Chamava-se José Reinaldo mas também era conhecido como Liliba ou Sataliba e outras alcunhas, dependendo da ocasião. Era um daqueles mensageiros impecáveis em suas tarefas, que não parava de trabalhar pra escutar arengas ou mediocridades. Era assim, uma espécie de professor que sabia tudo, e en...Continuar leitura
Chamava-se José Reinaldo mas também era conhecido como Liliba ou Sataliba e outras alcunhas, dependendo da ocasião. Era um daqueles mensageiros impecáveis em suas tarefas, que não parava de trabalhar pra escutar arengas ou mediocridades. Era assim, uma espécie de professor que sabia tudo, e ensinava para os novatos os mínimos detalhes, desde quantas dobras teria que ter um telegrama a ser entregue, a quantidade de cola para lacrar o envelope, assim como onde se localizava cada beco, casa sem número, rua projetada e demais dificuldades que enfrenta qualquer iniciante.
A primeira vez que ouvi falar do Zé Reinaldo foi logo depois que comecei a trabalhar no setor de malotes e fui designado, em seguida, para substituir um mensageiro de férias. Quando o vi pela primeira vez, tive a sensação de conhecê-lo há muito tempo, olhava-me assim desde cima e para os lados, com certo desdém, talvez imaginando: “– Mais um”.
Pensei em puxar conversa, mas falta assunto em conversar quando não se é apresentado formalmente, porém só foi ele começar as instruções para senti-lo como uma destas estranhas e íntimas criaturas que habitam nossa vida. Era singular, modesto em suas atitudes, frio em suas manifestações, conservador em seu espírito, mas seguro de si, da sua capacidade e de seu talento. Daí, talvez, o seu ar aparentemente apático e desdenhoso, desconfiado e às vezes difícil de se entusiasmar. Vivendo para o trabalho, preocupado ao extremo com o destino dos telegramas, dotado de um coração generoso, alegrava-se com o sucesso das entregas feitas pelos outros, fruto de seus ensinamentos.
A transferência do serviço fonado para a capital do estado fez com que o setor telegráfico fosse reduzido e Zé Reinaldo promovido a carteiro convencional, o que para ele foi um susto, visto que em seus vinte e poucos anos de casa, jamais havia entregado uma carta. Só telegramas, o tempo todo.
Continuou aquele profissional exemplar, só que o número de cartas era muito, a bolsa talvez pesasse bastante e o trecho por demais longo. Sabia que apesar do esforço não conseguiria ser o que gostaria, decepcionou-se consigo mesmo e procurou o caminho inverso para firmar-se como o carteiro padrão que sempre sonhara ser.
Entre um gole e outro, viciou-se na bebida e tornara-se alcoólatra, esquecendo todas as qualidades que possuía e que serviria de exemplo a tantos colegas. Atrasos constantes, correspondências não entregues, reclamações. Apesar da ajuda da empresa e dos colegas, não conseguiu se redimir e entre um afastamento e outro, Zé Reinaldo continuou a trabalhar, mesmo já tendo perdido a esposa, as diversas namoradas que arrumara depois do final de seu casamento, sua casa, carro.
Fato pitoresco marcante, foi quando de uma visita do diretor regional à agência onde Zé Reinaldo era lotado. Depois das reuniões e dos discursos habituais, o diretor regional começou a circular pela unidade, conversando com um, com outro e muito a vontade, coincidentemente intercepta o Zé Reinaldo e pergunta:
- Cadê o bebedouro?
Por certo, o diretor não entendeu nada quando Zé Reinaldo quase chorando, jurou de pés juntos que havia parado de beber, e que nunca mais iria fazer aquilo.
Zé, em sua fase quase terminal, julgou que o bebedouro referenciado pelo diretor fosse ele mesmo e não o local para se beber água.
A última vez que encontrei Zé Reinaldo com vida foi em um ponto de ônibus, caído, segurando a bolsa de carteiro, sem forças para subir os degraus do mesmo. Morreu uma semana depois. Ele existiu, personagem da minha vida, exemplo feito de profissionalismo, alegria e amizade.Recolher