Memória e Migração
Depoimento de Miguel Arcanjo da Silva
São Paulo, 14 de dezembro de 1991
Entrevistado por Claudia
Código: MM_HV033
Transcrito por: Fernanda Regina
P/1 – Seu Miguel, onde o senhor nasceu? Que dia que o senhor nasceu? A data do seu nascimento? Nome dos seus pais? Por gentilez...Continuar leitura
Memória e Migração
Depoimento de Miguel Arcanjo da Silva
São Paulo, 14 de dezembro de 1991
Entrevistado por Claudia
Código: MM_HV033
Transcrito por: Fernanda Regina
P/1 – Seu Miguel, onde o senhor nasceu? Que dia que o senhor nasceu? A data do seu nascimento? Nome dos seus pais? Por gentileza.
R – Eu vou falar a verdade, eu sou nascido em Porto Alegre, mas sou registrado em Lages, Santa Catarina, por motivo de que naquela época o dinheiro era muito dificultoso, e o serviço também no Rio Grande não estava muito bom, então papai veio para Santa Catarina, Lages, onde que eu fui registrado em Lages, sou nascido no dia 29 de outubro, 29 de setembro, aliás, de 1926, mas sou registrado no dia 09 de outubro de 1926.
P/1 – O senhor nasceu no Rio Grande?
R – Em Porto Alegre, no bairro Menino Deus, final da Avenida Getúlio Vargas, então, acontece que por motivos de família, e o decorrer do tempo, eu perco minha senhora mãe, aos onze anos de idade, então, acontece o seguinte, que meu papai começou conseguir madrastas para nós, eu fui achando aquilo uma parte muito pesada, na qual eu me revoltei com a madrasta, fiz uma mochilinha, coloquei dentro daquela mochilinha uma garrafa de cachaça porque eu já era um profissional alcoólico, eu nas minhas bebedeiras, aprendi a beber os pequenos golinhos, fui começando a tocar em bailinhos, quando eu menos esperei eu estava um classificador de bebidas, qual era a boa e qual não prestava. Aí a mamãe falecendo eu fui morar com meu cunhado, então meu cunhado pegou e também bebia, então ele bebia mais do que eu, quando ele bebia mais, começava me ofender, ele me batia, eu achei ridículo aquilo, até que ele me tocou para fora de casa. Então, naquela hora eu fiquei muito valente, fiquei muito homem, muito corajoso para enfrentar o mundo, digo: “Vou sair pelo mundo, vou em busca da felicidade”, e saí pelo mundo. Fiz uma mochilinha coloquei dentro daquela mochila uma lata que era pra tomar agua e pedir comida pelas casas, eu nunca tinha pedido, mas eu achei que a fome ia chegar, saí sem dinheiro, mas a garrafa de cachaça saiu porque eu com onze anos já tocava nos bailinhos, já bebia meus pequenos goles. Então saí pelo mundo em busca da felicidade. Tomei o mundo por bussola da vida e vim rodando, rodando, dormindo por dentro de cemitérios, por beira de estradas, por dentro de campos, comendo cascas de frutas já podres, dormindo por dentro de cemitérios, por dentro de carros velhos, casas abandonadas, e assim eu vim levando a minha vida e cada vez me profissionalizando mais e mais na bebida alcoólica, cheguei ao ponto de chegar ao delírio trêmulo, com quinze anos de idade, eu já estava completamente deixado a vida, pedindo para Deus a morte, porque eu era um infeliz, era isso, era aquilo outro. E aí seguindo as passadas, com a mochila tão dolorosa da vida, vinha vindo eu com o destino não sei aonde, morar não sei aonde, qual cidade? Não sabia aonde, só sabia que estava clareando o dia porque vi o dia chegar e anoitecer porque via a noite chegar, qualquer lugar para mim era uma hospedaria, era um hotel, e ali eu fui sofrendo começando a pegar a dor da mochila da vida, chegando em Paranavaí me lembro com essa dor imensa, de recordação, eu já não tinha mais condições de entrar em uma hospedaria, naquelas hospedarias tão mínimas que eu mesmo reconhecia que eu não podia chegar ali porque eu já cheirava mal, já não trocava mais roupa, já não tomava mais banho, a não ser quando chovia, que a enxurrada me dava aquele banho, eu deitado em uma sarjeta em qualquer lugar, porque a bebida me jogava em qualquer lugar, como joga qualquer ser humano. E assim fui levando a minha vida, vim vindo aos pouquinhos e chegando em Paranavaí, eu digo: “Agora aqui eu vou parar de beber um pouquinho, vou ver se começo a trabalhar”, comecei a trabalhar em roça, coisa que não era do meu costume porque lá no Rio Grande trabalhava com gado, animais, mas muito mal, não saia bem no serviço, aí comecei a me desgostar, desgostar e digo “Não dá nada certo”, comecei a beber novamente, aí comecei tomar um pileque, mas um pileque mesmo que eu me desacordei porque o bêbado não dorme, ele passa por uma cólica aonde que eu me desacordei daquela bebedeira em Paranavaí e vim me desacordar na rampa do mercado em São Paulo, ainda tenho recordações que o corpo de bombeiro passava as cordas para me laçar ali embaixo naquela rampa porque o rio estava enchendo, estava sujeito me levar, então eles estavam conseguindo ver se me laçavam, como de fato me laçaram, isso foi no final de 45, me lembro muito bem porque eu cheguei dali, a hora que eu melhorei daquela tontura toda, não sabia onde é que eu estava, quem que tinha me trazido, como eu tinha chegado, se era de avião, de bicicleta, a pé, ou a cavalo, se era dia ou noite, domingo, feriado, sei que vim me desacordar ali. Mas mesmo assim, com todo aquele sofrimento, fui internado não sei em qual hospital, saí dali continuei na bebida, porque a bebida ela é lenta, traiçoeira e fatal que é a morte, né? Bem no final ela dá a morte. Conclusão: fui bebendo, fui bebendo desde o final de 45, sofrendo, sendo pisoteado, apanhava, porque eu já era um monstro humano, um farrapo, né? Deixado de tudo e por todos, eu era o cúmulo da pouca vergonha, o símbolo da infelicidade, parceiro da desgraça, já era uma pessoa que eu não me considerava mais eu, eu não sabia se existia Deus, se existia diabo, eu só queria saber se existia bebida alcoólica, essa era minha vida. Essa era minha vida, então aí cheguei porque onde está a infelicidade, a desgraça é parceira dela, saindo mal do hospital, mesmo com muletas, trêmulo, as pernas bambas, eu fui chegando para baixo dos viadutos, naquela época, xingava a pessoa, mandava dormir embaixo do viaduto, hoje é casa de moradia familiar. Então, chegando ali me encontrei com mais aqueles colegas de infortúnio, onde que ali embaixo da ponte que hoje a Armênia, naquele tempo era Ponte Pequena, onde tinha panchões, chovia, e a enxurrada trazia sapos, trazia cobras, trazia mulambos, trazia paus podres, escorpiões, ali então eu me uni com aqueles colegas de infortúnio e ali eu fiz o meu lar doce lar, sofri muito, apanhei muito, como apanhei, tanto apanhava como queria bater, não conseguia porque minhas pernas já não funcionavam mais, eu muito trêmulo na idade de 22 anos e assim eu fui rodando, fui levando essa minha vida, de maneiras que eu chegando a um ponto de eu já começar a ver bichos na parede, ver diabo me cutucar, ver pessoas me colocar revolver na cabeça me matar, e, assim, tudo era o delírio, eu já estava delirando. Eu não sei hoje na realidade se aquilo era sonho ou se era um amador na cólica, ou se era justamente o delírio trêmulo. Então, felizmente como sempre, não é tarde para o dia do amanhã, e eu sempre pedia a Deus a morte, porque eu era infeliz, era isso e aquilo outro, então não sei como que foi que surgiu uma mão misteriosa, para mim misteriosa, que me pegou, assim como uma senhora que não tem responsabilidade para aquele filho que ela traz ao mundo e deixa enjeitado em uma porta, eu fui enjeitado na porta da Associação Antialcoólica do Estado de São Paulo, não sei quem me levou para ali, eu só sei que era o dia 28 de outubro de 1968, na Alvares Machado, número 19, na Praça João Mendes, fundo da praça João Mendes, ali eu cheguei, não posso agradecer a Deus naquele momento, porque eu ainda cheguei alcoolizado, mas só sei que uma pessoa disse assim: “Entra para dentro, foi bom você ter vindo, a casa é nossa, esteja a vontade, foi bom você ter vindo, você vai ser a pessoa mais importante dessa reunião, como foi bom você ter vindo”, eu pensei, olhei para os lados, eu digo, não pode ser comigo isso aí porque eu só levava bofetões e xingos, os xingos que eu levava era cafajeste, pau d’água, safado, sem vergonha e muitas outras coisas que eu não posso citar, como a cachaça obriga a boca do povo a citar. Então, ali eu fui recebido como a pessoa mais importante daquela reunião, de maneira que eu fui chegando, fui me sentando em dos terceiros bancos, mas a fraqueza era tanta, que eu já não me alimentava mais, só vivia bebendo, então me sentando em um daqueles bancos eu cai novamente, quando acordei já era segunda parte da reunião porque nós temos a primeira e a segunda parte, aí foi que eu vi uma pessoa falar: “Puxa, eu parei de beber e hoje eu estou recebendo minha medalha de um ano, como é bom essa Associação”, foi aí que eu me desacordei daquela madorna e fiquei olhando os testemunhos ali passados, então um falava que tinha apanhado, outro falava que tinha passado fome, outro falava que tinha sido abandonado pela família, outro tinha perdido emprego, outro tinha perdido a perna. Aí fiquei pensando, isso aqui é minha casa mesmo porque parece que tem gente que andou junto comigo, viu meu sofrimento e veio falar isso aí na tribuna. De maneira que eu peguei e disse: “Vou ficar aqui mesmo”, mas eu pensando que a casa ali era nossa, mas ali eu tive que sair e voltar para o meu lar doce lar, que era a Ponte Pequena, viaduto da Ponte Pequena, chegando lá eu falei para turma, olha, hoje eu não quero beber porque eu hoje estive na casa que faz a pessoa parar de beber, aí foi a hora que recebi pontapés, então você não dorme aqui porque aqui é lugar só de cabra macho, cabra valente, então eu saí dali, lá em cima eu reforcei um voto, esse voto na Associação não é obrigatório, mas a gente entendendo, a gente ali faz o voto para passar a ser membro da Associação, né, e aproveitar nas horas as lições internas que temos ali, passar a ser um diretor, passar a ser um conselheiro, como hoje eu sou membro do conselho deliberativo, graças a Deus, então ali eu fui entendendo da segunda parte, no termino da reunião tem um voto a fazer, que esse voto a gente faz na Associação assim: “Ao ingressar na Associação antialcoólica prometo com a ajuda de Deus, nunca mais ingerir qualquer tipo de bebida alcoólica, reconhecendo ser ela a responsável pela ruína de meu ser, do meu lar e da minha pátria”, e assim eu prometo, aí nesse momento a gente já ganha uma salva de palmas, coisas que eu fiquei admirado, só ganhava bofetões no rosto, era chamado de vagabundo, cafajeste, ali eu já fui contemplado com aquela salva de palmas, e disseram: “O senhor está de parabéns, o senhor já pertence a uma grande família, das que mais cresce no mundo”, eu fiquei muito contente, e ali eu fui seguindo meus dias, fui começando a receber minha medalha, hoje eu tenho esse orgulho interno, porque as medalhas que eu transporto, cada uma delas representa para mim um passo que eu dei para trás na minha vida, desde os 11 anos, até os 42 anos, então hoje eu digo nos meus testemunhos, que eu dou palestras para fora, em cidades pertinho daqui de São Paulo, interior, outros estados, nos alcoólicos anônimos também sou convidado para representar a Associação e fazer parte da mesa coordenadora no AA. Onde eu fui muito bem recebido em Porto Alegre, contei a minha vida, falei que eu não era paulista, que eu era gaúcho, e a turma então me deram a mesa e eu dei meu testemunho. Então, hoje eu sou uma pessoa realizada graças a Deus, mas ainda aqui em São Paulo há 23 anos, ainda esse pobre operário que hoje é um simples operário, ainda catava restos em latas de lixo para comer, comidas já podres, azedas, dormia no chão, vivia preso, inchado, apanhado, sofrido, deixado de tudo e por todos. Então, graças a Deus, o dia 28, as portas do céu se abriram para mim e hoje eu continuo na Associação antialcoólica, com 23 anos de recuperado, sou membro do conselho deliberativo, meu apelido lá dentro é toureiro porque eu contei uma tourada que fiz lá em Paranavaí, que eu nunca tinha entrado em uma arena, mas eu para entrar para dentro do circo, eu bêbado disse que era toureiro, me deram uma capa, me deram um chapéu, me puseram no picadeiro e o boi quase me matou. Então, tomei esse apelido na Associação como toureiro, né? Mas eu não tenho nada de toureiro, malmente sei comer um pedacinho de carne hoje, devido ao custo de vida. Então, eu sou feliz, porque agora sou realizado na minha vida, graças ao meu Deus, consegui me libertar dos vícios, sou um homem conhecido como um cidadão, sou um sexagenário e mais cinco anos e meses. Hoje eu tenho uma vida realizada, sou um homem realizado, Deus me deu uma esposa, que aquela é tudo para mim, uma mãe, uma esposa, uma filha, é tudo, é eu e ela e Deus. Hoje eu já não durmo mais no relento, tenho meu apartamento, moro na Cidade Tiradentes, quem quiser chegar lá para tomar um chimarrãozinho comigo, estão as ordens, a minha Rua fica na Rua 1B, 368, 52 A, quinto andar, Cidade Tiradentes, chegando ali é só perguntar por Miguel, o Gaúcho que todo mundo conhece, não em mesas e balcões, mas eles dizem que eu sou um gaúcho orgulhoso porque não frequento bares, não frequento mais nada daquilo, e assim então fui indo e graças a Deus, comecei a ter Deus no meu coração, porque eu antigamente só tinha ele da boca para fora, e aí eu engraxando sapato, como eu engraxei sapato na Praça Do Correio durante 16 anos, aí passei para José Bonifácio, no Largo São Francisco, então quando eu chego nessa parte aí, sempre eu cito a frase desse cidadão que trabalha na cultura, que é o senhor Júlio, hoje ele é chefe da manutenção da garagem na cultura, na Consolação, eu devo minha vida à Deus, à Associação Antialcoólica e a ele porque ele me viu com as escovas na mão, engraxando sapato e ele notou meu procedimento, então ele me convidou, fez um convite, “Vamos chegar até na Cultura que tem uma vaga para você, amanhã você se troca, tal, tira essa roupinha, vira do lado avesso, se apresenta que tem uma vaguinha pra você”. Então, eu estou lá, estou aposentado hoje, por intermédio dele, graças a Deus, graças ao seu Júlio, devo muito a ele e hoje eu sou um vigilante. Era porteiro recepcionista, depois a Cultura perdeu a concorrência, aí então eu passei para a academia, fiz academia, passei para vigilância e hoje estou aposentado já na vigilância, mas essa vigilância que eu vivo hoje, foi o primeiro posto que eu cheguei e é nele que eu estou hoje falando aqui no Museu Imagem e do Som, Avenida Europa 158, aqui encontrei bons patrões, um administrador que é o senhor Nestor, naquele tempo tinha o ____ ____ um japonês, e muitos outros, encontrei uma amizade fabulosa que me abraçaram aqui e aqui eu estou. Foi meu posto, daqui eu saí por motivos de casa, comprei casa, ali na Cidade Tiradentes, aí eu passei para MTU, mas depois fracassou o posto lá e voltei para o plantão, voltei para o cantinho que é meu, que é o Museu Imagem e do Som, aqui eu vivo entre amigos hoje, um pessoal distinto, maravilhoso, eles dizem que eu sou bom, também digo que eles são ótimos, e assim estou hoje esperando só agora a minha ‘papelama’ de aposentadoria que já está tudo em cima, e vou seguir minha vida, uma outra nova vida, um pouquinho. Mas representa que São Paulo vai dizer para mim: “Depois que fiz você ser gente, você vai me abandonar”, mas é com dor no coração que deixo São Paulo, que agora eu quero um pouquinho de descanso, quero viver e quero dar vida para a companheira que cuida de mim, que é minha esposa, Ana Francisca da Silva.
P/1 – O senhor deixa São Paulo com dor no coração?
R – Se eu sair de São Paulo, parece que São Paulo diz assim: “Depois que eu te fiz ser gente, digno na sociedade, ter o nome de cidadão, ser um sexagenário aqui dentro, chegou jovem, maltrapilho, farrapo, e hoje você está uma pessoa que eu preciso, você vai me abandonar?”, parece que São Paulo, essa grande São Paulo, que, naquele tempo, era pequena, ela não cresceu ela inchou, né? Mas parece que ela fala para mim, então tenho receio de sair de São Paulo, mas vou ficar em uma chacarinha ao redor de São Paulo.
P/1 – Seu Miguel, quando o senhor saiu lá da sua casa com 11 anos de idade, o que o senhor pensava?
R – Eu só pensava em lobisomens, em fantasmas, né? Tinha muito medo, mas a cachaça, de vez em quando, tirava aquele receio meu e fez com que eu chegasse a perder o medo, eu queria conhecer o mundo, eu via os morros, os montes, eu achava que ali era o fim do mundo, eu queria ir para o fim do mundo, eu estava desgostoso, tinha perdido a mamãe, meu pai já estava com outras madrastas, meus irmãos já tinha debandado tudo do lar, papai colocou tudo que nós tínhamos fora, então me vi sozinho, saí pelo mundo, eu via os morros, via ônibus viajar, partir, eu queria seguir a trilha daqueles ônibus, e assim eu vim vindo, duas vezes eu vim de Porto Alegre aqui a pé, uma vez vim como (raidi?) queria ir até Brasília, mas cheguei aqui os colegas desistiram, voltaram e aí voltei, outra vez vim como indigente dormindo pelas rampas de estradas, cemitério, comendo resto que eu encontrava nas casas, e vim chegando. E aí chegando aqui foi que eu... Mas para chegar aqui eu demorei todo esse tempo, dos onze anos eu saí, voltei um pouco para o Uruguai, que é país vizinho com nosso Brasil, tive por lá, trabalhei, mas não gostei muito do Uruguai, porque naquele tempo não tinha nada que pudesse dizer aqui é bom, não achava uma pessoa para dizer “Fica aqui, trabalha aqui”, sempre achava uma pessoa pra dizer: “Toma mais uma, você tá novo toma mais uma, você já é hominho, toma mais outra”, então assim eu ia bebendo, fui indo que no fim eu já não sabia mais de mim, já não sabia onde é que eu andava, que cidade que eu estava, e assim fui levando a minha vida. Agora hoje não, hoje graças a Deus, eu estou aqui, cheguei em São Paulo com muita dificuldade, que é só Deus mesmo que sabe o quanto que eu sofri, hoje eu dou minhas palestras para fora, há pessoas que diz: “Mas o senhor não tem vergonha de falar que comeu restos de lata de lixo”, digo que não, que é incentivo para os que estão chegando pela primeira vez na Associação como eu cheguei, então hoje eu tenho essa felicidade, tenho esse rosário de medalhas, todas dadas pela Associação, esse rosário aqui já não cabe mais medalhas, então já quero fazer outro, espera só encher mais esses três, que vai dar mais sessenta anos, noventa anos, até lá eu acho que eu não chego a encher esses aqui, mas sei que meus ossos vão ser enterrados aqui em São Paulo, não quero mais ficar no meu Rio Grande, que lá já não me resta mais nada, parentes todos mortos, a vida lá está pior do que em São Paulo, então vou ficando por aqui.
P/1 – Como foi o seu primeiro emprego?
R – Nunca tive emprego, sempre foi trabalhando por conta própria, agora depois que eu entrei para Associação que eu passei a ser recuperado, eu tive bar no Saguão do Tiete, tive empregados, tive casa no ____, tive inquilinos, aí já passei a ter uma outra vida, passei ser marreteiro, de marreteiro passei a ser camelô. Aí já procurei a ver que eu já era gente, já andava com uma gravatinha, um terno, um sapatinho, aí procurei conhecer São Paulo, a vida noturna de São Paulo, fui boêmio, toco violão, tenho meu giannini [violão] em casa, tenho meu chimarrão Graças a Deus, então comecei a conhecer São Paulo, mas vi que aquela vida era boa, era ótima, porque eu não pensava no amanhã. Hoje não, hoje eu não quero ver a noite, hoje eu quero ver a noite chegar para me levar aquele boa noite para quem eu adoro, que é minha esposa. Hoje eu tenho minha cabeça no lugar, sei que eu nunca fui uma pessoa ambiciosa, sempre o que eu ganhava era porque Deus tinha que me dar mesmo, hoje se eu tenho um apartamento, uma esposa, sossego na minha vida, bons empregos, é porque tudo isso estava escrito para mim. Então, eu tenho em minha mente que parece que Deus deu esse teste para mim e eu fui feliz, passei no teste. Hoje, na Associação eu cito em meus testemunhos, que assim como Jesus ressuscitou, eu ressuscitei dentro da Associação porque ao chegar lá, todas as pessoas notam um quadro que está escrito “Aqui mora o bêbado e nasce um Homem com H maiúsculo”, eu que já andava cansado de pedir a Deus a morte, eu digo: “Aqui eu vou morrer”, de fato, morreu aquele alcoólatra e nasceu esse homem que hoje é digno da sociedade. Hoje eu fico muito contente porque eu vou em certos lares, o esposo está caído, a esposa está para um lado, a filha para o outro, filho para outro canto, as portas dele já caídas, portão caído, casa com telhas quebradas, aquela casa de bêbado é conhecida, porque onde tem um bêbado, no meio de cinquenta pessoas ele é conhecido de longe, os gestos dele, o palavreado dele, tudo é conhecido, então eu chego ali naquele senhor, eu vou primeiro ver se ele quer que eu conte uma história para ele, que é o que a gente aprende dentro da Associação, esse é o nosso lema, porque o nosso lema lá é o seguinte, a Associação é um grupo de mulheres e homens em pé, levantando os que caem porque caídos já foram. Então, eu chego naquele senhor e digo assim “Ô, meu amigo, eu estou um pouco alcoolizado, mas hoje eu estou melhor, eu quero contar minha vida para o senhor”, então o que eu estou falando hoje nessa entrevista, é o que eu falo para aquele pai de família, ele não aceita... Porque o alcoólatra não aceita conselho de familiares, porque o familiar ele prejudica o alcoólatra, ele faz o alcoólatra ficar mais sentido, ele xinga o alcoólatra de vagabundo, vai procurar serviço não encontra, só quer beber, só quer fumar, só quer tirar as coisas de dentro de casa para trocar por bebida, então ele saí revoltado. E na Associação não, na Associação eles dizem “Foi bom você ter vindo, você tem o mesmo problema que eu tive, é doente para o álcool, tem que evitar a primeira dose”, então a gente evitando a primeira dose, não tem a segunda, a gente começa a partir para o lado da felicidade, na qual eu vivo há muitos anos. Hoje eu sou feliz, se tivesse condições de subir como aqueles pichadores, que subiram no Cristo Redentor, eu subiria lá para gritar eu sou feliz hoje porque sou membro do conselho deliberativo da Associação antialcoólica, tenho felicidade não para vender, mas para dividir com aquele pobre infeliz que vive sofrendo as causas do álcool como eu sofri há muitos e muitos anos. Tenho o meu segundo livro já, que está prontinho para ser revisado e editado que traz o título como “Esse livro é um triste histórico vivido na vida de um ex alcoólatra”, e o outro é “O ex alcoólatra”, então é isso que eu tenho que falar.
P/1 – Houve fases na sua vida que o senhor passou, porque passou muito tempo como alcoólatra, o senhor lembra dessas fases? Até os 42, né?
R – Eu digo para a senhorita porque é o seguinte, o alcoólatra ele é aquele como eu era, que quando caía, eu não tinha rosto, eu tinha uma cara que era usada coberta com uma mascara de pau, que caia no chão e aí chegava o cachorro e utilizava aquela cara como um vaso sanitário, se me permite dizer. Agora, ali a gente não vê nada, como alcoólatra a gente está infiltrado ali, a gente não vê nada, estou contando o meu sofrimento quando eu não estava nem sóbrio, nem alcoolizado, porque o alcoólatra mesmo não sabe o que faz, ele passa por aquela fase, ele está caindo no abismo, ele está pensando que está andando na Praça da Sé, agora quando ele está alcoolizado de uma vez por todas, como eu caía, às vezes, dormindo em certos lugares, como de Porto Alegre até (Lortes?) tem a rampa da curva da morte, que é uma rampa de, mais ou menos, quarenta centímetros que vai embora, e pra baixo tem aquela rampa, que lá embaixo água chega a estar escura de verde, e eu dormia ali, chegasse um encostasse o pé, eu caía, que hoje não restava os ossos meus, eu dormia, a gente não sabe onde é que anda. Então, o que eu conto nos meus livros é o que eu tenho na mente daqueles tempos para cá, então hoje, como recuperado, eu já fiz tive uma palestra com uma psicóloga e ela pegou e me falou que tudo que eu passei ficou gravado, igual um disco, então, até hoje com 23 anos de recuperado, há certas noites que eu sonho que eu estou alcoolizado, que estou naquela bebedeira, naquele sofrimento de vida de gente, comendo aquelas comidas podres, aquele sofrimento no meio daquele povo que hoje eu vejo e ali está o retrato do meu triste passado. Então, é isso que eu recordo e falo aqui agora nesse momento.
P/1 – Quando o senhor casou?
R – Faz três anos. Vai fazer três anos que sou casado, graças a Deus, conheci minha esposa dentro da... É o seguinte tenho um radinho Philco de relógio, então morava na hospedariazinha, eu tomava muito café, mas já estava na Associação, então tinha insônia, né? Aí eu ligando o radinho, chegou e disse assim: “Você que vive na solidão, você que não tem família, você que não tem Deus, você que não acredita mais em Deus, você que vive na solidão, que está sem um lar, sem uma companhia, procura a igreja Universal do Reino de Deus, que Deus te prepara a sua esposa” e eu guardei aquilo na mente. Então chegando domingo, numa manhã de domingo, eu fui justamente no núcleo que eu vou amanhã das nove às onze, São Miguel Paulista, eu guardei aquilo na mente, quando voltei de São Miguel, terminou a reunião às onze horas, eu cheguei na Celso Garcia, o ônibus parou quando eu olhei assim “Igreja Universal do Reino de Deus”, eu digo é aqui, mas aí o ônibus já tinha dado partida, aí eu parei no próximo ponto, entrei em um restaurante, almocei, disse: “Agora vou ver como funciona essa igreja”, porque eu tinha saído da igreja batista no Capão Redondo, tinha mudado para a cidade, chegando lá o auditório que era um antigo cinema, ali na Celso Garcia 449, eu cheguei ali e olhei a metade do auditório estava repleta, estava no termino da reunião, e tinha aquela morena sentada, com a bíblia na mão, sozinha, eu cheguei e disse: “Vou perguntar para aquela moça como é que funciona, qual o lema da igreja”, me aproximei dela, ela disse assim: “Você espera um pouquinho, que na reunião não podemos falar, o senhor senta aí”, eu digo “Tá bem”, e eu vendo aquele movimento, aquela multidão, que a igreja Universal é uma igreja que lota mesmo aqueles auditórios de cinema, e eu peguei e saí dali, terminou a reunião eu comecei a falar com ela, ela começou a me explicar como funcionava a igreja, ela perguntou se eu era crente, eu disse que estava na Igreja Batista, agora mudei para cidade, aí saímos para fora que tinha terminado a reunião, começamos a palestrar, ela começou a contar a vida dela, ela tem 62 horas de voo, ela conhece o exterior porque ela foi criada com a família também, porque não sei se vocês já ouviram falar no jornal “Precisa-se de uma empregada, de preferência que seja do interior”, como ela era do interior pegaram ela e trouxeram como uma escrava, prisioneira, ela andava só de avião, parava nos melhores hotéis, na França, na Suíça, naqueles cantos porque era família nobre, então eu peguei e depois que eu tomei mais estimação com ela perguntei quanto ela ganhava lá, ela disse assim: “Ah, chega o fim do mês eles me dão um anel e um vestidinho”, eu digo: “Não, mas na carteira sua”, ela “Não, não tem salário não”, eu digo “Então, pera aí vamos ver esse negócio, amanhã você já está com 42 anos, 43, chega nos 50 não pode mais erguer a panela da madame, então vamos dar um jeito na situação”, mas é que eu estava começando a ter conhecimento com ela, aí eu peguei fui nos patrões dela, falei para eles: “Eu conheço São Paulo, já há muito tempo, conhecimento o regulamento, conheço o Ministério da Justiça do Trabalho e tanto que o senhor tem essa moça aí há muitos anos, 23 anos e o senhor não tem carteira assinada com ela, né?”, “É, mas a gente vai dar um jeito”, “É, agora o senhor vai dar um jeito e ela não vai mais trabalhar aí”, e aí nós saímos, eu saía daqui do Museu, metia meu paisaninha, tirava o uniforme e me encontrava com ela depois que ela dava a janta. E nós saímos procurar cômodo na Grande São Paulo e não encontrava, até que no fim surgiu esse apartamento, aí nós não podíamos ficar com a vida em comum porque a igreja não permite, mas nesse tanto até Deus perdoou, porque eu peguei me uni com ela, ela viu meus interesses, ela contou a vida dela, eu contei a minha, então ela disse para mim que ela estava solteirona porque ela tinha exemplo de viciados dentro de casa e o pai dela era alcóolatra, ela então precisava de um esposo que não bebesse, não fumasse, que não tivesse vícios, que não tivesse nada para nós começarmos uma vida do alicerce para a (conheira?), não da (conheira?) para o alicerce. Então eu disse: “Então você já está quase pisando em cima de uma pessoa porque eu não bebo, não fumo”, mas ela me vendo de cabelos grisalhos disse: “Mas você é solteiro, é viúvo? Como é que é?”, disse: “Não, sou solteiro”, tive que mostrar todos os documentos, me identificar para ela para ela acreditar. Aí depois mais uns quinze dias, ela tomou um pouquinho de coragem e foi até na hospedaria que eu parava na frente vender peça na Rua Santo Antônio, aí ela viu que eu morava em um quartinho pequenininho em uma cama e o advogado morava em outro, né, então ele ia para o Rio, vendia lá os pasteis dele, porque o serviço dele estava fraco, e eu ficava tomando conta do quartinho que nós dividíamos a despesa, aí ela confirmou abrindo meu guarda-roupa que ela só viu roupa de homem mesmo, e tralha de solteiro, “Quem que dorme nessa cama?”, “Aqui mora o advogado, mas ele vai vender pastel e caldo de cana no Rio”, ai ela disse: “Ta bom”, aí ela tirou aquele alivio daquela dúvida. Conseguimos aquela amizade, e aí achamos um apartamento, ela disse assim: “Tá certo, mas eu vou querer que você vá até São Francisco do Norte em Minas, para ver se você conhece meus familiares”. Eu indo para Minas, graças a Deus fui encontrando parentes dela, em Belo Horizonte tem o terceiro sargento do Corpo de Bombeiros, o apelido dele é China, o rei do taco de snuck, gostei muito da família, minha cunhada. E chegando em São Francisco também, encontrei o irmão dela que é padre, bacharelado, encontrei o irmão dela que é agrônomo, outro que é hippie, mas uma família muito bem quista lá dentro porque são até fundadores daquela pequena cidadinha, e ali então eu falei para eles “Nós não estamos casados, temos uma vida em comum, mas já temos um teto que é nosso e agora aos curiosos se eles perguntarem, diz que nós estamos casados”, já compramos as alianças daqui e já fomos com as alianças, chegando lá soube que o pai dela bebia um pouquinho também, cheguei lá ele maneirou, pedi para ele me indicar uma casa que trabalhasse com alcoolismo, ele me levou nos Alcoólicos Anônimos, lá me deram a mesa coordenadora para eu presidir a reunião e lá eu aproveitei, dei meu testemunho e peguei meu sogro, que hoje ele já está com cinco medalhas de recuperado do AA, e aí eu cobrei o coordenador de lá que disse assim: “Tá vendo, eu não falei pra vocês que um dia vinha visita de longe, que era de São Paulo da Associação de Alcoólatra”, aí eu cobrei digo: “Agora eu vou, assim como estou sendo padrinho do meu sogro, eu vou cobrar ele com a medalha de 21 anos, lá em São Paulo”, “Nossa, lá em São Paulo”, e trouxe, ele me condecorou em São Miguel Paulista com a medalha de 22 anos, a minha esposa me condecorou com a de 21, por mais que ela não tenha problemas de vícios, teve, mas se recuperou. Ele veio aí, teve uma temporada, e voltou recuperado, hoje ele já tem cinco medalhas, já tem quase três anos de recuperado. Eu me sinto feliz, aí eu cheguei aqui e cobrei dela “Agora você vai conhecer minha família no Sul”, ela partiu para o Sul comigo, aproveitei minhas férias, e fui fazer minha lua de melado, que o pobre não faz lua de mel, é lua de melado, aí fui para lá para o Sul, cheguei lá ela foi comendo queijo e dizendo uai, de lá ela voltou tomando chimarrão e dizendo tchê (risos).
P/1 – O senhor teve outras namoradas além dela?
R – Tive, aí tem uma história contada no livro, né, aos meus dezoito anos, servia no _____ em São Leopoldo, perto de Novo Hamburgo, e eu tive uma companheirinha de aventuras, eu conheci os familiares dela, então dessa companheirinha surgiu um garoto que esse garoto a bebida me separou dele e da mãe dele aos seis meses de nascido. Aí eu me separei e nunca mais eu os vi, e agora fazia 31 anos que eu não via meus familiares, não sabia noticia, e aqui por intermédio do seu Nestor, eu falando sobre minha vida para ele, ele disse: “Olha, eu tenho um irmão que eu não conhecia ele há não sei quantos anos, quando daqui a pouco eu morava na mesma vila, só faltava morar na mesma rua”, eu digo “Tá bem, vamos ver o que nós fazemos”, mas seu Nestor se interessou por mim, telefonou para cultura, tal, bateram telefone para lá, era nove horas, quando era duas horas estava falando com a minha sobrinha que eu deixei ela criança e agora já é vó. Então, chegando lá em Porto Alegre, eu já contei minha vida para ela, ela foi bem orientada, eu fui mais pra conhecer meu filho, conheci minha nora e meus netos. Infelizmente, eles estavam para dentro do Uruguai, foram procurar casa e serviço, coisa que eu tive casa aqui em São Paulo, procurei uma vez lá e não encontrei, cheguei aí também era sozinha, acabei botando tudo fora, né? E aí agora fui lá estava procurando casa, agora quero ver se nessa minha retirada agora da firma que estou aposentado, quero ver se acho ele para dar esse apartamentozinho para ele, e comprar uma chacrinha para ficar esperando meus dias que Deus vai me dar para sempre.
P/1 – Então o senhor tem um filho daquela época de alcoolismo? O senhor ainda era indigente, o senhor ainda não tinha melhorado?
R – Não tinha nada, me uni com a mãe dele, a mãe dele se me permite dizer... Eu era um alcoólatra inveterado, tocar naqueles bailes, procurar aqueles ambientes mais de baixo calão, onde que eu encontrei ela, não nego porque tem tantas pessoas aí que eu conheço que são casadas com meretrizes, e essa moça ela fazia o antro de prostituição, e eu conhecendo os familiares dela, me choquei porque eu digo: “Você não pode estar aí”, fiquei com dó dela, fui no lugar no ambiente que ela se encontrava, fiz o convite para pegar e ela estava gestante, eu digo: “Até você ganhar essa criança, você quer ficar na minha companhia, você fica, depois então se você achar que deve continuar tudo bem, se não você segue sua vida”, mas aí ela viu que eu era um alcoólatra, mesmo sendo alcoólatra eu não era bandido, não era desordeiro, não era nada, era cumpridor dos meus deveres, mas só o defeito era a bebida. Aí ela pegou e continuou vivendo comigo, teve o guri, trouxe ela na terra dela, aí ela teve o guri, que chama-se Clóvis, aí depois ela continuou, então teve o Vilmar, que eu dei nome nele de Vilmar Costa e Silva, assim fomos levando a vidinha até seis meses, seis meses eu trago os sentimentos comigo porque ele falou para minha falecida irmã que ele tinha o sentimento que ele era um filho órfão de pai vivo e ia morrer sem conhecer o pai dele, então, eu também tenho sentimento porque não dei um litro de leite para aquela criança, e hoje então, eu adoro as crianças dos outros, me criei pelo mundo, sempre ao lado de famílias, sempre brincando com crianças dos outros, quando eu vejo um guri, uma menina, sempre procuro dar uma bala, vivi essa vida, e aqui hoje eu não tenho ninguém e não quero porque eu hoje estou vendo que certas famílias, que a maioria delas os filhos são muito cruéis para os pais, batem nos pais, xingam os pais, e eu se for para criar uma criança, eu quero criar no estilo que eu fui, sim senhor, não senhor, e hoje está muito difícil de criar uma criança assim. Tem instituições que dão crianças, mas eu já estou com um pouco de idade avançada, minha esposa também, já quarentona ela, como diz Sérgio Reis, mas acho que nós dois estamos bem. Quando eu morrer ela que vá procurar os parentes dela para levar o que tem, se ela morrer antes, eu também vou dar um jeito na vida. Só que não quero mais outra companheira, porque igual a essa aí não vou encontrar nunca mais. Agora, tive sim muitas criaturas aqui, não vou dizer que não, que na face da terra não existe santos, se existe algum santo aí não da pra dizer que existe. Mas nunca deu certo, nunca levei avante de ter um teto, ter um lar porque era tudo pessoas interesseiras, falsos beijos, falsas juras, falsas palavras de amor, né, o interesse era saber se eu tinha dinheiro no banco, se eu gostava de praia, se eu gostava de bar, se eu gostava de cinema, eu perguntava: “Sabe cozinhar?”, “Não sei”, “Sabe lavar uma roupa?”, “Também não sei”, então não dava, né? Essa não, essa graças a Deus é uma esposa que eu tenho, que é cozinheira de forno e fogão, é costureira, tem uma família muito boa, pobre, na graça de Deus, de maneiras que me sinto realizado na minha vida. Graças a Deus, tenho esse privilégio de dizer a Deus que hoje eu agradeço ao Senhor, se eu pedir uma coisinha assim para ele, me da impressão que ele diz assim: “Mas você ainda está pedindo alguma coisa”.
P/1 – O senhor nunca tinha ido a uma igreja? (inaudível 17:20 até 17h34). O senhor nunca tinha tido oportunidade parecida em todo esse tempo que o senhor esteve nessa vida difícil? O senhor não teve vontade ou alguém que indicasse para o senhor um lugar para o senhor procurar ou alguma coisa para o senhor acreditar?
R – Eu tenho para dizer que tem um ditado que o cachorro entra na igreja porque acha a porta aberta e saí porque acha a porta aberta. Eu em cada cidade que eu chegava entrava em uma igreja, mas eu não tinha firmeza em nada, chegava em uma igreja ali, outro dia eu já estava em outra cidade, outro dia já estava em outra, entrava na igreja Presbiteriana, entrava na católica, só faltei entrar na maçom, estive até em budismo, estive na Igreja Batista, estive na Assembleia, de berço sou católico. Eu não sei por qual razão eu nunca firmei em igrejas, hoje eu vivo na igreja Universal, e para parar de beber nunca encontrei uma pessoa que dissesse> “Você tem que parar de uma vez por todas”, sempre encontrava uma pessoa que dizia: “Vê se maneira, para de beber, bebe menos. Pra você ser feliz tem que parar de beber”, mas nunca encontrei uma pessoa que me disse o que disseram na Associação De Alcoólicos, aqui é 8 ou 80 ou você para de beber ou saí e vai beber, aí o problema é seu. Então, eu achei que deveria parar de beber porque eu cheguei lá arrastado. Eu andava arrastado que trocava passos, trêmulo, inchado, um monstro, de maneira que eu achei que deveria ficar assim, então foi essa oportunidade que surgiu para mim que eu peguei com as duas mãos na mão de Deus, e estou aí, hoje sou feliz, graças a Deus.
P/1 – Por que o senhor escolheu a igreja Universal? O senhor ouviu no rádio?
R – Eu vi no rádio. Nós temos hoje que muita gente fala, metem o pau nessa igreja, que a igreja tem ladrão, tem isso, mas eu acho que não, se a senhora der uma coisa para mim, a senhora deu com suas mãos, eu não lhe assaltei, essa igreja tem a Rádio Record, agora todo mundo diz que Bispo Macedo pegou e juntou dinheiro até de traficantes, tudo é mentira do povo, nós fazemos nossas coletas, tem os dízimos, todas as igrejas tem os dizimistas, então juntamos, arrecadamos dinheiro não é de hoje que nós estamos arrecadando dinheiro pra comprar essa rádio, conseguimos agora, compramos a Rádio Record, por intermédio de rádios que muitas das pessoas que já estão na última lona, procuram a igreja universal, como procuram outras igrejas, você vê que hoje em dia, a maioria das igrejas são tudo televisionadas, todas por intermédio de rádios, como eu fui, quantas pessoas não vão por televisão, choram dentro do seu próprio lar? Não acreditam que o pastor está chamando na televisão, então vão na igreja, chegando na Igreja, ali a pessoa vê a realidade, agora precisa ter fé para ter a obra junto, né? É onde acontece comigo agora porque eu aqui mesmo no Museu, dormia embaixo da escada porque na hospedaria que eu morava, um moço trouxe uma turma do norte e ele queria fazer tipo um restaurante para pôr refeições e então abrigo para aquela turma, então ele começou a exigir, exigir, e eu não achei canto e vim dormir embaixo das escadarias, trabalhando aqui, dormindo embaixo da escada. Tudo isso aconteceu na minha vida, saí daqui para ir para dentro de um apartamento, então na igreja eu me senti bem, encontrei aquela moça ali, foi o único lugar que eu encontrei, ela dá risada deu dizer: “Eu saí com onze anos de casa a sua procura”, procurei por beira de praia, pela estrada, de cidade em cidade, em gafieira, procurei na Praça da Sé, naqueles bancos de jardim, “Você tava bem escondidinha mesmo, dentro da Igreja Universal do Reino de Deus”, e é isso aí por intermédio do radiozinho.
P/1 – E a música o senhor tem duas ligações, além de ser boêmio e gostava, provavelmente, o senhor é sobrinho de _____?
R – Poucas vezes eu fui na casa dele, a minha memória é muito fraca para dizer que eu convivia com ele, só sei dizer que a minha tia pegava e sempre falava que ele ia passar sempre por moço, porque ele só usava pomada sardina no rosto, não tinha uma ruga, é só isso que eu me lembro e uma vez que o Pichinguinha foi lá também, na casa dele.
P/1 – Ah, o senhor lembra?
R – Malmente eu me lembro, mas eu não tive tanto convívio na casa porque eles eram ricos, e nós éramos pobrezinhos, então nós não tínhamos contato. Mas aqui dentro do museu teve uma época que teve os discos da era dos 30, 40, 50, então peguei um bocado de discos, passava ele aí, mas não pude levar um pra casa, mas eu tenho certeza que agora vou levar alguma gravação dele.
P/1 – E o senhor gosta de tocar também?
R – Tenho meu violãozinho giannini que é meu companheirinho agora, ele e minha patroa.
P/1 – O que o senhor gosta de tocar?
R – Meu fraco é samba canção.
P/1 – Tem preferência por autor?
R – Ele já faleceu também, era o rei da voz Orlando Silva. Nosso (lupico?) a gente nem se fala, aquele era o cantor das multidões, Orlando Silva no Rio Grande. E aqui em São Paulo foi Augustinho dos Santos, gostei muito daquele menino, senti Paulo Sérgio também, sempre fui uma pessoa romântica, tanto que eu não tenho iê iê lá em casa, só discos antigos, discos velhos, sambas, valsas.
P/1 – Vamos falar da literatura, o senhor sozinho escreve seus livros? Como que vem a inspiração? Como o senhor escreve? Em que horário o senhor trabalha?
R – O espaço de tempo que me sobra um pouquinho, eu escrevo. Mas não pude soltar nenhum ainda, aqui no Museu tem uma pessoa que eu não posso citar nome que vai me dar uma força nessa revisão, que eu me aposentando vou pegar um troquinho a mais, aí vai dar de editar esse meu livro. Trouxe aí um rascunho, tem uma pessoa que está batendo em uma maquinazinha.
P/1 – O senhor mesmo escreve?
R – Escrevo.
P/1 – O senhor mesmo passa para o papel?
R – Eu escrevi já no meu caderno, escrevi no meu caderno o rascunho, e a pessoa então... Mas eu escrevi a minha vida, não aumentei, nem diminui, é o que aconteceu comigo, sobre meu filho, sobre a minha vida dentro do alcoolismo e a felicidade que eu sinto hoje sóbrio.
P/1 – Como funciona a Associação onde o senhor tem um cargo? Como funciona?
R – A Associação a pessoa chega ali, nós não temos... Nós temos ajuda do governo sobre casa, que hoje em dia ela está situada perto do viaduto Dona Paulinha, ali é nossa sede própria, mas quando eu cheguei lá só tinha três núcleos, então nós pegamos e fomos indo no decorrer dos anos, nós hoje temos mais de cem núcleos oficializados e outros quatro mais simples para oficializar. A Associação nós é que levamos ela, se falta uma lâmpada eu compro uma lâmpada, se falta uma cadeira, outro compra uma cadeira e assim, é tipo de uma família unida porque nós temos esse zelo lá dentro que Associação é a família que mais cresce no mundo, porque toda noite, mesmo nesse horário está chegando a hora da chamada para as condecorações nos núcleos, nove horas, às dez horas termina, diariamente, noturnamente tem reuniões, em São Miguel Paulista do primeiro dia do ano ao dia 31 de dezembro, noite e dia, então toda noite sempre tem um que se levanta para fazer seu voto e fica na Associação.
P/1 – E hoje o senhor é conselheiro?
R – Membro do conselho deliberativo da Associação.
P/1 – E como o senhor chegou nessa posição?
R – Mesmo lá dentro, nós temos nossas eleições, para isso nós fazíamos nosso voto para votar e ser votado, então na nossa Associação nós damos palestras em ginásios, em igrejas, em cadeias, penitenciarias porque a pessoa, muitos veem nossas palestras, eles vão lá pra ver se é verdade que tem gente lá dentro que estava separado da mulher por causa da bebida, hoje estão os dois recuperados, que, às vezes, o homem e a mulher passam a ser alcoólatras, um para um lado e outro para o outro, então por intermédio da Associação se unem novamente, as portas se abrem novamente, a família se une novamente. Então ali tem as promoções, nós temos os zeladores ali dentro, pagos por nós mesmos, não tem... É a mesma coisa que uma igreja, né? Então a pessoa chega ali e tem aquilo como uma igreja agora, chegou domingo a gente tem que estar lá, olhando a turminha que chegou caído, uma moça que chega inchada, era uma filha de uma boa família, era uma cozinheira, uma costureira, então hoje está lá, arruma um casamento se casa lá, tudo isso aí. Associação é um lar aberto de felicidade.
P/1 – Vou pedir para o senhor falar alguma coisa para a gente encerrar a entrevista, pode ser alguma coisa que a gente não tenha falado, alguma pergunta que o senhor gostaria de responder?
R – Sobre?
P/1 – Sobre o que o senhor quiser, o senhor pode falar alguma pergunta que a gente deixou de fazer, o que o senhor quiser falar... Alguma coisa para deixar registrado.
R – Eu só tenho a dizer que eu gostei muito da entrevista, a senhora me entrevistou coisa que eu há quantos anos, desde a hora que nasci até hoje, está sendo a segunda pessoa que me entrevista, depois que passei a ser sóbrio, não deixou de fazer as perguntas que eu queria citar mesmo. As frases que digo é que sou feliz graças a Deus, graças a Associação antialcoólica e graças, porque não dizer, ao seu Júlio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Vivo muito feliz hoje, tenho amizade com boas pessoas, de alto gabarito, tenho meu padrinho Gil Gomes que me condecorou com a medalha de onze anos, tenho (Samir acho?), tenho o Edson Ferrarini que me condecorou com a medalha de 9 anos, tenho pessoas de alto gabarito no meu coração, coisa que não tinha mais nada disso. E tenho esse mundo que Deus deu para nós, que hoje eu vejo ele tão lindo, quando amanhece já estou dentro da minha condução pra vir pra cá, gosto muito, vivo, e luto com o dia a dia, às vezes, venho trabalhar doente porque o gaúcho gosta de trabalhar, fico muito grato desde já. Desejando a você e toda sua equipe, todos seus familiares um 92 repleto de muita paz, de muita sinceridade, muita alegria, conforto e money, bastante.
P/1 – Muito obrigada, senhor Miguel!Recolher