P1 – Boa tarde, Li An! Tudo bem?
R – Tudo bem, Genivaldo.
P1 – Então, a gente vai começar com uma pergunta bem básica: gostaria que você me informasse seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R – Marília Furtado de Andrade, 21 de maio de 1950, Belo Horizonte. Apelido: Li An.
P1 – Qual o nome dos seus pais?
R – É Gabriel Donato de Andrade e Vera Furtado de Andrade.
P1 – Você tem irmãos?
R – Sim, seis.
P1 – E onde você está, nessa escadinha? Mais velha, do meio ou a mais nova?
R – Eu sou ‘velhança’, uma criança velha. Sou a mais velha.
P1 – Os seus pais são de Belo Horizonte, de Minas Gerais mesmo ou eles vieram de algum outro lugar, pra Belo Horizonte?
R – Por uma árvore genealógica e lembranças da família, parece que todos os antepassados vieram no século XVIII, de Portugal e África, provavelmente. E os índios também. Uma mistura. Meus pais nasceram no interior, mas mudaram pra nova capital lá pelos anos trinta.
P1 – Certo. Então, vamos começar a falar um pouco sobre a sua infância, Li An. Você se recorda da casa onde você morava, quando você era criança?
R - Recordo bastante, sonhei muitos anos com essa casa. E tenho uma lembrança forte, de quando eu tinha dois anos e meio, que é a minha lembrança mais antiga, relacionada com essa fazenda que eu vivi até os três anos.
P1 – E do que você se lembra, dessa fazenda?
R – Eu lembro... essa minha lembrança, quer saber? (risos) Nós saímos de carro, meu pai e minha mãe na frente, com a irmã mais nova, que tinha dois meses e eu e o segundo irmão atrás. Íamos pra uma outra cidade lá pertinho, sei lá onde e, no meio do caminho, falei que estava com fome. Então, meu pai parou o carro e me pôs pra mamar na minha mãe. Pôs a minha irmã no ‘moisezinho’ e me pôs pra mamar na minha mãe. E eu sei que...
Continuar leituraP1 – Boa tarde, Li An! Tudo bem?
R – Tudo bem, Genivaldo.
P1 – Então, a gente vai começar com uma pergunta bem básica: gostaria que você me informasse seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R – Marília Furtado de Andrade, 21 de maio de 1950, Belo Horizonte. Apelido: Li An.
P1 – Qual o nome dos seus pais?
R – É Gabriel Donato de Andrade e Vera Furtado de Andrade.
P1 – Você tem irmãos?
R – Sim, seis.
P1 – E onde você está, nessa escadinha? Mais velha, do meio ou a mais nova?
R – Eu sou ‘velhança’, uma criança velha. Sou a mais velha.
P1 – Os seus pais são de Belo Horizonte, de Minas Gerais mesmo ou eles vieram de algum outro lugar, pra Belo Horizonte?
R – Por uma árvore genealógica e lembranças da família, parece que todos os antepassados vieram no século XVIII, de Portugal e África, provavelmente. E os índios também. Uma mistura. Meus pais nasceram no interior, mas mudaram pra nova capital lá pelos anos trinta.
P1 – Certo. Então, vamos começar a falar um pouco sobre a sua infância, Li An. Você se recorda da casa onde você morava, quando você era criança?
R - Recordo bastante, sonhei muitos anos com essa casa. E tenho uma lembrança forte, de quando eu tinha dois anos e meio, que é a minha lembrança mais antiga, relacionada com essa fazenda que eu vivi até os três anos.
P1 – E do que você se lembra, dessa fazenda?
R – Eu lembro... essa minha lembrança, quer saber? (risos) Nós saímos de carro, meu pai e minha mãe na frente, com a irmã mais nova, que tinha dois meses e eu e o segundo irmão atrás. Íamos pra uma outra cidade lá pertinho, sei lá onde e, no meio do caminho, falei que estava com fome. Então, meu pai parou o carro e me pôs pra mamar na minha mãe. Pôs a minha irmã no ‘moisezinho’ e me pôs pra mamar na minha mãe. E eu sei que foi nessa data, porque minha mãe só amamentou dois meses. Então, eu tinha dois anos e meio. E meu pai, quando ouviu essa história, há poucos anos, falou assim pra mim: “Ah, então é por isso que você não tem ciúme!”
P1 – E depois desse período que você disse que você passou três anos morando nessa fazenda, vocês se mudaram pra cidade, como foi?
R – Não, a gente... eu era cigana, porque meu pai fazia estradas, ele fundou uma empresa de engenharia, a Andrade Gutierrez e vivia em acampamento de beira de estrada, em casas assim, tipo MST. (risos) E de vez em quando íamos à Belo Horizonte, na casa dos avós e aí quando... eu tenho até uma foto eu com o Juscelino, na inauguração da JK, da Régis Bittencourt, em Registro. Tem uma foto que depois eu mostro pra vocês. A época do desenvolvimentismo. E depois meu pai pensou em mudar para os Estados Unidos, que ele tinha uns tios muito reacionários, que punham medo do comunismo e ele queria, então, mudar com a família para os Estados Unidos. E eu apoiava, porque eu era super fã, minha família sempre foi americanófila, desde meu avô, que foi para os Estados Unidos em 1905. Aí, com o golpe militar, ele desistiu de ir e eu fiquei antimilitar, desde aí. (risos) Você quer que continue alguma lembrança de infância, de escolaridade? Aos seis anos, eu fiquei morando com meus avós e minha madrinha, minha tia solteirona. Morri de saudades dos pais, mas aguentei. Depois minha mãe veio com os outros filhos pra Belo Horizonte e seguiu tendo filho, até tomar coragem de tomar a pílula, desobedecer a Igreja. Fui criada naquele ambiente tradicional, família mineira, um pouco modernizada pela influência americana, “pero no mucho”.
P1 – E, dessa sua infância, alguém te contava histórias ou você gostava de ouvir algum tipo de história?
R – Quando eu aprendi a ler, aí a minha atividade principal passou a ser [a] leitura. Viciada em Monteiro Lobato e, antes de aprender a ler, também contavam histórias, inclusive meu pai gostava muito de poesia, de Shakespeare. Ele lia Shakespeare pra mim, antes de eu saber ler. (risos)
P2 – Li An, você falou que sua família era como se fosse nômade, que vocês moravam em beira de estrada. Como é que foi ir pra escola? Vocês chegaram a ficar num lugar, pra isso?
R – Eu fui à escola pela primeira vez no primeiro ano primário, quando eu fiquei morando com os avós. No primeiro dia, já levei uma bronca da professora, porque a chamei de “você”. Nunca tinha aprendido a chamar ninguém de senhor. Foi uma escola muito repressiva, tenho muito trauma de infância. Ela ensinava bastante, mas era muito torturadora.
P2 – E durante a escola, assim, nos primeiros anos, você tinha alguma matéria favorita?
R – Geografia em primeiro lugar, (risos) acima de todas. Aí, depois, com doze anos, passou a ser o inglês, mas não na escola. Eu estudava particular. Que com doze anos eu fui aos Estados Unidos com meus pais e fiquei entusiasmadíssima (risos) com tudo, com a viagem. Depois voltei aos catorze, voltei aos dezessete. Aí, aos dezessete... aos dezesseis eu conheci um rapaz, irmão de uma colega da escola de freiras, que acabava de chegar dos Estados Unidos, passou lá três anos, em Nova Iorque, trabalhando de garçom, aí eu me apaixonei por ele à primeira vista, assim, só de ver na rua, por saber que vinha de Nova Iorque. Depois a irmã dele falou que ele só lia e eu não conhecia nenhum homem que lia, mas o susto quando eu fui saber o que ele lia, era tudo de revolução, de marxismo, de comunismo, de guerrilha. (risos) Foi uma mudança total na minha vida. Mudei pra escola pública, passei a... cheirei o primeiro gás lacrimogêneo e aí foi o movimento estudantil, em 1967, 1968, aí que eu conheci a China, que é o motivo dessa entrevista, a minha relação com a China, porque eu entrei pra um grupo político, que estava se transformando em maoísta. Ação Popular, que era uma organização que vinha da Igreja Católica, mas depois do Golpe de 64 se transformou em marxista e linha chinesa.
P2 – E como chegou essa influência chinesa?
R – Quando... depois do Golpe de 64, a repressão à UNE, tudo, eu até fui presa no congresso de Ibiúna, em 1968, fiquei presa uma semana. Mas com o Golpe de 64, a esquerda no Brasil e a juventude começou a olhar pro mundo. Quer dizer: muitos já olhavam, mas os jovens que não olhavam, como eu, viram o movimento estudantil na França, movimento estudantil nos Estados Unidos, no México, pra todo lado e na China, a juventude, Guardas Vermelhos, tomando poder. Era a notícia que chegava, instaurando [o] igualitarismo absoluto. E as comunas. E teve um racha no movimento comunista mundial, a partir de 1957, que a China e a União Soviética entraram em dissidência, em discordância. Então, pra esquerda tinha o exemplo russo, que era o Prestes, Partido Comunista Brasileiro; tinha o exemplo cubano, que gerou a guerrilha urbana no Brasil; e o modelo chinês, que era sintetizado em criar bases de apoio pra uma guerra popular prolongada. E o russo, que era investir mais nas alas democráticas do Exército e agir mais dentro da legalidade. Então, os jovens gostavam mais da linha fidelista e chinesa, que ofereciam o socialismo mais rápido. (risos)
P2 – E essa época do movimento estudantil, você lembra de algum momento marcante?
R - Muitos. Inclusive agora, desde maio, tem [em] São Paulo e no Brasil um movimento que [se] chama “Geração 68 Sempre na Luta”. Eu até devia estar com a camiseta aqui, que aqui em Lisboa também vou nas manifestações com essa camiseta. Então, reúne os velhos de guerra, os sobreviventes dessa época e aí a gente discute muito: tem Zoom, curso, debate, grupo no zap. Um debate intenso, desde maio, entre os velhos, a velha guarda. Então, reativa muito a nossa memória, os eventos que a gente viveu em 1968. A prisão em Ibiúna foi um momento muito importante e o fato da gente ficar quase dia e noite de plantão, fazendo - no Centro da cidade, lá na faculdade de Direito - comício, passeata, panfletagem, estudando as obras de Mao Tsé-Tung. Eu comecei... até brinco que eu aprendi espanhol com o Mao Tsé-Tung, porque eu fazia tradução dos textos em espanhol para o português. (risos) Depois imprimia no estêncil, datilografava. Era um trabalho do dia a dia. Já a prisão, quando chegou o Exército, polícia, sei lá, começaram a atirar, deu um certo medo deles quererem nos metralhar naquele momento, mas era só pra gente levantar o braço. Depois que vem a parte pior, dos quatrocentos mortos, a partir do AI-5, que foi logo depois do congresso, em Ibiúna. Nesse momento a gente já foi, dentro da política da Ação Popular, transferidos pra política de proletarização, seguindo o exemplo do Mao, mandando todo mundo trabalhar com camponês, operário. Aí a gente foi trabalhar com operários da cidade industrial de Belo Horizonte, Contagem. E lá comecei a dar aula de alfabetização de adultos, que eu já tinha feito o curso do Paulo Freire, com uma pessoa, em Belo Horizonte. Foi muito bom. Eu fiquei nessa profissão [por] mais de seis anos, dando aula de alfabetização. Porque depois de Contagem, nós fomos mandados pra Londrina, no Paraná. Aí já existia o Mobral e eu dava aula pelo Mobral. Mas pra sair da cidade industrial, antes de sair, a gente saiu da Ação Popular e passou pro PCdoB, que era a linha chinesa mais antiga, porque o PCdoB era um racha do PCB. Eram militantes que vinham com Prestes e em 1962 racharam e foram pra linha chinesa mais radical. Vocês querem isso tudo de detalhe?
P2 – Não, só os momentos que forem mais importantes pra você, que você quiser contar também, não precisa ser tudo.
R – (risos) Não, porque é tanta coisa! Eu fiz um depoimento, dei um depoimento em 2014, pra Comissão de Direitos Humanos do Paraná, sobre a minha vida. Está no Youtube. Então, quando era Direitos Humanos, era mais política. Como aqui, o Museu da Pessoa, não sei o que é bom dar mais profundamente.
P2 – É, então, aqui é mais sobre a sua história de vida, mesmo. Eu ia até te perguntar agora sobre a época da faculdade, como foi a sua primeira faculdade.
R – Foi em Londrina, que em Belo Horizonte eu abandonei. Em 1968, eu estava no terceiro científico, pra Medicina, que eu queria ser médica da guerrilha. Mas aí, com o movimento estudantil, o colégio fechou quase o ano inteiro e, quando voltou, eu já estava indo morar na cidade industrial, abandonei, faltando um mês pra terminar. Fui idiota. Os professores, amigos falavam: “Não desiste, faz um trabalho de cada matéria, que a gente te dá o diploma”. E eu, toda arrogante: “Não vou mais estudar”. Final de 1968. Quando foi em agosto de 1970, chegou em Londrina o nosso orientador, Pedro Pomar, me dando como tarefa entrar na faculdade e fazer movimento estudantil. Ele não queria que eu fosse trabalhar com camponeses e operários. Ele tinha uma visão diferente, era mais pela liberdade democrática. Ele estava mais certo, vendo hoje. Na época, eu achava que era um rebaixamento, que eu não era capaz de viver com o operário e camponês, ainda mais numa cidade do interior, que minha infância inteira eu rejeitei o interior, sonhava em viver em lugar desenvolvido, como São Paulo ou Hollywood. (risos) Então, a faculdade, lá eu tive que fazer um supletivo correndo, que é uma história lá, não vou entrar nesse detalhe agora. Eu sei que eu entrei na faculdade de Pedagogia, que era o curso mais garantido que eu ia entrar, que eu entraria e também que era tarde e eu já tinha uma filha, que eu ia contar que eu engravidei lá em Contagem, que era pra ser família operária. Aí o PCdoB já queria ir direto pra guerrilha. E eu, com a barriga de seis meses na reunião lá, fui rejeitada. E assim sobrevivi, porque anos depois a viúva desse meu guru, chefe Pedro Pomar, falou que, na época, eles até pensaram em ficar com a nossa filha, mas se acharam velhos e, com isso, salvou nossa vida. Aí eu fiquei quatro anos e meio em Londrina, com a tarefa de organizar o movimento estudantil, o marido e a filha. O marido era vendedor de remédios e eu dava aula de alfabetização à noite e fazia o movimento estudantil, fizemos dois jornais e, na véspera de vir embora de Londrina, a gente ganhou todos os diretórios, DCE, uma vitória arrasadora do nosso movimento, baseado num jornal chamado “Levanta, Sacode a Poeira e Dá a Volta Por Cima. Poeira”. Então, enfim a gente conseguiu esse objetivo. E o objetivo de dar aula pra boia-fria eu não consegui organizar, pra lutar contra a ditadura. (risos) Não consegui. Eles nem sabiam o que queria dizer a palavra greve, o nível era muito baixo. Então, eu fiz Pedagogia, eu nunca tive que abrir um livro, o curso era fraquíssimo. Aprendi mesmo foi jornalismo, com os colegas que participavam, que também eram jornalistas, então era um coletivo muito interessante. Depois viemos embora pra São Paulo, em 1974, outubro, porque estava ameaçada ser presa em Londrina. E aí eu fiquei dois anos meio motorista do Pedro Pomar e ele me orientando como se fosse pós-graduação, pra escrever uns ensaios: um era sobre a história da colonização do Paraná, do norte; outro sobre a Revolta da Chibata, com o marinheiro João Cândido liderando; e outro uma crítica a um livro sobre boia-fria, que eu fiquei fazendo nesse período, em São Paulo. Aí, depois, fomos pra Belém do Pará, aí pra fazer um projeto de colonização no Vale do Xingu, rio Fresco, pra assentar três mil famílias. O meu marido foi primeiro e meu pai, querendo que eu saísse da clandestinidade, porque desde 1968 eles não sabiam onde eu vivia, sabendo que a gente queria ir pro Amazonas, ofereceu a empresa dele implantar um projeto sob nossa coordenação e aí foi uma ideia bem maluca, que até o Pedro Pomar achou razoável, ele era paraense, estava pensando em voltar pro Pará e a casa lá arrumada, pra ele vir com a esposa, já tinha filho no Pará, a gente esperando-o em Belo Horizonte, viemos de Belém pra pegá-lo e íamos de carro, porque ele era clandestino, não podia pegar avião. Ele tinha 63 anos. Aí ele não apareceu às sete da manhã, que ele ia chegar de ônibus de São Paulo, aí quando a gente pega o jornal, tinha sido assassinado na véspera, o Exército cercou a casa que ele estava reunido e fuzilou ele e outro, Ângelo Arroyo e prendeu os outros que estavam na reunião, sendo que um mais foi morto na tortura. Isso foi [em] 16 de dezembro de 1976. A gente já vinha perdendo muitos amigos, mas o Pedro Pomar era como meu pai, meu segundo pai, muito parecido até, aliás, com meu pai e durante três anos eu fiquei assim: tudo que eu pensava em fazer o meu cérebro imediatamente pensava: “O que Xio ia dizer?” - porque a gente o chamava de Xiaoping - “O que ele ia achar disso?” Então, eu tinha uma dependência total dele, apesar de não encontrar muito. Em São Paulo eu era motorista eventual dele. O levava pra umas cidades próximas e de vez em quando ele vinha em casa, me orientar no meu trabalho e quando ia buscá-lo, no fusquinha que a gente tinha, tinha que ficar de olho nos camburões, pra ver se não tinha ninguém sendo seguido. Era sempre muito tenso. Anos e anos depois eu via camburão e já dava um frio na barriga. Mas aí a gente teve que ir pro Pará assim mesmo, que tinha o compromisso com a empresa e com o próprio Pedro. Pra mim foi dificílimo. Meu marido que tocou à frente, o projeto. Eu queria estar no movimento de anistia, alguma coisa relacionada à memória dele ou estar com os meus colegas do Paraná fazendo movimento, não queria estar lá, fingindo de burguesa, tocando projeto. Mas tive que ficar com a Helena, que já tinha sete, oito, nove anos. Depois, só em 1980 que a gente vem pra São Paulo, passando um ano em Brasília pra aprovar o projeto no Senado, que eram quatrocentos mil hectares. E aí fomos à Belo Horizonte, pra decidir como implementar o projeto, que estava no papel, tinha só uma área que meu marido comprou lá na região, na posse, já estudando solo, tudo, da região, pra elaborar o projeto, que era um projeto de três volumes, muito detalhado, com estudos de solo e tudo, que era uma área que o regime militar já tinha destinado pra colonização particular, mas era pros Ometto irem lá. Só que nós ganhamos a licitação. E, na hora de ir pra reunião, estava meu pai e o sobrinho dele, que era o executivo maior na empresa e aí eles falaram que nós não íamos poder executar o projeto, que tinha que ser os engenheiros. Aí eu falei: “Então, eu não quero. Eu não vou seguir ordem de engenheiro que não entende nada de social” e fui embora pra São Paulo, arrastei meu marido no mesmo dia e no dia seguinte já tinha alugado um apartamento aí no BNH, do lado do museu (risos) e aí fui trabalhar no jornal “Movimento”, fui fazer política, fiquei feliz da vida, aprendi muito com eles, o ano que eu aprendi mais profissionalmente, eu acho. Em Belém, eu fiz um curso de pós-graduação, que a Fundação Getúlio Vargas dava pra Sudam. Um curso de seis meses, seiscentas horas, muito bom, chamava Desenvolvimento Rural Integrado. Eu aprendi bastante nesse curso. Porque, em geral, nas escolas, eu quase nunca aprendi nada. Aprendi mais lendo.
P1 – Li An, continuando essa sua chegada em São Paulo e a sua entrada no jornalismo, conta um pouco pra gente como foi essa experiência de começar a trabalhar com jornalismo, em São Paulo.
R – São Paulo, jornal “Movimento”, Raimundo Rodrigues Pereira, que era o editor e meu irmão também tinha um jornal em São Paulo, na mesma época, também de esquerda, a esquerda do “Movimento”, chamava “Em Tempo”, mas a turma mais ex-maoísta: PCdoB, AP, ficou no “Movimento” e os trotskistas e outras tendências, já esqueci os nomes das tendências, foram formar o “Em Tempo”. Então, eu fazia matérias pro “Em Tempo”, mas eu era mais orgânica no “Movimento”. Pro “Em Tempo”, eu fazia matérias de questão agrária, que esses anos todos de Londrina o Pedro Pomar orientou muito o nosso estudo em questões agrárias. Mais pra frente eu até fui trabalhar no grupo agrário do PT, depois no Incra e no Ministério da Reforma Agrária, eu ia até fazer um mestrado em Sociologia Rural, depois mudei de ideia. Então, no “Movimento” eu aprendi bastante isso. Me mandaram pro nordeste, fazer uma reportagem, uma série sobre os camponeses sindicalistas, foi muito interessante. Pena que não durou, porque no ano seguinte o jornal fechou, aí a gente mudou pra Belo Horizonte, eu tive ideia justamente com a turminha lá no “Movimento”, o Tibério Canuto, que já foi de AP, do Partidão, não sei onde ele está hoje, falou num bar lá perto do jornal “Movimento” que ia ter eleição no ano seguinte, isso foi em 1981, que todo mundo que pudesse, se candidatasse, pra fortalecer as bancadas. E aí eu tive a ideia do meu marido candidatar, porque ele tem o mesmo nome do pai dele, Manoel Costa e o pai foi deputado 32 anos, presidente da Assembleia Legislativa de Minas. Era do PSD, depois Arena, mas era uma Arena light. Ele era amigo do Tancredo, do Israel Pinheiro, a turma ex-PSD. E ele tinha morrido fazia poucos anos, então eu pensei assim, que Manoelzinho, o Mané, podia herdar alguns votos do pai, mas não podia entrar no PT, porque aí era mais difícil conseguir esses votos. Então, eu o sugeri entrar no MDB e depois passar pro PT. Só que ele até foi o mais votado do MDB, 148 mil votos. Ele trabalha bem, além de que meu pai deu uma força financeira e também, no norte de Minas, meu pai tem fazenda e então ele teve muito voto e, na época, o que o fez ter mais votos, foi fazer ‘santinho’, porque o voto era vinculado, então ia a chapa toda, desde o governador, senador... era o Tancredo o governador... e aí ia até o vereador. Não tinha eleição pra prefeito ainda, o prefeito era nomeado e ele foi eleito, mas eu estava fazendo um mestrado em Sociologia na USP, ia sempre à São Paulo e eu tinha ficado sócia do meu irmão numa gráfica, companhia Editora Juruês, que vinha crescendo aos poucos. Então, eu ia muito à São Paulo, acabei não me adaptando a Minas Gerais, à vida lá, política, não queria passar pro PT também, acabamos separando, mas, antes disso, eu tive minha segunda filha, Petra. Quando eu cheguei em Minas, que achei que a vida não tinha mais perigo, então decidi ter uma segunda, que a primeira foi ideia e pressão do marido. E aí eu estava grávida de um mês da Petra, não tinha contado pra ninguém, quando meu pai vem e fala que o projeto lá do Pará, Tucumã, estava dando errado, porque foi invadido por garimpeiros e os engenheiros não estavam dando conta, que ele ia devolver o projeto pro Exército, falou bem assim, porque o Exército tinha grupo executivo em terras do Araguaia, em Tocantins, que era semi civil, mais militar, depois da guerrilha do Araguaia, que era pra regularizar as questões dos conflitos de terra no sul do Pará. Era até um cara muito interessante que dirigia esse projeto de assentamentos, o Iris Oliveira, mas só de falar de devolver pro Exército, eu não aguentei, aí eu pedi pro meu pai pra ir pra lá, tentar salvar o projeto. Nem falei que estava grávida. E fui, fiquei lá um ano e meio, tentando. E agora eu acho que eu nem queria falar sobre isso, porque eu sofri muito lá, fiquei tendo pesadelos anos a fio sobre esse projeto. Me sentia muito solitária, sem equipe e tudo [era] difícil demais. Aí, então, depois voltei de lá em 1984 e fui tentar, com meu irmão, fazer uma revista de esquerda, mas só saiu um número. Nós não tínhamos experiência. “Brasil-Extra”. Aí, o que deu certo foi que a gente comprou a “Gazeta de Pinheiros”, jornal de bairro e ganhamos a “Lei é Livre”, do Caio Graco, que ia fechar, estava dando pra quem quisesse honrar os assinantes. Então, nós tínhamos esses dois projetos pra concentrar a revista, nós não tínhamos condições de fazer uma revista, não tínhamos experiência, o caipira e o capiau, vindo da clandestinidade, meu irmão vinha de Minas também, ele era muito... como é que se diz? Trotskista. Fazer frente. Os trotskistas sempre rachando, precisava fazer muita frente. Então, eu escolhi, pra ter experiência de jornal e, nesse ínterim, o Tancredo ganha. Ah, pra segunda edição da revista, eu tinha indo entrevistar o Tancredo, em Minas, lá no Palácio das Mangabeiras, junto com um jornalista mineiro, o Peninha e, na saída, Tancredo virou pra mim: “Fala pro Manoelzinho que, se ele não votar em mim no Colégio Eleitoral, ele nunca mais põe os pés em Minas Gerais”. Falou todo suave. Aí claro que o Mané votou nele, né? O Pmdb inteiro, claro. Só o PT que não votou. E o Tancredo prometeu pro Mané que ele ia ser prefeito de Minas, mas o Tancredo vai e morre, né? Aí vem o Sarney, mas o Sarney, graças ao Ulisses Guimarães, cumpriu muito dos acordos que o Tancredo tinha prometido pro Ulisses, inclusive criar o Ministério da Reforma Agrária, onde eu fui trabalhar. Eu larguei um pouco a editora e fui pra Brasília, fazer uma pesquisa sobre o resultado dos assentamentos feitos desde os militares, no Brasil. Fiquei um ano fazendo essa pesquisa, trabalhando, aprendendo um montão, porque eles trouxeram as melhores pessoas do Brasil pra implantar a reforma agrária. O governo Sarney acho que foi o que fez mais reforma agrária. Inclusive o projeto Tucumã foi invadido por três mil posseiros. O projeto lá do Pará, que eu trabalhava. No governo Sarney. Eu brincava que era a maior reforma agrária do governo Sarney. Três mil de uma vez invadir uma terra que já tinha estrada, toda a infraestrutura. Depois desse período aí a China volta com tudo, porque o MST estava querendo fazer um salto mais rápido à cooperação no trabalho, nos assentamentos, porque em Cuba a agricultura é toda estatizada, ou era, e na China a gente tinha ouvido falar que eram comunas e com o Deng Xiaoping não vinha notícia, não chegava notícia como estava o campo. Então, eu resolvi, consegui, pedi na embaixada uma viagem de investigação sobre a descoletivização no campo na China. E eles aceitaram. Acho que o Wladimir Pomar, que é filho do Pedro Pomar, deve ter feito ‘pistolão’ pra mim, lá. Sei que a viagem saiu e eu convidei minha mãe, eles aceitaram levar minha mãe, que ela tinha muita experiência de fazenda e interessou muito em ir junto e passamos mais de um mês no oriente, em outubro de 1986. Foi uma viagem muito importante pra nós. E o mesmo intérprete da viagem do Pedro Pomar, em 1971, que eu tenho até uma foto, mas acho que atrapalha mostrar a foto aqui, o Pedro Pomar foi lá, tem uma foto dele cumprimentando o Zhou Enlai, que era o Primeiro Ministro e atrás, assim, o tradutor, que foi o tradutor na minha viagem. Ficou um mês com a gente, com a minha mãe e eu. Ele já era diplomata, tinha servido em Brasília. Então, fomos muito consideradas e eles falavam: “E você é mais considerada ainda, porque viaja com a mãe, porque o ocidental não considera os velhos”. Então, eu tinha cartaz. Minha mãe tinha 59, era novinha, comparando comigo hoje, que já estou com 71. Porque aí eu quis voltar à China, quando a minha filha Petra tinha a minha idade na época, 36, que foi em 2019, pra filmar e percorrer os mesmos locais com ela. Tipo: Mao, mamãe e eu. Mas ela preferiu fazer campanha pro Oscar, não pôde ir, prometeu ir depois. Um dia, quem sabe iremos? Então, essa viagem à China foi muito importante pra mim, escrevi vários textos, inclusive um livro depois, sobre a viagem eu publico em um livro que hoje eu tenho um pouco de vergonha desse livro. Deixa eu mostrá-lo aqui: “A Comuna de Pequim”. Porque, com o massacre dos estudantes na Praça da Paz Celestial, em 4 de junho de 1989, eu gostaria que a China abrisse politicamente e os estudantes pareciam tão legítimos. Agora viemos de Hong Kong, levantando cartazes do Trump, eu fico um pouco em dúvida o tanto que eles podem ter sido manipulados, mas a repressão foi muito forte e agora, em Hong Kong, por exemplo, eles ainda não mataram nenhum estudante, então eu bato palmas, porque Tiananmen foi muito radical. Acho que foi uma atitude imperial, que não levante a cabeça por mais muito tempo. Então, isso, ali, o meu erro principal nesse livro é que, ao relatar a minha viagem e as transformações econômicas de Deng Xiaoping, eu me apoiei muito nos intelectuais franceses, que diziam que as reformas de Deng Xiaoping iam dar com os burros n’água, iam dar errado, não acreditavam que ia dar certo e deu muito certo. Inclusive a Petra, outro dia, veio me cobrar, ela andou lendo e falou: “Mãe, você errou feio!” E também de defender os estudantes, sem querer nem saber se eles eram infiltrados da CIA ou o que, sem duvidar. Mas de qualquer jeito a reportagem sobre a viagem saiu e depois pusemos também os diários da minha mãe, ela fazia diário toda noite. Eu dormia, ela estava escrevendo. Nós publicamos no site Medium, “Diários da China”, de Vera Furtado. Editamos. Faz uns poucos anos. Faltou a minha parte, os comentários, que eu ainda estou devendo. Então, eu prossigo?
P1 – Eu queria te perguntar sobre essa viagem à China, de experiência pessoal mesmo: o que você sentiu estando na China, o que você viu, que te chamou atenção. Conta um pouco pra gente.
R – Primeiro eu vi que tinham descoletivizado o campo. Até no livro eu ponho uma frase assim, fictícia: “Você viu que estão distribuindo as terras todas para os camponeses?”, “Isso é comunismo”, “Não, é na China”, “Ah, então é capitalismo”. (risos) Então, as famílias estavam felizes da vida, com terra, podendo vender seus produtos e consegui flagrar um boia-fria lá trabalhando pra um camponês remediado, (risos) que era assim, mostrando a tendência da desigualdade ir crescendo, à medida que as reformas capitalistas, de mercado, iam entrando. Comecei a levantar questões. E, em todo lugar que a gente chegava, eles perguntavam primeiro o que eu achava da União Soviética. Eles ainda morriam de medo de uma guerra atômica com a União Soviética. Impressionante! Tinham até abrigos antiaéreos. E na volta eu comentei numa palestra, num debate pro pessoal do Museu Nacional, no Rio, que antropologicamente eu me senti, pela primeira vez, patriota. Assim, porque eu morar numa cultura totalmente desconhecida, viver lá e sem imprensa livre, pra mim parecia difícil. E o jeitinho, porque lá tudo é muito certinho. O ‘jeitinho brasileiro’ lá não tinha. Então, eu senti saudade do Brasil. (risos) Mas, ao mesmo tempo, eles parecem uma tribo indígena, porque eu tinha convivido muito com índio na Amazônia e eles são inescrutáveis, pra quem não conhece, então os chineses pareciam assim. Também [da] raça amarela, olho puxado. Mas uma tribo de um bilhão e duzentos milhões de habitantes e muito nacionalista. [Em] muitos lugares [que] a gente chegava, parecia que eles nunca tinham visto um ocidental. Até passavam a mão no cabelo da minha mãe, que era um pouco aloirado, pintado. Eram muito curiosos. Todos ainda vestiam roupas Mao Tsé-Tung, azul marinho ou verde, militar, praticamente todo mundo. Bicicletas. Carro, quase nenhum. Agora, então, que eu estive agora, o susto que eu levei, em ver a quantidade de carro em Pequim, Xangai, assustador. Muito. Parecia, assim - em Xangai, então – uma Quinta Avenida de Nova Iorque. Só a loja da Tiffany, tem Tiffany em oito andares, escrito. Muito impressionante. Parece que falaram: “Em troca de vocês investirem aqui, nós deixamos, em algumas cidades, pelo menos, vocês podem recriar os seus mercados”. Então, é uma coisa que eu ainda estou digerindo, mas na época a conversa mais importante que eu tive foi com um cara do Comitê Central, que eu não me lembro o nome, tenho uma foto dele, minha mãe até anotou, tem anotado as coisas que ele foi falando e ele falou que os russos iam se foder, em outras palavras, porque estavam abrindo primeiro a política, pra depois abrir a economia. Que eles não, iam abrir, estavam abrindo a economia e a política sabe-se lá quando iam poder abrir. E foi justamente o que aconteceu. Isso foi em outubro de 1986, em 1989 caiu o Muro de Berlim. E com a “perestroika” (mudanças estruturais), “glasnost” (abertura política e transparência) e tal, eles fizeram mais “glasnost” que “perestroika”. Mais abriram politicamente, do que mudaram economicamente. Então, essa fala desse chinês foi bem precursora do que ia rolar na China. E a comida. Aprendi a tomar cerveja, que eu não tomava. Lá eles servem numa garrafa verde, sem rótulo, nos restaurantes pra turistas que a gente ia, né? Eles enchiam o copo igual enche de água. Então, aprendi a tomar cerveja com comida. E a minha mãe contava, em cada lugar que a gente ia, quantos pratos eram servidos, porque o mais importante foi em Pequim, com o pessoal do Comitê Central, foram 24 pratos. E o mínimo eram quatro pratos. Aí, conforme ela via a nossa importância, de acordo com a quantidade de pratos no lugar que a gente estava visitando. (risos) E foi emocionante também, um dia, em Xangai, que nós fomos visitar um casarão estilo francês, assim, de três andares, que eles devem ter desapropriado dos franceses, transformado numa escola de música pra crianças. Visitamos a escola toda, vimos as crianças tocando. Minha mãe, na saída, encheu os olhos d’água e falou: “Agora eu te entendo”. Eu achei que ela ia ficar assustada, com medo de tomarem a casa dela em Belo Horizonte, (risos) mas não, ela achou bacana. (risos)
P1 – O que você sentiu, o que você conseguiu absorver da cultura, da comida? O que você achou dessa experiência, nesse nível?
R – Da cultura quase nada, porque eu também me recusava. Eu queria só ir pro campo, entrevistar camponeses. Eles levavam a gente pra museu e eu ficava ‘entojada’. Eu não tinha o mínimo interesse, na época. O meu interesse eu tenho hoje, depois de conhecer esse livro, “Fundamentos da Cultura Chinesa” (Em francês: “La Souplesse du dragon: Les fondamentaux de la culture chinoise”), porque esse autor, o Cyrille J.-D. Javary, é um especialista na China, já foi à China sessenta vezes e ele traduziu o I Ching do chinês pro francês, que é a melhor tradução que tem, incomparavelmente. Não tem nem comparação, é muito boa. E desde 2002 que eu consulto regularmente o I Ching e leio os livros que o Cyrille J.-D. Javary vai nos mandando sobre a cultura chinesa. Então, esse aí é outro capítulo, que é o taoísmo, porque em 2003 eu aprendi a meditação zen, em um retiro na Espanha. Então, juntou o taoísmo e o budismo, o confucionismo, pra entender a cultura chinesa. E vou começar a estudar chinês agora. Já entrei em um curso on-line. Não sei o grau de dedicação que eu vou ter, porque o ano que vem é a campanha do Lula, então eu não sei se eu volto pro Brasil, é tudo incerto, mas vou me preparando. Ao mesmo tempo, estudar a cultura chinesa ensina muito pra gente, porque como o Cyrille fala: o próprio ideograma já faz o chinês pensar o cérebro direito e esquerdo, diferente de nós. A leitura já leva à formatação do cérebro. E a escrita chinesa surgiu pra escrever nos cascos de tartaruga a interpretação que o universo mandava, quando eles jogavam o I Ching. Então, foi pra explicar as tendências: vai ter enchente, vai ter guerra, que eles inventaram a escrita chinesa, há três mil e quinhentos anos. Acharam centenas de milhares de cascos de tartaruga, com os rudimentos da escrita. Eles enterraram [há] uns cem anos isso. Então, é muito curioso que a gente não saiba de nada disso.
P1 – E foi nesse período - depois a gente volta um pouco -, depois que você fez esse retiro na Espanha, que você começou a se interessar mais pela cultura chinesa e pensou em adotar o nome Li An?
R – Foi. Mas o nome Li An não tem nada a ver com a China, foi coincidência. Porque é MariLiAndrade, é o meu nome do meio. Porque eu estava reduzindo meu nome, cortando sílabas e sobrou Lian. Eu queria simplificar meu nome, não gostava de Marília, (risos) em 2008. Depois que eu vi que Li An, em chinês, quer dizer flor de lótus, que é uma coisa bem budista, um símbolo bem budista, que nasce do lodo e sublima. Então, que qualquer um tem condição de ser iluminado. Um símbolo um pouco ousado, até, eu querer chamar flor de lótus, mas foi sem querer. (risos)
P1 – Foi sem querer e soa bastante chinês, mesmo que você não soubesse.
R – Pois é. Meu mestre zen até falou: “Pô, você mudou seu nome? O mestre que tem que mudar pro discípulo, mas você não é minha discípula, tá bom”, porque eu não quis me ordenar e seguir o budismo. Tanto ele, depois, virou pro “mindfullness”, que “mindfullness” são as técnicas de meditação budista zen, adaptadas a quem não quer seguir religião. Ele chama de “atenção plena” lá na Espanha. E ele faz “coaching” de planejamento estratégico. Então, ele estava me fazendo um planejamento desses, quando eu resolvi mudar de nome, pra simplificar a minha vida.
P1 – Li An, você disse que você tinha algumas correções pra fazer sobre algumas coisas que você tinha falado. Pode falar.
R – É que quando eu falei do livro “A Comuna de Pequim”, eu escrevi de parceria com o Luís Favre, que era meu namorado na época, jornalista também, e fizemos juntos o livro. E sobre Tucumã, que eu falei que eu não queria falar muito, quem quiser saber mais, pode ler a [Revista] “Piauí” de outubro de 2020, que o João Salles está fazendo especial sobre a Amazônia e ele me entrevistou no Zoom um tempão e põe lá no depoimento sobre a experiência do projeto que ele teve lá na cidade de Tucumã. Ouviu falar de mim, aí me procurou, que ele já era conhecido da Petra. São essas duas observações.
P1 – Está certo. A Grazielle vai fazer uma pergunta pra você.
P2 – Li An, nos anos oitenta, no final dele, você ajudou a criar um centro cultural de amizade Brasil-China, como é que surgiu essa ideia?
R – Assim que eu voltei da China, eu estava querendo criar uma associação cultural ligando Brasil e China e comecei a juntar pessoas, tinha um amigo chinês, que é o único amigo chinês que eu tenho, que ele estava estudando na USP e ele era do Departamento de Línguas Estrangeiras de Pequim, eu tinha conhecido em 1986 lá, na “Foreign Language Express”, uma alma humana incrível. E amizade algum chinês propôs incluir amizade no cultural, mas as pessoas que participavam eram mais interessadas em negócios na China, eu não consegui juntar muita gente. E quando veio o massacre de Tiananmen, eu me retirei da associação e aí não sei que destino levou. Então, não chegamos a fazer muitas atividades.
P2 – E atualmente, quais são os seus projetos?
R – Nós estávamos em 1986, passar pra 2021, quer que passe correndo pra hoje?
P2 – Não. Você pode falar de lá até aqui tudo que você já fez, que você acha que é relevante.
R – Sobre a China, permanecendo no assunto China, realmente, eu fiquei uns anos afastada, não acompanhando muito de perto e lembro que em 2013 que eu voltei à China, tinha até medo deles não me darem visto, por eu ter lançado o livro, porque na época até o que foi meu guia na China, o ______ veio à São Paulo com mais dois diplomatas, pedir pra gente não lançar o livro, falando que a revolta tinha sido artificial, sabotagem. Aí eu não concordei com ele na época e achava que eles não iam me dar o visto em 2013, que a Petra foi convidada pra ir lá mostrar o “Elena”, filme dela, sobre a vida da minha primeira filha. Daí me deram o visto e eu fui, mas fiquei só dez dias, porque no último dia, uma que eles chamam lá de “pickpocket”, uma moça estava vendendo flores de plástico, assim, na calçada e a gente estava esperando um táxi já [a] meia-noite, saindo do restaurante, uma delegação grande do festival e eu não vi que ela levou minha carteira, da minha bolsinha tiracolo. (risos) E aí eu não conseguia cartão de crédito, resolvi vir embora, mas fiquei bastante interessada. Justamente, eu cheguei na França e Pequim, no dia que Pedro Pomar estaria fazendo cem anos, se ele estivesse vivo. Foi uma data importante. E aí eu fiquei querendo voltar à China. Ah, não, antes disso, estou esquecendo. Em 2003, eu fui ao Acre, a convite de uma irmã que mexia com Santo Daime, que ela queria que eu conhecesse a turma dela lá, que eu estava indo pra Europa, que tem que vir antes porque eu estava indo pra Europa. (risos) Ai, é tanta coisa! Eu sei que vi um espetáculo de teatro que mostrava os microempreendedores do ano no Acre, promoção do Sebrae. E aí tinha uma mulher de Cruzeiro do Sul, ela e o marido chinês, eram microempreendedores e tinham um restaurante de comida chinesa internacional em Cruzeiro do Sul, que era um sucesso na cidade. E aí falavam que ele era chinês vindo do Peru e me despertou uma curiosidade: chinês vindo do Peru, que coisa mais estranha! E aí eu fiquei com aquela coisa na ideia: o que o chinês estava fazendo no Peru? Eu até pedi a uma amiga pra investigar. Nós fomos. Eu sei que fui ao Peru em 2005 a convite de um outro amigo e estava tendo a estrada Interoceânica ou Transoceânica em construção, até visitamos lá obras que a Andrade Gutierrez fazia, aí eu conheci o Tuk-Tuk, que lá chama motocar e me apaixonei. E o Tuk-Tuk vem da China, chega lá a quinhentos dólares. É o veículo principal do Peru, tem mais que todos os outros veículos somados. Transporte popular, é incrível. Eu queria trazer pro Brasil, aí eu fiquei bolando uma história, que essa primeira viagem eu queria escrever uma reportagem, mas redundou só num desenho, quem sabe eu mando pra vocês, que é assim: a brasileira está... no mapa do Acre é a cara, o perfil de uma pessoa, então é o rosto da brasileira pedindo carona num Tuk-Tuk ou num motocar do chinês, que vem surfando nas ondas do Peru, chegando lá. Então, ela fala: “Japa, seu motocar é um barato”. Aí ele fala: “Troco pela sua carne, so ja”. (risos) E no meio tem um índio segurando numa mão uma lança e na outra uma bomba de gasolina ou gás, escrito: “Dou ou não dou um gás?”. Porque a história é a seguinte: estava tendo, teve lá um massacre de índios protestando contra o Drilling tirar petróleo na Amazônia e tem empresa chinesa e brasileira também, várias, e os índios bloquearam uma estrada e a polícia massacrou quase cem. Uma coisa horrível, eu estava lá. Contra o Drilling. Então, aí que eu bolei uma história que um dia eu ainda faço um filme sobre ela, um livro ou uma revista em quadrinhos, baseada, inspirada no Mario Vargas Llosa, no “Pantaleão e as Visitadoras”. Então, a Petrobras e a estatal chinesa que eu já esqueci o nome se associam, pra neutralizar os nativos da selva peruana, pra deixá-las furarem. Pra isso manda um monte de brasileira ‘encalhada’ (risos) e importa um monte de chinês com Tuk-Tuk, pra ensinar os nativos a fazer irrigação, porque eles não sabem fazer irrigação. E com isso as brasileiras ficam gostando dos chineses e diminui os trinta milhões de homens a mais que tem na China. E essa história começa assim: Pedro Pomar encontra o Zhou Elai, pra comunicar, a mando do João Amazonas, que ia fazer guerrilha no Brasil. Então, o Zhou Elai fala: “Não, eu tenho uma ideia melhor: nós vamos começar a política do filho único, vai sobrar muito homem, então vocês têm que desenvolver as áreas lá desocupadas, pra receber os nossos homens excedentes”. Pra isso que o Pedro Pomar me manda pra Amazônia, pra eu aprender como ocupar racionalmente a Amazônia e aí eu tenho que ficar agora um ano em Pucallpa, uma cidade lá da selva, pra fazer o projeto piloto desse projeto, que aí a história rolaria ali. Eu chegaria ali com as mulheres, que no Brasil tem mais mulher que homem, né? (risos) Então, iríamos ensinar os nativos a irrigar suas terras, porque, na época da seca, eles mudam pras favelas, nas áreas que os rios abaixam nas cidades e ficam morando em condições horríveis. Então, a ideia seria ensiná-los irrigar na estação seca, pra esse chinês ter experiência e daria como dote o Tuk-Tuk. Então, é bem uma história de Deus ex machina (Tradução do latim: "Deus surgido da máquina"), que entra pra fazer uma ocupação. Mas aí eu voltei ao Peru quando o [Ollanta] Humala ganhou e a região toda da Amazônia, que era tão linda, virou tudo [de] mineração. Não deu tempo. E diziam que os donos das bombas de mineração, em grande parte eram chineses, porque o Peru tem um quinto da população, sangue chinês. A gente não sabe, mas lá tem muito chinês. E eles têm um acordo de comércio, então os produtos chineses chegam muito baratos. Então, eu tive que contar essa história, pra mostrar que o meu interesse pela China vinha já de antes, isso foi em 2003, só em 2013 que eu fui à China, dez anos depois. E aí eu estou na praça principal de Xangai (eles falam ‘Xanrai’), vejo um monte de guarda-sóis abertos na praça, coloridos, com casais de meia-idade, aí eu me aproximo já filmando e tem uma folha de sulfite presa em cada guarda-sol, com escritos em chinês, mas eu consegui ver 1980, 1983, 1,76... ah, estão arrumando casamento pros filhos. (risos) Então, a história prossegue. Ali é o local que eu posso recrutar os chinesinhos pra minha história. (risos) Vira, é uma comédia futurista. (risos) Na Ásia toda sobram cem milhões de homens. O patriarcalismo não é só resultado do filho único. É a situação econômica, com ultrassom, com facilidade de aborto. Mas aí, se eu for falar mais da China, então depois eu volto nos outros projetos. Então, em 2013, eu fui lá e desde então eu comecei a pensar em voltar pra filmar as regiões que eu tinha estado em 1986 e levando a Petra, que gosta de cinema, então poderia ser a ideia de um documentário. Fiquei pensando sobre isso e comecei a ler mais sobre também o I Ching, que desde 2002 eu jogo, já me interessei pelas leituras da cultura ancestral chinesa, entendendo que o Partido Comunista, numa civilização de cinco mil anos quase, três mil e quinhentos de escrita, é como se fosse uma nova dinastia, porque os chineses contam as épocas por dinastias, não é por séculos. Então, a aceitação do povo de um partido que trouxe do ocidente o marxismo, mas que respeita atualmente a cultura, está começando a respeitar, embora o I Ching soube que eles ainda têm restrições, porque eles têm medo de formar uma religião que seja subversiva. Querem falar alguma coisa? Eu prossigo?
P2 – Sobre os outros projetos também, além desses relacionados com a China, que você realizou.
R – Depois do projeto Tucumã, das atividades de jornalismo, eu perdi minha filha Helena, em 1990 e daí só em 1997 que eu consegui fazer alguma coisa, que foi um centro cultural em memória dela, que foi o KVA, pro pessoal dançar forró. No prédio que tinha sido a gráfica, que meu irmão tinha fechado logo depois da morte da Elena, o prédio ficou vazio, aí a gente alugou, em 1994, pra uma casa noturna de amigos meus. Aí em 1997 saíram e nós começamos o centro cultural ali, com a casa noturna chamada KVA, que é Quilovolt-ampère, que eu considero que foi um cavalo desembestado que passou embaixo de mim e me levou a galope pra fazer esse projeto, porque era só fazer uma escolinha de teatro, mas aí a gente resolveu fazer uma pesquisa de opinião, que é uma técnica muito boa, que eu já fazia em Londrina entre os estudantes e eles não queriam curso, eles queriam balada. (risos) Então, eu falei: “Mas forró deu só três porcento. Eu faço balada, mas tem que ser forró, porque eu gosto é de forró”. E aí já tinha uma turminha que dançava ali, em casas próximas, e num instante bombou. Aí era de segunda-feira a segunda-feira. De quinta-feira a domingo, eram três mil jovens por noite, em geral, menores de idade. E o juiz me deu o alvará. Eu acho que era o único lugar do mundo: o pai deixava o filho lá às oito da noite, buscava às seis da manhã, de "peignoir" ainda, no carro, de roupão (risos) e gastava só oito reais, mas aí foi lotando demais, lotando, lotando e a turma do começo, minha filha que tinha treze anos no começo, eles foram pra faculdade, Petra foi estudar fora e eu fui perdendo, ficando muito cansada. E aí, ao mesmo tempo, eu tinha experimentado substâncias que me fizeram querer pesquisar, fazer esse manual do _____, um livro que orientasse os jovens a experimentar substâncias de forma mais segura e agradável. E aí, em 2003, eu vim pra Europa pra buscar uns cientistas nessa área e deixei o KVA na mão dos funcionários. Ainda durou mais dois anos e meio, depois fecharam. A gente acabou vendendo o prédio, mas ficou a experiência. E as gerações que se confraternizaram ali, a Falamansa nasceu lá, aquela banda, várias bandas nasceram ali, a Céu começou a cantar ali também, a Mariana Aydar. Foi uma época de muita alegria. E nunca aconteceu nenhuma desgraça, fomos abençoados. Então, depois eu vim, em 2003, com esse intuito, mas tive que voltar pro Brasil, minha mãe estava com Parkinson, tinha um rapaz que era meio enteado meu, filho de amigos, ficou órfão e começou a ter esquizofrenia grave e depois, numa dessas, lá na Espanha, tomando lá alguma coisa que um antropólogo dava pra gente, num curso de terapias, apareceu pra mim um ET, em alucinação, que falava assim: “Eu vou matar sua filha...” – que eu tinha acabado de deixar, pra fazer faculdade em Nova Iorque – “... vou te matar e vou acabar com o mundo e o único que tem... eu controlo o mundo inteiro com as minhas engrenagens, o Bush está a meu serviço” - tinha acabado de ter guerra no Iraque, sei lá onde, e falava assim, não sei se era voz dele ou outra voz que falava assim: “... e a única pessoa capaz de me enfrentar é o Lula”. (risos) Ai, ai. Aí eu tinha várias razões pra voltar pro Brasil. Desisti da pesquisa, desisti do livro, mas ganhei o zen, porque eu estava tão agitada nessas experiências lá na Espanha, que eu fui pra um retiro pra aprender a ficar quieta. Sentar e ficar quieta. E aí o zen me conquistou, em outubro de 2003. Então eu voltei bem firme, praticando a meditação, tendo mais firmeza, organizando minha vida toda e aí, depois, a Petra veio querendo fazer filme, mas antes disso nós fizemos uma ONG, porque meu pai, querendo que eu ficasse com a minha mãe e ele em Minas, sugeriu a gente fazer uma ONG juntos, que ele investiria. Então, nós acabamos achando como leitmotiv: legalizar o queijo de leite cru da serra da Canastra, que era ilegal. Em 2008, esse é um outro fato pitoresco, que a gente começou a ONG em 2007. Não, antes dessa ONG, eu voltei, aí veio o Mensalão, os votos do Lula estavam lá embaixo, aí eu adiei a ONG e fui trabalhar nos Direitos Humanos em Brasília, um ano. Em 2006, eu trabalhei lá com o Paulo Vanuck. Foi só um ano. Que meu projeto era proteção ao queijo, já. Já tinha definido. Também não gostei de trabalhar no governo. Trabalhei no governo Sarney, foi até melhor, que era um ministério novo, não tinha velharia, que emperra tudo. Lá nos Direitos Humanos, herdaram todos os funcionários do Fernando Henrique e eles sabotavam tudo, não queriam fazer nada, mas fizemos lá um festival de cinema em Direitos Humanos. E aí, começando essa onda do queijo, em 2008, teve um jantar em Brasília, minha mãe falou: “Fomos convidados pra um jantar em Brasília, comemorando sessenta anos da Andrade Gutierrez e vai o Lula, mas seu pai e eu não vamos, não, nós estamos muito velhos”. Eu falei: “Não, vocês têm que ir. Vamos lá fazer propaganda do queijo”. Aí eu fui também. Servimos queijo com goiabada pro Lula. Estava lá o dono da "Globo", Zé Alencar, a Dilma, um monte de gente, nessa mesa principal. Aí eu cheguei pro Lula e falei: “Lula, essa goiabada é feita pela minha mãe e mãe da Ângela Gutierrez, que está aqui na mesa. O queijo vem da serra da Canastra e nós temos uma ONG pra legalizar”. Aí o Lula: “Que nada de ONG, você tem que formar empresa”. As ONGs estavam tendo uma CPI, em Brasília. Aí eu saí sem graça, assim, falei: “Não vai ficar assim”. Aí, não sei como, do céu veio uma coisa assim na minha cabeça, eu cheguei e falei: “Presidente, escolhe: legaliza o queijo ou a maconha”. (risos) Aí ele falou alto na mesa: “Legaliza o queijo, a maconha eu deixo pra Dilma”. Aí a Dilma: “Legalizaremos”. (risos) Essa foi muito divertida. (risos) Eu sei que o Lula não conseguiu legalizar, fizeram uma lei falsa pra ele lá, foi com a Dilma e com a Kátia Abreu que a gente conseguiu, que ela assinou uma portaria tirando o poder do Ministério da Agricultura, que é cheio de fiscal corrupto e sanitarista, passando pra cada estado decidir. Essa semana diz que o Doria assinou uma aí, liberando o queijo artesanal, que chama agora, em vez de leite cru. E a ONG que a gente criou, o nome é Sertãobras e ela existe até hoje, mas quem ‘toca’ é uma mineira que mora na França. Ela foi fazer uma bolsa sanduíche em Paris, em 2011, e eu pedi pra ela procurar um autor de um livro sobre queijo de leite cru, pra gente editar no Brasil. Ofereci pelo telefone: “Ele quer cinco mil euros, oferece mil e quinhentos”, aí ela vai, conhece o cara e está com ele até hoje! Casou com ele, mora na França e ‘toca’ a ONG no Brasil a partir da França. (risos) Incrível essa história! Agora, por exemplo, São Paulo está oferecendo pra ela fazer um concurso mundial de queijos. O segundo, o primeiro foi em Araxá, ano retrasado, antes do covid. Agora vão fazer em São Paulo, num lugar incrível que inaugurou na Faria Lima, sei lá o que, mandou uma foto aí. Então, essa ONG, acho que é a única coisa que eu fiz que dura sem mim. Minha mãe morreu em 2011, eu perdi o gosto de ficar por lá e aí vim ajudar a Petra em São Paulo, na produção de _____, produção de ambiente para cineastas. Tudo lá pertinho, ali na Vila Ida. Então, eu trabalho quase sem sair de casa. Daí que veio essa ideia de China de novo, mas aí começando o filme pela China. Esse do Peru tem que esperar mais um tempo.
P2 – Eu ia te perguntar: assim que a Petra começou a produzir documentário, você também começou a se envolver com ela?
R – Não, ela estava no Rio, quando ela começou. Ela chegou e foi trabalhar, um mês ou dois com o Padilha, auxiliar de montagem do Felipe Lacerda, um filme sobre os índios yanomami e um americano. Mas aí logo eu escrevi pra ela, falei: “Vai assistir um filme aí que vai ser lançado amanhã, que eu li no jornal, que é um documentário sobre uma viagem que fizeram ao Peru. A minha história da China/Peru. E o diretor é filho do Glauber Rocha”. Aí ela foi, começou a namorá-lo e aí fizeram um filme sobre os meus pais, mas um filme familiar, que acabou concorrendo em Gramado, “Olhos de Ressaca”. Está no Youtube. Ela fez para os sessenta anos de casados dos meus pais. Então, depois que ela veio pra São Paulo, já na finalização do Elena, que ela mudou pra São Paulo. Nesse tempo todo ela estava no Rio. Eu quase não vou ao Rio, fiquei mais nas minhas tarefas, porque quando minha mãe faleceu, eu fiquei com o Tiago, que sofria de esquizofrenia, então aí eu fiz várias coisas pra cuidar dele, várias atividades econômicas, tipo: comprei umas casinhas ali na Vila Ida e os funcionários que já trabalhavam na danceteria, na parte de manutenção, ficaram lá fazendo a reforma das casinhas e o Tiago tinha um ambiente pra confraternizar com pessoas no trabalho. Depois comprei uma chácara em Atibaia também, onde eu quero fazer escola Paulo Freire e vendi, que era pra ele morar lá. Eu estava já mudando com ele pra lá quando ele pulou do sexto andar do prédio da Petra. Cheirou cocaína um dia e... muito forte a esquizofrenia dele. Então, eu fiquei quinze anos, eu não tinha nada dele. Ele tem uma irmã, mas morava em outra cidade, então me ocupei muito, até 2016. Em 2016, a Petra foi pra Brasília, filmar o Congresso e eu fiquei lá um mês ou dois, no final das filmagens dela, mas quase não participei. Fui mais pra ficar assim, como uma “stand by”. Eu, quando vejo minha vida, setenta anos, eu vejo que grande parte do tempo, a minha profissão era “stand by”: sempre pronta pra atuar. Igual no PT: eu sou petista desde que meu irmão fundou o PT, com o Lula e outros, em oitenta, mas nunca tive nenhuma atividade, a não ser participar de grupos de estudo. Nunca disputei nada, nunca fui de direção, sempre no “stand by”. Só fui pra Brasília, também no “stand by”, pra salvar o Lula. Ele foi salvo, mas não com a minha ajuda. Pode ser que - eu estava meditando muito na época – a meditação ajudou. (risos)
P1 – Li An, o que você acha - encaminhando pras perguntas finais – mais importante pra você, hoje em dia? Pode ser várias coisas.
R – Desde dois dias que eu parei de comandar tudo em São Paulo, então eu estou livre de comando. Essa coisa de ser patroa é muito ruim. Então, aqui eu estou me sentindo totalmente liberada, porque é um problema que me acompanha desde o projeto: comando, ter que ser chefe. Se fosse como antes, que antes eu não tinha dinheiro pra nada, mas quando vem herança, você tem que administrar, aí acaba virando patroa e eu não fui preparada pra isso. Então, eu sou muito exigente. Às vezes eu machuco as pessoas com o meu estilo um pouco militar de comando, mas eu não consigo mudar muito isso, esse jeito de ser. Já tentei de várias formas. Incomoda muito as pessoas, mas por outro lado eu dou muitos direitos, de debater, de discutir, salariais, de benesses, de ajuda, que eu digo que eu toco uma comunidade feudal, matriarcal, rumo ao socialismo. (risos) Passando pelo capitalismo e tentando sofrer o mínimo possível, mas é difícil. Então, agora eu estou aqui aposentada, quer dizer: pousada e pausada, que aqui em Portugal não usa falar aposentada, fala reformada. Eles não tem. Só em português que tem aposentada. Então, eu estou tentando me sentir aposentada e estou bem feliz. Coincidiu justo com esse depoimento, que é quase um obituário, então agora eu posso começar uma nova vida. Morreu aquela patroa chata. (risos)
P1 – Então, vamos pra última pergunta: como foi, pra você, contar um pouco da sua história pra gente hoje?
R- Ótimo! Muito divertido. Pena que vocês não podem interagir, como se fosse uma roda de conversa! Que, em geral, a gente faz assim. A Petra quer que eu escreva memórias, mas eu tenho um certo bloqueio, pra conversar é muito mais fácil. Então, por isso que esse convite de vocês até me libera um pouco de escrever memórias. Ou talvez me entusiasme mais, sei lá. Vamos ver. Ache pessoas pra conversar on-line, grava, aí posso aprofundar mais as questões. Quando eu tinha 36, eu estava em Brasília... tem tempo pra falar isso, essa historinha?
P1 – Tem, claro!
R – Eu estava lendo o livro da Doris Lessing, uma escritora inglesa, que chama “Golden Notebook”, “Caderno Dourado” e é uma autobiografia ficcionalizada e chegou num momento, mais ou menos no meio do livro, que eu pensei: “Poxa, eu li meu passado, agora eu estou no meu presente, será que eu quero saber do meu futuro?” Então, foi muito marcante a influência desse livro e ela tinha escrito em 1962, trinta e tantos anos antes. Eu fico pensando: “Já tem tanta gente pra escrever tanta coisa que retrata, pra que eu vou sofrer, escrevendo?” Vamos ler a Doris Lessing e eu já estou retratada ali. (risos)
P1 – Bom, eu espero que seja um ponto de partida pra você agora, não só pra você contar sua história de outras formas, mas quem sabe também, depois escrevê-las? Mas, de qualquer forma, a gente agradece muito, Li An, o seu depoimento, pessoalmente pela conversa e também em nome do Museu da Pessoa.
R – Eu que agradeço. Valeu, super. Que bom conhecer vocês, a Grazielle e o Alisson, gente finas!
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