No início da década de 1980 a cidade de Macapá vivia os seus últimos anos como capital do Território Federal do Amapá. Nesse tempo a educação escolar pública básica era de responsabilidade do governo federal. Com um volume maior de verbas para a educação, os estabelecimentos de ensino lo...Continuar leitura
No início da década de 1980 a cidade de Macapá vivia os seus últimos anos como capital do Território Federal do Amapá. Nesse tempo a educação escolar pública básica era de responsabilidade do governo federal. Com um volume maior de verbas para a educação, os estabelecimentos de ensino locais quase sempre apresentavam uma qualidade excepcional do ponto de vista predial, em que pese a sofrível proposta pedagógica baseada na formação do cidadão patriota.
Dentre essas escolas havia a Escola Marechal Castelo Branco, situada Av. Clodóvio Coelho, número 145, bairro Trem. Além da qualidade de seu prédio, a escola apresentava um grande espaço sem construções, com árvores frutíferas e belos jardins de flores. Para mim o destaque maior dessa área era um par frondoso de jambeiros que ficavam na frente da escola. Eu os tinha como uma espécie de cartão de visitas que recepcionavam a todos os que por ali passavam.
Em certos momentos do ano esses jambeiros ficavam completamente verdes e suas folhas brilhavam com a luminosidade dos raios solares. Em outros momentos suas copas ficavam com pontos rosados e em volta de seu tronco pequenas pétalas avermelhadas de suas flores que caiam e deixavam o chão todo colorado. Seus saborosos frutos eram grandes e macios, muito disputados pelos alunos e pela própria administração escolar que os vigiavam diuturnamente com mãos de ferro.
Uma vez, ao entrar pelo portão da frente da escola, observei uma inusitada calmaria. Não sei o porquê, mas ninguém estava naquele momento nessa área em frente à escola. Olhei o jambeiro imponente, observei seus maravilhosos e suculentos frutos e resolvi subir e apanhas alguns. Eu faria isso rapidamente, pois em breve o colégio estaria cheio de pessoas, principalmente daquelas pessoas ligadas à administração que tanto nos amedrontavam.
Subi e ao chegar lá em cima comecei a colher os frutos e colocá-los sob minha farda colegial, sendo que alguns eram saboreados naquele mesmo instante. Já com os produtos de minha aventura em mãos e outros na barriga me preparei para descer. Subitamente, vi que a secretária do diretor da escola encontrava-se logo ali, embaixo do jambeiro conversando com uma aluna.
Fiquei parado lá em cima, como se fosse uma estátua. Eu não olhava para lugar algum. Nem para cima, nem para baixo ou qualquer um dos lados. Simplesmente fechei os olhos e os mantive fechados. Quase sem respirar comecei a rezar com o próprio pensamento para que elas fossem logo embora e eu pudesse descer sem grandes problemas, afinal a direção da escola era muito rígida, como um quartel e nada poderia subverter a ordem estabelecida. Subir naquele jambeiro às escondidas e furtar seus frutos era um ato que a direção não toleraria jamais.
Depois de um tempo elas começaram a se despedir e então pensei rapidamente que elas iriam embora eu desceria são e salvo. Foi no exato momento que ambas iam tomar seus caminhos que eu abri os olhos e olhei para baixo no mesmo instante em que a secretária olhou para cima deixando-me petrificado, tal qual a Medusa da mitologia grega que transformava em pedra qualquer um que a olhasse diretamente nos olhos.
Neste momento, naquela fração de segundos em que nossos olhares se cruzaram, meu pensamento divagou. Eu certamente seria colocado frente a frente ao diretor e seria punido de algum modo. Talvez ele me expulsasse da escola, ou simplesmente me desse uma suspensão. Com um pouco de sorte o diretor poderia apenas me proibir de sair para o recreio. Mas eu poderia sofrer o pior de todos os castigos: ele poderia chamar a minha mãe, contar-lhe o ocorrido e eu certamente não sairia vivo daquela situação.
Então comecei a descer lentamente, sem dizer uma só palavra. A secretaria, inclemente, confiscou os frutos, pegou-me pelo braço e simplesmente levou-me à sala da diretoria, aquela que, ao ser pronunciada, causava calafrios nos alunos. Era uma parte da escola que eu nunca havia entrado, aliás, poucos eram os meus colegas que já tinham botado os pés naquele recinto. Mas enfim, lá estava eu caminhando em sua direção.
Ao chagar lá a secretária abriu a porta, colocou-me lá dentro e disse:
- fica aí que eu vou chamar o diretor. Olha! Não mexe em nada!
Lá estava eu naquele lugar aterrorizante. O ambiente era refrigerado e me remetia à sala do hospital onde anualmente eu era levado por minha mãe para coleta e exame de sangue. Só faltava o cheiro de éter. Ao fundo uma mesa enorme de madeira com um vidro retangular transparente que recobria totalmente sua superfície. Em baixo desse enorme vidro era possível ver fotografias, diplomas, moedas antigas e outros papeis sem sentido para mim.
A cadeira do diretor era como um trono real. Toda trabalhada em um tipo de madeira escura e pesada. Sua estética me trazia a lembrança de livros que havia lido sobre a nobreza da idade média. O assento e o encosto das costas eram acolchoados e revestidos com um tecido aveludado na cor vermelha. Logo à frente da mesa do diretor duas cadeiras na cor preta e mais ao lado um sofá de espera no qual eu deveria ficar sentado aguardando o diretor.
Sentei-me esperando gelidamente aquele homem que, apesar de ter pouco mais de um metro e meio de altura, parecia um monstro mitológico grego. Por outro lado, eu me sentia uma formiga que poderia ser esmagada com um só dedo. Neste momento de extrema solidão e medo pensei em sair correndo daquele lugar e nunca mais voltar. Mas essa não era uma boa ideia, pois certamente eu seria capturado por minha mãe que me faria retornar imediatamente a escola.
Após longos cinco minutos de espera, os cinco minutos mais demorados até então da minha vida, o diretor abriu a porta, entrou e sentou-se em sua majestosa cadeira. Respirou fundo como se estivesse bastante cansado, pigarreou e baixou a cabeça por alguns segundos como se estivesse meditando. Então solicitou à secretária que relatasse os fatos e escrevesse tudo em uma espécie de boletim de ocorrência como se faz na delegacia.
Então ele me olhou dos pés a cabeça e disse:
- Qual o teu nome?
- José.
- Qual a tua série?
- Quinta.
- Qual o teu apelido?
- Não tenho nenhum apelido.
- Então, vamos te chamar de ladrão de jambo.
E assim nosso “dialogo” foi se desenvolvendo em uma relação na qual eu ia ficando cada vez menor e ele cada vez maior. Ao final ele me disse que tudo seria registrado e arquivado na escola. Como eu era uma espécie de réu primário, minha pena pelo crime cometido seria escrever com caneta esferográfica vermelha 200 vezes a seguinte frase: “não roubarei jambos em minha escola”. Essa atividade começou lá mesmo na sala do diretor e ainda levei para fazer o restante em minha casa.
Minha mãe, que nunca havia me visto estudar em casa, ficou muito feliz ao me ver sentando à mesa com caderno e caneta nas mãos. Apesar de muito enraivecido com todo o ocorrido, pelo menos havia deixado minha mãe satisfeita e feliz com meu suposto empenho escolar. Além do que não foi preciso chamá-la para conversar com o diretor sobre o caso. Eu havia escapado ileso desta vez.Recolher