Entrevista de Maria Regina Figueiredo Orta
Entrevistado por Caia Amoroso e André Carvalho de Freitas
São Paulo, 1 de outubro de 2019
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV832
Transcrito por Selma Paiva
P/1 - Seja bem-vinda, Regina.
R - Obrigada.
P/1 – A gente queria que voc...Continuar leitura
Entrevista de Maria Regina Figueiredo Orta
Entrevistado por Caia Amoroso e André Carvalho de Freitas
São Paulo, 1 de outubro de 2019
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV832
Transcrito por Selma Paiva
P/1 - Seja bem-vinda, Regina.
R - Obrigada.
P/1 – A gente queria que você, para começar, se apresentasse: seu nome, sua idade, de onde você é?
0:45 R - Então, eu sou Regina, Maria Regina Figueiredo Horta, tenho sessenta e oito anos e sou daqui de São Paulo. Nasci aqui, morei a maior parte da minha vida aqui em São Paulo.
P/1 - E de onde são os seus pais?
0:59 R – Olha, os meus pais... o meu pai é de Aquidauana, no Mato Grosso, ele é filho de uma família... a minha avó paterna é descendente de índios do Mato Grosso, eu acho que da etnia dos Terena que tem lá. Porque nós temos algumas histórias familiares que localizaram um pouco os antepassados dessa minha avó, que é descendente de índios. E ela foi casada com meu avô, Manoel, que aí é de origem, provavelmente, portuguesa e tudo. Não sei onde eles se conheceram, porque ele não era do Mato Grosso, o meu avô. E o meu pai veio para São Paulo justamente para trabalhar com meu avô numa... acho que era uma coisa de estrada de ferro que meu avô trabalhava na época. E foi aí que ele conheceu a minha mãe, que é do interior de São Paulo, já quase sul de Minas. Aliás, Arceburgo, que é o município onde ela nasceu, já é sul de Minas, mas é perto do município de Mococa, onde a família dela se estabeleceu.
2H21 A fazenda onde ela nasceu era uma fazenda de café que, nos anos da crise do café, vinte e nove, o pai dela, meu avô, que eu não conheci, perdeu a fazenda, perdeu para um Banco, naquele endividamento todo que houve, dos proprietários de terra dessa região. E aí aconteceu uma coisa, assim, maluca porque, junto com a perda da fazenda, ele - que era pai de doze filhos, minha avó e ele - ficou doente, de uma doença que era incurável na época, que era a hanseníase, lepra.
3h10 Então, foi uma coisa, assim, que foi uma devastação na família porque, além de perderem tudo ali, meu avô foi levado para um sanatório em Campos do Jordão e lá ficou anos, até morrer e a minha avó com um monte de filhos pequenos. Foi quando ela veio para São Paulo com a família, minha avó. A minha mãe é um dos últimos filhos, é a penúltima. Minha mãe, quando veio para cá, tinha o que... ela contava, acho que ela tinha dez anos de idade, mais ou menos. Ela veio para São Paulo porque minha avó já tinha irmãs que moravam aqui. Ela achava que era o caso de vir para os filhos, alguns que já eram adultos, poderem trabalhar.
4h18 Aí minha mãe estudou no colégio Caetano de Campos que, na época, era a grande referência de escola pública. Ela foi uma pessoa que estudou lá até se formar no normal e conheceu meu pai, porque meu pai tinha vindo do Mato Grosso e ele era... morava numa pensão ali na Campos Elísios e essa pensão era de uma tia distante da minha mãe. Então, o meu pai e uma irmã dele estavam ali e minha mãe acho que ia visitar a tia e tal e acabaram se conhecendo e tiveram um namoro daqueles longuíssimos, de dez anos, mais noivado e não sei o que, e se casaram em mil novecentos e cinquenta. Aí o meu avô já tinha morrido, enfim. Minha avó, nessa época, já não morava mais ali naquela região, que era meio Barra Funda, Campos Elíseos, não sei o que, foi onde eles moraram quando vieram para cá, acho que em duas casinhas que não existem mais, Alameda Glete, Alameda Nothmann, por ali.
5h45 Nessa época a minha avó já tinha se transferido para as Perdizes, para um sobrado muito bom que está, até, numa das fotos aí, aquela do jardim, onde estou eu com meus primos. Minha avó foi para lá, pra uma casa que foi comprada pela minha tia Odete, que também está nessas fotos, que morava em Mococa, era casada com uma pessoa que tinha bastante recurso. Então ela veio, o meu tio Américo, pai... pai não, marido dela, comprou a casa para a minha avó. Minha avó se transferiu para lá com um monte de filhos. (risos)
6h 18 Minha mãe quando se casou com meu pai morava nessa casa. Eu me lembro dessa casa na Conselheiro Fernandes Torres como uma casa, assim, cheia de gente o tempo todo, porque não é que era a casa da avó que as pessoas iam o fim de semana. Muitos moravam ali, muitos tios moravam ali. Enfim, foi assim.
P/2 - Isso é mais ou menos, essa época eles já estavam casados, tipo cinquenta, cinquenta e um?
6h49 R - É. Quando minha mãe se casou, enquanto era namorada, noiva e tal, ela morava primeiro lá nos Campos Elíseos, depois nessa casa. Daí ela se casou com meu pai e eles foram para um apartamento na Avenida São João, alugado, e eu nasci, logo em cinquenta e um.
P/1 - E seu pai fazia o que aqui em São Paulo e sua mãe, o que ela fazia?
7h15 R - Então, a minha mãe fez um curso Normal e ela tinha vontade de dar aula, só que naquele tempo eu acho que não era tão simples assim, porque as normalistas tinham que escolher uma escola que, muitas vezes, não era na cidade onde elas moravam, tinham que ir para o interior, enfim, não sei qual era o sistema ali de escolha. Então, quando a minha mãe pretendeu fazer isso, eu sei que ela tinha que se mudar para uma outra cidade e ela não quis, não quis deixar meu pai. Eu nasci logo depois um ano depois que ela se casou. Ela teria que se transferir com meu pai e então ela acabou não exercendo a profissão de professora primária que ela seria e nunca foi.
P/1 - E seu pai?
8h17 R O meu pai trabalhava já com construção de estradas. Ele trabalhou aqui em São Paulo, ele trabalhou em uma empresa que construiu aqui o Ibirapuera, em cinquenta e quatro.
P/2 - No quarto centenário.
R - Quarto centenário ele trabalhou aqui, ele trabalhou em estradas próximas aqui da cidade, se não me engano a Anhanguera, trechos da Anhanguera, a empresa onde ele trabalhava participou. Era isso.
9h00 P/1 - Como foi o casamento de uma mineira com um mato-grossense, como foi essa mistura?
R – (risos) Bom, eu não sei bem, mas eu acho que foi um casamento que, de alguma forma, foi interessante porque eles tiveram seis filhos. E eles eram de duas famílias muito numerosas. Essa parte toda do Mato Grosso, a minha avó Clotilde, mãe do meu pai, teve também doze filhos. A minha avó Isabel doze filhos também. Então, era uma coisa assim muito vibrante a convivência nossa, das crianças, naquela época, principalmente com a família da minha mãe, porque do meu pai a família sempre foi mais dispersa pelo país, que moravam aqui dos meus tios eram poucos.
10h00 Mas foi isso. Acho que minha mãe, durante uma fase da vida que os filhos ainda não estavam em escola, acompanhou meu pai nas mudanças dele, porque ele era mandado para vários lugares. Aí, ela acompanhava, como foi o caso de Maceió, Ribeirão Preto e depois ele ia ser transferido para Santa Catarina, depois de Ribeirão Preto. Chegou a ir para lá, alugar casa, mas daí, na véspera, quase, da mudança mudaram os planos e
então ele ficou aqui em São Paulo e desde então, nessa época, eu vim de Ribeirão para cá, no segundo ano primário, eu já estava na escola, meu irmão também. Desde então minha mãe não quis mais se mudar para acompanhá-lo nas viagens mais longas, assim. Então ele trabalhou em muitos lugares, trabalhou na Bahia, trabalhou em Rondônia, trabalhou no Rio Grande do Sul e ficava períodos longos, às vezes um mês, assim e vinha uma vez por mês, enfim, e a gente aqui em São Paulo.
11h24 P/1 - E que lembrança você tem dessa época de mudanças?
R - De mudanças?
P/1 - De início de infância, como eram essas mudanças, como eram essas casas ou os lugares, que lembranças você tem dessa época?
R – Olha, as primeiras mudanças, assim, eu tenho lembranças só quando eu vejo fotos, porque eu acho que era muito pequena, então essa memória vem com algum estímulo, assim, porque eu não tenho... de Maceió, por exemplo, além das fotos, que uma delas eu conversei, a gente conversou a respeito, eu tenho uma lembrança de uma história da minha mãe que conta que, quando a gente foi para Maceió - éramos eu e meu irmão Guto que é o mais novo, mais novo não, depois de mim - de navio e eu chupava chupeta até aquela época, acho que eu tinha três anos quando fui para lá, minha mãe já devia ter jogado fora essa chupeta (risos) eu acho, mas ela deixou comigo. Aí diz que houve todo um trabalho de convencimento de eu jogar a chupeta no mar. Primeira viagem minha de navio, primeira e única, assim, eu acho, para Maceió, porque era necessário ir de navio para levar a mudança, eles não tinham como comprar lá, não sei o que era, sei que era uma bagagem grande. Aí eu joguei a chupeta fora e foi um problema, porque depois eu queria a chupeta e não tinha chupeta para comprar no navio.
P/2 - No alto mar sem chupeta?
13h10 R - No alto mar sem chupeta, até chegar em Maceió deve ter sido um horror, né? Mas tenho essa lembrança da ida, na mudança e tenho a lembrança da minha casa, que era uma casa, um terreno que era de areia, com coqueiros. Tenho a lembrança de ir até a praia por um caminho cheio de plantas e aquelas buchas vegetais que eu e meu irmão íamos pegando pelo caminho e brincando com as sementes. Ah, eu tenho uma lembrança linda, essa não tem foto, não tem nada, mas meu pai tinha um jipe na época, um jipinho, aqueles jipes antigos e ele punha a gente, eu e meu irmão, no jipe e a gente ia para uma beirada dum cais, à noite, com lua cheia, tudo prateado, para ver os golfinhos, os botos. CORTE 14:03 Lá se chamava boto. Essa lembrança é bem antiga. Uma das mais antigas que eu tenho.
14h13 De lá nós fomos pra Ribeirão Preto. Eu não me lembro muita coisa também. Eu me lembro da minha mãe grávida, da minha irmã que nasceu lá, barriguda, ela ia pra praça, tinha uma praça perto da minha casa. Eu me lembro do colégio onde eu estudei, era um colégio de freiras, lá fiz o primeiro ano primário, fiz minha Primeira Comunhão, que a minha tia, inclusive, (risos) Odete, que foi me arrumar, fazer um cabelinho bonitinho pra eu fazer a Primeira Comunhão. Não lembro muita coisa de Ribeirão, não.
Daí vim pra São Paulo com oito anos e aí nós fomos morar longe - é engraçado – da família (risos) porque, naquele tempo, parece que tudo era longe. A família da minha mãe toda estava por ali, Perdizes, as irmãs e tal, uma outra em Higienópolis e nós viemos morar no Itaim, que era um bairro que todo mundo: “Mas por que você vai mudar pra lá?”, né? Falavam pro meu pai.
15h10 Mas foi onde ele conseguiu alugar casa mais barato, tudo era mais caro nesse entorno do Pacaembu e tal. E o Itaim era um bairro, assim, ainda, muito cheio de pontes, riachinhos. Eu me lembro, eu morava numa vila, eu fui morar numa vila com oito anos de idade e meus pais tinham, nessa altura do campeonato, três... logo depois nasceu minha irmã Beatriz. A gente morava numa vila e eu tive uma infância, nessa vila, assim, de moleque de rua.
15h56 O bairro era muito tranquilo. Meus irmãos jogavam bola num campinho de futebol que tinha a duas quadras dali e eu lembro da gente pegar a bicicleta, subir, porque a Avenida Santo Amaro a gente subia de bicicleta, saía de casa, a vila ficava na Pedroso Alvarenga, eu pegava a bicicleta, subia, atravessava um corregozinho, assim, subia, íamos embora. A Santo Amaro, se não me engano, não tinha nem calçamento, o tempo todo, na Santo Amaro, tinha uns pedaços, assim, sem calçamento.
16h34 Então foi uma infância boa, assim, nesse sentido, né, de muita liberdade, brincando na rua. Como era vila, as minhas amigas dessa época eram amigas de vizinhança, não eram amigos de escola, como hoje as crianças têm amizades, porque elas frequentam escola. As crianças de São Paulo, né? Meus filhos já foram assim. Porque a rua não existe mais, pra eles e sim para os carros. Então, foi uma época bastante interessante. E aí, desde então, a gente ficou estabelecido nesse bairro, no Itaim.
Saímos dessa vila, meu pai construiu uma casa, conseguiu comprar um terreno, uma casa ali na Bandeira Paulista, que era perto da escola onde eu estudei. Estudei no colégio Sacré-Couer. A questão era proximidade da casa, porque a gente tinha que ir a pé. Minha mãe não dirigia, meu pai viajando e então a gente tinha que se virar sozinhos muito cedo, a gente aprendeu irmos a pé.
17h49 P/1 – E como era uma família com seis filhos e você como a filha mais velha? Qual era o seu papel, nessa dinâmica toda?
P/2 – Apenas uma mãe, um pai ausente.
R – Pois é. O pai vinha, era aquele provedor, né, que vinha trazer o dinheiro e tudo, os filhos ficavam muito contentes, muito seguros quando ele estava ali, mas sabíamos que logo ele ia embora de novo. A sorte é que nós tínhamos essa coisa de uma família grande do lado da minha mãe, com várias tias, vários tios, que estavam sempre presentes quando a gente precisava. E a minha mãe sempre foi uma pessoa que teve depressão, né? Ela teve a vida inteira, né? E eu me lembro de eu, muito pequena, ter que assumir coisas, assim, (risos) absurdas. Hoje a gente olha pra trás e pensa, por exemplo: eu já morava nessa casa da Bandeira Paulista, eu devia ter 15, 16 anos, o meu pai me ensinou a dirigir num fusquinha que ele tinha. Eu não tinha carta, eu não tinha idade, eu não tinha nada, mas ele me ensinou (risos) a dirigir, pra quando ele não estivesse, levar meus irmãos pra escola, os pequenos. Então, eu morria de medo. São Paulo não era perigosos, ainda, pra guiar como é hoje mas mesmo assim, de me pegarem na rua, um guarda me parar, não sei o que e ele era tranquilo em relação a isso. Eu falava: “Mas, pai, eu não sei, ainda, fazer manobra, se eu precisar fazer uma manobra, não sei o que”. Ele falava: “Não, não faz. Você desce rapidinho, os deixa ali na porta (risos) e sobe”. Não sabia pôr ré. Ele: “Não, você engata a primeira e vai em frente”. (risos) Coisa, assim, louca, né?
P/2 – De um jeito prático.
19h50 R – De um jeito prático. Eu me lembro, depois, quando eu saí do Sacré-Couer, eu me rebelei, porque eu não queria mais estudar em escola que era só feminina, de freira e tal, eu quis ir pra uma outra escola e fui pra onde minhas amigas iam, (risos) que iam sair também. Saí do ginásio, de lá e fui pro Dante Alighieri. Tive que fazer exame pra entrar e não sei o que, (risos) não sei o que, fui pro curso clássico no Dante Alighieri, estudei italiano que nem uma louca, pra poder acompanhar, porque todas as meninas, minhas amigas, eram de famílias italianas ou então estudavam lá desde pequena, mas eu quis ir, fui, mas voltando à coisa da direção, meu pai me ensinou a dirigir justamente nessa época que eu estava lá no Dante. Eu me lembro de pegar a Avenida Nove de Julho de fusquinha com ele, ele me punha na direção ao sair de casa
e eu levava comigo, ali, junto do meu material e tal, uma blusa extra do uniforme, porque eu chegava tão nervosa de dirigir no meio do trânsito, ali, eu tinha que subir aquela ladeirinha ali do túnel, fazer, às vezes, aquela parada no meio... como chama aquilo?
P/2 – Embreagem.
R – Embreagem. (risos) Nossa, eu estava, assim, suando em bicas quando eu chegava.
P/1 – E nessa época era mais ou menos 1960, era quase 70.
R – Isso. Por aí.
21h25 P/1 – O que você lembra da cidade e o que você aproveitava da cidade, em si?
R – Olha, era assim... da cidade de São Paulo, né? Porque eu tive uma vida, em São Paulo, bastante limitada, até eu poder tomar iniciativas sozinha. Porque minha mãe não era uma pessoa com quem eu pudesse contar muito pra me acompanhar em lugares, pra me levar e tal. Mas eu me lembro de coisas assim ainda da época que eu estava no Sacré-Couer e no Dante, que eu fazia, na cidade, por exemplo, pegar ônibus. Eu estudei na Aliança Francesa muitos anos. Era ali na General Jardim. Eu ia três vezes por semana, sozinha, de ônibus, tinha as minhas aulas, às vezes eram à tarde, às vezes eram à noite, voltava, teve uma época que eu já tinha um namorado que ia me buscar e não sei o que, mas antes eu já fazia isso tudo sozinha. Mas, nesses anos 60, mais ou menos, uma coisa que aconteceu, eu me levou a poder aproveitar muita coisa dos anos 60, foi minha amizade com uma prima, uns primos que eram mais velhos do que eu e que moravam ali no alto de Pinheiros: a Marta, o Aníbal, que eles estudavam na Escola de Aplicação, que era, na época, uma escola muito politizada, já era anos 60, já tinha a coisa do movimento estudantil secundarista, era forte lá no Colégio de Aplicação.
23h17 Outros primos meus, o Dunga, o Fernando, também estudavam lá e eu saía com essa minha prima, que tinha um namorado e a mãe não queria muito que ela saísse sozinha (risos) com ele. Então, ia eu, de segurar vela. Sei que assim eu comecei a entrar na turminha do pessoal mais politizado. Eu assisti, com eles... eles são meio que responsáveis pela minha formação nessa época, porque eu assisti com eles O Rei da Vela, tudo que tinha ali de teatro, porque a minha prima gostava muito e o namorado também. Eu ia pra festivais de música. Tudo, um pouco, meio por aí. Por causa da minha prima Marta, que hoje mora em Goiânia. E ela é filha do meu tio Alaor, que morreu há dois anos, com cem anos. Depois de ter passado uma vida com pedaços, assim, terríveis. Mas ele foi até os cem. Então, foi meio assim os anos 60, porque eu...
P/2 – Você era uma adolescente, também?
R – Eu era uma adolescente.
P/2 – Nem chamava adolescente, né?
R – Imagina! Ninguém falava essa palavra. (risos) Ninguém falava.
24h40 P/2 – Estava na infância e depois na sua vida adulta. Já se sentia adulta, com tanta autonomia!
R – Sim, eu tinha isso. De um lado tinha o conservadorismo do meu pai, mas eu tinha, com meu pai, uma relação muito peculiar, porque como ele dependia de mim pra muita coisa, né, nesse sentido: quando ele viajava eu tinha que pagar conta quando minha mãe não estava bem. Não é que minha mãe ficasse o tempo todo doente. Não, não era isso, mas ela passava períodos internada no hospital. Então, nessas ocasiões, vinham as tias, essa minha tia de Mococa vinha pra ficar em casa, morar ali com a gente alguns meses, né? Então, outros tios, aqui, também, acudiam, chamavam meu pai, ele vinha e tal, e eu tinha que resolver essas coisas. Então, meu pai, ao mesmo tempo que ele era, assim, conservador em muita coisa, ele não conseguia dar conta de mim, porque eu tinha um poder (risos) dentro daquela casa, né? Depois dele me colocar nesse lugar, falar pra mim: “Olha, você não vai chegar de madrugada em casa”, quando começou a acontecer isso, era difícil ele falar.
P/2 – Dirigia desde os 15 anos...
R – É.
26h10 P/2 – Eu queria pedir pra você dizer o nome de todos os seus irmãos, porque a gente não tem esse registro.
P/1 – Isso, verdade.
R – Luiz Augusto, logo depois de mim, que hoje mora em Mococa. Eduardo, que mora aqui em São Paulo. Ana Maria, que mora aqui em São Paulo. Beatriz, que mora no sul de Minas, perto de Mococa, inclusive. E Ricardo, que é o mais novo.
P/2 – E todos, como era sua relação? Com quem você se deu melhor? Se dá melhor.
R – A gente se dá muito bem, né? A gente se ajuda muito em períodos, assim, que um precisa do outro. CORTE (26:59) Já tivemos coisas difíceis, vários dos meus irmãos eu ajudei, eles me ajudaram, também, bastante. Hoje eu vejo o seguinte: depois da morte dos meus pais, parece que a proximidade já não é a mesma, porque a gente já não tem mais aquele ponto de referência, aquele ponto de encontro, mesmo, físico, como a gente tinha antes e também porque meus irmãos, alguns saíram de São Paulo. Então, a gente se visita, mas também não é tão, assim, com tanta frequência, sair de São Paulo, ir para um lugar, para outro e tal. Mas é uma relação boa, muito boa. Não é uma relação, assim, de escolhas de estilo de vida, isso não, tem estilo de vida muito diferente. Quer dizer, o que nos une, mesmo, é a infância, é a vida que a gente levou naquela casa, é isso e não ideias ou gosto de uma coisa ou de outra. Às vezes coincidem, às vezes não coincidem.
P/1 - Aí falando dos estudos...
R - Dos estudos?
28h18 P/1 - Quem mais incentivou você a estudar, ou você mesma tinha já esse ímpeto para o estudo? E que visão de mundo você tinha naquela época, que levou você a ir pra sua escolha profissional?
R – Olha, eu não sei, mas eu acho que a minha vida tem muito de acaso, muitos acasos, sabe, guiaram assim... não sei se posso falar em escolhas, não sei até que ponto isso... porque, na minha casa, nem meu pai, nem minha mãe eram pessoas, assim, de ficar cobrando que eu tivesse um desempenho - eu e meus irmãos também - escolar maravilhoso. Meu pai muito fora; a minha mãe, pelo contrário, superprotegia. Eu me lembro de, muitas vezes, um frio, eu estar cansada, estar estudando até tarde e tal, não sei o que, aquele frio de manhã, eu levanta e ela falava: “Ai, fica em casa, não precisa ir para escola”. Ela não era uma pessoa de cobrar, então ali era meio... a gente foi indo sei lá porque,(risos) não sei te dizer se era um senso de responsabilidade em relação a alguma coisa. Porque a cobrança não era uma coisa explícita, não. O meu pai, claro, a gente via o esforço que ele fazia também para manter seis filhos nas escolas. Hoje em dia ele não daria conta, não daria conta de maneira nenhuma. Porque nós, as filhas, as três, nenhuma de nós estudou em escola pública, porque ele achava que a escola pública já não era boa. Então, tinha que estudar em escola particular. Meus irmãos, não, eles já estudaram. Mas chegou uma certa idade, não, então vamos agora estudar em escola para fazer vestibular. Meu pai tinha um pouco essa coisa de que os filhos tinham que fazer vestibular, já naquela época, estar em escola particular e tudo.
30h38 E, em relação a isso, eu acho que a coisa foi andando, assim. E quando eu falo de acaso, esse acaso, por exemplo, de eu ter esses primos de Goiânia, que hoje estão em Goiânia, eu falo os primos de Goiânia, que, na época, moravam em São Paulo e que estavam numa situação diferente da minha, que estavam numa escola mais burguesa, numa escola conservadora, como era o Sacré-Coeur, depois o Dante Alighieri e tudo mais. Eu tive a sorte, vamos dizer assim, por acaso eu tinha essas pessoas, que eu acompanhava e que eu fui aprendendo com elas ou aprendendo com o universo em que eles viviam. Isso me orientou de alguma forma, mas não foi só isso. Quando eu fiz a escolha de ir para o Dante, ir para o clássico, é porque a escola anterior que eu tive não me preparou para a Matemática.
31h46 Então eu falei: “Não posso ir para um científico”. Na época era normal, científico e clássico. Imagina se eu vou para o científico! Eu vou, porque quero fugir da Matemática, preciso entrar na escola, fazer teste, não sei o que, então eu vou para o clássico. Então, não é que eu escolhi, vamos dizer. Eu fui encontrando o caminho onde eu achava que ia dar certo. Aí, lá era uma escola muito puxada, eu tinha que estudar muito, muitas coisas eu não gostava, mas eu era obrigada a fazer. Acho que isso teve, também, uma coisa interessante, lá no final, na minha formação. Porque muitas vezes a gente não gosta e se você não é obrigado você também não vai aprender.
P/2 - Por que você era obrigada?
R - Se não, não passava de ano.
P/2 - Mas você não podia desistir dessa escola?
32h42 R - Não podia porque eu sabia que, se eu desistisse dessa escola, eu não ia ter apoio para continuar uma outra, sabe, mudar para outra. O diálogo em casa, que existe hoje entre gerações, eu e meus filhos e tal, na minha casa não existia, eles não tinham informação. Tanto que a primeira escola aqui em São Paulo meu pai escolheu pela proximidade, porque ele não queria filha mulher na escola pública, foi por isso, não porque era boa... não. A segunda já fui eu que escolhi. Escolhi assim: eu vou porque minhas amigas vão, um lugar que eu vou ter, já, um pessoal conhecido. Então, eu acho que se eu saísse de lá eu penso: “Para onde que eu vou?” Eu não tinha esse apoio, para escolher um outro lugar para eu onde fosse. Agora, ao mesmo tempo, essa escola conservadora e tal, cria, eu acho, nos alunos, pelo menos eu senti na minha experiência isso, uma coisa de uma crítica enorme, que você vai aprendendo a se virar, aprendendo a reivindicar, vai aprendendo a se colocar de um jeito que, em escolas onde eu trabalhei depois como professora, eu vi que não acontece. 34h15 Porque tem escolas que infantilizam muito as pessoas e dão tanta liberdade, tanta coisa que ninguém precisa mais se bater, ir contra, se virar. Então, acho que, lá, eu aprendi um pouco isso. Mais do que aprender história da arte, o italiano, francês e não sei o que, não sei o que eu tinha que estudar, eu aprendi um pouco isso aí. E a me colocar também, a ver que ali era uma escola cara, meu pai fazia uma força muito grande para pagar. Tinha pessoas que eu não podia chegar perto porque eu sabia isso, eu aprendi muito rapidamente, que eu tinha... os meus amigos, as pessoas se aproximavam conforme o lugar social que elas me viam. Então, eu não ia me aproximar, porque eu nem tinha elementos comuns de formação, de valores e tal, com as pessoas mais ricas da minha classe e tal. Isso você vai percebendo muito rapidamente.
P/2 - Vai te obrigando a uma posição, mesmo?
R - É, é.
P/1 - E aí, quando você foi pensar em que faculdade ia fazer, alguma coisa, o quanto esse contexto todo te levou à escolha?
35h40 R - Então, a minha primeira escolha foi Filosofia, foi a primeira faculdade que eu fiz, depois eu fiz meio concomitante Letras, mas eu já estava quase no final da Filosofia quando eu fiz Letras, prestei um outro vestibular e acabei os dois, mas foi um professor lá do Dante, um professor maravilhoso de Filosofia que eu tive. Eu lembro que eu ficava tão maravilhada com as leituras que ele levava para a gente fazer, que ele fazia acompanhando conosco, que eu pensei: “Acho que vai ser isso, (risos) acho que vai ser isso que eu vou querer fazer”. Eu não tinha noção do que eu iria fazer depois da aula, não existia essa coisa que tem hoje, que as escolas estão todas equipadas e prontas para ajudar o aluno na sua escolha. Tem escolas que levam as crianças, enfim, os alunos para conhecerem locais de trabalho de um engenheiro, de um arquiteto, disso e daquilo. E tem, como é que chama aquilo... um tipo de exame psicológico, teste vocacional. Para mim nunca chegou isso, então eu ia escolher... o meu pai, (risos) eu me lembro que às vezes ele falava assim para mim: “Você estudou francês, fez a Aliança completa, você fala e não sei o que, por que você não vai ser secretária?” Para ele era o máximo. Aí eu falei: “Secretária? Ficar ali, datilografando e tal, não sei o que, uma coisa meio mecânica, não acho legal”. Ele falou: “É, mas essas secretárias bilíngues ganham muito bem.” Eu falei: “Não, eu vou fazer Filosofia”, por causa desse... foi um professor que me...
37h28 P/2 - Qual o nome dele?
R - Era Luiz Alberto, se não me engano. Usava um avental. E Literatura eu aprendi muito lá também, gostei muito. Acho que depois fui fazer Letras, um pouco, por isso também.
P/1 – Influência, então, do professor?
R - Aí não foi ele, eram outros dois.
P/1 - Como foi a recepção da notícia: “Vou fazer Filosofia”? Foi bem aceita?
R - Foi, foi tranquilo. (risos)
P/1 - Em que contexto sócio político-econômico foi fazer essa faculdade de Filosofia, como era essa fase?
R – Quando eu fiz o vestibular, foi de sessenta e nove para setenta, estudei muito porque, naquela época, tinha, além do... era Fuvest...
P/2 – Era (Cecem e Ceceia?) [38:29].
R – (Cecem e Ceceia?) [38:30], não era FUVEST ainda.
P/2 – Fuvest é depois, (Cecem e Ceceia?) [38:32].
38h33 R – Eu fiz (Ceceia?) [38:35]. (risos) Na Filosofia, além dos testes, tinha uma redação e tinha também o exame oral quando eu fiz, tinha quatro leituras para fazer e havia uma entrevista. Se eu passasse na primeira fase, passasse na redação, ia para a entrevista. Tinha que ler os livros, e eram livros pesados, não era qualquer coisa. E eu tive entrevista, eu fui entrevistada no vestibular pela Marilena, pela Maria Sylvia de Carvalho Franco, eram dois entrevistadores para cada pessoa. E a gente saía do colegial achando: “Vou fazer Filosofia, eu sei muita coisa”. Que nada! Se não fosse a Marilena, no primeiro ano que ela deu Teoria do Conhecimento para minha turma naquele ano... nossa, eu aprendi a ler, realmente, assim, livros teóricos, foi um exercício na faculdade. Agora, ao mesmo tempo, era uma época que a ditadura já estava correndo solta, quando eu estava ainda no Dante, já sessenta e oito para... sessenta e oito eu acompanhei um pouco, porque meu namorado, naquela época, sessenta e oito, morava ali na Doutor Vila Nova, bem pertinho do Mackenzie e da Maria Antônia, ali. Então, eu me lembro bem que ele me contava da situação, ali, nas vésperas da briga entre o Mackenzie e a USP, enfim, mas não acompanhei muito. Agora, sessenta e nove eu já estava sabendo um pouco mais das coisas que estavam acontecendo, o AI-5 já estava aí, sessenta e nove eu ainda estava no Dante, no terceiro, porque no terceiro eu já fiz vestibular. Eu me lembro perfeitamente do dia que ali, na Avenida Casa Branca, o Marighella foi assassinado, a escola cercada, todo mundo cercado, teve que sair. Eu pegava a Casa Branca, descia até a Nove de Julho, para pegar ônibus. Eu lembro que a gente teve que fazer um caminho louquíssimo para pegar o ônibus lá na Augusta, porque estava tudo cercado ali.
P/2 – Você sabia o que, de fato, estava acontecendo?
R – Não, não eu não sabia, por exemplo...
P/2 – Muito jovem ainda, né?
41h14 R – É. Essa coisa do Marighella, a gente sabia o que aparecia na imprensa. Então, o que apareceu não me lembro mais quantos dias depois, é que ele tinha reagido a uma emboscada da polícia, foi ali, tudo, mas isso a gente sabe, hoje, que não foi bem assim, né? Agora, depois, quando eu entrei lá na Filosofia, a gente sabia do boca a boca, porque a censura corria solta, nos jornais nada acontecia, nada aparecia. Então, eu me lembro de colegas que às vezes falavam, sabe, chegavam e tal, depois de conhecer, de um já ter confiança no outro: “Eu fiquei sabendo que fulano caiu, fiquei sabendo que o Lamarca está aqui no Vale do Ribeira”, não sei o que. Era tudo assim, no boca a boca. Quantas vezes eu vi, lá nos barracos, a Filosofia não ficava, naquela época, onde é hoje. Ficava ali, a gente chamava de barracos. (risos) Policial à paisana entrar na sala e levar gente, era complicado, mesmo.
42h40 P/1 – Qual era o sentimento que vocês tinham, ali?
R – A gente tinha muito medo, muito medo, dificuldade de se aproximar um do outro, porque a gente sabia que tinha gente infiltrada. Então a gente não sabia se aquele amigo que sentava ali do seu lado era um informante ou não. Alguns a gente sabia, porque era, assim, muito visível o jeito de se comportar e tal, mas outros não. Então, era bem complicado.
P/2 – Você chegou a comentar que nem faziam fotos nessa época?
43h20R – Pois é e quem tinha alguma relação com o movimento estudantil ou fora do movimento estudantil, alguma organização e tal, imagina se a gente fazia foto! Às vezes a gente não sabia nomes de colegas que eram da mesma organização da gente, não sabia nome e nem perguntava.
P/1 – E, desse período, você se formou em Filosofia e chegou a exercer?
43h51 R – O primeiro emprego que eu tive, assim, com carteira assinada, foi numa escola onde meus irmãos estudaram e, curiosamente, foi numa classe intermediária, onde tinha muitos alunos com problemas de atenção, com problemas que hoje são ditos assim, alunos de inclusão, era uma classe especial naquela escola, que é o Gracinha, Nossa Senhora das Graças. Eu fui pedir emprego lá porque o meu irmão Guto estudou lá e eu conhecia a diretora, porque às vezes eu ia em reuniões de pais e ela me conhecia, então eu trabalhei lá durante um ano, mais ou menos, nessa turma. O que eu fazia era ajudar na organização da classe, enfim, eu era uma auxiliar de classe. Daí, uma amiga minha que dava aula de Filosofia justamente, no colégio Manoel de Paiva, ali na Avenida dos Bandeirantes, escola pública, precisou sair e me chamou para substituí-la no curso noturno e eu fui. Foi a primeira vez que dei aula em escola pública, ainda estava estudando lá na Filosofia, ainda não tinha me formado, fazendo licenciatura, mas como era uma substituição, eles aceitaram e eu acabei ficando lá mais de um ano. Era um colégio que tinha, assim, uma coisa maluca, porque os alunos eram tão interessados, tão interessados nas aulas, que eu falei: “Bom, eu vou continuar nessa carreira, eu quero dar aula para gente assim”. Eram alunos do noturno, um pouco mais velhos que o diurno, mas ainda na idade normal de estudar. Naquele tempo tinha o Mobral, não tinha EJA e tal, mas eles eram um pouco mais... pessoas que já trabalhavam de dia e estudavam à noite, mas muito interessados. O colégio tinha um convênio com o Museu Lasar Segall, então o grêmio, lá, passava filmes, fazia discussões, promovia uma série de coisas em finais de semana. Então, eu fui ficando muito à vontade ali, fiquei um ano e pouco. Só que daí aconteceu outro acaso: o Ministro da Educação tirou Filosofia do segundo grau, eu dava aula no segundo grau, aí passou a ser OSPB primeiro, ou Moral e Cívica, não me lembro, sei que primeiro uma coisa e depois outra. Até que acabou. Eu cheguei até a trabalhar, não sei se era Ospb ou Moral e Cívica, eu tentava dar uns textos mais interessantes, mas enfim, também não, não dá. E foi nessa época, eu já tinha feito lá na USP algumas matérias na Letras como optativas, que eu vi e falei: “Bom, não tem mais a Filosofia no currículo escolar”. Eu queria era isso, não me passava pela cabeça, na época, trabalhar e ter um projeto de vida de Academia, querer dar aula na USP, ou seja lá onde for. Eu queria a coisa do contato com o jovem, com estudantes. Nessa época eu já estava trabalhando, inclusive em Osasco, com educação de adultos. Então eu falei: “Vou fazer outro vestibular, por que o que eu vou fazer, até voltar essa matéria (risos) no currículo escolar, se voltar?” E voltou, se não me engano, em oitenta e cinco, dez anos depois ou mais, sei lá. Aí eu fiz um outro vestibular, aproveitei aquelas matérias que eu já tinha feito, de optativas e comecei o curso de Letras. Então, quando eu terminei a licenciatura em Filosofia, já estava quase terminando a graduação em Letras também. Eu escolhi Literatura, Língua Portuguesa, naquela época era neolatim, nas anglo germânicas eu fui para as neolatinas, porque o francês eu já tinha uma boa experiência, o italiano também. O italiano acabei até desistindo no meio do caminho e fiz a licenciatura em francês e português. Foi isso.
48h50 P/1 – Nessa época você namorava?
R – Ô, muito.
P/1 – O que vocês jovens faziam nessa época e se você tem alguma lembrança de namoros, de paixões, de crushs que a gente fala hoje?
R – Crushs que são os paqueras, né? (risos)
P/1 – Conta um pouco desse lado.
49h13
R – Desse lado mais...
tinha, sim. No meio de toda militância que a gente tinha, a gente gostava de alguns rapazes bonitões, militantes também. (risos) A gente tinha uma coisa de frequentar bares, era uma coisa, assim, muito forte nessa época dos anos setenta, muito forte. Então, saía da faculdade quando era à noite, às vezes a gente passava por batida de policial, mas a gente ia em frente, ia lá para a Paulista, para o Riviera, sentava ali e ficava horas conversando. Era o Mais Um, era o Gigetto, era a noite. Cinema também era nossa diversão, acompanhando tudo de cinema. Eu tinha um amigo que foi o responsável por eu gostar de cinema, o Paulo, que viajava comigo para a Bahia também. A gente ia assistir tudo no Bijou, que passava, tudo no Marachá, Majestic, as sessões da meia noite. Era muito interessante a vida cultural dessa época. E tudo, também, muito junto com as discussões na faculdade, eu me lembro muito de eventos importantes na política e na luta contra a ditadura, que aconteceram naquela época. O vinte e cinco de abril português, a missa do Herzog, que foi setenta e cinco, um pouco depois, aliás, sofri... essa coisa do Herzog tem uma coisa interessante que aconteceu comigo, que eu vou contar.
51h10 Eu estava, um dia, lá no centro acadêmico, ali na Filosofia, então chegou um cara, que era um dos principais ali da Filosofia, de uma tendência que era próxima. Eu nunca fui muito assim de entrar em partidos, organizações, tive próxima, mas nunca... essa coisa de dogmas, que a gente tem que seguir, quando entra, nunca gostei. Mas eu era simpática a uma tendência trotskista que lutava ali, naquele momento, contra a ditadura. Então, um deles chegou e falou: “Escuta, será que não dá para você acompanhar uma pessoa na missa do Herzog?” Já tinha acontecido a morte dele, eu falei: “Quem é?” Ele falou: “O Foucault.” O Foucault estava dando um curso, eu tinha até assistido uma palestra, na Psicologia, dele, mas ele não era essa figura que ele é hoje, O Foucault. Naquela época era já famoso e tudo, mas eu, pelo menos, não tinha a dimensão do que ele se tornou, do que ele já era, do que ele se tornou depois. Eu falei: “Eu não sei, eu preciso ver, mas por que eu?” “Porque você é fluente no francês”. Eu tinha dado uns cursos ali no centro acadêmico de tradução, de texto, na época e tal. “A gente precisava de uma pessoa que não fosse tão visada no movimento estudantil, você não é. Então, você podia ir com uma segurança que a gente vai fazer. Porque o Foucault veio aqui no DCE ontem”
- isso era véspera - “e veio falar que ele não quer ir com o pessoal do departamento, nem da Psicologia, nem da Filosofia, ele quer ir com os alunos”. Aí eu falei: “Escuta, mas ele está achando que vai ser uma grande passeata, que nós vamos sair daqui? Todo mundo já sabe que não vai ser assim”. Pra aquele dia, eles, o movimento estudantil marcou muito claramente que as pessoas tinham que ir em grupinhos de cinco, eu me lembro, no máximo. Porque a situação que a gente tinha naquela data era assim... podia haver uma repressão muito grande. Era a primeira vez que a sociedade estava se jogando para um culto ecumênico na Praça da Sé, que é muito fácil cercar e tudo mais. Então, não dava para ir em passeata e sair da USP como hoje se faz. Então, tinha uma coisa assim: a gente saía das suas casas ou de lá, pegava ônibus, daí descia próximo ali onde era de fácil acesso, até chegar na Sé, assim.
54h10 Aí ele falou para mim: “Não, ele já sabe que vai ser assim e ele me disse que prefere assim, do que ir de carro com o pessoal do departamento, não sei o que.” E lá fui eu. (risos) E eu me lembro que eu tinha muito medo. Duas coisas: primeiro porque meus pais não sabiam que eu ia, porque eu tinha na época um tio, pai desse pessoal de Goiânia, meu tio Alaor, irmão da minha mãe, que estava preso, na época. Estava preso em Brasília, depois de ter ficado três meses desaparecido. Ele era um velho militante do Partido Comunista e estava preso. Então, meu pai, como era cunhado dele e minha mãe irmã, meu pai tinha certeza que nosso telefone estava grampeado, que não sei mais o que, papapapapapa. Eu, nesse período, inclusive, não podia levar muita gente para estudar em casa, fazer grupo, nada disso, porque meu pai... eu acho que não estava, mas meu pai tinha uma paranoia, talvez por ele sair muito de São Paulo, achava: “Vai acontecer alguma coisa e eu não estou presente”.
55h14 Então eu fui sem eles saberem, com medo também do que podia acontecer ali, na sequência. Aí eu lembro que a gente marcou encontro com o Foucault, ele estava hospedado num apartamento ali na Praça Roosevelt, naqueles prediões que tem ali na Praça Roosevelt, e eu lembro de a gente chegar, eu e mais três pessoas e eu não sabia que tinha uma segurança, quem era. Eu sabia que tinha, mas não sabia quem era as pessoas. Eu estou falando isso porque depois tem outro acontecimento mais recente ligado a isso, que é muito bonito, inclusive. Chegamos lá, o Foucault estava de branco, um terno assim bege, branco, um chapeuzinho bonito, ele era elegantérrimo, muito chique. Nós já tínhamos sidos apresentados a ele. Nesse dia que o cara me falou e eu falei: “Tá bom, eu vou” ele já apresentou, falou: “São esses que vão”. Eram dois, o outro ele não conheceu, mas tinha um terceiro. Aí chegamos lá (risos) e percorremos a pé ali da Praça Roosevelt, pegamos o caminho, a Maria Paula e tal, até chegar na Sé. E eu lembro que estava com tanto medo... ah, outro detalhe: ele já sabia, por meio do nosso amigo que me fez o pedido, que a gente ia entrar com ele na igreja, que a gente ia deixá-lo junto com o pessoal do departamento e tal e que, de lá para frente, a gente não ia mais voltar com ele, porque a gente não sabia o que ia acontecer. E ele ia falando assim... eu só lembro dele falar que ele não entendia, que até agora ele não tinha entendido por que a gente não ia fazer uma passeata na saída da missa. Já que não teve repressão para entrar, para sair ia ser mais difícil haver. E a gente não conseguia explicar para ele, era uma coisa, assim, muito difícil para ele entender, porque a gente não tinha essa coragem, naquele momento, de fazer uma coisa mais forte do que aquilo, de ir com muito cuidado nessa ocasião, para não provocar a repressão, para não piorar, para não dar motivo para outra coisa pior.
58h00 Eu tentava explicar, mas eu acho que ele não entendia. A única coisa que me lembro é que a gente tinha muito medo dele falar, era isso. Chegamos lá na catedral, entramos com ele e o deixamos lá junto com as pessoas e daí a gente já tinha uma instrução de sairmos, cada um de nós três, para outro lugar, tinha um ponto para marcar depois e felizmente não teve... teve muita polícia por ali, mas não teve... e eu nem esperei o término da missa, eu fui embora. E daí, a coisa que aconteceu depois foi muito interessante, depois eu digo agora, eu me aposentei em dois mil e oito e, antes de eu me aposentar, eu dava aula no ensino médio para um segundo e um terceiro ano no colégio Oswald de Andrade e eu tive dois alunos de uma família, assim, dois alunos muito brilhantes e eu me lembro que um dia eu estava dando uma aula de Literatura, era aquele poema do Vinícius, Minha Pátria. Aí eu comecei a interpretar ali, junto com eles e tal, não sei o que e, no meio da conversa, veio, inevitavelmente... esses jovens perguntam, são muito curiosos sobre essa época, eles fantasiam, inclusive, um pouco, vêm perguntar muito para a gente. Meu filho é assim, parece que ele queria viver aquele momento que eu vivi, que o pai dele viveu. O pai dele foi uma pessoa também que foi preso duas vezes, foi torturado. Então, ele tem uma curiosidade enorme sobre esse período. Então, esse meu aluno, Flávio, chegou no fim, depois dessa discussão que eu falei um pouco sobre o momento e eu sempre fui muito cuidadosa para falar nesse momento, sabe, porque, eu não sei, acho que tem essa coisa deles quererem saber, a curiosidade e tudo, mas ao mesmo tempo eu acho que eles fantasiam muito, querem voltar com uma coisa nostálgica. Aí ele veio me perguntar e falou assim:
1h21“Regina” - o Flávio - “você não foi na missa do Herzog acompanhar um filósofo que esteve aqui?” Eu virei para ele e falei: “Fui, mas como é que você sabe dessa história?” (risos) Porque eu não contava isso, não falava para ninguém, nem minha família sabia, poucos eram os amigos que sabiam disso. Ele virou para mim e falou assim: “Porque meu pai veio aqui na reunião do mês passado, de professores, e ele te viu falando” - porque os professores tinham que expor ali algumas coisas do planejamento, isso e aquilo - “e ele reconheceu você”. (risos) Eu brinquei com ele: “Nossa, me reconheceu? Eu estou tão diferente do que eu era!” Ele falou: “Não, ele te reconheceu e falou que você foi... como que chama mesmo o filósofo?” Eu falei: “Eu fui, sim.” Ele falou: “Ah, tá”. Falei: “Escuta, eu quero saber, quem é teu pai?” Aí ele falou o nome do pai dele, Didie, eu falei: “Didie, não conheço, não me lembro dessa pessoa” “Ele foi contemporâneo seu lá na USP, na Filosofia”. Falei: “Ah, tá”. Bom, aí ia ter um sarau um mês depois desse dia, eu falei: “Flávio, se teus pais vierem, eu quero falar com teu pai, quero ver o que ele lembra disso e tal.” Foi um momento, assim, lindo, porque quando eu me encontrei com ele, o Didie e a Sueli, são dois editores de livros didáticos, inclusive, os dois trabalharam na Ática e a Sueli tinha sido, sem eu saber, eu nem sabia que ela era mãe do Flávio e do outro menino, o irmão mais novo dele, Marcelo. Quando eu vi a carinha dele, eu me lembrei dele jovem, sabe? Aí foi um encontro muito bonito, porque eu lembrei, não sabia o nome, na época e ele tinha sido a pessoa que fez a minha segurança naquele dia. Ele foi atrás, junto, mas, assim, sem a gente saber que era ele, ele e mais uma outra pessoa, esse eu não sei quem é e ele que acompanhou a gente até lá. Então, era por isso que ele sabia. (risos) Olha, foi muito bonito o encontro da gente, depois conversamos sobre aquele dia, aquela coisa.
P/1 – Foi uma época bem efervescente, aconteceram muitas coisas?
R – Foi.
P/1 – Aí você falou um pouco do seu marido, que trouxe seu filho, seu marido.
R – Pois é.
P/1 – Como é que a Regina chegou até o casamento, em si?
1:03:17 P/2 – Como você conheceu o Maranhão?
R – Eu conheci o Maranhão... primeiro eu conhecia um pouco, assim, meio de vista, lá mesmo da faculdade. Eu lembro que, quando houve o evento lá na Geografia, que se chamava Comitê de Defesa aos Presos Políticos, tinham sido presas várias pessoas que eram, de alguma maneira, envolvidas, mas já era o final, quem tinha que matar eles já mataram, uma coisa horrorosa, mas algumas pessoas que estavam envolvidas de alguma maneira e que eles tinham que ter informações, foram presas num escritório, que era o escritório onde meu ex-marido trabalhava junto com uma equipe, que produziu um livro didático que era adotado nas faculdades, que era o Brasil História e ele organizava, junto com mais duas pessoas. Então, depois teve uma época que foi na minha casa que passou a ser isso aí, mas eles prenderam muita gente.
P/2 – Nesse evento?
R – Nesse evento eles já estavam presos. Foi uma coisa próxima ao golpe no Chile. Então, o evento tinha a ver, alguma coisa, contra o golpe no Chile, a morte do Allende e era um evento que a gente pedia a libertação dos presos políticos e ele estava na lista, mas eu conhecia assim de vista, tinha visto uma vez ou outra em festa, porque tinha muita festa, da palestra não sei o que, não sei o que.
1:05:11 Aí sabia, enfim, quem era, mas acho que pela diferença de idade, um pouco, eu nunca tinha sido aluna dele, ele deu aula muito tempo no Equipe, no cursinho, depois foi para a Unicamp. Eu tinha muitas amigas que conheciam o Maranhão por terem sido alunas dele no Equipe, mas eu nunca fui. Mas um dia, essa coisa já tinha acabado, ele já tinha sido libertado junto com as outras pessoas e tudo, já foi mais para o final dos... conheci em setenta e seis para setenta e sete, eu estava de férias na casa dos meus primos em Ubatuba, aqueles primos da foto da Primeira Comunhão. Aí tinha a namorada do meu primo, ela tinha um terreno na Praia do Bonete, que é ali do lado da Praia da Fortaleza. Era só um terreno naquela época, não tinha quase nada lá no Bonete, não tinha luz, não tinha coisa nenhuma. Compraram um terreno e a gente ia acampar lá, e eu fui, fiquei lá uma boa parte de mês de janeiro, junto com essa namorada do meu primo. Aí, um dia a gente saiu - aliás nem era ela, era a irmã dela - de barco e foi até a Praia da Fortaleza, e eu sabia que lá na Fortaleza estava um amigo meu da Geografia e que ele tinha alugado uma casa, então cheguei lá e fui procurar. Tinha uma pessoa deitada no sofá. Primeiro num bar, no bar do Jorge, eu perguntei: “Você sabe onde é a casa do Lima”? “Sim, ali, sobe aqui, é lá”. Fui, cheguei lá, deitada no sofá uma pessoa muito linda, que foi o primeiro amigo dele que eu conheci, que era o Zé Miguel Wisnik, eles estavam todos juntos nessa casa: o Lima, o Maranhão. Aí eu falei: “Sabe do Lima?” “O Lima foi para São Paulo”. Eu falei: “Ah tá, então eu vim aqui procurar, porque a gente marcou mais ou menos de encontrar se eu viesse aqui e tal, não sei o oque” “Ele não está aqui, estou aqui eu, o Luiz, o Maranhão”. Falei: “Tá bom e tal, então tchau, tchau”. E fui para o bar (risos) com a minha amiga tomar uma caipirinha. A gente ia voltar para o Bonete só no final da tarde, que tinha marcado com a pessoa de ir buscar, a pessoa do tal do barco. Aí a gente estava lá tomando caipirinha, ele chegou com o Luiz, aí ele falou: “Vocês que foram procurar o Lima lá em casa?” Daí começamos lá tomar uma caipirinha e outra e tal, troca telefone, foi assim que a gente se conheceu, fora de qualquer contexto de universidade, política e de qualquer coisa. Então, foi isso. Aí começamos namorar e tal, depois de um ano, mais ou menos, a gente foi morar junto. Ele já estava separado há um bom tempo, bom tempo não, acho que dois, três anos da primeira mulher com quem ele teve uma filha, que aliás morreu bebê ainda, num acidente de carro. E aí a gente foi morar no Butantã, na casa onde eu fiquei com ele cinco anos. Nesse meio tempo, em setenta e nove, foi quando eu fui para Paris, no encontro de educação popular e, quando eu voltei para São Paulo, eu tinha uns planos de continuar um pouco esses projetos de educação e também tinha já feito um contato, lá na Letras, para um mestrado com uma professora que trabalhava o Mário de Andrade, que eu queria ler um pouco. Mas foi aí que eu engravidei e a Helena nasceu, aí eu mudei completamente de caminho na vida.
METADE DA ENTREVISTA
1:09:42 P/1 – Como foi o nascimento dela, como foi chegar uma criança, quanto mudou?
P/1 – Voltamos lá então. O que foi essa experiência em Paris, você ficou seis meses, conta um pouco para a gente o que você foi fazer lá, o porquê de você ter ido lá?
R – O que motivou esse convite, essa escolha, né? Eu trabalhava, na época eu dava aula na escola, eu já tinha saído da minha casa. Eu me mudei uma ocasião, nessa ocasião, para Osasco, morava na casa de um amigo casado com uma pessoa e os dois eram envolvidos com o movimento de oposição sindical, que os sindicatos eram pelegos, todos, né, e tinha esse movimento de oposição sindical, que era muito forte em São Paulo, em Osasco e eu mudei para casa dele, porque ao mesmo tempo que trabalhava com clube de mães, grupos de mulheres que, naquela época, discutiam questões femininas, coisas assim ligadas... o clube de mães eram ligadas a saúde e esse trabalho acontecia mais, ou à noite ou final de semana. Tinha também uma pessoa que trabalhava com alfabetização mesmo, de adultos. Eu não trabalhava porque eu nunca soube alfabetizar, eu nunca estudei para alfabetizar. Quer dizer: até podia me aventurar, mas... e eu dava aula formalmente numa escola também, que era uma escola lá de Osasco chamada Fernão Dias, uma das principais escolas particulares de lá, dava aula à noite, à tarde também uma época. Aí, foi nessa ocasião que eu saí da casa do meu pai e da minha mãe, que foi também um momento de bastante conflito para mim porque eu, na minha cabeça, eu estava deixando para os meus irmãos que ficaram algumas coisas que eu que assumia antes, mas eu fui em frente. Eu já tinha um pouco de apoio terapêutico naquela época, senão eu não teria conseguido. E era muito difícil também eu morar em São Paulo e ir todo dia para Osasco para dar aula e depois, fim de semana, para trabalhar nessas coisas. Então, eu fui morar lá na casa desse amigo que, na época, era um pastor da Igreja Presbiteriana, eu acho, era uma dessas coisas, protestantes, mas que era um movimento de esquerda que essas pessoas levavam - hoje ele é professor na PP Leste, na Filosofia - sobre o manto da igreja, que era uma forma de se proteger. Então, tudo isso que a gente fazia era, de alguma forma, ligada a alguma pastoral, tinha um monte de pastoral: pastoral da terra, pastoral operária, pastoral disso e daquilo e, fora isso, eu também dava aula... não, mas isso foi depois, eu já estava morando com o Maranhão, porque eu fiquei cinco anos...
P/2 – Você conhecia o Maranhão quando foi para Guarulhos... Osasco?
R – Para Osasco. Eu fui antes de conhecer. Quando eu conheci e a gente começou namorar, eu estava ainda morando lá, dando aula no Fernão Dias, fazendo esse trabalho, mas eu já estava antes lá. Eu dava aula também em outro lugar, que era no Ipiranga e era um supletivo que era, na verdade, uma cooperativa de pessoas de esquerda que trabalhavam nesse supletivo e que era, de alguma forma, um meio também para as pessoas recrutarem gente para as oposições sindicais, só que ali era na periferia do Ipiranga. Eu conhecia esse pessoal da faculdade e eles me chamaram para dar aula lá de Português e era um trabalho também muito sério, muito mesmo, que a gente fazia, chamava Supletivo Educabras. (risos) Com esse nome ninguém ia desconfiar de nada que acontecia ali. Tem histórias incríveis, mas se eu for entrar nessas histórias do Educabras, não acabo nunca essa entrevista. Lá no Educabras tinha uma pedagoga que organizava mais ou menos o nosso trabalho, que ela era bastante conhecida na época. Ela se chamava - digo chamava porque ela deve ter morrido, já - Maria Nilde Mascelani. E a Maria Nilde articulava algumas coisas. Bom, como é que eu fui parar lá? Uma pessoa ligada ao (Inodep?) ________ [1:15:32], que é esse instituto de Paris, que não existe mais, inclusive a última vez que eu fui para lá, quando viajei, em dois mil e oito, eu fui lá para ver se conseguia contato com alguém, mas hoje, lá, a sede onde o encontro acontecia já tinha virado um restaurante. Esse (Inodep?) _______ [1:15:50] era financiado. Parte do financiamento vinha do governo francês e parte vinha de ONGs. Por exemplo: quem me pagou foi uma ONG holandesa. Pagou minha passagem, minha estadia, quando eu precisava de alguma coisa era para eles que eu tinha... as outras pessoas cada uma era uma coisa. Então, eles promoviam esses encontros que tinham, todos, também, um caráter religioso, vamos dizer, para troca de experiência de várias ações que estavam acontecendo em vários países, então do Brasil... aí me selecionaram porque alguém me indicou. Depois eu fui ver que quem me indicou foi a Maria Nilde e também uma outra pessoa que era da AP, Ação Popular, que tinha bastante ligação com a igreja na época. E foi assim que eu fui. Para contar disso que estava acontecendo em Osasco. E já era setenta e nove, então o movimento pela Anistia já estava embrionando ali, já estava começando a acontecer, ia aconteceu de setenta e nove para oitenta, mas tinha ainda muita gente exilada em Paris que eu contatei, que eu encontrei e tudo. Em oitenta que eles voltaram, setenta e nove, oitenta. Então não era assim mais aquela época mais dura da ditadura, que foi de setenta até setenta e cinco. Já estava começando a ter uma abertura muito devagar, aquela coisa. E aí, nesse encontro... esse encontro acontecia a cada dois anos. Esse casal onde eu morei em Osasco, na casa deles, eles tinham ido há dois anos para lá fazer a mesma coisa. Eles também acho que me indicaram. Então, era eu e mais uma amiga, que tinha o mesmo tipo de trabalho, mas em outras regiões, a Lúcia, e daí tinha pessoas da América do Sul, tinha uma pessoa da Argentina, tinha quatro da Colômbia, tinha um do Equador, tinha uma pessoa do Uruguai, depois tinha um carinha do Haiti, tinha gente da África, muitos, Quênia, Camarões, Ilhas Maurício, África do Sul inclusive e da Ásia, tinha uma menina da Tailândia, duas das Filipinas, enfim. Naquela agenda que eu tenho, tenho o nome de todos ali, endereços, eu até me correspondi com alguns logo que voltei, era carta, não tinha outra coisa, então esses contatos foram se perdendo. De vez em quando eu entro no Facebook para ver se encontro alguém, difícil. (risos) Aí a gente passava o dia fazendo relatos, contando as coisas, teve toda uma primeira fase assim, depois vinham sugestões a partir desses relatos de aprofundamento teórico em relação aquilo que a gente relatava e era uma coisa, assim, de muito estudo, mesmo. A gente chegava lá às oito da manhã, tinha umas plenárias, mas às vezes tinha uns grupos menores de discussão, conforme as experiências eram... eles separavam ali se eram parecidas, ou então se eram diferentes. Muita discussão, mesmo. Tinha alguns momentos que a gente tinha lazer junto também, fomos visitar alguns lugares. Eu lembro que fui para a região norte, para Lille, com eles, para conhecer algumas fazendas de pequenos agricultores, em que havia um trabalho interessante. E os dias livres, fim de semana em geral não tinha nada, foi uma ocasião que eu aproveitei também para conhecer um pouco ali os arredores. E o que eu ganhava dava justamente assim: o foyer era pago por eles, depois quando eu saí do foyer morei na Casa do Brasil ali no... perto, que era bem perto do (Inodep?) ________ [1:20:46], eu só atravessava o Parque Montsouris e chegava. Ali também foi pago com o dinheiro que eu recebia, que era o quê? Era quinhentos francos na época, uma coisa assim, dava para viver muito bem, sem, né? Se eu quisesse viajar, fazer outras coisas, como eu fiz depois que o Maranhão foi para lá, a gente viajou um pouco juntos, fomos para Itália, para não sei onde. Mas era isso.
P/1 – Aí você volta?
1:21:08 R – Aí, quando eu voltei, no começo de oitenta, eu continuei a trabalhar nas escolas que eu tinha pedido licença e fui readmitida. Eu trabalhava no IAD, que é uma escola ali na Paulista e lá de Osasco eu já tinha saído da escola de lá e foi quando... logo depois que eu cheguei eu fiquei grávida, então foi um momento assim que eu falei: “Bom, e agora, como eu vou fazer?” Tinha algumas propostas de continuar aquele trabalho de educação, que eu pretendia continuar, sim, cheguei a fazer algumas reuniões em relação a isso. Aí, quando terminou o ano oitenta, em oitenta e um, janeiro, a Helena nasceu, eu não tinha noção do que seria a minha vida a partir do nascimento dela, e o meu foco passou a ser ela. Porque ela teve, como já falei para vocês, anoxia no parto por demora e não foi nem uma questão do médico ser relapso, eu acho que ele estava ali o tempo todo, eu não tinha dilatação suficiente, fiquei em trabalho de parto enorme, assim quase o dia inteiro e uma noite e eu, ali, entregue ao médico, ele que tinha que decidir, era meu primeiro filho, em nenhum momento me passou pela cabeça: “Eu quero ter um parto normal de qualquer jeito”. Não, acho que ele achou que dava, acho que ele avaliou mal. Sei que na hora que ele induziu o parto e aí a dilatação aconteceu, a Helena nasceu, já estava roxa de dificuldade e ele não quis puxar da primeira vez com o fórceps, achou que ia machuca-la, acho que por inexperiência, talvez, não sei, era um médico muito jovem, inclusive era um médico que era amigo do meu ex-marido. E era um médico amigo de meu ex-marido em quem a gente tinha uma confiança total, mas por outros motivos, não profissionais. Ele era um cara que trabalhava, fora o trabalho dele, atendia as pessoas que estavam trabalhando na clandestinidade, ele era um apoio da Eliene, era uma pessoa... só que, enfim, não tinha nada a ver com o trabalho profissional dele, e ele errou, foi um erro que não foi uma questão de... como é que se diz? Falta de cuidado, má fé. Foi um erro mesmo, por falta de experiência, mas foi um erro que trouxe uma vida inteira, que foi a vida da minha filha.
1:24:25 Mas eu acho que isso foi uma coisa que tinha que acontecer, aconteceu. Eu nunca tive, assim, momentos de culpá-lo por uma coisa assim, o Maranhão teve mais, não podia se encontrar, ficou muito tempo sem se encontrar com ele, mas eu não. A mulher dele era pediatra, foi ela que fez os primeiros socorros na Helena, transferiu de um hospital onde não tinha UTI para outro que tinha UTI neonatal, eram poucos os que tinham na época. Tinha no Pronto Socorro Sabará e no Einstein, e eu tive a Helena no hospital pelo INSS, que não tinha coisa nenhuma. Então, ela foi de ambulância para o Sabará e passou lá na UTI uns quatro dias. Eles fizeram uma injeção para diminuir a atividade cerebral, para a pessoa não entrar em convulsão, porque ela nasceu já com convulsões. Ao chegar ela já tomou uma medicação forte, que deixava a pessoa sem nenhum tipo de reação, parecia que ela estava em coma, com a respiração e tudo. E aí, quando ela saiu e foi primeiro para o quarto, no quarto ainda foi naquela caminha que tem ar e só se alimentando pela sonda, eu tirava leite do peito e dava, foi muito difícil esse começo. E eu estava assim muito, sei lá, parecia que eu estava vivendo um pesadelo, sabe quando você não se dá conta, assim?
P/2 – Muito rápido as coisas acontecem.
1:26:27 R – Muito rápido, uma coisa assim que você está... tem uma série de expectativas e de repente elas não se realizam. Eu saí do hospital, ela ficou ainda, logo que eu saí, aí eu ia lá visitar e, quando ela foi para casa, eu recebi uma série de instruções da mulher do obstetra, que foi muito legal conosco. Quando ela me indicou os primeiros tratamentos de reabilitação precoce para a Helena e tal, parecia que ela estava entregando o caso, entendeu? Aí eu fui procurar outro pediatra. Então, me desliguei um pouco dessa família, ela e o marido. E aí era assim: uma coisa de médico x, y, neurologista, era isso, era aquilo e ninguém te dá nenhuma certeza, nenhum prognóstico. Falavam assim: “Pode ser que ela tenha problema de equilíbrio, pode ser que tenha isso, que tenha aquilo”, tudo pode ser. Vai andar? Não sabia. Sei que precisava de tratamento, assim, diário, uma coisa... em casa e nas clínicas. Então, foi um período que fiquei muito tempo levando a Helena para lugares bem distantes, às vezes, para fazer fisio, fazer fono, terapia ocupacional, isso e aquilo e tal. Então, eu não podia mais pensar e nem tinha espaço na minha cabeça para pensar em trabalhos, muito menos trabalhos políticos. Eu estava pensando era na sobrevivência material, eu tinha que continuar dando aula e continuei, depois que venceu a minha licença - era quatro meses não me lembro, acho que quatro - eu voltei ao trabalho. Para eu voltar tive que por uma baby-sitter em casa com ela, uma pessoa que fosse mais qualificada, porque ela exigia cuidados maiores do que uma criança da idade dela. E depois eu a coloquei num berçário, que também era um berçário caro, mas a gente fazia um esforço enorme para pagar, porque eu também não queria ficar, eu achava que eu ia pirar, enlouquecer se eu ficasse fazendo tudo o dia inteiro em casa e naquela época não tinha a menor chance de eu dividir o trabalho com o pai dela. Ele me ajudava e não repartia, como hoje, provavelmente, ele seria mais exigido do que foi, naquela época, por mim.
1:29:30 Porque eu tive isso de assumir completamente também, não ficava esperando: “Você tem que fazer isso, fazer aquilo”. Isso foi acontecer depois, quando ela já estava maior, quando eu vi que ela já estava num caminho e tal, mas não naquele momento, logo que nasce. Então eu fui me desligando aos poucos desses outros projetos, inclusive passei uma fase, para eu poder trabalhar de uma maneira mais tranquila e que eu tivesse tempo de levar Helena para os tratamentos, pras coisas. Eu consegui um emprego que eu fiquei oito anos no Museu da Imagem e do Som trabalhando. Foi um período, assim, muito interessante, muito rico para mim, eu morava perto e que me sossegou um pouco, porque eu não tinha aquela tensão de sala de aula, que é uma coisa tensa que você não... você entra e não pode sair e tudo mais, eu já estava habituada, mas eu falei: “Agora, se acontecer alguma coisa com minha filha, o que eu faço?” E lá eu tinha toda uma coisa que eu nunca tinha vivido antes, que era trabalhar num lugar que eu podia telefonar, que eu podia, se ela precisasse de alguma coisa, ela podia ir para lá, como muitas vezes aconteceu. Às vezes eu falo com ela de fatos que ela se lembra desse período. Lá eu trabalhei em muitas funções, mas uma delas foi na documentação do museu, no setor de documentação, onde fica o acervo. Então eu fazia um trabalho de escrever sinopses e trabalhar com acervo fotográfico, ajudando na catalogação, assistia filmes, que lá tinha um acervo grande de documentários, na época e a Helena ia. Eu ligava para a empregada: “Ela não está bem, não sei o que, não sei o que” “Traz ela para cá”. Aí ela levava um caderninho para ela, ficava lá desenhando, não sei o que. Onde que eu ia poder fazer isso, numa escola? Aí teve períodos que eu trabalhei lá, mas também em escolas, aí foi... e foi justamente quando a Helena estava nessa escola, na Quero Quero, a partir dos cinco anos, que aí ela estava num lugar que me deixava muito segura, que ela fazia lá as terapias dela, fazia tudo que precisava e não precisava ficar naquela transação vai e vem. Então, nessa época, eu voltei para a sala de aula e também fiquei no museu, de onde eu saí, sei lá, eu saí uma primeira vez, depois eu passei lá por vários diretores. Primeiro era o Ivan Isola que era o diretor, depois foi o Guilherme, aí eu saí. Era uma coisa também, tem todo esse lado político dessas instituições, Secretaria da Cultura, então quando entrava um novo diretor,
se engavetava tudo que tinha, você tinha que começar do zero, era um monte de coisas, isso foi me cansando, acabei saindo, mas depois eu voltei, quando o Ricardo Ohtake assumiu a direção. Eu conhecia o Ricardo de outras coisas que eu fiz para ele, revisão, coisa de livro dele, aí ele me chamou, falei: “Tá bom, vamos”. Mas aí também foi assim: quando ele saiu, eu falei: “Tchau, eu vou sair junto, não quero mais”. Aí fiquei só em sala de aula, desde que eu saí.
P/1 – E aí onde entra o outro, segundo filho, nessa história?
1:33:15 R – Então, o segundo filho foi assim: nove anos a Helena tinha, quando eu já tinha tido uma separação do pai dela, porque a gente estava brigando muito por essas questões domésticas e tal, mas aí acabou voltando, ficamos um ano e pouco assim separados, acabamos voltando e o Chico nasceu nessa fase, na segunda fase com ele e nasceu meio sem programação.
P/1 – Um acaso?
P/2 – Mais um acaso?
R – Pois é. Eu estava... eu achava, no começo eu achava que outro filho para mim ia ser eu tirar o tempo que a Helena precisava e tinha muito de medo também de acontecer igual, sei lá, loucuras né, fantasias que a gente tem. Aí aconteceu e, quando aconteceu, eu falei: “Vamos ver o que vai rolar”. Aí eu fui para uma super obstetra, que era da minha amiga Dudu, fiz um pré-natal ótimo com ela, muito tranquilo. Nove anos depois já tinha mais recursos no sentido de ter ioga, não sei o que, para as grávidas, que na época da Helena eu não tive. Talvez até por nunca ter procurado, mas eu não tive, para mim não chegou. Então, na do Chico foi... eu me senti mais assistida. Eu e o Maranhão já estávamos mais estáveis do ponto de vista financeiro, então ele tinha um bom convênio de saúde, o Chico pôde nascer num hospital melhor, então foi tranquilo e para a Helena foi muito bom ele ter nascido. Ele era bebê e ela tinha um orgulho, assim dele, tem até hoje do irmão.
P/1 – E como foi a educação dos dois?
R – A educação?
P/1 – É, nessa época dos anos oitenta, anos noventa já. O que você e o Maranhão queriam passar de princípios, de ensinamentos, qual era a intenção aí?
1:35:38 R – (risos) Não sei se a gente organizou. Acho que foi tudo meio assim, acho que as coisas vinham para eles, do que eles observavam da gente. A gente sempre teve, com muita naturalidade, eu acho, essa coisa de ensinar a respeitar os outros. Não era assim um programa, era uma coisa natural. Eu sempre respeitei., o pai dele também. Então acho que eles foram educados de um jeito tranquilo. A Helena sempre em escolas especiais ou então em escolas comuns, mas que tinham classes especiais. Como eu estava dizendo para vocês, não tinha ainda nenhuma lei que obrigasse as escolas a receber essas crianças, então ela precisou de muito apoio, meu apoio muito tempo. Ela se formou, ela fez Biblioteconomia, mas todo tempo que ela fez Biblioteconomia, ali na Sociologia e Política, eu ia levar, ela precisa de ajuda para transporte até hoje, ela tem uma autonomia muito relativa. Então, claro, ela sempre me deu muito mais “trabalho” entre aspas, né, nessa coisa de educação do que o irmão, que, por outro lado, ficou um pouco naquela posição que ficava eu na minha casa, se virar sozinho. Então ele sabia muito bem que eu não tinha tempo para ficar exigindo dele o cumprimento das tarefas da escola, então ele sempre fez, sempre foi um bom aluno. No começo ele ia comigo nos tratamentos da irmã. Então, ele conviveu muito com pessoas diferentes dele, ele tem um jeito de lidar com essas pessoas que vem da vivência, não vem de teoria, não. Isso é muito interessante. Mas não é que tenha sido sempre assim. Ele, quando criança, teve lá os conflitos dele também, de ter uma irmã diferente. Mas acho que a coisa foi indo, assim, meio devagar, até ele, hoje, ser alguém que apoia todo tipo de causa ligada a diversidade e isso vem da prática em casa. Porque é engraçado isso: quando mostrei para vocês aquela fotografia, eu me lembrei das crianças, me lembro das mães também. (choro) São pessoas, assim, que a gente passa por tantas experiências... coletivas não, mas é comum, mesmo, eu, a mãe do fulano, da sicrana, não sei o que, não sei o que. Que, com essas pessoas, eu tenho uma relação que é diferente da relação que eu tenho com as minhas amigas mais próximas, porque é uma coisa da experiência comum, que não precisa de palavras. Às vezes acontece alguma coisa, eu olho, ela já sabe o que estou sentindo, eu não preciso falar. Isso é muito legal.
P/1 – Que bom que elas estavam presentes, dividindo isso tudo, porque é um grande desafio, né?
R – É.
P/2 – Eu vou te perguntar uma coisa que está me passando pela cabeça: em algum momento a gente, mãe, se culpa de uma condição dessas, de vir um filho que vai dar mais trabalho, como mãe? Será que a identidade entre mães passa por uma vivência... não sei, pode até ser uma culpa católica essa minha pergunta, mas pode não ser também, pode ser não sei, o que você acha?
R – Eu acho que passa, sim, claro, eu muitas vezes...
P/2 – Até porque o marido pode ficar de lado, porque ‘eu é que tenho que passar isso’. Por isso que estou te perguntando.
1:40:42 R – Entendi. Passa, passa sim, até uma coisa assim: “Será que, se eu tivesse falado para o médico, ali, naquela hora, que eu não aguentava mais, ele não teria apressado uma cesárea que, no fim, ele não pôde fazer, porque ela já tinha passado o canal e não podia voltar para trás, para fazer a cesárea? Então, esse tipo de coisa passa? Claro que passa e isso demora e haja terapia para dar conta, não é...
P/1 – E aí passou o tempo e as crianças cresceram, passaram por esses desafios todos com uma mãe presente e, como ficou o seu lado profissional, quantas coisas mais você realizou como professora, com outros projetos? Conta um pouquinho aí antes, até, de se aposentar. Quão ativa era.
R – Antes de me aposentar?
P/2 – Como que a Filosofia voltou?
P/1 – Como que a Filosofia voltou, se voltou? Tirando os filhos, que estão acompanhando ainda, mas o lado profissional, como é que foi?
1:42:00 R – Então, eu nem cheguei a falar muito disso, mas uma das coisas que eu fiz no meio de todo esse período que eu estava cuidando da Helena e cuidando do Chico - e da Helena eu digo que estava cuidando, mas não, eu cuido até hoje. E eu sei que estou naquela mesma condição do Cristóvão Tezza, que tem aquele livro lindo, O Filho Eterno, que ele fala do filho dele - foi trabalhar um pouco com o meu trabalho de professora, passar um pouco do que eu aprendi para livro didático. Então, junto com uma amiga, a gente selecionou uma série de coisas, de atividades numa época que nem existiam os parâmetros curriculares nacionais para os livros serem avaliados, a gente começou um pouco antes, uma coisa assim meio ligada à nossa prática de sala de aula. Lembro que estava entregando para a editora os originais desse livro quando eu estava grávida do Chico. Então, eu fui, durante os meus últimos anos de sala de aula, mesmo, eu tinha esse trabalho, que virou um livro, que depois mudou de editora, que a gente renovou o projeto, fez outro. Daí teve uma época que vendeu bastante e que foi com esse dinheiro, de venda dos livros, que eu pude comprar o primeiro apartamento, meu, sozinha, sem o Maranhão. Então eu fiz isso, e isso também me rendeu uma experiência, no sentido de observar a necessidade que os professores têm, de formações para desempenhar o seu papel em sala de aula, que é uma coisa muito difícil de acontecer. Quando eu me aposentei eu tive também outro acaso que aconteceu na minha vida, que foi trabalhar num projeto muito interessante do Cempeqc, que eu fui chamada pela Neide, uma amiga que hoje eu fui nesse TCC dela, numa outra coisa de gestão cultural que ela está fazendo. Ela fazia parte do grupo do Cempeqc. Eu tinha conhecido recentemente a Neide na casa da Isa, uma amiga comum, e a gente tem uma história ligado a filho muito parecida. Ela também, na época, tinha uma filha que ela se preocupava muito, dava para ela uma série de questões muito diferentes da Helena, mas ela estava trabalhando num projeto do Cemperqc que era... chamava Estudar para Valer, que era formação de professores em leitura e escrita, mas uma formação em todas as áreas, não era só em Língua Portuguesa, era também História, Geografia, leitura de enunciados, História, Geografia, de Matemática. Então a gente fez assessoria para prefeituras de Araraquara, de São Roque e projetos assim, de dois anos, a gente ia a cada mês, a gente preparava. E eu tinha um trabalho em equipe, realmente, nós viajávamos em dez pessoas, era um projeto caro do Cempeqc, que era financiado pela Volkswagen na época. Então, foi um momento que eu não senti muito a falta de sala de aula, porque eu sempre gostei muito daquele momento, sala de aula, mas já estava um pouco cansada daquela preparação, daquela coisa. Eu não senti muita falta porque continuei a ter uma interlocução ali naquela equipe, viajar juntas e fazer... aí, além desse projeto, eu comecei a trabalhar nessa olimpíada da Língua Portuguesa, que ocorre a cada dois anos, então eu ia fazer formação... formação não, eu ia fazer as oficinas dos alunos, algumas oficinas, alguns gêneros de língua dos alunos finalistas. Então, esses foram trabalhos que aconteceram. Fora o meu trabalho em casa, com texto de maneira geral, revisão, copydesk, atividades para professores que de vez em quando aparecem, mas agora tem aparecido bem menos, acho que nesse momento está tudo meio fechado nessa parte, todo mundo cortando tudo quanto é coisa. Foi assim. Aí a coisa da Filosofia, né, que você perguntou, às vezes eu penso que, naquela época dos anos setenta, setenta e cinco, setenta e seis que eu fiquei... acho que o envolvimento da gente era tão grande com o movimento estudantil, com outras coisas, essas coisas da juventude, que eu deixei passar muita coisa. Eu tive professores maravilhosos que só hoje, (risos) depois, lendo o que eles escreveram com a maturidade que eu tenho é que, às vezes, me falo: “Meu Deus, como é que eu não aproveitei as aulas do Salinas, como que eu não aproveitei as aulas do Cavalcante, não aproveitei não sei o que?”
1:48:03 Então, coincidiu também que, para eu voltar a estudar, uma amiga minha que estava dando aula num lugar aí que, aliás, é muito legal lá, que é Galeria Augusta, que tem ali na Rua Augusta. Eles têm lá, é como uma universidade, cursos maravilhosos, com pessoas maravilhosas de música, ópera, cinema, desenho, filosofia, poesia e são professores assim tipo nota dez. É uma casa de saber mais popular, vamos dizer assim, e mais simpática, (risos) menor, muito menor, uma coisa pequena. E a Algaria estava dando aula lá e me chamou, porque ela sabia que eu estava, assim, numa fase meio sem saber muito o que fazer e ela sabia que eu ia gostar de um curso que ela estava dando, que ia começar com a leitura da Ilíada. E ela me falou: “Vem assistir, se você tiver disponibilidade, dia tal da semana”, não lembro se era uma quarta de manhã. Aí eu fui. Nossa, eu fiquei assim... eu me lembro tão bem que o primeiro texto era um texto da Simone Weil que se chama Ilíada ou o Poema da Força. Ela começou com esse texto da Simone Weil e depois a gente foi lendo e comentando Ilíada. A ideia era começar lá com os mitos, a Ilíada que foi mais um chamariz, mas depois começou Hesíodo, aí começamos lá atrás mesmo: a Teogonia, O Trabalho e os Dias, do Hesíodo e foi indo, foi indo, pré-socrático e eu gostei muito. Isso era o quê? Dois mil e... eu ainda estava no Oswald, eu acho. Dois mil e sete, eu acho, que fiz esse primeiro. Eu sei que daí eu gostei de me ver no papel de aluna de novo (risos) sem ter aquele compromisso de fazer prova, de fazer trabalho, muito menos pensar: “Eu vou fazer com isso aqui um mestrado, eu quero dar aula não sei onde, não sei o que”. Era uma coisa de pura contemplação, vamos dizer assim, para pegar uma palavra dos gregos. E assim eu fui, fiz muitos cursos lá, uns seis, sete anos sem parar e escolhendo de acordo com aquilo que me interessava. E me encantei muito com essa fase da filosofia do Helenismo. Aí voltou o Foucault na minha vida. Leitura dele, mas não dessa fase da micropolítica, da biopolítica, que é mais difundida, mas a parte final da vida dele, porque ele ficou estudando os gregos e tem aqueles livros lindos, A Hermenêutica do Sujeito. Um dos cursos foi sobre A Hermenêutica do Sujeito, que pega e que tem na História da Sexualidade dois e três, só que na Hermenêutica é melhor porque é aula por aula que ele deu no colégio. Então, foi um curso de um ano praticamente, com o Maurício Marsola, que é um cara do grego, lá da Letras. Aí eu fiquei encantada com o epicurismo, fiquei encantada com Sêneca, com todos os textos dessa fase da Filosofia. Platão. Alguns cursos eram mais extensos, outros menos, uns mais panorâmicos, outros bem aprofundados. Teve um de um semestre, sobre o diálogo O Banquete, por exemplo.
P/2 – Como que esse novo conhecimento entra na sua vida nesse momento, como isso te alimenta, além de encantar, como te alimenta?
R – Ai, ai, ai. Aí você tem que ler os estóicos. (risos) que é uma coisa, assim, de tranquilidade, de aceitação, de apaziguamento em relação à vida. De dar um peso diferente às coisas. Eu li muito. Teve um dos cursos que eu falei: “Bom, isso aqui eu vou seguir, como se fosse uma receita”. Que foi a _____________ [1:53:30] do Aristóteles, que fala muito dessa coisa de você estar no meio das virtudes, que tem aquelas que são as boas... que é um pouco Spinoza também: tem que estar ali no meio, pra você ter tranquilidade. E isso passou, de alguma forma, pra mim.
P/2 – No café da manhã, assim? (risos) Café da manhã com Epicuro.
R – Passou um pouco pra mim. Por isso que eu tenho algumas coisas que eu meio... agora faz... eu parei um pouco de fazer esses cursos, até porque eu não ia repetir o mesmo curso, né? (risos) Mas eu já tenho uma bibliotecazinha de Filosofia antiga. Então, de vez em quando, eu pego um, pego outro, né? Mas são esses autores que me encantam, hoje: Platão, são os mais antigos. Eu fiz recentemente um curso inteirinho com a Adélia Bezerra de Menezes, sobre a Odisseia, na visão da Escola de Frankfurt, dos autores que pensaram a Odisseia. O surgimento da ideia de indivíduo. Razão. Ulisses. Um ano. Eu achei maravilhoso. Agora, eu sou agradeço hoje poder ter tempo e uma cabeça que me permite fazer isso, porque se eu tivesse muito empenhada em trabalho, em trabalho, em trabalho, em trabalho, eu não conseguiria fazer esse tipo de leitura. Não daria.
P/1 – E nesse momento, até pra gente fechar, um pouco, filosoficamente falando...
R – Nossa Senhora!
1:55:15 P/1 – Ou não. Baseado muito na sua história de vida, o que é a felicidade pra senhora?
R – Isso aí (risos) está tão em moda, hoje.
P/2 – Mas está no seu livro de cabeceira também.
R – Pois é. Mas esse título veio por causa dessa pegada que esses autores têm e que vêm num momento de autoajuda e a Carta a Meneceu nunca teve esse nome. Eles pegaram o Sêneca, o Cícero, Marco Antônio, o próprio Aristóteles e tem, o que eu acho muito bom, inclusive, os filósofos modernos e que são mais midiáticos, vamos dizer: o Pondé, o outro, como chama? Karnal. O outro lá da PUC, como chama?
P/2 – O Cortella.
R – O Cortella. Que fazem, muito, essa divulgação de coisas que estão ali, nos gregos. E que passam isso pras pessoas comuns, o que é muito legal, que não precisa ser filósofo pra entender o jeito que eles colocam essas questões, da felicidade, disso e daquilo. Só que faz parte da indústria cultural, né? Então, a gente tem que ver que... eu não sei se é bom. O que eu sei é que... se é bom, assim, claro que é bom divulgar essas ideias, vender os livros e tal. Agora, tem muita gente que, se fica nessa superfície, quando pega ali o original pra ler, se decepciona muito, porque essas coisas estão muito contextualizadas numa época. Não é à toa que apareceram esses pensamentos pra essas pessoas, lá no século I ou antes ainda, mas eu não sei.
1:57:27 Eu acho que felicidade, (risos) nesse sentido eu se dá à palavra, a gente não é feliz. A gente pode ter instantes, a gente pode ter momentos, mas eu não quero ser pessimista, (risos) vamos dizer assim, mas a vida é muito doida, muito difícil. Ninguém pode sair por aí: “Agora eu estou feliz” e dar pulinhos. Não. Depende muito do jeito que você vai reagindo a cada coisa que acontece. Sejam coisas boas, coisas ruins. Então, a gente também... o que são coisas boas, o que são coisas ruins?
P/1 – Está filosofando.
R – Eu não sei te responder. A vida é mais difícil do que feliz.
P/1 – Mas tem momentos de felicidade?
R – Tem momentos. Sim. E eu acho que a gente tem que procurar esses momentos nessas coisas pequenas, tomar o café aqui com vocês, conversar, bater papo, ir a cinema com uma amiga, com um amigo e falar bobagem. É isso, nada muito... (risos)
P/1 – E, pra gente, finalizar, que mensagem você gostaria de deixar registrada pra família, pros amigos e pras pessoas que vão assistir a sua história em outros momentos? O que você queria deixar como mensagem, pra essas pessoas que vão assistir sua história?
R – Uau! Mensagem? Ai, não sei. (risos)
P/2 – Você falou uma coisa que me chamou atenção, que é quando você estava na faculdade, tal e você falou: “Nossa, como eu deixei passar coisa!”. Então, nesse momento, o que você não deixaria passar? Vamos pensar assim.
R – Nesse meu momento, agora?
1:59:35 P/2 – É. Porque dá até pra compreender o que seria, porque tem tanta coisa acontecendo quando você está na faculdade, que algo escapa, mas hoje também algo escapa, né? Que pode ser algo que você ainda também queira, pode ser algo que você queira... enfim, o que, pra você, faria sentido nesse momento de aprofundamento?
R – Olha, eu acho que talvez isso aí de olhar pra cada momento, pra cada ação que você está fazendo, com um olhar assim: “Bom, o que eu posso levar pra minha vida disso aqui? O que isso aqui vai me fazer ser uma pessoa mais tranquila, mais feliz? (risos) Não queria usar essa palavra, mas, né? Olhar pras coisas, olhar pras pessoas que estão em volta, né? Fazer com que os laços, né, de amizade, no tempo, não se percam. Eu acho que é isso, sabe? A amizade é uma coisa que cura. Cura muita coisa, né? Então, não deixar perder. Nem o momento que você acha que é interessante ou que você acha que é ruim, o que você pode pensar a respeito desse momento? O que ele pode trazer pra você como aprendizado? O que pode ser levado pra outras pessoas? Prestar atenção na vida. Não se deixar levar por essa torrente que a gente tem, de informações desconectadas, umas das outras, essa urgência que as pessoas têm de consumir coisas, consumir cultura, consumir lugares. E, enquanto isso, a vida vai passando. (risos)
P/2 – É aquela imagem do rio. Qual é esse filósofo, que o rio nunca é o mesmo?
R - Heráclito. Pensa no movimento das coisas.
P/2 – E é ao pé da letra, mesmo, se você pensar.
R – Você nunca se banha no mesmo rio.
P/2 – Quando você entra numa água, essa água já está ali.
R – Já está ali.
P/2 – Você está no seu presente. Isso, eu acho.
R – É.
p/1 – É isso.
P/2 – Vamos encerrar?
R – Obrigada!
P/2 – Obrigada você! Delicioso!
P/1 – Obrigada pela presença!Recolher