Mas grande quanto?
R – Bom, o F Monteiro já tinha filiais e tinha uma frota, na época, com aproximadamente 250 caminhões. O Dias Martins tinha várias filiais, foram eles que se firmaram lá pro norte do Paraná, foram Dias Martins, J Alves Veríssimo e o Dias Pastorinho. Gentil Moreira. Não tem muito mais do que esses, não.
P/1 – Está ótimo, ótimo. E os outros que eram os italianos do baixo, eles vendiam a mesma coisa que eles?
R – É que na época quase 100% de tudo o que se consumia no Brasil saía daqui da zona cerealista e lá de cima. Aqui se carregava pra todo Norte e Nordeste, descarregava tudo pro Rio de Janeiro, principalmente pra área de grãos, feijão ia tudo daqui. E até hoje vai quase tudo, já não é tanto porque agora veio o Mato Grosso. E o Paraná feijão. Mas arroz, por exemplo, vinham tudo do sul, tudo aqui pra São Paulo e de São Paulo a gente distribuía. Cebola e batata saía tudo daqui. TUDO. Aqui na esquina da Professor Eurípedes Simões de Paula os carros encostavam na redondeza e aqui a gente distribuía. Tinha compradores. Eu mesmo, eu comprava, aí eu já intermediava negócio pras Casas da Banha do Rio de Janeiro e pra mais umas três ou quatro empresas do Rio. Às vezes negociava 30, 40 carros de cebola e batata pra mandar pro Rio.
P/1 – Então o baixo e o alto vendiam basicamente a mesma coisa só que o alto vendia mais.
R – Só que o mix do alto era muito maior. Era o famoso Secos e Molhados, trabalha com cebola, batata, alho, arame farpado, condimentos, comida pra pássaro. Enfim.
P/1 – Era um pouco mais diversificado do que o pessoal do baixo, é isso?
R – Os daqui praticamente só trabalhavam com arroz, feijão, condimentos e comida pra passarinho. É, condimentos, condimentos.
P/1 – Temperos, né?
R – Temperos. E alho, cebola e batata eram na zona cerealista mas eram especializados, como até hoje. Hoje quem trabalha com alho só trabalha com alho. Quem trabalha com cebola e batata só trabalha com cebola e batata. Não mudou nada, continua a mesma coisa. Agora vamos voltar na Paula Souza, 313, como é que eu cheguei onde cheguei. Eu comecei trabalhar na rua Paula Souza, 313, entregando, lá tem documento inclusive. Na época a Bolsa de Cereais de São Paulo tinha um poder, era a segunda maior bolsa do mundo. E se reunia durante a semana, vinha comerciantes de todo Brasil. Nós tínhamos dias de ter na Bolsa aproximadamente 350, 400 comerciantes do Brasil. Então tinha que se frequentar a Bolsa de Cereais e o escritório que eu fui trabalhar era um escritório de representação que trabalhava com cereais, com grãos. E o forte dele, o básico básico era arroz. E o que eu fazia? De manhã eu ia buscar a correspondência nos Correios, trazia pro escritório. Durante o dia, eu ia na Bolsa todo dia para encontrar com fregueses da empresa. Porque tinha uma confirmação para entregar, tinha um documento, tinha sempre alguma coisa pra entregar para um ou outro freguês na Bolsa de Cereais. E durante o dia vinha entregar correspondência aqui na zona cerealista, no armazém tal, no armazém tal, começava lá em cima. Irmão Curi, Marziona, Irmãos Brasiliano, La Pastina, Carrieri e vai até rua Santa Rosa. Depois se tinha na Assunção você ia. Enfim, rodava tudo. Claro que você não ia em todas, não tinha correspondência pra todas, mas tinha sempre, tinha aqui, tinha lá em cima. Todo dia eu tinha que vir aqui pra entregar documento. Tinha documento pra entregar em Pinheiros porque tinha um núcleo em Pinheiros, então de vez em quando tinha que ir em Pinheiros, lá no Della Manna pra entregar
uma correspondência. Della Manna e a Casa Centenária. Tinha na Penha, lá em cima depois da Penha, como chama aquela lá? Depois do Largo da Penha tem uma avenida que vai até São Miguel Paulista quase, ia entregar correspondência. Onde mais que tinha? Santo Amaro tinha correspondência, eu tinha que entregar também. Por isso é que o Western foi o que me ajudou. Aonde mais tinha? Santana não tinha comerciante. E os de fora a gente entregava na Bolsa, então eu passei a frequentar a Bolsa esses anos todos. Aí eu passei a me interessar muito, sem que ninguém soubesse, sobre vendas. Eu via os vendedores, todos eles já tinham um padrão de vida melhor do que o meu e tal, e eu fui, fui, fui, estou falando de 52. Eu fiquei 52, 53, até 1954 fazendo esse tipo de serviço, mas aí eu já aprendi também a trabalhar no escritório. Na época não existia, pra mandar um telegrama você tinha que mandar pelos Correios ou pela Western. E mandava por telefone, você era correntista da Western, que ia mais rápido. E eu aprendi a mandar os telegramas por telefone, soletrava, mandava os telegramas. Além de fazer o serviço externo eu fazia uma parte do serviço interno, batia correspondência, ajudava, datilografia aprendi, tal. E assim eu fiquei, e não trabalhei só em uma empresa, depois passei a trabalhar em outra e sempre me apresentando, conversando, conhecendo tudo quanto é tipo de gente. Eu só não era vendedor, mas nessa altura eu já estou, vai correndo, vai correndo. E sempre pensando: “Um dia eu vou sair pra ser vendedor”. E um dia, está aqui o cara que eu te mostrei. Pega aquela foto do Marchetti. Não está aí a foto Marchetti? Você já ouviu falar no Antonio Marchetti.
P/1 – Sim.
R – Está aqui. O seu Antonio Marchetti me chamava carinhosamente de Negro. Eu respeito, tenho uma dívida de gratidão muito grande com ele. Um dia ele chegou pra mim e falou: “Porra, Negro, por que você não vai ser vendedor?”. Eu falei: “Seu Antonio, eu tenho vontade” “Então vamos fazer o seguinte”. Ele era estabelecido aqui na rua Eurípedes Simões de Paula, trabalhava com arroz. Ele falou: “Eu te ajudo, pode ir que eu te garanto”. E eu sentia que já tinha alguém que estava de olho em mim, então, um senhor japonês, senhor Milton Ohara. Porque eu dava a entender a ele que eu era vendedor, eu fazia o dublê de entregar e tal e ele mais ou menos já achava que eu era vendedor. E um dia ele me convidou pra ser, eu falei: “Eu aceito”. Isso em junho de 1957. A partir daí eu comecei a ser vendedor. Basicamente você trabalhava com arroz, com grãos. Trabalhei algum tempo com ele, trabalhei depois com eles, depois trabalhei com o maior, ser representante, comecei a adquirir uma certa notoriedade como vendedor, nessa altura nós já estamos em 1900 e... 57, 58, 59. Nós já estamos em 1960. E o maior escritório de representação me convidou para ir trabalhar com ele, Irmãos Carvalho. Aí fui trabalhar com os Irmãos Carvalho e trabalhei até final dos anos 60.
P/1 – Quando você começou a trabalhar como vendedor, tal, me fala dessa época. Qual era o trabalho de um vendedor, o que o vendedor fazia, como é que era o seu cotidiano?
R – O meu cotidiano era todo dia pegar uma pasta pesando mais ou menos 15, 20 quilos com amostras dentro e visitar a freguesia que era aqui na zona cerealista. Então aqui era um cerealista, ali era outro cerealista. Como as amostras vinham do Rio Grande do Sul você apresentava as amostras pros fregueses:
“Esse aqui é o lote tal, tem tantos sacas”, tinha que saber manipular em fazer as amostras. Os caras olhavam. Não era todo freguês que fazia uma proposta, mas normalmente um ou duas vezes você recebia uma proposta, mandava uma proposta e vinha a resposta. E tinha Irmãos Curi, Facciola. Eram os cerealistas. E a gente encontrava com todo mundo na Bolsa, todo dia. Tinha os corretores da Bolsa e tinha os vendedores de firma. A partir do início de 60, porque eu também não fiquei muito tempo, fiquei uns dois ou três anos só trabalhando pros outros. Quando chegou no final de 59 pa 60 eu passei... existiam os corretores da Bolsa, mas como eu não era corretor oficial eu passei a trabalhar como autônomo. Eu fui o primeiro a me lançar sozinho.
P/1 – Corretor.
R – Naquela época nem chamava corretor, chamava de zangão. Era zangão, era biqueiro, fazia bico. E uns um pouco mais preconceituosos chamavam de picareta. Então eu fui um dos primeiros, porque o resto era um quadro. Depois eu te mostro, está na minha gaveta, era um quadro de 60 corretores oficiais que tinham credenciais. Eu não, eu estava até na ilegalidade, eu não podia trabalhar porque se os caras da Bolsa me pegassem...
P/1 – Mas por que você não entrou com a Bolsa?
R – Porque na época era muito difícil você entrar. Num concurso de uma vaga tinha 30, 40 pretendentes. Até então eu não quis. Anos depois insistiram pra me dar aí eu não quis mais. Durante o ano de 60, eu trabalhando como autônomo, aí eu pegava amostra em tudo quanto era escritório, até do escritório onde eu trabalhava eles me davam amostra para eu vender. E a freguesia era a mesma: “Esse aqui de quem é?” “Do escritório tal”. E muito bem. Mas isso eu fiz um ano só, fiz um ano inteiro. Meu pai morreu no dia 21 de agosto de 1960. Quando chegou em agosto de 1960 meu pai morreu e tinha uns importadores que tinham importado um lote muito grande de cebola. E eu já manjava de cebola também porque eu vendia uma cebola que vinha do Sul pra Barra Funda, vinha de trem, eu já vendia essa cebola também. E encalhou cebola no mercado aqui em São Paulo. Aí uns três ou quatro importadores falaram: “Vamos escolher uns caras pra mandar uns caminhões pra fora”. E eu fui o número um a ser escolhido, fui eu e acho que uns outros dois que foram escolhidos. Ele falou: “Silva, nós vamos te dar então esse itinerário. Você vai sair daqui, Uberaba, Uberlândia, Anápolis, Goiânia e Brasília”, uns oito caminhões. “Até lá se você vender algum caminhão” e eu vendi alguma coisa em Ribeirão Preto, mas fui na boleia de um dos caminhões. E tocamos. Chegou em Anápolis um dos importadores já tinha conhecimento e tinha uma estrutura para descarregar a cebola. “Descarrega lá e vende na região, você vai vender pra Anápolis, Goiânia e Brasília”. Basicamente Brasília, que Brasília tinha sido inaugurada naquele ano, Brasília inaugurou no dia 21 de abril de 60, lembra?
P/1 – Lembrar ou não lembro, mas...
R – Você vê que eu estou dando todos os números aqui.
P/1 – Sim.
R – 21 de abril de 60, Brasília inaugurou. Eu fui, ficava entre Brasília e Anápolis. Em Brasília eu fui lá pra onde os caras fundaram, como é aquele lugar que os operários ficavam? Cidade livre?
P/1 – Em Brasília?
R – Antes, os caras que construíram Brasília, eles tinham um bairro lá. Como é que chamava?
P/1 – Um bairro periférico.
R – Era onde os caras ficavam. Meu Deus do céu, tenho fotografia.
P/1 – Não tem problema.
R – Depois da missa de sétimo dia eu embarquei nesssa aventura e fui embora pra Brasília. Nisso agosto, setembro, parte de outubro. No final de outubro a gente liquidou o assunto, eu vim pra São Paulo. Quando eu cheguei em São Paulo tinha uma firma que tinha escritórios aqui e eles queriam abrir no Rio de Janeiro. Chegaram pra mim e disseram: “Você não quer ir pro Rio de Janeiro tomar conta de uma filial que nós queremos abrir no Rio de Janeiro?”, eu falei: “É comigo”. Novembro de 1960, foi a primeira vez que eu andei de avião. Não, não foi a primeira vez, foi a primeira ponte aérea que eu fiz. A primeira vez de avião foi quando eu fui pro Paraná. A primeira ponte aérea que eu fiz, aí fui eu lá pro Rio de Janeiro com o dono da empresa para abrir um escritório no Rio de Janeiro. Nos hospedamos no Hotel São Francisco, que está lá até hoje. E assim foi feito. Eu fui pro Rio de Janeiro em novembro de 1960. Montei o escritório, comecei a trabalhar no Rio de Janeiro. Conheci a rua do Acre, comecei a frequentar a Bolsa e em menos de seis meses eu já conhecia tudo no Rio de Janeiro. Era mais fácil, eles se concentravam na rua do Acre. Então esses caras que vocês estão vendo aqui, aqui tem cara que é daquela época. Olha aí. Esse aqui eu conheci na rua do Acre, esse foi um dos maiores comerciantes do Brasil. Casas da Banha, foi presidente da Bolsa, presidente da ABA, fundador da Bolsa, seu Climério Pereira Veloso. E ele se engraçou comigo, também eu dei muitos favores pra ele. E assim foi. Então 60. E eu estou tocando. Nessa época estou me preparando para o casamento e em 61 eu me casei, fui morar no Rio de Janeiro. Mas fiquei pouco tempo. No Rio de Janeiro eu conheci, eu nem trabalhava com esse produto, mas eu conheci um português, esse não está nem na fotografia, que trabalhava com bacalhau. E eu não sei por que circunstância eu consegui vender um lote de bacalhau aqui pra São Paulo. E o português foi com a minha cara. Ele falou: “Por que tu não voltas pra São Paulo e eu te dou cobertura?”. Esse português, você é novo, você não se lembra dele, mas ele foi presidente do Vasco da Gama em 1964, Manuel Joaquim Lopes, se você procurar você vai ver que o presidente do Vasco na época se chamava Manuel Joaquim Lopes. E eu estava casado, que eu casei em abril. Que dia é hoje?
P/1 – Seis de abril.
R – Daqui nove dias faz 55 anos que essa história passou. Caraca! Bom, aí vim pra São Paulo. Cheguei em São Paulo e ainda fiz esse negócio junto com os caras que eram meus patrões até novembro. Quando chegou em novembro, eu fiquei fazendo a ponte, quem fazia a ponte com o português era eu. Eu fui em novembro, fui lá no português e falou: “Olha, eu vou te dar mais um... vem cá, você não vai trabalhar mais pra ninguém, você vai trabalhar”, ele era o maior importador de bacalhau do Brasil. Ele importava bacalhau de navio. “Você vai trabalhar pra mim lá em São Paulo” “Sim senhor”. E assim foi feito. Eu fui trabalhar pro português. E no ano seguinte, em 62, a partir daí eu passei a trabalhar só com produtos estrangeiros, aí começou a minha carreira de sucesso.
P/1 – Antes de você passar pra falar isso eu vou perguntar umas coisas. Primeiro, o corretor da Bolsa de Cereais, o que ele faz? Qual é a função dele?
R – Na verdade ele não era, tanto que teve poucos corretores brilhantes porque o cara pra frequentar a Bolsa, o comprador e o vendedor tinham que pagar um certo pedágio pro corretor. Abre essa gaveta aí.
P/1 – Você quer mostrar pra gente alguma coisa?
R – Eu quero mostrar como era o...
P/1 – Esse aqui?
R – Esse aqui. Então, Bolsa de Cereais de São Paulo. Associação da Bolsa de Cereais de São Paulo (procurando documento). Aqui era um corpo de pessoas que eram corretores da Bolsa.
P/1 – Entendi.
R – Esse corpo de corretores era composto por 60 elementos, mas por exemplo, você era comerciante de fora e ia lá comprava um lote, ou comerciante daqui mesmo, da zona cerealista. Tudo o que você comprava na Bolsa tinha que haver, estava lá a ficha de corretor. E o corretor cobrava uma comissão de quem comprava. Eu não podia cobrar porque eu não era corretor oficial, então na época eu ia na Bolsa, mas eu não podia vender nada na Bolsa, eu só ia porque eu era associado. Eu era fiscalizado, durante muito tempo. E foi por isso que eu não quis ser corretor da Bolsa. Mas depois como eu já era um dos bons vendedores de tudo, aí os caras vieram pra cima e a Bolsa começou, diminuiu o fluxo de cereais, aumentou muito os importados, nessa altura estamos no final dos anos 60, 66, 67, 68. E foi diminuindo. E eu fiquei fazendo São Paulo e Rio só com produtos importados.
P/1 – Mas o corretor não vende nada, ele só...
R – Ele vendia também, mas não era grande vendedor porque já vinha meio mastigado pra eles. O cara ia lá, a Bolsa tinha umas mesas e o cara que era dono do produto levava o produto e botava naquele corretor. Eram 60, eram 60 mesas. Ele botava, o freguês passava por lá, olhava a amostra do arroz, do feijão, escolhia e acertava o preço com ele e comprava ali na hora.
P/1 – A Bolsa era mais um centro de comércio.
R – Era basicamente um centro de comércio.
P/1 – As pessoas faziam os negócios dela...
R – Lá dentro. Se fazia lá dentro os negócios. E às vezes se concluia de tarde, um ou outro vinha aqui de tarde. Era exatamente um centro de comércio.
P/1 – E o Sagasp já existia nessa época?
R – Corretor não era assalariado, ele até tinha que pagar uma mensalidade pra Bolsa, o salário quem fazia era ele.
P/1 – Estou falando o Sagasp. Não existia?
R – O Sagasp já existia, o Sagasp é de 1935. E era no prédio da Bolsa porque os mesmos caras que frequentavam a Bolsa tinham ligação com o Sagasp. Se você voltar, se eu não me engano o primeiro presidente da Bolsa foi um cara que foi presidente do São Paulo. Você não tem a relação dos presidentes do Sagasp não, né?
P/1 – Aqui não.
R – Você quer que eu te mando, não precisa?
P/1 – Agora não.
R – Porque eu passei a ter um relacionamento bastante forte com o pessoal do Sagasp quando o Marchetti se tornou presidente. Porque o Marchetti era da Bolsa, esse meu padrinho, aí ele tornou-se presidente do sindicato. Se eu não me engano foi nos anos 70. Eu acho que foi nos anos 70 sim. Não, um pouco antes, que a minha mulher entrou lá em 59, deve ter sido 57 ou 58.
P/1 – E era muito ativo o Sagasp?
R – Sempre foi, sempre foi muito ativo. E o Marchetti foi presidente lá alguns anos.
P/1 – Qual é a importância da Sagasp pros comerciantes? Como é?
R – Ela dá uma orientação de algumas coisas que a classe precisa, orienta. Tem advogados, que se precisar ela tem. Na época também tinha. E não está aqui todo dia. Mas tem uma importância bem regimentada dentro do comércio, é bastante respeitada dentro do comércio.
P/1 – E como você via que estavam os negócios de cereais, de atacado e de importado na época? Como é que era essa relação? Você falou que os importados depois subiram um período.
R – Até 1966 quem mandava no mercado de importados era o Rio de Janeiro. A maioria dos importados vinha do Rio de Janeiro. E tinha três ou quatro corretores que comandavam e eu era o número um, trazia do Rio. Tinha grandes firmas de importação no Rio de Janeiro. Aqui já tinha mas não eram
tão grandes quanto o Rio de Janeiro. A partir de 66 São Paulo começou a crescer muito nesta área, grandes importadores aqui em São Paulo. Inclusive o Marchetti tornou-se importador.
P/1 – E você que representava essas pessoas.
R – Eu tinha relacionamento com todos e eu não tinha exclusividade com ninguém. Eu tinha preferência com os grandes compradores e com os grandes vendedores. Do Rio de Janeiro então eu tinha preferência total. Aqui em São Paulo eu tinha preferência com muita gente grande, firmas grandes. Pão de Açúcar. Pão de Açúcar tinha grande preferência. E o ramo de supermercado não era tão grande ainda como é hoje.
P/1 – Ah, é?
R – O ramo daqui de São Paulo tinha o Barateiro com rede grande de lojas, tinha mais pequenos e médios varejistas. Já tinha saído uma parte grande da rua Santa Rosa, do abastecimento. O Rio de Janeiro tinha crescido muito. Mas nessa altura eu estava envolvido com o Brasil todo na área de supermercado. Aí eu já vendia pra tudo quanto é parte, já vendia pra Salvador, viajava pra caramba, ia viajar pra Pernambuco. Pernambuco, lá em Recife, Bom Preço. E na Bahia o Paes Mendonça. No Ceará, o Mercantil São José. No Rio de Janeiro Casas Sendas, Casas da Banha, todos no Rio de Janeiro porque eu ia ao Rio de Janeiro, eu vivia tanto no Rio de Janeiro como aqui. Eu passava tanto tempo como aqui. Às vezes eu fazia ponte aérea duas vezes por dia, aí ficou um negócio de louco, mas foi durante muitos anos. E sempre representando a Bolsa daqui e a Bolsa de lá, através da diretoria. Aí eu passei a ser diretor na Bolsa de Cereais e tal. Mas houve umas mudanças muito grandes. O atacado daqui da Santa Rosa começou a diminuir e deixou de ter grande relevância. As mudanças começaram a acontecer.
P/1 – Por causa do supermercado?
R – Por causa do supermercado. Supermercado mandou tudo.
P/1 – Por quê?
R – Porque em vez de comprar do cara da rua Santa Rosa eles começaram a comprar direto.
P/1 – Do produtor.
R – Do produtor. Então aí surgiu grandes empacotadores, que não tinha, de grandes marcas de arroz, grandes marcas de feijão. E esses se abasteciam, não precisavam nem mais da Bolsa pra se abastecerem porque eles abasteciam direto na origem. Feijão, arroz. Aí a Bolsa começou a perder a sua relevância, praquilo que ela servia, pra reunião daquele monte de gente pra comprador e vendedor, lá também estava cheio de vendedor do Brasil todo. Aí começou a perder a relevância.
P/1 – Isso mais ou menos em que data, em que época?
R – A partir dos anos 60, meados dos anos 60, de 65 pra frente.
P/1 – E os supermercados ligavam o produtor ao consumidor final, é isso?
R – Não, eles se ligavam à região produtora que tinha sempre um grande comerciante. Por exemplo, lá tinha um grande arrozeiro, um grande feijãozeiro, um, dois ou três. Eles começaram a se ligar nesse povo. Não eles, esse povo começou a procurar os supermercados. E aí não precisava. E em todas as partes, então o cara não precisava vir na Bolsa de São Paulo pra poder comprar. E eu saí na frente porque eu ia nos caras, eu ia na Bahia, eu viajava o Brasil todo. Eu te falei, no Rio de Janeiro eu ia mas os fornecedores me procuravam. Aí é um negócio muito difícil porque é muito complexo, né? E eu era um dos únicos que tinha. Eu tinha colegas, mas o tamanho do meu volume não tinha igual.
P/1 – Você atendia todo mundo, né?
R – E eu tinha um conceito de que era o homem dos grandes negócios. Então quando o cara falava: “Eu quero comprar 50 mil sacos de feijão”, procurava Silva. “Quero comprar não sei quantos mil sacos de arroz”, procurava o Silva, ele sabia. Cem mil caixas de alho. Aí eu tinha relacionamento no Brasil todo. Em Minas Gerais quem era o grande comerciante? Era o Salomão Teixeira, que importava tantas mil toneladas de alho, um milhão de caixas de alho, não sei quantas mil caixas de bacalhau. Eu não era sozinho, mas era um dos líderes. Depois começou a aparecer gente também pra competir, você nunca está sozinho, mas eu tinha uma liderança muito grande. Todo mundo confiava, não tinha essa loucura de hoje que precisa, tudo muita burocracia. O Atacadão nem existia, o Atacadão vem de 40 anos pra cá. Nós estamos falando de um tempo que como vendedor são 54 anos, é bastante.
P/1 – E o que faz um vendedor ser bem sucedido, na sua opinião? Sei que é muita coisa, é difícil explicar, mas...
R – É difícil pra explicar.
P/1 – Mas o que você pensa assim, que explica o seu sucesso.
R – Primeiro ele tem que gostar muito do que faz. Gostar, gostar e gostar daquilo que ele faz. Ter um respeito muito grande pelos outros e pelos caras que são teus compradores. E ter competência, ter conhecimento do que ele está fazendo, coisa que na minha época não era todo mundo que sabia o tanto, o conhecimento que eu tinha em todas as áreas. Se você falar pra mim: “Pô, mas o que é o ramo”, porque era ramo de secos e molhados. Eu costumo dizer que eu conheço no ramo de A a Z, agulha pra coser e zíper pra braguilha. Se você falar de arroz, feijão, arame farpado, grão de bico, ervilha, bebidas em geral, tudo quanto é coisa de bebida, conserva, condimentos, bacalhau, azeites, tudo o que você falar eu conheço e já vendi. TU-DO. Então as grandes marcas. Bom, que são muitos anos, então tive vários convites pra ir pra fora, viajei parte grande do mundo. Fui um dos homens de confiança da Cica, de ir pro exterior pra inspecionar e intermediar produtos pra Cica como ameixa, ervilha. Eu já cheguei a ir pra Argentina pra intermediar negócio de pêssego in natura pra trazer aqui pro Brasil pra Cica processar e vender aqui.
P/1 – O que é Cica?
R – O pêssego.
P/1 – A Cica é uma agência?
R – Hoje não existe mais. Você não lembra das conservas da Cica?
P/1 – Não, esse eu não me lembro.
R – Conservas Cica. Era a marca número 1, depois foi vendida, mas era a número 1. Eles eram do Unibanco, da família Bonfliglioli. Eu cheguei a ir mais de uma vez pros Estados Unidos pra ver mercadoria pra eles no porto dos Estados Unidos. Carregar três, quatro mil toneladas de ervilha pra eles nos Estados Unidos. Aqui pra América do Sul eu viajava à miúdo pra ver alho, ver ervilha e azeitona.
P/1 – Tudo importação.
R – Tudo importação. Para a Europa, durante muitos anos na época de carregar as castanhas eu ia pra Portugal e ficava de 30 a 40 dias esperando carregar as castanhas lá na cidade do Porto porque lá carregava do Porto e carregava da Espanha, que é a divisa, Porto
e Vigo. Ia pra Itália pra carregar nozes de Sorrento, que é produzida um pouquinho mais pra frente de lá da região aqui dos bareis, aqui.
P/1 – Polignano.
R – Polignano. É adiante de Nápolis, é na região de Nápolis que é produzido. Pra Espanha fui n vezes pra carregar, não me lembro quantas vezes, pra carregar alho. Eu já cheguei a fazer não sei quantos mil quilômetros na Espanha. Eu fui convidado na época que se inaugurou a maior fábrica de azeite da época, que era do azeite Carbonel na cidade de Córdoba, eu como vendedor. Sempre freelancer, eu nunca tive exclusividade. Mas os grandes negócios passavam na minha mão. E eu fui o único vendedor que fui convidado dos espanhóis. Nossa, é comprida, é comprida.
P/1 – Queria te perguntar dessas viagens, a gente chega lá também. Agora toda hora você pesquisava sobre os produtos, tentava conhecer, era sempre assim? Ah, provava um azeite, um vinho.
R – Você conhece a palavra intuição?
P/1 – Sei.
R – Intuição. Eu sempre fui muito curioso e intuitivo e nunca fui de ler quase nada. Intuição, você acredita? Agora, por exemplo, eu estou numa área, o que eu estou mais dedicado é uma área de um negócio que aconteceu de dez anos pra cá que é um feijão que o Brasil passou a produzir na região do Mato Grosso. A primeira exportação quem fez fui eu; hoje ele cresceu muito, tem grandes grupos e tal, tanto que vai ter um congresso agora no norte, no Nortão. É o segundo, terceiro, eles insistiram então eu vou. Mas dá vontade de perguntar: “Eu vou pra ouvir o quê? O que vocês vão me ensinar?”, tudo por intuição e algum conhecimento, quando eu vi a primeira amostra desse feijão eu disse: “Olha, isso aqui é um feijão que, pelo que eu conheço lá de trás é um feijão que é um projeto”. Porque eu sou técnico em grãos, você está vendo o diploma lá, né? Pelo que eu conheço isso aqui, esse tipo de feijão vai funcionar, eu tenho interesse. No mesmo dia isso, agora em maio vai fazer 11 anos que saiu a primeira safra e saiu muito pouquinho. Eu falei: “Me dá essa amostra que eu já vou fazer uma pesquisa”. Eu sempre fui muito disposto, aí peguei um avião e fui a Belém, de Belém fui pra Teresina, não, fui ao Piauí, fui a Fortaleza e vim embora. Hoje o Brasil deve estar exportando aproximadamente, sei lá, uns 3 milhões de sacas desse feijão no mínimo. Eu exportei as primeiras sacas de feijão em 2006. Aí você me pergunta: “Como é que o senhor?”, além da intuição o dia a dia e o conhecimento. Mas eu acho que é intuição porque esse livro aqui tem toda a história da Bolsa de Cereais (folhea livro). Aqui, ó. Eu devo estar aqui, deixa eu ver. Acho que está. Aqui já morreram. (folhea livro). Não, não estou, estou no outro. Mas aqui está toda a história dos... ah, estão todos os caras aqui da época. Não precisa nem fotografar não. Aqui, por exemplo. Essa aqui é interessante, para a zona cerealista, ó o prédio da Bolsa de Cereais antes de estar onde está. Por isso que é interessante, né?
Aqui nasceu tudo. Olha aqui, ó. Isso aqui sou eu.
P/1 – Quer mostrar?
R – Ah, põe lá. Na época, hein? (risos). Aqui (folhea livro). Agora aqui é que vem os grandes. Hoje nada disso existe mais. Aí esses passaram a fornecer aos grandes supermercados. Arroz Vitória, Arroz Meninão, a Eurico Conservas. Não precisa nem... arroz do Rio Grande do Sul. Soja, arroz. Mas se eu for olhar aqui 80% já morreu (risos), aí fica ruim pra mim. Aqui era, aí. E todo mundo tinha uma certa dependência com a Bolsa. Aqui, essa era a Cica. Azeitonas. Depois eles puseram bacalhau por causa da minha influência. Ó lá. Tudo. Sete escritórios no Brasil e lá fora, eles tinham lá fora também. Fui na Argentina.
P/1 – Você está até hoje fazendo esse mesmo trabalho.
R – Não, tudo isso acabou. Mudou tudo.
P/1 – Mas você também se reinventou.
R – Eu me reinventei. Hoje eu vendo comida pra pássaros, rações pra pássaros. Grãos, basicamente feijão e temperos.
P/1 – Pra outras empresas.
R – Pra outras empresas e importo por minha conta. Hoje eu tenho, a Agro Silva é minha. A Agro Silva importa. Eu estou aqui e estou em Pernambuco, em Caruaru.
P/1 – Caruaru?
R – Caruaru. Meu filho mora em Caruaru. Olha aqui, Bolsa de Cereais de São Paulo.
P/1 – Eu queria te perguntar, você mostrou muitas fotos pra gente com um amigo seu que é o Wilson Simonal, né? Queria perguntar como você conheceu ele?
R – Como eu conheci o Simonal? Meu Deus, como é que chamava a menina? Eu conheci ele através de uma cantora que era crooner de uma banda no Rio de Janeiro, eu já não me lembro mais o nome dela. Eu conheci ele nos anos 70 através de uma amiga cantora, crooner, me apresentou ele numa casa de show que tinha no Rio de Janeiro, chamava-se Bierklause, que tem até hoje. Naquela noite eu conheci ele e o Russo Alves. Isso foi no início dos anos 70. Nós começamos a nos encontrar, travamos uma amizade e eu já tinha conhecimento com o Jair Rodrigues, daqui de São Paulo, e fui crescendo, crescendo. Aí nós nos tornamos grandes amigos. Até a morte dele, que foi tudo muito triste, os problemas que ele teve foram muito tristes, muita coisa passou pelas minhas mãos porque eu consegui grandes advogados pra ele. Porque eu também tinha conhecimento com o Ulysses Guimarães, com o dono da FMU, o professor Edvaldo Alves da Silva e ele nos ajudou muito, eu digo ele porque eu abracei o Simonal, eu tinha tanto carinho com ele que nós lutamos muito pra que a coisa não ficasse tão pior como quando estava. Esse aqui que era uma das maiores contas da Globo, nós chegamos a jantar mais de uma vez com o Boni, pro Boni também dar uma mãozinha pra gente. Esse aqui é o dono da Casas da Banha.
P/1 – Mas o que aconteceu com a carreira dele, qual que foi?
R – A história dele é comprida. Uma derrocada a partir de 1974. Tem até filme dele, você não assistiu o filme dele? Que ele foi tachado de dedo duro pela esquerda de toda classe artística brasileira, que ele era ligado aos militares. É uma história muito comprida que não dá pra contar. Procura se informar porque tem até filme dele. Tem filme...
P/1 – Não, mas é que como você conviveu com ele seria mais interessante ver a sua perspectiva.
R – Eu convivi todos esses lances. Ele era deslumbrado, muito deslumbrado, e não tinha grandes maldades. E caiu nessa tal sem saber que ia acontecer o que aconteceu. Porque ele tinha alguns momentos que só quem convivia com ele sabia. Muito judiado, muito recalcado pela origem. Ele vem de uma origem, todo mundo sabe da origem que ele veio. E como ele tinha em mim muita confiança, nossa... e eu fiz muita coisa em benefício dele. Infelizmente terminou não aguentando, morreu numa situação muito ruim. Faz parte da vida.
P/1 – Você era próximo dos filhos dele, da família?
R – Os filhos dele. Rafael, né? Passou recentemente a vida dele agora. A primeira coisa que me ligaram e eu fui com a família toda lá. Cheguei lá: “Ô tio!”. Simoninha me liga e me chama de tio Silva. Todos eles me chamam de tio. Simoninha, o Max. O Max praticamente nasceu no meu colo. A Patrícia. Todos eles me chamam de tio.
P/1 – No que vocês se davam tão bem, qual era a razão?
R – Porque surgiu uma amizade muito forte. A gente passou a se encontrar. Um pouco por causa das noites no Rio de Janeiro, eu frequentei muito o Beco das Garrafas. Mas veja bem, nós estamos contando uma história minha, eu sou de outra geração. Eu era amigo do Agostinho dos Santos, a gente saía, uma época que ele morou no Rio eu cheguei a ficar na casa dele lá na Barata Ribeiro. À noite você saía do Beco das Garrafas junto com o Sérgio Mendes e com outros mais e ia pra Fiorentina. Simonal, Miudinho. E eu convivia no meio desse povo. Lúcio Alves (risos). Aqui tem um cara que tem uma fotografia, que foi um dos maiores compositores do Brasil, ainda ontem ele me ligou. Ele está com 88 anos. Ele é cearense. Ele está aqui, ó. Vocês são de outra geração e não conhecem. Esse cara foi um dos maiores compositores do Brasil: Ivaldo Gouveia e Jair Amorim. Simonal você mostrou alguma coisa?
P/1 – Vamos mostrar essa daqui?
R – Olha que fotografia bonita dele, ó. Essa daqui está mais bonita, não está?
P/1 – Você está no meio, né?
R – Não, é porque está bem essa foto, não está?
P/1 – Está ótimo. Você andava muito nesse meio musical da época, você gostava muito de dançar?
R – Eu era muito boêmio, conhecia muito, conhecia tudo.
P/1 – Em São Paulo também.
R – Mas em São Paulo o relacionamento era menos. Mas eu frequentei casas aqui, que eram casas... Maravilhoso, Taxi Dance na Avenida Ipiranga, isso nos anos 60, né? Tem muito chão.
P/1 – Antes de voltar pra gente falar um pouquinho dos negócios que a gente está acabando o tempo.
R – Ó, aqui estou recebendo o Prêmio Ponto de Encontro da Abras. É o maior prêmio que se dá a um vendedor no Brasil. Esse aqui ninguém tira.
P/1 – Isso a gente vai por no livro também. Vou fazer mais umas perguntas e a gente já acaba, até porque vai dar o seu tempo.
R – Eu não quero falar mais do que o Luís! (risos). Agora aqui, aqui é dos bons tempos. Essa foto do Evandro tá mais bonita, ó. Você põe a que você quiser depois (conversam um pouco sobre as fotos).
P/1 – Aurelino, eu queria saber quando você conheceu a sua esposa. Você casou uma vez só na vida?
R – Só.
P/1 – E como é que foi isso aí?
R – Eu a conheci eu era do Departamento Social do Grêmio Recreativo e Cultural da Bolsa de Cereais de São Paulo e o grêmio tinha a sede aqui na rua Cantareira e a gente fazia baile, todos os domingos tinha matinê. E a juventude da zona cerealista, rapazes e moças e algumas famílias iam muito lá, iam todo domingo uma grande leva. E eu ia todo domingo porque eu era o que comandava. A _1:55:38_ tem um presidente e quem comandava o baile era eu. E aí eu a conheci. Esse grêmio era muito importante porque nós fazíamos bailes fora, nós demos os maiores bailes de São Paulo na época, na Casa de Portugal, no Clube Homs e eu é que ia contratar as orquestras, orquestra de Silvio Mazzuca, as grandes orquestras; tinha a orquestra do Rio de Janeiro, chegamos a contratar também. Nós participávamos da eleição do Concurso Miss São Paulo. E eu a conheci no matinê, que ela morava aqui perto, na Rua Oriente, e ela conhecia umas meninas que eram da zona cerealista e começou a frequentar o grêmio. E como eu dançava com todo mundo, porque eu, felizmente, dançava bem, eu era bem pé de valsa. Aí menina nova, tinha acho que 15 ou 16 anos, aí começou a se engraçar e tal. Aí nos conhecemos na época, começamos a namorar e tal, eu sou sete anos mais velho do que ela. E foi, foi, foi, namoramos mais de dois anos, aí terminou casando (risos).
P/1 – Vocês estão até hoje casados?
R – Entre namoro e casamento, em 1958 começou. Quantos anos faz?
P/1 – Vai fazer 60 anos em 2018.
R – Em 61 nós nos casamos, dia 15 de abril. Então agora vai fazer 55 anos.
P1 – E vocês têm filhos?
R – Eu tenho três filhos. Duas filhas e um filho. A filha mais velha é diretora hoje da Secretaria de Cultura de São Paulo, ela é funcionária pública da prefeitura; ela foi diretora da Anhembi Turismo, organizava esses carnavais todos que você viu nos últimos anos. Ela é economista, fala inglês e alemão fluente. Conhece o mundo inteiro. O menino que não se formou porque não quis é comerciante, mora em Caruaru. Mas fala em inglês também e já morou nos Estados Unidos, em Nova York.
P/1 – E a sua outra filha?
R – A caçula é advogada, também poliglota, fala inglês e atua no ramo de turismo. Não quis seguir a carreira de advogada.
P/1 – E a sua mulher?
R – Ela só me atura (risos). Eu tenho que agradecer a isso tudo porque nós estamos juntos nesses 55 anos, é muita história. E ela tem sido muito compreensiva nesse tempo todo e tem muito mais paciência do que eu. E muito mais mérito do que eu, tenho que dar os parabéns pra ela (risos).
P/1 – Ela ficava mais em casa, cuidava mais dos filhos?
R – Ela sempre foi dona de casa, sempre. Mas também estudou inglês, também já passou temporada em Londres, já ficou uma temporada de alguns meses em Londres estudando.
P/1 – Qual o nome dela?
R – Marilene.
P/1 – E os seus filhos?
R – A mais velha chama Neliane. O menino é Luís Henrique e a caçula é Adriana. Pra quem nasceu em São Raimundo Nonato, descalço até os dez anos de idade, chegar onde chegou (chora emocionado). Sem falsa modéstia, tá cheio de gente que tem muito dinheiro, não é o meu caso, mas tem poucos que têm o currículo histórico que eu tenho, no meio. Pode ter igual, mais não tem (emocionado). Disso eu me orgulho e se alguém tiver qualquer dúvida pode levantar que vai encontrar a verdade. Isso não tem preço.
P/1 – O senhor tem sonhos pro futuro hoje, quais são eles? Planejamentos.
R – Pedir a Deus saúde, continuar fazendo o que eu sei fazer e poucos projetos, o que eu tinha que fazer já foi feito. Pedir a Deus só pra não haver dependência daqui pra frente de nada. E principalmente dependência pessoal da saúde, não ter dependência de ninguém. Só.
P/1 – E o que você acha que é o futuro da zona cerealista hoje?
R – O que eu vou falar é muito... Como está pra pior. Ela não deve se acabar nunca porque ela é muito forte, eu gosto da zona cerealista como eu gosto da luz e do ar que eu respiro, mas lamentavelmente... ela não sairá daqui, ela tem muitas raízes. Mas o futuro comercial dela não é muito brilhante.
P/1 – Mas ela vai mudar, você acha que ela vai se reinventar?
R – Aí é só o futuro que vai dizer, mas eu não acredito muito, não. Eu escuto isso, já participei, inclusive, de algum movimento pra se mudar daqui, na época do seu Marchetti, e as autoridades já falavam em mudar há mais de 50 anos e não aconteceu nada até agora. Acho difícil. Não acredito muito, não.
P/1 – Você gostou de falar com a gente?
R – MUITO. Foi emocionante.
P/1 – O que você achou de contar a sua história?
R – Saudade, voltar no tempo, muita saudade. E junto com isso uma satisfação muito grande por ser lembrado e poder contar história verdadeira, que aí fica a julgamento dos outros, quem tem que dizer da pessoa, a minha eu já disse quem eu fui, quem eu sou. Agora é com os outros, não sou eu.
P/1 – Obrigado, seu Aurelino, foi ótimo.Recolher