Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Marcelo Veronez
Entrevistado por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 18/09/2019
PCSH_HV822 _ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Beatriz Cunha
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual é o seu nome completo, onde você na...Continuar leitura
Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Marcelo Veronez
Entrevistado por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 18/09/2019
PCSH_HV822
_ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Beatriz Cunha
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual é o seu nome completo, onde você nasceu e em que data?
R – Meu nome é Marcelo Henrique Veronez, eu nasci em Belo Horizonte, no dia 30 de julho de 1981
P/1 – Tá. Você nasceu em que hospital?
R – Nasci no Felício Roxo, na Avenida do Contorno.
P/1 – Entendi. Você sabe a história, como é que foi, a sua mãe e o seu pai contaram desse dia?
R – Sei, tem uma história ótima. Reunião de família assim, eu não lembro se era aniversário de alguém, de alguma criança da família, a minha mãe, obviamente, se entupiu de comer coisas de aniversário e, quando a gente faz aniversário, faz coisas leves - rabada, costelinha com mandioca, coisa... Depois dessa noite maluca, ela sentiu as contrações e foi para o hospital.
P/1 – E você nasceu de quê? Cesárea, parto normal…?
R – Não, na época tinha uma coisa de… Estava muito na moda o tal do fórceps, sabe? Então, teve isso de puxar a criança de dentro da barriga. Não se usa mais. É porque é um processo invasivo e um pouco violento.
P/1 – Você sabe a que horas você nasceu?
R – Eu nasci à tarde, acho que às 15:30 h.
P/1 – Qual é o nome da sua mãe inteiro?
R – Maria Madalena Pereira Veronez.
P/1 – Como é a família dela?
R – É… Minha mãe vem de uma família grande, são sete irmãos e ela é tipo, filha… Quase a mais nova. Ela tem algumas irmãs vivas ainda, dois irmãos já faleceram muito jovens. Assim, na base dos 40 anos. É isso. Uma família simples, do interior. Minha mãe nasceu no Espírito Santo, em Água Doce, mas meu avô era uma figura meio cigana, andava de um lado para o outro, então ela nasceu lá e não tem nenhuma ligação, não sabe nem onde fica. Foi viver em Governador Valadares, onde ela conheceu o meu pai, assim, criança ainda. Eles se conheceram crianças, morando na mesma rua.
P/1 – E na família da sua mãe, tinha alguma profissão incomum?
R – Não. Na verdade, a minha mãe é a única pessoa que desenvolveu uma profissão, entre as mulheres da família. As outras mulheres não desenvolveram profissões de fora de casa. Minha mãe é professora, alfabetizadora. Ficou 27 anos em sala de aula alfabetizando crianças. É uma mulher incrível, só por isso. Imagina, 27 anos ensinando criança a ler; 27 anos todos os dias, de segunda a sexta, cuidando de 35, 40 crianças uma tarde inteira. Isso é para enlouquecer qualquer ser humano. Nas condições que se tem, ela, como professora pública, de escola pública, não é? Sempre trabalhou na rede pública, então acho uma heroína por isso. Só por isso. Fora as outras coisas, fora ser minha mãe.
P/1 – Ela se aposentou?
R – Ela se aposentou agora. Se aposentou faz uns quatro ou cinco anos.
P/1 – E o seu pai, como é o nome inteiro dele?
R – Meu pai se chama Francisco Hélio Veronez. É de uma família também numerosa. Assim... Também são sete irmãos, a maioria ainda vivo. É uma família que veio de uma tradição de caminhoneiros, então, tenho tios caminhoneiros. As mulheres da família também, coincidentemente… Uma irmã só se dedicou ao magistério, também como professora primária, a mesma história - que é minha madrinha, irmã de meu pai. É isso. Os outros irmãos caminhoneiros foram fazer isso. Meu pai foi para o lado da contabilidade, mas viveu pouco tempo aqui, ele vive na roça agora. Ele decidiu ir morar fora de Belo Horizonte. A gente não morou em Belo Horizonte, na real. Eu moro em Belo Horizonte, mas a minha família toda mora em Contagem.
P/1 – Como é que seu pai e sua mãe se conheceram? Você falou que...
R – Eles eram amigos de infância. Se conheceram crianças ainda, sei lá, cinco ou seis anos de idade. Moravam na mesma rua, as famílias se conheceram, ficaram muito amigos e 15 anos depois se casaram.
P/1 – Com uns 20 anos?
R – Começaram… É. Começaram a namorar muito jovens, namorico de adolescência, se casaram e tiveram filhos muito jovens também, com 23 e 24 anos. Eu já tinha nascido quando meus pais tinham 23 e 24 anos, o que é maravilhoso. Na idade que eu tenho hoje, eles já tinham um filho adolescente, de 14 ou 15 anos. É como se eu tivesse um filho de 15 anos e fico pensando muito nisso hoje. E uma filha de 11. A diferença entre eu e minha irmã é de três anos e meio.
P/1 – Então foram o único par um do outro na vida?
R – Sim, sim.
P/1 – É meio doido isso, não é?
R – É, para a gente, não é? Só que isso, sei lá, em Valadares, na época de 70, era muito comum, muito normal. O interior de Minas tem uma coisa de… Conservou ainda essa característica de interior e da formação das pessoas, porque estavam no interior durante muito tempo. A modernidade contaminou o interior de Minas há muito pouco tempo. Então, o lugar com o qual me identifico na infância, por exemplo, que é a roça, um lugar de interior e de fazenda, foi conhecer luz elétrica em 2003. Não, 2006. Eu passei a infância num lugar que não tinha luz elétrica, não tinha chuveiro, não tinha sinal de trânsito, não tem asfalto, não tem… A água é direto da mina, direto da bica, você coloca uma mangueira lá na mina de água e essa mangueira vai até a pia da sua casa e jorra água 24 horas por dia. Não tem torneira. Não tinha, não é? Porque a água era muito abundante e agora não é mais. Agora tem torneira.
P/1 – Você cresceu onde, então?
R – Eu cresci numa roça perto de um lugar chamado Socorro, que é um distrito de Itamarandiba, uma cidade ali na região de Diamantina.
P/1 – Por que você cresceu lá? Seus pais estavam ali?
R – Porque meu avô, depois que saiu nessa peregrinação dele… Meu avô era dono de uma fábrica de rádio em Valadares, ele tinha uma fábrica que chamava Rádio Harmonia. Essa fábrica, depois de um tempo, com desentendimento de sócio, aquela história toda, faliu, no início da década de 70. Ele pegou o dinheiro que lhe restava e foi viver lá em Itamarandiba. Comprou essas terras perto de Itamarandiba, perto do Parque Estadual da Serra Negra. É um lugar lindo, incrível, de uma reserva de cristal de quartzo. É uma região que tinha muita água, e ele foi viver lá e tirar o seu sustento desse lugar. Acho que ele também deu uma cansada de cidade, deu uma enchida de saco. Ele foi para viver lá e nós fomos criados lá também. Imagina, anos 80, uma recessão do cão, dois jovens, com duas crianças pequenas… Porque meus pais eram jovens, eles tinham 27 anos, com dois filhos. Ali, no meio dos anos 80, uma inflação galopante, uma coisa horrível. Então, durante um tempo, eles viveram lá por alguns anos. Foi a minha primeira infância, eu vivi lá na roça, nesta casa. Uma casa feita parte de tijolo de barro, parte de adobe, onde meu avô guardava peça de trator, peça de carro e virou tratorista, ele abria estradas no interior. Era isso, a gente vivia ali no meio de bicho, vaca, porco, galinha, rio, siriema, tamanduá, lobo-guará...
P/1 – Você viveu até que ano lá?
R – Eu vivi assim, morando lá, até os cinco, que é onde entendi o que era viver ali, naquele lugar. Depois, fui morar em Contagem, que é onde fui me alfabetizar e tudo mais, e onde a família do meu pai também tinha fixado uma residência. Então, eu tinha uma avó que morava em Contagem e tinha uma avó que morava na roça.
P/1 – As suas primeiras lembranças da vida são da roça, então?
R – São.
P/1 – Do que você se lembra?
R – Sei lá, do banho de rio. Banho de rio era diário, porque não tinha chuveiro. Não fazia sentido ter chuveiro num lugar que não tinha energia elétrica e que tinha um rio passando a cinco minutos de caminhada da porta da sua casa. Então, banho de rua é uma coisa da qual lembro muito. De ir para o rio, tomar banho todos os dias… Era o banho do dia mesmo, não era um banho de farra, era o banho do dia. E de sair… Tinha um negócio legal, que era a gente sair de dentro do rio e, na beira do rio, é terra, lama. Por mais que o rio fosse de pedra, a beira era lama. Então, você saía limpo, lindo, maravilhoso, pisava no barro e ia pisando na terra até chegar em casa. Quando chegava em casa, você lavava o pé. Calçava e não podia mais andar descalço pelo quintal. Isso era por volta de, sei lá, quatro horas da tarde. A gente dormia muito cedo, cinco e meia a gente estava jantando, porque seis horas escurecia e aí era o tempo de escurecer e a gente ia dormir. Às sete, sete e meia, já estava todo mundo na cama. Acordávamos, sei lá, cinco horas da manhã, cinco e meia, com o sol nascendo.
P/1 – _________ [14:30]
R – Completamente diferente, outra vida. Tinha um costume, que é legal registrarmos aqui porque é uma coisa que não acontece mais. Nem lá, as pessoas usam isso mais, o único lugar que vi, que tenho esse relato, é nessa região. É óbvio que deve acontecer isso em outros lugares do interior também e deve ter acontecido durante um tempo, mas isso era muito forte lá. Você não tinha piso dentro da casa, era chão batido e aí, na cozinha, por ser um piso de chão batido, para não ficar na terra, se passava bosta de boi no piso da casa. Então, de quinze em quinze dias, a gente ia para o quintal catar os cocôs de vaca, colocava dentro de um balde, colocava uma água ali, pegava um pano e passava como se fosse uma cera. Isso evitava que a cozinha tivesse mosquito, carrapato, piolho, bicho assim, de roça, bicho de quintal. Isso é uma coisa tão… Era isso no chão e barro branco na parede. Era lindo, lindo. O chão era verde, verde-bandeira. Obviamente, não tinha nenhum cheiro, porque vaca come mato e sal, então, não tinha cheiro, não tinha nada disso. Era bonito.
P/1 – A cor era bonita?
R – A cor era linda e a textura da coisa também, o chão ficava macio, não era um chão duro de pisar, porque era terra e como era uma região de muita água, era úmido, molhado. Então, o chão era frio e verde, lindo, lindo.
P/1 – Agora, quando você foi para Contagem, aonde você foi morar?
R – Ah, eu morei na casa da minha avó, que era numa região mais antiga de Contagem. Contagem é uma cidade de indústria, uma cidade industrial, não é? Mas eu vivia numa área mais antiga, da época da fundação da cidade. É uma cidade do final do século XVIII, onde fazia-se o registro das pedras, do ouro, do que vinha de Ouro Preto… Enfim, tinha um registro em Contagem. Daí que nasce a cidade. Eu vivi nesse bairro, que é uma região mais antiga, não vivi na região da indústria. Apesar de estudar numa escola industrial, que é o Sesi, e essa escola ser no meio de um bairro que só tinha indústria, não tinha casa. Então, a escola era cercada por indústria, quarteirões gigantescos, com indústrias imensas, muita indústria. Tem essa coisa louca de sair de um lugar muito… Sair da roça e ir para a indústria, assim. O que lembro também de lá é que a gente morava perto da comunidade dos Arturos, que é uma comunidade de descendência quilombola, que existe ainda até hoje e é uma comunidade incrível, tem coisas muito bonitas lá. Você vai entrevistar a… Do terreiro...
P/1 – Dona Isabel?
R – Dona Isabel.
P/1 – Entrevistamos já.
R – Vocês já entrevistaram? A Isabel e o mestre Conga sabem muito bem sobre os Arturos. Eles têm uma comunicação interessante, por causa do Congado. É uma comunidade muito tradicional no Congado. Então, tem tudo isso nessa formação, uma coisa de interior, de roça, de fazenda, com uma indústria, com Congado, com… Maluquice.
P/1 – Mas você ficou muito tempo na sua avó, então, ou não?
R – Não, a gente ficou pouco tempo, até conseguir se estabelecer de novo, até minha mãe poder trabalhar de novo e meu pai também se estabelecer nas questões de trabalho. Logo depois, fomos morar numa casa só a gente e seguiu-se a vida. Eu fiquei morando em Contagem durante essa infância, adolescência e voltei para Belo Horizonte… Quer dizer, voltei não, eu vim morar em Belo Horizonte com 20 e poucos anos, quando já estava trabalhando com teatro e música.
P/1 – Entendi. Então você morou sempre na mesma casa em Contagem?
R – Não, claro que não, mudamos várias vezes, inúmeras vezes. Morávamos de aluguel, então dependíamos de como a situação caminhava. Se tinha grana, se não tinha grana, dependia…
P/1 – Mas como era o cotidiano da sua casa? Você, a sua irmã, seu pai…
R – Eu, minha irmã, meu pai, minha mãe… Todo mundo trabalhava cedo ou saía cedo para a escola. A gente comia junto mais à noite do que durante o dia, porque minha mãe, muitas vezes, durante muitos anos, trabalhou durante dois turnos. Então, ela dava aula de manhã e à tarde. Muito cedo a gente aprendeu a se virar.
P/1 – Você e sua irmã?
R – Eu e minha irmã. De organizar a vida, sabe? Esquentar uma comida que seja, se preparar sozinho para ir para a escola, ir para a escola de ônibus, sei lá… Com dez anos, eu já ia para a escola de ônibus e sozinho. Para nós, parece uma coisa tipo okay, normal, mas a minha irmã tem filhos, um de sete e um de quatro. É impensável para ela que o Miguel, que tem sete anos, - nem quando tiver dez -, que ele vá sozinho em algum lugar. A gente já se virava nesse sentido, porque é isso, não existia uma condição interessante para que você pudesse se dedicar plenamente à criação dos filhos, à família e tal. Não tem, você trabalha para poder pagar aluguel, alimentação, não era uma vida confortável nesse sentido financeiro, nunca foi.
P/1 – Agora assim... Na sua casa, o que tinha que você gostava? O que vocês faziam? Tinha rádio, tinha TV? Como era isso?
R – Tinha, tinha muita música. Muita música muito diferente. Meu pai gostava, na mesma medida, de Roberta Miranda e Maria Bethânia, então, isso foi bem legal, bem-bom. Gostava das músicas da época, gostava do que estava tocando no rádio, sabe? Gostava de lambada, de pagode, de MPB mais clássico dos anos 70. Eu fui apresentado a essas coisas todas. Gostávamos muito de festa, muito, muito, muito. As festas eram gigantes. E quando não se podia fazer uma festa, quando estava ruim para a gente, uma tia, outro tio, as pessoas se reuniam para fazer aquela festa. Tinha um costume que era desconvidar para os aniversários, porque se você não desconvidasse, a família inteira aparecia na sua casa no dia. Se você não fosse fazer, tinha que ligar para a família inteira para dizer que não haveria festa, porque é o seu aniversário e as pessoas vão na sua casa. É uma família gigante, não é? Minhas tias têm muitos filhos, cinco, sete, quatro… Só minha mãe e meu pai, dos dois lados, que têm menos filhos - são só dois - mas o resto tem cinco. Então, aparecia lá, no mínimo, umas quarenta pessoas na sua casa, do nada.
P/1 – Você gostava?
R – Adorava, imagina.
P/1 – Seus primos…
R – Primos, tias, sabe? Muita dança, muita música. A gente amava dançar, dançava muito, dançar forró, dançar, sei lá, discoteca, dançar rock in roll… Era disco na vitrola e a gente suava de dançar. Era muito divertido, isso era muito bom.
P/1 – E você brincava do quê na época?
R – Ah, brincava na rua, não é? Tinha essa coisa de rua. Talvez tenha sido essa, sei lá, uma das últimas gerações. Agora que eu vivo aqui, que essa rua é muito tranquila, no final de semana, nas férias e no verão, tem muita criança brincando na rua, tem muita criança que vem de outras ruas aqui do bairro para brincar aqui, porque aqui é um trânsito local, então, tem muita criança que vem brincar. Me dá essa sensação de novo, mas era muito menino, não é? As pessoas tinham muitos filhos, então, tinha muita criança na minha rua, muita criança. Para a gente fazer dois times de queimada era o troço mais simples do mundo, era sair na rua que você tinha ali cinco, seis ou oito meninos: "Vamos jogar?" "Vamos jogar". "Chama fulano, chama beltrano". Quando você ia ver, cada time tinha sete ou oito pessoas. Era uma doideira. Vinte crianças brincando na rua entre, sei lá, seis e doze ou treze anos.
P/1 – Qual é o nome da sua irmã?
R –
Fernanda Cristina Veronez. Ela é de setembro, 10 de setembro de 1986… 1984, perdão.
P/1 – E ela acompanhava você? Você tinha que olhá-la?
R – Não, não, nunca teve isso, ela sempre foi mais esperta que eu. Muito mais. Então ela se defendia ali, resolvia, dominava muito mais a coisa da rua do que eu. Era uma figura de liderança, brava, danada, linda. Nossa, como era linda! É linda até hoje, mas quando criança, meu Deus, que criança linda a minha irmã. Muito brava também, muito decidida, dona de si, ninguém mexia com ela. Não tinha essas coisas, eu não precisava defendê-la. Não tinha essa necessidade.
P/1 – E como foi a escola? Você estudou desde o começo no Sesi, foi isso? Ou não?
R – Eu fui estudar primeiro… Assim... Na primeira alfabetização, numa escolinha de criança, que chamava pré-primário.
P/1 – E começou o pré-primário no Sesi?
R – Não. Até tinha, mas a gente não… Eu vou chegar lá. O pré, nessa escolinha, eu fiquei pouco tempo, porque era uma escola particular e não rolava de pagar. Quem me alfabetizou foi minha mãe. Aproveitamos, não é? Ela me ensinou muita coisa. Depois eu fui estudar numa escola pública, que era a Escola Municipal Dona Babita Camargos, bem no centro de Contagem. Uma escola bem tradicionalzinha, bem fofa, parede branca e detalhes azuis, bem Grupo mesmo. Chamava Grupo, eu acho. Depois, eu fui estudar no Sesi. O Sesi é uma escola gigantesca, que tem uma estrutura imensa, que eu jamais pensei que pudesse alcançar. Quando eu cheguei no Sesi, sei lá, acho que levei um mês para entender a escola, onde que ia, para onde que subia, que rampa era para a sala de aula, sabe? O Sesi, na época, era uma escola voltada para a indústria, somente pessoas que trabalhavam na indústria podiam matricular seus filhos no Sesi. Então, eles sorteavam algumas vagas para a comunidade. Chamavam a gente de "comunidade". E aí, eu fui sorteado. Numa sorte absurda do destino, fui sorteado. Tinha algumas coisas a se cumprir, não é? Eu não podia repetir de ano, não podia tomar recuperação, não podia ser suspenso, não podia dar trabalho em si, porque eu era da comunidade. Os outros meninos podiam tudo. Quem tinha o direito de estudar naquela escola podia tudo, mas nós que éramos comunidade, não podíamos nada. Nós éramos pouquíssimas pessoas, então a gente não tinha muito trânsito na escola. Ainda assim eu estudei lá da segunda série até a oitava. Eu passei a vida estudando nessa escola.
P/1 – Você falou que era… No caminho tinha _______ [31:11].
R – É, e era uma coisa de muro… Eram umas pilastras assim, sabe? Os muros eram umas pilastras, não era um muro inteiro. Era bem indústria, imagem de indústria clássica. Aquele negócio que você vê lá dentro, um negócio gigantesco, cercado de árvores e com chaminés, é bem isso, nesse esquema, com galpões gigantescos. Eu pegava o ‘busão’ para chegar nessa escola e ia passando por essa paisagem. Era muito louco porque até três anos antes, eu vivia em um lugar em que não fazia ideia do que era ônibus, não tinha. Não tinha nem carro, imagina. Nós estamos falando de, sei lá, 1984, 1985, no interior de Minas, que ninguém nem sabia como vinha de Belo Horizonte até lá. Hoje, a gente gasta sete horas e meia de carro, daqui até a casa da minha mãe e do meu pai lá. Na época, eram doze, porque não existia estrada, eram trechos de terra - horas e horas e horas de trecho de terra. Hoje, são duas horas, duas horas e meia em terra, em estrada de terra, que passa o carro bem escondido. Na época, era um pouco mais. Então, para essa criança, acho que foi bem maluco, foi uma adaptação bem doida. Era uma escola gigante que tinha, sei lá, um ginásio, uma quadra de futebol de salão de tamanho oficial, com uma arquibancada gigantesca, em que cabiam 1.500 pessoas, uma piscina de 25 metros, uma outra piscina de 12, um milhão de quadras… Era quadra de vôlei, quadra de futebol, quadra de não sei o quê. Não era uma quadra que servia tudo, eram várias quadras, uma para cada coisa. Uma biblioteca gigantesca, onde eu passava a maior parte do tempo, pelo gosto de ler e porque eu não achava que aquilo me pertencia muito, então, eu ficava lá. E tinha um teatro também, dentro da escola, com 400 lugares. Era um teatro bem grande. Foi onde eu comecei a estudar teatro, porque com 12 anos… Até então, ele era usado como auditório só quando tinha uma aula para todas as turmas (todas as quintas séries, todas as quartas séries). Cinco turmas com 40 alunos cada, quatro séries. Então, você tinha sei lá, 1000 alunos por dia na escola. Era bem louco, bem grande, bem maluco.
P/1 – E você se adaptou, foi se adaptando…
R – Não, não me adaptei. Eu achei um horror. Eu só fui gostar da escola quando estava saindo dela, lá pela sétima ou oitava série. Não, não era um negócio… Tinha muito bullying, não é? Eu era uma criança muito afeminada, então tinha uma coisa muito… Essa coisa… Os anos 90 foram difíceis para crianças viadas, muito difíceis, porque tinha uma moda do homem macho, não é? Essa coisa horrorosa assim. Tinha uma coisa… E eu, que era uma figura que ainda tinha uma história de ter vindo do interior, da roça, era mais doido, misturava um monte de coisa. Tinha o império do sertanejo nos anos 90, aquela cafonalha, aquela coisa horrível. Não pela música, mas pela atitude. Era muito horrível e isso foi muito difícil, muito complicado, foi uma fase muito difícil. Eu passei alguns anos bem complicados nesse sentido de não conseguir fazer muito amigo, de me sentir muito deslocado. São pouquíssimas pessoas dessa fase, de que me lembro. Porque eu apaguei essas pessoas da memória. São pouquíssimos amigos de escola, dessa época, de que me lembro. Imagina, eu passei sete anos nessa escola, sendo ótimo aluno e eu só fui dar uma relaxada no último ano, que aí também eu estava no último ano. Não tinha ninguém ali naquela escola que era maior do que eu, eu era maior que todo mundo e também já sabia lidar… Aprendi a lidar um pouco com aquilo, não é? Com quem eu queria fazer alguma coisa, com quem eu queria ter alguma relação. São pessoas com quem eu ainda mantenho alguma relação, mas sei lá, posso contar três amigos. É muito doido, numa escola de quase mil alunos, durante sete anos, a mesma turma. Porque não mudava de turma, ninguém saía da escola, era só quem ia chegando, mas ninguém saía da turma, a não ser que tomasse bomba ou mudasse de escola, mas isso era raríssimo. Ninguém queria sair daquela escola, era incrível, tinha laboratório de ciências com bichos empalhados, bichos dentro de coisas… A gente estudava coisas loucas assim. Era uma estrutura incrível, mas o elenco era terrível, era muito ruim, era bem difícil.
P/1 – Até os professores?
R – Incluindo os professores. Tinha uma professora, que lembro até hoje... Agora eu já a perdoei, mas um dia, assim, na sala de aula, sei lá, eu tinha acabado de entrar na escola, ela repetiu um gesto que eu fiz, mas fazendo uma gozação comigo, sabe? Por causa desse jeito afeminado. Eu lembro que era uma mãozinha no queixo assim, eu coloquei a mãozinha assim para prestar atenção na aula. Ela fez isso, tipo na mesa dela, com um gesto meio de… Eu falei: "Nossa, que coisa horrível que uma professora pode fazer, que pessoa horrorosa". Espero que ela esteja bem, que ela tenha melhorado e seja uma pessoa melhor hoje, mas era muito complicado. Tanto que tinha um negócio que era um serviço de orientação educacional, com uma psicóloga que tinha na escola. Essa escola era muito bafoneira, anos 90 já tinha psicóloga, um negócio chiquérrimo. Só que a gente que sofria o bullying… Tipo, eu tinha uma amiga, que nunca mais vi e essa eu queria ver de novo, se chamava Juliana. Ela era carioca, coitadinha, e veio parar nessa escola. Ela tinha um sotaque carioca muito pesado, ninguém falava com ela porque ela falava com sotaque, entende? Ela era uma fofa. Tinha eu viado, tinha a menina de fora, tinha o preto (porque não tinha preto na escola direito), tinha a gorda… Esses tipos assim... A menina machuda. Eles pegavam a gente e nos deixavam depois da aula, no serviço de direção educacional, entendeu? A gente ficava lá tipo fazendo amizade, unia a galera que sofria bullying toda, colocava dentro de uma sala e falava: "Se vira, galera, forma um grupo e se vira". Ao invés de trabalhar quem estava praticando. Para quem estava praticando, estava tudo bem, tudo tranquilo, podia ir embora para casa. A gente que sofria bullying tinha que ficar depois da aula todas as quintas-feiras durantes duas horas, fazendo trabalho de inserção e não sei o quê. Horrível, a gente estava ‘de boa’, quem estava errado era quem estava correndo atrás da gente para nos bater porque tínhamos essas características, enfim. Era isso, mas eu tenho o maior carinho pelo Sesi, pela escola assim. Eu voltei lá um tempo atrás, para dar algumas aulas. Há alguns anos, sei lá, seis ou sete anos. Me chamaram para dar umas aulas de circo e eu fui. Foi muito emocionante voltar, ver as crianças na mesma idade que eu tinha quando estava lá. Eu contei para elas que estudava lá, tudo que aconteceu, como era, e a gente teve uma relação ótima. Fiquei um ano dando aula lá e curou muita coisa, muita coisa. Assim, andar pela escola, ver os cantinhos, ver as imagens de novo, conseguir trabalhar essas imagens… Foi muito legal, foi muito bom. Não tenho nenhuma questão desse tempo, não mais.
P/1 – E você ficava muito na biblioteca, então?
R – Praticamente todos os recreios, de todos os dias.
P/1 – Era um refúgio, assim?
R – Eu lia enciclopédia, eu gostava de ler enciclopédia, gostava de ler a Barsa, gostava de ler o Guinness, gostava de ler curiosidades, sabe? Almanaque… Queria saber do mundo, queria saber como eram os outros países, como eram os outros lugares. A Geografia me interessava muito, a História me interessava muito. Eu achei que fosse enveredar por algum desses campos, mas a música me pegou. Só que assim, Geografia, História, Artes… Nessa época, eu me interessava mais por Geografia e História. Eu queria saber como as pessoas se vestiam no Nepal, como era o dia a dia de uma pessoa, sei lá, que morasse no Canadá, em Guiné Bissau, Moçambique, na Bolívia… Eu achava o maior barato olhar as ilustrações e pensar que todo mundo se vestia daquele jeito na Bolívia. Inocência. Mas era legal isso, me interessava muito.
P/1 – Você começou a ler...
R – Era um prazer, não era uma questão de... "Vou ficar aqui para ninguém mexer comigo". Eu gostava mesmo. Realmente, eu passei a gostar muito daquilo, de sair para o recreio, merendar, voltar, ir para a biblioteca e ficar escolhendo livro, sentar à mesa e ficar lendo… Era um prazer.
P/1 – Você começou a ler outras coisas também, tipo romance, poesia?
R – Tudo, tudo. Comecei a ler isso, romance, poesia, periódico, tudo, eu lia tudo. Até os 20 anos eu fui leitor voraz, tipo: "Quero ler tudo que puder". Depois, o meu ouvido ficou mais atuante. Então, agora eu ouço música, tudo a todo tempo. Não existe um momento em que eu esteja aqui nesta casa ou andando na rua que não esteja ouvindo música, qualquer uma. Rádio, a música da moda, os clássicos, as coisas de que eu gosto, qualquer coisa. Coisas que as pessoas nunca imaginam, porque eu sou um cantor de música pop, não é? Sei lá se pode chamar assim, de rock'n roll. Mas, sei lá, eu escuto Milionário e José Rico no fone de ouvido, na rua, ‘de boa’, porque eu gosto. Escuto Roberta Miranda, escuto Noel Rosa. Assim como eu escuto Diana Ross, escuto sei lá, Céu. Para mim, tem o mesmo lugar, a música. E a Literatura, para mim, a palavra escrita, tinha a mesma coisa. Eu lia livros tidos como adultos para mim na época, como lia, sei lá… Eu lia Drummond e lia Mônica com a mesma seriedade, com o mesmo afinco, com a mesma vontade.
P/1 – E depois do Sesi então, você foi para onde?
R – Depois do Sesi, eu fui estudar em uma escola pública, no Secundário. Tudo mudou, minha vida melhorou muito porque eu fui estudar do lado de gente da mesma condição social que eu. Então eu fui, tipo, estudar numa escola pública e tinha greve de professor, tinha protesto de aluno, tinha aluno indo para a rua e invadindo Câmara Municipal, tinha política nesse sentido de fazer isso e ser uma pessoa atuante politicamente, dentro daquele espaço. Não que você não atue politicamente em todas as horas, porque política é inerente ao ser humano, mas ali tinha uma coisa conscientemente atuante, se desenvolvia uma atuação consciente, uma atuação política consciente, no segundo grau. Eu fui estudar numa escola em Contagem, que era do lado da Comunidade dos Arturos, e era uma escola incrível, uma escola maravilhosa. Pobre - porque era escola pública
-, mas… Uns prédios antigos assim, com umas salas confortáveis, arejadas, janelas imensas, e era muito engraçado, porque, na época, você tinha uma divisão, que era a coisa do curso técnico. Você tinha o Magistério e o Científico, ou outras coisas, mas essas duas eram… As pessoas diziam que Científico era para quem ia fazer vestibular, Magistério era para quem ia dar aula. E no Magistério, mulher, não é? Não tinha homem que fazia, não existia. Então, a minha escola tinha uma turma de Científico e doze turmas de Magistério, uma escola de mulheres. Só tinha mulher na escola. Os homens que havia na escola eram os homens da minha turma, que deviam ser, sei lá, 20 ou 20 e poucos homens. O resto, era mulher. E isso mudou tudo, porque aí eu estava mais à vontade, estava mais tranquilo. Eu estava num ambiente feminino, num ambiente mais acolhedor, num ambiente menos homofóbico, num ambiente… Era uma escola linda, tinha um bosque lá, muita árvore. Não tinha nada do que tinha no Sesi, não tinha piscina, quadra, nem nada. Tinha uma biblioteca bem média. Para quem tinha uma biblioteca incrível na outra escola... Então, era uma biblioteca bobinha, mas aí a gente já estava se virando também, já estava comprando livro, emprestando livro, pegando da tia. Era uma turma bem legal; dessa turma eu tenho amigos ainda hoje. Amigos queridíssimos, pessoas por quem tenho a maior estima, gente que eu torço, gente que faço questão de encontrar, de ver, de trocar ainda informações. Esse meu povo é mais legal. Vai melhorando, não é?
R – Quem são algumas dessas pessoas? Você gostaria de falar o nome e como as conheceu?
P/1 – É, conheci na escola assim. Não são pessoas nem da minha intimidade, mas são pessoas por quem tenho apreço, tenho até apreço pela história. Sabe, eu tenho amigos dessa turma que escreveram livros, que fazem pesquisas incríveis. Tenho uma amiga, que se chama Carolina Dellamore, que é uma pesquisadora e tem foco ali nos anos 70, na ditadura e suas consequências, isso é muito chique, é muito elegante, é muito importante. Ela já escreveu dois livros sobre o tema, imagina, olha que coisa maravilhosa. Você saber que seus pares estão seguindo por caminhos da pesquisa científica, isso é muito importante, muito chique, é bonito.
R – Você ficou esse tempo todo lá? Qual é o nome da escola?
P/1 – Se chama Funec, que é Fundação de Ensino de Contagem, que são as escolas de segundo grau, acho que nem existem mais. Porque depois… Tem uma coisa que, legalmente, quem cuida do ensino médio é o estado; e o ensino primário, o município. Então, eu acho que depois eles entenderam essa regra e acabaram com as escolas de ensino médio, porque também davam muito trabalho. Os professores eram muito aguerridos politicamente e a gente não ficava atrás. Escola pública, adolescentes a fim de ir para a rua, sabe? Então, acho que começou a dar muito trabalho. Tem uma passagem, por exemplo, nessa escola, em que vi um show do Pato Fu, na Funec. Eles estavam, sei lá, no primeiro ou segundo disco. Fomos todos para o Centec, que era uma unidade desse Funec - eu estudava no Funec Alvorada -, então a gente saiu da escola e foi todo mundo, em horário de aula. O Pato Fu foi fazer um show de manhã no Centec, não era uma festa nem nada, a gente queria ver o Pato Fu, porque éramos fãs do Pato Fu. Depois, eu fiquei amigo do Ricardo Koctus, que é o baixista do Pato. Fui conhecer a Fernanda, por causa da música, não é? A Fernanda lembra desse show, lógico, claro que vai ser inesquecível um show desses. Imagina uma galera de escola secundária, lá de Contagem, ligando para você e perguntando: "Quanto custa o show de vocês?" "Tanto". "Então, vamos arranjar o dinheiro". E tudo no negócio da vaquinha, cada aluno dando um tantinho: "Olha, nós conseguimos o dinheiro". "Mas tem som?" "Tem". Eles foram lá fazer o show e foi inesquecível.
R – Nessa época, que o pessoal chama de ensino médio hoje, você começou a pensar em namorar? Como era isso?
P/1 – Ah, sim, tinha as paixões de adolescente, mas eu fui namorar muito tarde. Minha primeira namorada, eu tinha, sei lá, 17 anos - 17 ou 18. Ela é minha amiga até hoje - Joelma Barros - bailarina, tem uma história de vida incrível e é casada com um cara chamado Cristian Antunes. Ele tem um estúdio aqui perto e eu ensaio no estúdio dele. Ela tem um filho, que deve estar com uns 12 anos agora, 10, 11 ou 12. Foi minha primeira namorada, mas não era na escola. Não… Eu tinha paixões, mas todas platônicas. Morro de inveja da geração 2000, que é livre, leve e solta e namora com 15 anos de idade, com 12, com 13… Independente se namora menina, menino, menine. Não era bem assim, era bem treta, as coisas eram escondidas. Bares gays eram escondidos, que maluquice isso. Como assim? Eu fui num bar gay, pela primeira vez na vida, com 17 anos e fiquei assustadíssimo. Vi Nayla Brizard, que é uma drag queen aqui de Belo Horizonte, fazendo um show de Maria Bethânia. Era um bar tipo do tamanho desta sala, ridículo de pequeno, devia caber umas 20 pessoas lá dentro. Ela corria (risos) entre as mesas, com uma peruca gigantesca e vestida de Maria Bethânia, dublando Maria Bethânia, eu fiquei assustado. Não com as pessoas, eu fiquei assustado com aquela situação, sabe? Falei: "Não, mas espera, está errado isso, ficar escondido aqui, não quero". Aí, demorei, demorei, porque eu não me sentia à vontade, nem com a minha própria sexualidade nem com esses espaços. Eu achava que não tinha a ver.
R – Isso, o quê? No primeiro governo Lula, 2003?
P/1 – Não, antes. Isso era em Fernando Henrique Cardoso, apagão, treta, muito difícil. Eu sou de 1981 e isso era 1997, 1998. É, Fernando Henrique Cardoso, bem complicado. No governo Lula eu já estava no Teatro Universitário, aí a vida abre de uma vez e acaba o sofrimento.
R – Você veio para cá?
P/1 – É.
R – Antes de você voltar a falar, então você ficou esse tempo no ensino médio lá e já tinha feito um pouco de teatro antes? Você já sabia que era isso que ia fazer da vida? Como era?
P/1 – Já, já. Sempre o meu interesse foi pela música, mas eu achava que não levava jeito para música, não tinha confiança o suficiente para isso, então fui para o teatro. Foi o que me foi apresentado. No Sesi, tinha uma professora de teatro. Por volta dos meus 12 anos, chegou uma professora de teatro no Sesi e eu pensei: "Vai salvar a minha vida, agora deu tudo certo". E comecei a estudar teatro lá, aos 12. Eu não parei mais, fui estudando lá, depois estudei lá em Contagem também - lá no Centro Cultural, no ensino médio - fazia um curso, fazia não sei o quê, fazia uma peça, juntava com os amigos da escola e fazia… Uns esquemas amadores bem interessantes, de ir para o auditório da escola, fazer a peça, chamar todo mundo, fazer ingresso, não sei o quê, vender ingressos, fazer temporada. Fazia três dias seguidos de peça, sempre cheio, 200 lugares lotados todo dia. Era o maior barato! E aí, antes de entrar para o teatro eu ainda tentei outras possibilidades, eu estudei História na PUC durante três meses. A primeira vez que o professor entrou na sala e me pediu para fazer um fichamento da Era dos Extremos, do Hobsbawm, uma bíblia, falei: "Eu posso ler e vou ler, mas você quer que eu faça anotações e lhe entregue?" "Não, eu quero que você faça um fichamento. É diferente de fazer anotações, eu vou avaliar suas anotações". Eu falei: "Deus me livre, não quero ficar aqui, não sou obrigado". Porque, para mim, que tinha passado por essa coisa do ensino primário, depois o médio, depois… Para mim, a Universidade era um lugar para ser de discussão e não de avaliação. Quando eu entendi que a Universidade era um lugar de avaliação, que tinha prova, nesse sentido de certo e errado, falei: "Ah, não quero isso, não quero esse negócio". E fui estudar teatro. Eu fui para o Teatro Universitário, mas acho que era um negócio de locação mesmo, porque as provas do teatro nunca me incomodaram, eu sempre achei que tudo bem. Menos as provas de habilidade, que eu achava meio caretas, prova de circo… Ter que fazer uma quantidade X de malabares com o elemento X para que você passe de ano… Eu achava, sei lá... Mas a coisa se abriu bastante. Eu entrei para o Teatro Universitário em 2001. Ele funcionava na rua Carangola, perto da casa de Teuda Bara, onde eu passava todos os dias e fazia o sinal da cruz antes de entrar no Teatro Universitário, para ver se trazia uma energia de dona Teuda. É tão bonito pensar que eu fui ficando amigo dessas pessoas, ver que fiquei amigo do Ricardo Koctus, da Fernanda Takai, da Teuda Bara e do povo do Grupo Galpão. Era uma gente que eu só admirava e agora tenho relações, tenho o telefone dessas pessoas, posso ligar para elas. O Teatro Universitário foi a grande abertura, é um lugar de muita abertura, e um ambiente... Um espaço de experimentação, um espaço de menos gente. Então, no Teatro Universitário entram 20 pessoas por ano, sabe? Não são 40 a cada semestre, são 20 por ano. É um negócio que você… E assim... Entram 20 no primeiro ano e, no segundo, uma parte já desistiu. Então, a turma do segundo ano tem 15. A turma do terceiro ano tem 8. Uma escola inteira tem 40 pessoas. Você convive com essas pessoas durante muito tempo e muito intimamente, porque teatro é corpo, é físico, e trazer uma ideia para o corpo, para transformar uma ideia em algo físico, que você possa mostrar e não contar e narrar. Você tem que mostrar aquilo, então o contato físico também é muito grande. O contato íntimo, a liberdade do corpo, tem que ser gigantesca. Aí, tudo muda, não é? Aí, você vai paquerar, você namora… A vida acontece. Não tenho nenhuma saudade da adolescência, nenhuma. Foi um período terrível (risos). Tenho muita alegria de ter chegado e tomado essas decisões na vida, de ter ido estudar teatro, por exemplo, numa escola como é o Teatro Universitário. É uma escola com professores maravilhosos, gente da mais alta competência, gente que desenvolve conversa, que desenvolve assunto, que quer discutir, que discute com você no corredor, no recreio, antes, na festinha, sabe? Que encontra com você na rua, vai tomar um café e falar sobre Arte. É muito engrandecedor, abre muito as possibilidades de atuação na vida, me faz conhecer Teuda.
R – Quem eram seus professores na época?
P/1 – Meus professores são pessoas muito queridas até hoje. Míriam Tavares, professora de corpo e circo. Fernando Limoeiro, um pernambucano absurdo, uma pessoa inacreditável, que ganhou esse nome por ser da cidade de Limoeiro - bonequeiro, mamulengueiro, especialista em teatro de cordel. Fernando Linares, um argentino radicado no Brasil há alguns anos, fundador do Grupo Galpão - um dos fundadores -, fez três espetáculos com o Galpão, no início da história. Depois, foi ser professor. Uma das figuras de referência no estudo da ‘commedia dell'arte’ no Brasil e no estudo de máscara expressiva. Esses eram os professores efetivos. Depois, eu tive outros professores. Fernando Mencarelli - três Fernandos - professor de História da Arte. O Mencarelli, depois, foi ser presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Teatral. Olha o nível dos professores, cara, o nível das pessoas com quem a gente se relacionava com 20 anos de idade. Que coisa linda! Denise Pedron, que é doutora em ‘perfomance’, gente muito incrível. Inês Linck, uma alemã que veio morar em Belo Horizonte e hoje dá aula de História do Teatro na Universidade Federal, em Ouro Preto, dava aula também de História do Teatro. Tereza Bruzzi, dava aula de cenário e figurino, uma arquiteta respeitadíssima, foi diretora do Museu Casa do Baile, na Pampulha. Ela era gente de muita categoria e que não deixava mole, não deixava a gente ficar no pensamento raso. A gente tinha essa obrigação de ter um pensamento mais aberto e de conseguir falar sobre vários assuntos. A prova do Teatro Universitário, para entrar nele, era uma prova escrita que tinha texto e questões do teatro contemporâneo, do que estava acontecendo no teatro brasileiro naquela época e também das influências desse teatro brasileiro. Então, quando entrava no Teatro Universitário, você já tinha que saber quem eram os diretores que estavam fazendo os trabalhos de vanguarda daquele momento. Era impossível passar na prova do Teatro Universitário na época, se você não soubesse quem era Antunes Filho, sabe? Que ali, no final dos anos 90, era uma revolução. Gabriel Vilela, com quem eu trabalho hoje em dia… Então, a gente tinha que saber o que estava acontecendo na cena teatral brasileira. Maravilhoso.
P/1 – E você veio morar aqui e conhecia mais ou menos Belo Horizonte, ou não? Onde você veio morar?
R – Cara, eu não tinha a menor ideia do que acontecia aqui, eu lembro de vir quando era criança, com a minha mãe, comprar alguma coisa, sei lá, vir ao cinema - no Cine Acaiaca e no Cine Brasil - mas nisso, eu era muito criança. Eles sobreviveram ali até quase o finalzinho dos anos 80, cinemão de rua, 500 lugares e tal. Lindo! Depois, eu comecei a vir porque eu fazia cursinho pré-vestibular, então eu tinha que vir. Pegava o Metrô lá em Contagem, descia na estação, ia até a Praça 7, voltava para a estação e voltava para Contagem. Era isso que eu sabia fazer: ir até a Praça 7 e à Praça da Estação. No máximo, ao Palácio das Artes,
a uma rodoviária, que é tudo no mesmo perímetro, com quarteirões assim de separação. Só que o negócio de pegar ônibus aqui, não. A primeira vez que fui ao Teatro Universitário, que é lá no Santo Antônio (risos), um bairro vizinho ao Centro, para mim era super distante, não tinha uma relação com a cidade. Eu fui criar essa relação depois, mais velho, quando eu vim morar aqui. Morei no Santo Antônio. Quando eu saí lá de Contagem, passei um tempo lá também. Depois que me formei no Teatro Universitário, passei um tempo dando aula de teatro lá em Contagem, e no lugar onde eu fazia alguns cursos, na Secretaria de Cultura, fiquei dando aula por dois anos e meio. Depois, eu decidi morar aqui mesmo, fui viver no Santo Antônio, ali por volta de 2005 ou 2006. Eu morei lá por um ano, depois morei no Padre Eustáquio, depois fui morar no Santa Efigênia, numa vila linda - uma vilinha, era um lugar bem legal - e depois no Sagrada Família. Sempre buscando uma Belo Horizonte com uma carinha mais tranquila, mais de interior, mais de roça, eu gosto mais.
P/1 – Tem algum lugar aqui de Belo Horizonte a que você se afeiçoou mais, que você tenha...
R – Tem, o prédio do Teatro Universitário, que foi restaurado para virar o Museu da Anistia. Não deu tempo. Veio o golpe e está lá parado. Eu morro de dó, porque é um prédio que, sei lá, se ficar muito tempo parado, vai cair. Porque é um prédio de mais de cem anos, um prédio que data da fundação de Belo Horizonte, no final do século XIX. A gruta, que é um lugar que eu amo, um lugar que formou o meu corpo, a minha atitude, o meu jeito de lidar com a cidade, o meu jeito de falar com as pessoas, porque é um lugar de extrema liberdade, então… Todos os lugares tocados pelo Carnaval nesta cidade… Também me dá muita alegria passar pela cidade e pensar que, em fevereiro, não vai ter carro, vai ter gente na rua tocando, bebendo, cantando, se divertindo, agindo politicamente, protestando, isso tudo. Todos esses lugares que foram tocados pelo Carnaval, avenidas grandes, ruas, eu passo por eles e tenho um imenso carinho, um enorme carinho. Acho que ocorreu uma mudança muito bonita nesse lugar.
P/1 – Carnaval aqui deu uma _______[14:22].
R – É um termo que… Eu nem gosto muito de usar esse termo.
P/1 – Porque nunca morreu, na verdade?!
R – É, sempre teve. Ele cresceu em número novamente. É esse fenômeno que acontece na cidade, você tem um crescimento muito grande e se aquilo não vira uma atividade comercial da cidade, é natural que aquilo se encolha de novo. Então, a gente está vivendo, nos últimos dez anos, esse período de crescimento quantitativo, de blocos e manifestações carnavalescas. Isso mudou a vida de todo mundo, mudou a forma da cidade de se encarar, mudou as relações, mudou os grupos que se encontram, como se encontram, de que jeito vão se relacionar. Mudou a minha relação com as pessoas, com a cidade, com meu corpo, com o corpo do outro, fez muita diferença. O Carnaval é uma revolução brasileira. A gente inventou um jeito de fazer revolução.
P/1 – Você acha?
R – Eu tenho certeza. É muito revolucionário. E é muito doido, porque a gente tem essa fama, inclusive fora daqui, de ser um povo… Essa fama do brasileiro fora do Brasil é toda causada pelo Carnaval, de ser uma gente receptiva, de ser uma gente feliz, de ser uma gente alegre, que dança, que samba… Isso é revolucionário e é onde estão querendo podar as coisas, todos os fundamentalistas. O sonho dos fundamentalistas é acabar com o Carnaval, porque eles sabem... Eles não são estúpidos, eles são fundamentalistas. Não são estúpidos, são perigosos nesse sentido de querer uma corrente só, uma coisa só, um jeito só de fazer as coisas, e um lugar onde eles atacam é o Carnaval. Não é à toa, isso não é à toa.
P/1 – Que blocos você frequenta mais e que se afeiçoou mais hoje?
R – Aqui em Belo Horizonte, tem o Baile do Prazer, que é um bloco que inventei para chamar de meu, depois de dez anos de Carnaval. Então, este ano, o Baile do Prazer estreou e foi incrível. O Baile é um show, mas tem bloco também, e o bloco aconteceu na minha rua, na porta da minha casa, porque nessa rua… Não por um motivo narcisista, mas porque nessa rua tinha um bloco de Carnaval e este ano esse bloco não saiu. Eu trouxe o Baile do Prazer para cá. Pedi a todas as minhas vizinhas, eu batia à porta de cada uma e perguntava se podia. Então, no sábado de manhã, a gente fez e foi muito, muito bonito. A Corte Devassa, que é um bloco mais antigo. Mais antigo assim, dessa leva desses novos blocos, a Corte deve estar indo para o seu nono desfile. É o bloco da liberdade, dos artistas de teatro, é o bloco do povo do teatro. Tem um hino incrível, que conta a história fazendo uma suposição de que Maria Antonieta e Carlota Joaquina chegam em Belo Horizonte, na rua Sapucaí, elas não aguentam de calor, levantam a saia e começam uma bacanal. Isso dá origem ao Carnaval.
P/1 – Você pode cantar para a gente?
R – Posso. "A nossa Corte quer botar o bloco na rua, evoluindo com um canto de Evoé. Agora ninguém mais quer dançar o minueto, porque toda a nobreza aprendeu samba no pé. Maria Antonieta e Carlota Joaquina
vieram pra Belô pra curtir o Carnaval. Na Sapucaí, não aguentando de calor, levantaram as saias, começando uma bacanal. Não sou bandida, eu nasci puta, mas dou de graça. Nesse Carnaval, meu nome é Corte Devassa. Vem de caravela só pra ver como é que é, até a Sandy já sentou no mastro. Como diria o mestre Raul Belém: solta o espartilho, que hoje eu não sou de ninguém". Bonito (risos). Tem esses personagens, não é? Tem a Sandy, a Maria Antonieta, a Carlota Joaquina, o Raul Belém. O Raul Belém é um arquiteto, professor de teatro, cenógrafo, figurinista do… Sei lá, talvez o mais importante da história desta cidade. Raul Belém Machado. Ele faleceu há alguns bons anos já, mas ele fez o estandarte da Corte Devassa. Isso é tão emocionante, pensar que o Raul fez o estandarte de um bloco de carnaval que homenageia ele próprio: "… como diria o mestre Raul Belém: solta o espartilho que hoje eu não sou de ninguém". Esse hino da Corte é tão popular... Ai, fiquei emocionado só de lembrar do Raul, dessa imagem, sabe? Essas construções são coisas grandes, são coisas que vão permanecer, que vão influenciar o caminho da cidade. A cidade me interessa muito nesse aspecto, é tão bonito, tão necessário e tão importante a gente sair do modo automático em que vivemos na cidade para poder ganhar contornos poéticos. E que eles sejam duradouros, assim como o estandarte do Raul Belém para a Corte Devassa, que a gente usa todos os anos. Nós temos o maior orgulho de carregar, porque foi o Raul quem fez.
P/1 – Faz quantos anos, mais ou menos, que você… Que o pessoal sentiu que deu uma crescida no Carnaval?
R – A data é meio que… A gente marca meio que nos últimos dez anos, é a história de 2009 para 2010. Tudo começa com a praia da estação. Essa história já foi contada para você? Não? Mais ou menos, não é? Então eu vou ter a felicidade de contar a história da praia (risos). Bom, no momento ali, no final de 2009… Pode ter sido 2008. Não, no final de 2009… Eu sou muito ruim com ano, mas sou bom de fato. O Prefeito da cidade, depois de ter reformado a Praça da Estação, que é o primeiro ponto de Belo Horizonte, que é onde a cidade nasce, onde tem a estação de trem, de onde vinha todo mundo que chegava em Belo Horizonte… Isso lá na fundação da cidade, no final do século XIX, esse Prefeito queria que a praça fosse meio que privatizada, enfim, ele colocou um decreto, no dia 28 de dezembro, algo assim, proibindo evento de qualquer natureza na Praça da Estação. "Evento de qualquer natureza", está escrito no decreto. Como assim proibir evento de qualquer natureza? Então, se você quisesse utilizar, tinha que pedir uma licença na Prefeitura, e essa licença custava dinheiro. A praça tinha acabado de ser reformada, ficou por muito tempo sendo usada como estacionamento no centro da cidade. É uma praça gigante, linda, tem uma fonte no chão, enfim, é uma beleza. Essa história se espalhou muito rapidamente, então já nesse primeiro final de semana do ano seguinte, assim na outra semana… Aí que me carece a exatidão entre 2009 e 2010, mas nessa primeira semana, logo depois do decreto baixado, rolou esse movimento de: "Ah, não pode evento? Vamos fazer uma praia. Como é que vamos protestar sobre isso? Como é que vamos dizer que a gente é contra essa maluquice?" Então a gente foi para a Praça da Estação e tomou um sol. Não é evento, nós estamos tomando sol de biquíni, de canga, de sunga, tomando banho na fonte, jogando peteca, vôlei, frescobol… Era uma grande performance. Eu tenho umas fotos dessa praia. Tem uma foto minha com o Guilherme Moraes nessa praia. O Guilherme Moraes é um bailarino, um artista belo-horizontino que foi a figura que trouxe o duelo de Vogue para Belo Horizonte e também meio que para o Brasil, porque era um negócio meio inédito quando ele começou a fazer isso aqui e a coisa foi se espalhando. Então, o Guilherme também é uma figura visionária. Se não me engano, foi ele quem me avisou desse rolê da praia e eu fui: "Claro que eu vou, imagina que eu vou perder a oportunidade de tomar um sol na Praça da Estação, de sunga, com todos os meus amigos?! Nunca, jamais". A história
da praia começa aí. Aconteceu essa, depois aconteceu outra na próxima semana, depois aconteceu outra na próxima… Essa primeira praia tinha, sei lá, 40 ou 50 pessoas. Na segunda semana tinha 100. A terceira, não sei o quê… Até a praia ter 2.000, 3.000, 5.000 pessoas esses anos todos. A ocupação da praia vai trazendo, também, a ocupação do Carnaval. Todo mundo que queria fazer alguma coisa no Carnaval, meio que se encontrava na praia para ensaiar lá. Esses blocos desse Carnaval dessa data, nascem ali na praia da estação. Tem histórias incríveis da praia. Tipo desligaram a fonte, não deixavam a gente tomar banho na fonte. E a praia é árida. Tem duas árvores lá e o resto é cimento, sol e faz calor, não é? Belo Horizonte, em janeiro, tem um calor do cão: "O que vamos fazer?" "Chama um caminhão-pipa". Chamava o caminhão, ele parava na Avenida dos Andradas e ficava ali 40 minutos jogando água para a gente (risos). Tinha um povo que levava prancha, colocavam as pessoas para surfar no caminhão-pipa (risos). Esse formato de encontro de revolução, eu acho mais bonito. Por isso que eu digo: Carnaval é revolucionário. É o nosso jeito de fazer revolução.
P/1 – Como é que você, então, se dirigiu à música depois do teatro?
R – Pois é, eu sempre quis ir para a música, mas achava que não tinha muito jeito para isso. Então, o teatro me levou para a música. Eu comecei a fazer uns shows no Teatro Universitário ainda, a cantar lá e, como o meu contato com música é muito grande desde criança, eu tenho uma memória musical muito grande, um repertório gigantesco e fui começando a cantar em bar, cantar na casa de amigo. É uma história bem clássica de cantor e de formação de cantor. Fui cantar no boteco, fui cantar na festinha do teatro, fui cantar não sei onde, fui cantando, cantando, fui cantando… Cheguei. Inventei shows muito legais. Um show que está há dez anos em cartaz, se chama Não Sou Nenhum Roberto, sobre a obra de Roberto e Erasmo, porque minha mãe os ama e porque eu recebi um convite um dia para fazer um show abordando a obra dos dois e isso virou um show louquíssimo, que é um Robertão… A gente chama de Robertão Show, porque é um power trio - baixo, guitarra e bateria - tocando esses clássicos todos e tudo ficou muito rock'n roll, então, é um anti Roberto Carlos ao mesmo tempo. É uma coisa que tenho muito orgulho de ter feito, de ter feito um show como intérprete mesmo, pegar uma obra, analisar uma obra, entender uma obra e pensar que abordagem vai ser dada, porque é uma obra muito clássica, está na memória afetiva de todo mundo. Qualquer trechinho de Detalhes que eu cantar aqui, você vai saber. Mas, como se transforma isso e que abordagem vai ser dada? Conseguir dar uma abordagem dark, punk para uma obra tão sagrada e tão sacralizada. Um outro trabalho, que é o trabalho que rendeu o meu disco, que chama Narciso Deu um Grito, que é um trabalho todo construído sobre uma curadoria carnavalesca. Esse trabalho foi todo construído, esse disco foi todo feito a partir de encontros que eu tive no Carnaval.
P/1 – É de quando?
R – É de 2017.
P/1 – __________[01:31:15]
R – É, eu nunca quis gravar disco. Eu sou uma pessoa do palco, do teatro. O teatro que me migrou para a música, então o meu interesse era fazer show. Show eu faço para caramba, um monte, muito, muito, muito show, porque eu gosto. O negócio do disco eu achava meio frio, meio distante, um negócio que a pessoa não está me vendo, é outra linguagem. Eu trabalho a música com outra linguagem, não trabalho no sentido da escuta, eu trabalho com a música no sentido da performance, que é a escuta com o visual, o discurso, a ação… Tudo isso, para mim, é a música que eu faço. Então, quando eu tenho que reduzir uma coisa a um segmento só, fico um pouco sem querer fazer, mas é muito lindo. Achar esse modo do Carnaval, construir um disco a partir dos encontros que eu tive no Carnaval… Todo mundo que toca no disco tem essa história do Carnaval, e mexe aqui comigo. A Corte Devassa participa do disco, o bloco gravou para o disco. A gente parou uma rua aqui no Floresta, que é a rua Ipiranga, na ‘tora’, sem pedir polícia, sem Detran, sem nada. Na frente do grupo Pierrot Lunar, que é um grupo de teatro. A gente estava ensaiando lá e eu queria gravar a Corte Devassa para o disco, queria que a Corte Devassa gravasse o bloco. É impossível colocar um bloco dentro de um estúdio. Nós fomos para dentro dessa sede do Pierrot Lunar, na rua Ipiranga, aqui no Floresta, e não cabia a quantidade de gente que foi tocar na Corte esse dia para gravar esse disco. Não foi para o Carnaval, a gente reuniu a galera para isso. A gente tinha dois “boomzões” (?)[01:33:34] de cinema, botamos a Corte na rua e gravamos. Então, no meu disco tem o hino da Corte Devassa e tem a Corte Devassa tocando. Do meio da música para frente… A gente começa no estúdio e, do meio da música para frente, é só a Corte Devassa, é o bloco tocando na rua. Eu tenho um orgulho danado de ter feito isso, porque é um registro real da história do Carnaval, que não é, necessariamente, em vídeo. É um bloco tocando o seu hino na rua, sabe? Não é um bloco que separou algumas pessoas e foram para o estúdio gravar, é o bloco. Estava todo mundo lá tocando. Isso é bonito demais.
P/1 – Você pode cantar uma música desse disco para a gente?
R – O hino da Corte está nesse disco. É… A gente falou tanta coisa. Tem uma música de uma compositora chamada Milena Torres, que é minha companheira de vida. Para a obra que eu quero desenvolver na vida, é a compositora principal. Ela é de Almenara, minha parenta distante, de região de pedra. Nós somos da mesma pedra, da mesma água e ela fez uma música para esse disco, que é assim: "Tranca tudo e guarda a chave para reabrir na hora certa. Essa luz que brilha e arde, não é mera teoria. A fé trabalha em liberdade, não conhece covardia. Pise nesse chão descalço, deixa tudo com ventania. Tranca tudo e guarda a chave, para reabrir na hora certa. Essa luz que brilha e arde, não é mera teoria". Achei que não era bem esse o tom, mas é essa a mensagem.
P/1 – Como é que foi contar um pouquinho da sua história hoje para a gente?
R – Foi bonito, emocionante, foi suspirante. Achei que… Engraçado, eu estou até agora assim… Por ter ficado tão emocionado com a história do Raul, que nem era uma pessoa muito próxima a mim, não era meu íntimo. Eu o conhecia de longe, mas talvez por ser essa história, essa perpetuação de símbolo, de signo para a cidade, para a polis - que é um conceito pelo qual sou muito apaixonado. Se eu não fosse artista, seria urbanista, certamente. E de pensar nisso, que cidade, que reunião de pessoas, que pensamentos que eu vou deixar no mundo, assim como o Raul deixou num estandarte de bloco de Carnaval, eternizado lá pelas mãos dele. Que pensamento eu vou deixar no mundo? Que contribuição eu posso oferecer para esse tempo que segue, para os meus sobrinhos, para as minhas crianças, para os meus, sei lá, filhos? É bonito isso, você pensar em algo que fique, mesmo você
sendo um objeto impermanente, sendo um objeto que vai sumir, vai virar poeira. Essas coisas vão ficar aqui, os registros, talvez por mais tempo do que a gente, se eles forem bem guardados. Muito doido isso, não é? Muito doido, bonito.
P/1 – Obrigado, Marcelo.
R – Obrigado Lucas, obrigado Ciro.Recolher