Que cheiro é esse que vem lá da cozinha? Que cheiro é esse que chega até aqui à rua e eu não sentia há um mês? Meu pai está dentro do carro e me espera abrir o portão. Um portão grande demais pra mim. Tem o dobro da minha altura. Pelo menos eu alcanço o cadeado. E lá vem o Kiko
-Segura...Continuar leitura
Que cheiro é esse que vem lá da cozinha? Que cheiro é esse que chega até aqui à rua e eu não sentia há um mês?
Meu pai está dentro do carro e me espera abrir o portão. Um portão grande demais pra mim. Tem o dobro da minha altura. Pelo menos eu alcanço o cadeado. E lá vem o Kiko
-Segura ele pra não fugir Você sabe que ele corre pra BR.
Eu moro em frente à BR 101 e meus pais vivem me dizendo que ela é perigosa. E não duvido. É tanto carro Tenho medo de atravessar a pista pra pegar ônibus com a minha mãe. Rezo sempre pra que ela fique bem. Quem cuidaria de mim?
-Professorinha, abre esse portão - Assim, meu pai me chamava.
A tarde está cinzenta. Meio friozinho agora. Uso sempre as blusas de lã que a minha vó faz. Esse é um dia típico de começo de inverno. Um ventinho gelado, vento Sul, me deixa o cabelo cheio de nós. Odeio pentear o cabelo E a minha mãe me obriga Ela vive dizendo.
-Parece um menino Quando crescer não vai querer ficar toda descabelada. Tem que se arrumar
Eu ali, parada em frente ao portão de casa, louca para sair correndo e ir até a cozinha, mas com medo. Não sei se é medo. É algo que nunca senti antes. Meu peito tá pesado, meus olhos, cheios de lágrimas e eu não consigo respirar direito. Que cheiro é esse que brinca comigo? Parece um cheirinho quente
- Michele, fecha o portão rápido Olha o Kiko
O Kiko não gosta muito de mim. É o cachorro do meu irmão. Um vira-lata meio nervosinho. Como ele é bem pequeno e peludo até parece um doce de cachorro. Só que vive fazendo um barulho estranho com a boca. Não late não, mas emite um som que entendo não é para chegar perto. O Celo, meu irmão, é quem dá banho nele, brinca com ele. Eu tenho medo até de sair correndo com o Kiko atrás de mim. Como não confio nele não sei se vai ou não me morder. Com o Kiko o relacionamento é de frente. Olho no olho e sem contato físico pra eu não levar a pior.
-Minha menina, você vai ficar aí fora até quando? Vem pra dentro
Eu estava parada na garagem, via os carros passarem na estrada, e chorava. Não acreditava que o cheiro que sentia era de café. Um cheiro de carinho, que eu tanto aguardei durante trinta dias. Botei as mãos nos bolsos da calça, tentei fazer minha melhor cara. Meus olhos me traíam, não segurava as lágrimas. E eu que devia correr, subir as escadas e entrar com um enorme sorriso, só fazia soluçar. Até que ela aparece na porta. E me chama Na verdade faz um gesto com a mão, lentamente. Estava tão fraca, vestia o roupão rosa que era só dela, e tinha um perfume delicado que eu reconheceria em qualquer lugar. E eu conheço todos os seus cheiros. O do espirro é meio enjoado, deixa uma lembrança de mel no ar. E eu não gosto de mel Mesmo assim me assegura que ela está lá. E ela está sim, na minha frente, esperando um abraço. A minha mãe está de volta, meu Deus Ela sorri com um olhar perdido. Seu abraço me encobre inteira. Eu me afundo em seu corpo, ela é minha de novo. Meu pai me falou que a Duda estava doente e só. Eu não sei direito, parece que foi coisa da cabeça. Só que ela agora está bem, do meu lado, pra não sair mais. São poucas as palavras que trocamos, eu só quero é beijá-la e compartilhar da maior felicidade que conheci até hoje.
Então a Duda, aos poucos, vai me entregando sorrisos mais abertos enquanto me prepara um pão. E me toca os cabelos, os olhos. Quer me fazer parar de chorar. Chega pertinho de mim e me sussurra, como mais um segredo só nosso
- Está tudo bem, meu amor
Palavras que me afagam o peito.
E eu, mais confiante da sua volta, me deixo entregar como nunca àquele café da minha infância, com cheiro de saudade.Recolher