Projeto Conte Sua História
Entrevista de Ricarda Struzuzukowski Dawidovicz
Entrevistada por Carol Margiotte e Carlota Machado
São Paulo, 18/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV741_Ricarda Struzuzukowski Dawidovicz
Transcrito por Liliane Custódio
Revisado e editado por
P/1 – Dona Ricar...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Entrevista de Ricarda Struzuzukowski Dawidovicz
Entrevistada por Carol Margiotte e Carlota Machado
São Paulo, 18/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV741_Ricarda Struzuzukowski Dawidovicz
Transcrito por Liliane Custódio
Revisado e editado por
P/1 – Dona Ricarda, boa tarde.
R – Boa tarde,
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui hoje.
R – O prazer é meu. Nunca fui entrevistada na minha vida.
P/1 – Ah, que privilégio então. Um privilégio eu ser a primeira. E para começar, eu quero que por gentileza a senhora diga o seu nome completo.
R – Ricarda Struzuzukowski Dawidovicz.
P/1 – O local e a data de nascimento da senhora?
R – Eu nasci na Polônia, no dia 5 de fevereiro de 1937.
P/1 – E a senhora sabe por que seus pais te deram esse nome: Ricarda?
R – Porque a minha avó, a mãe da minha mãe... Porque lá na Polônia, leste europeu, ainda é leste europeu, agora já não é nem mais, agora é Ucrânia lá. Então a minha avó, ela sempre gostava de nomes diferentes, porque lá davam assim: Josefa, Maria, Mariana, Eduarda. Ela não, ela falou para a minha mãe: “Não, você vai por Ricarda”. Então minha mãe colocou. Colocou. Na verdade, não era Ricarda, era Ryczarda, com R, Y, C, Z, A, R, D, A. Mas quando nós chegamos à Alemanha, não era todo mundo que sabia escrever direito, e era um senhor lituano que fazia essa documentação para nós, tudo, e ele escreveu não Ryczarda, ele escreveu... Depois no documento você vai ver. Ele escreveu Riczarda, com R, I. Riczarda. Tudo bem, ficou um tempo assim. E eu entrei na escola aqui e todo mundo me chamava de Rickzarda, porque não... Sabe? Quando eu entrei depois para trabalhar no Mappin, em São Paulo, o despachante falou para mim: “Você não quer tirar esse Z? Fica Ricarda”. Eu falei: “Mas pode?” “Pode. Você já vai fazer seu modelo 19, já não vai ter mais qualquer um, e pode tirar o Z e ficar Ricarda”. E ficou Ricarda até hoje. Mas o verdadeiro é Ryczarda. Mas agora já foi.
P/1 – E, dona Ricarda, o sobrenome da senhora tem algum significado?
R – Eu acho que não. Acho que não. Que o meu pai, ele veio da Polônia, o pai dele, aliás, ele veio não do Leste, ele veio lá mais perto do Centro da Polônia, então lá esse Struzuzukowski é um pouco diferente de todos os outros sobrenomes que tem na Polônia, eu não vi nenhum assim. E eles vieram lá por conta de comprar terras mais baratas. Então eles compraram as terras lá e formaram uma fazenda. Mas a minha avó de repente quis ir viajar um pouco, não sei para onde, então ela foi lá ao Consulado da Polônia em Varsóvia... Não. Não era Varsóvia, era outra cidade na época. Ela foi ao consulado americano, porque ela queria ir para os Estados Unidos para trabalhar e trazer dólares. Trabalhar, sabe, comprar. Então o cônsul falou: “Tudo bem, a senhora pode ir, mas só a senhora e o seu marido, os filhos não. E tinha três, tinha o meu pai, o irmão mais velho e uma irmã. Essas crianças ficaram lá com parentes, com primos. E o trato era eles ficarem durante um ano só, os meus avós, então eles: “Ah, tá bom”. Eles ficaram dez anos. Enquanto isso, o meu pai comeu o pão que o diabo amassou, porque ele tinha seis anos só, e a minha tia, no caso, logo depois se casou, já era mocinha, o outro irmão também, tal. E eles ficaram dez anos lá e trouxeram mais dois filhos de lá. Trouxeram naquela época e 30 mil dólares, naquela época, 1900 e vai pedrada, sabe, muito dinheiro. Então quando eles vieram para a Polônia novamente, a minha avó trouxe malas e malas de roupas caras, sabe, peles, coisa que lá na Polônia, naquele lugar, não se usava. Porque lá eles tinham, lá em Detroit, eles estavam em Detroit, e ela tinha uma pensão para homens. Então ela saía muito com todos os homens para cá e para lá e se vestia muito bem, e ela trouxe todas essas roupas lá para a Polônia, e lá não podia. Então nesse meio tempo, depois, chegou 1939, que já estourou a guerra, e os ucranianos lá moravam junto com os poloneses nesse local que eu nasci. E eles queriam muito ter o país deles, a Ucrânia. Não existia a Ucrânia, nunca existiu. Eles ficavam com os poloneses sempre numa boa, eram vizinhos, tudo bem. Mas depois, como o Hitler fez um pacto com Stalin, ele: “Olha, então vamos fazer assim, vocês vão matar todos os poloneses moradores de lá e vocês ficam com a terra, vai ficar Ucrânia”. E eles então o que fizeram, esses ucranianos? Eles atacavam todos os poloneses que moravam lá nesse local, queimavam fazendas, matavam pessoas, era um massacre mesmo, massacre verdadeiro. Isso era ano de 1943. Eu, na época, tinha seis anos, e a minha irmã, três. E a gente morava com os meus avós paternos, que eles tinham comprado aquela terra toda, já era fazenda e tudo. E chegou a minha tia correndo uma manhã, era fevereiro, mas era quase começo de março, porque era bem frio, ainda era neve, sabe? E ela chegou correndo, falou: “Olha, se arrumem rápido, rápido, porque os ucranianos estão vindo a cavalo tudo armado, vão matar todos vocês”. Então a gente... A minha avó pegou as duas netinhas dela, da filha, e a minha tia, e puseram só umas roupas assim e fugiram para o bosque. E a minha mãe me pegou pela mão e a minha irmã no colo e saíamos também, fomos andando a esmo assim, para ver onde a gente vai fugir da nossa casa. O meu avô quando soube disso, ele saiu correndo da casa e foi correndo pelo terreiro, nisso chegaram os ucranianos a cavalo e o mataram lá, ele caiu morto lá. O meu tio, que era irmão da minha avó, ele correu um pouco mais para frente, então ele também foi morto de espingarda, foi morto e caiu no vizinho. E a minha avó, eu não sei para onde ela correu com as crianças e com a minha tia. E a minha mãe e nós, minha mãe foi correndo pelos campos, foi correndo, chegamos à casa de uma ucraniana, que era conhecida nossa, porque eles não era assim, sabe, eles eram tudo vizinho, a gente se dava bem. E ela, essa mulher, ela tinha família, tudo, e ela fazia... Na casa dela, ela tinha tear, então ela fazia... Todo mundo plantava muito linho e depois fazia aquelas linhas, até lembro, minha mãe fazia, que nem roca de fiar, sabe? Ela fazia a linha, e levavam para ela e ela fazia o tecido. E nós chegamos lá, ela falou: “Meu Deus, e agora? O que eu vou fazer com vocês? Mas fiquem aqui. Fiquem aqui durante o dia. E você...” – falou para a minha mãe – “Você senta atrás do tear, se alguém chegar, eu vou dizer que você está trabalhando aqui. E as crianças, você deixa no terreiro, que eu tenho os meus netos pequenos, vão brincando lá com eles” “Tá bom”. E nós ficamos lá. Mas quando chegou a noite, assim, bem de noite, ela falou assim: “Olha, vocês têm que ir embora, porque o meu filho é desse bando, quando ele chegar aqui, ele vai matar vocês e as crianças”. Então minha mãe: “Mas, meu Deus, eu só posso ir numa cidade...” – que era distante mais ou menos cinco ou seis quilômetros, indo a pé ainda, porque era onde morava uma tia do meu pai. E o meu pai, nessa altura, já tinha ido embora. Já deixou a gente e foi... Não se sabe nem para onde ele foi. Então ela falou: “Vocês têm que ir embora”. Então a minha mãe o que fez? Nós nos ajoelhamos ali mesmo, naquele quarto dela lá onde tinha a casa, ela pôs um lenço na cabeça da minha mãe, ela fez o sinal da cruz, minha mãe orou bastante, eu ainda era pequena, não sabia orar, mas ela orou muito o Salmo 91. Você conhece a Bíblia? Procure. Salmo 91, o mais poderoso Salmo que tem, viu? E precisa ler a Bíblia se você quer saber. Precisa ler. Mesmo católico, protestante, precisa ler. Minha mãe aprendeu esse Salmo e ela orou esse Salmo, e essa mulher deu para nós comermos batata cozida na casca. Eu lembro que eu peguei essas duas batatas, e eu tinha um casaquinho assim, pus dentro dos bolsinhos, e fomos embora. Minha mãe fez o sinal da cruz e fomos indo, fomos indo, assim a esmo, a esmo.
P/1 – A senhora sabe algum trecho do Salmo 91 de cabeça?
R – Sei. Mas sei em polonês. Eu sei.
P/1 – Se a senhora puder.
R – Em polonês?
P/1 – Sim.
R – Agora?
P/1 – Sim. Antes de continuar.
R – É comprido, viu?
P/1 – A gente está com todo tempo.
R – Quer que eu fale?
P/1 – Sim.
R – 0:10:37.8 [Salmo 91 – em polonês] 0:12:22.7. É bem comprido. Então a minha mãe foi andando com a gente e a minha irmã ainda estava meio adoentada, ela a levava no colo, e eu nunca vou me esquecer de quanto sono eu senti nessa noite, que era criança e eu queria dormir. E a gente andava um pouquinho, minha mãe sentava um pouquinho, e era um gelo, frio, e nós sem nada, um vestidinho curtinho, e no pé eu tinha um tamanquinho. Sem nada. Não era como hoje, que tem roupa, sabe, não tinha nada. E nem comida, na verdade. E em cada pouco minha mãe andava um pouco, nós sentávamos, eu já dormia. Ela falava: “________0:13:04.1” – ela falava para mim – “(Wstańmy. Wstańmy? 0:13:06.6) Vamos levantar. Vamos levantar. Vamos indo”. Tá bom. E nós fomos indo, fomos indo. Chegamos a um lugar onde tinha um trilho de trem, trilho de trem, então acho que minha mãe pensou: “Vou ficar nesse trilho e vou chegar logo naquela cidade” – que ela estava em mente que a gente ia chegar. Nós entramos nesse trilho para andar, de repente na nossa frente apareceu um ucraniano a cavalo, armado, ele podia nos matar ali mesmo, porque éramos só nós naquele trilho, não tinha ninguém. A minha mãe olhou assim: “Meu Deus, e agora?”. Ela me pegou, a minha irmã, e caiu assim. Porque tem o trilho, não tem depois um vão assim para baixo? Caiu em cima de nós, cobriu e ficou. E ficou orando esse Salmo o tempo todo. E ele passou e não viu a gente. Ele passou a cavalo e não viu a gente. E nós levantamos, minha mãe continuou andando, já não pelo trilho, já andamos assim pelo campo mesmo. Nós chegamos àquela cidade onde a gente ia para ficar mesmo, e tinha que atravessar um rio, um rio mais ou menos como o Tietê, largo assim, sabe? Mas tinha uma ponte sempre, a ponte estava queimada, não tinha ponte, eles queimaram a ponte, os ucranianos. Porque eles tinham feito uma chacina aquela noite que a gente estava lá, eles queimaram. Por onde a gente olhava era só fogueira, era gado mugindo, cachorro latindo, gente chorando. Eles queimavam tudo: casas, pessoas. Tanto é que na parte do meu pai, ele tinha um irmão também, que também pegou... Antes de acontecer isso, ele pegou uma filha menor, pegou uma carroça cheia de mantimentos e foi para aquela cidade, porque lá tinha um exército alemão parado, então o ucraniano tinha mais ou menos respeito por eles. E lá nessa cidade tinha uma... Como chama? Não era fábrica. Era uma mina de cobalto, muita gente trabalhava lá. E eles lá, nós chegamos lá depois, ficamos lá sentada: “Meu Deus, e agora?”. A ponte queimada e nós lá. Nós nos sentamos à beira daquele rio assim, minha mãe chorava, minha irmã lá doente no colo dela, eu sentei lá, tirei as batatinhas e comecei a comer de fome. Era fome, imagina, não tinha leite, não tinha nada, nem água. De repente, a gente viu do outro lado do rio, apareceram umas pessoas que souberam das chacinas que tinha havido lá, então eles vieram ver: “Será que tem alguém que sobrou, tal?”. Eles nos viram. Então eles puseram umas tábuas assim nesse rio e, não sei como, eles transportaram a gente para o outro lado, e nós chegamos à casa dessa tia. Chegamos à casa dessa tia, meu pai já estava lá. Ele, não sei como fugiu para lá sem a gente, deixou a gente assim, tudo. E lá já estava cheia a casa. Já tinha muita gente que já tinha fugido de lá e estava lá dormindo de qualquer jeito. Comiam o quê? Um pão seco, o que tinha. O que tivesse. Nós ficamos lá um tempo. Um tempo. A minha mãe, eu lembro que ela arrumava uns grãos de trigo, ela os macetava pedra com pedra, para eles ficarem mais como grãozinho meio assim, e botava uma água lá, assava aquilo, que era para a gente comer, que não tinha nada. Na casa lá dessa minha tia já estava cheio de gente, não tinha comida. Então meu pai chegou e falou: “Olha, tem um padre aqui” – que é de lá – “E ele vai fazer uma missa campal para todo mundo que é fugitivo de lá dos ucranianos”. Então nós fomos lá a essa missa campal, ficamos lá, o padre abençoou todo mundo e tal. Chegaram os alemães, todos fardados, exército, e falaram: “Olha, se preparem, porque amanhã vocês todos vão embarcar num trem, nós vamos levar vocês para a Alemanha, para trabalhar”. E trabalho forçado. E esse foi o último trem que saiu da Polônia, porque os ucranianos puseram aquela cidade a ferro e fogo. Eles acabaram com aquela cidade, queimaram tudo, mataram todo mundo que ficou lá, sabe? E nós entramos nesse trem, acho que viajamos umas três semanas. Trem de carga, hein? Trem de carga. Era tudo assim empilhado um em cima do outro, não tinha comida, não tinha água, não tinha nada. Muita gente morreu. Criancinha pequena morria, lógico. De vez em quando eles paravam o trem, porque os alemães tinham acho que alguma base, alguma coisa por aquele lado, então davam uma sopa bem ralinha, uma sopa em cumbuquinhas assim, para a gente comer um pouco, porque não tinha nada, nada mesmo. E chegamos de novo a esse trem. E nesse trem, quando a gente entrou num bosque, o trem parou de repente, mandou todo mundo que se quisesse sair, aquilo já era Alemanha. Nós não sabíamos, porque já passou da fronteira. Eu sei que muita gente chorava muito, muito nesse bosque. E era primavera, e eu sei que era Páscoa, porque todo mundo chorava e se lembrava da Páscoa antigamente, que era... Mas os alemães: “Pode entrar todo mundo de novo no trem”. Nós entramos. Depois chegou a uma cidade, o trem parou, todo mundo saiu de lá, todo mundo maltrapilho, com piolhos, porque não tomava banho, nada, nada, nada, era zero. E lá tinha uns homens já esperando, uns alemães bem gordos assim. Como eles chamavam? Bauer. Bauer é um fazendeiro, que tem lá uma fazenda, e eles queriam pessoas para trabalhar lá com eles, como escravo, claro. Então todo mundo que já era mais assim vistoso, eles pegavam todo mundo. Ficamos só nós (risos). Só nós: eu, minha mãe, a minha irmã e meu pai. Ficamos só nós lá no campo, naquele terreno. Chegou um alemão, falou assim: “Olha, eu vou precisar só de um homem”. Então ele levou o meu pai. Meu pai ficou lá na outra fazenda, distante de nós uns seis quilômetros, mais ou menos. E o outro chegou lá, ficou acho que com pena da gente, e nos pegou também, eu, a minha, nós três pegou. Nós chegamos lá à casa desse alemão, uma casa bonita, e tudo muito bem asseado, tudo. E ele morava com uma filha, que a esposa dele já havia falecido, então essa filha que comandava tudo lá, sabe? Mas ela era boa para nós. Então a primeira coisa que ela fez, jogou querosene em nossas cabeças, porque tinha tanto piolho que não era possível a gente ficar com alguém perto, porque passava, lógico que passava, não se tomava banho durante tantos meses, nada. E ela fez para nós uma sopa lá, nós comemos, ela deu um quarto para nós, deu camas, deu roupa de cama, deu fronhas, fronhas não, travesseiros e cobertores para a gente se cobrir, então pelo menos lá a gente dormiu como gente e comeu como gente, coisa bem ralinha, mas comíamos. E ele lá tinha pomar, muito pomar. Depois no verão já começou a ter frutas, e eu com a minha irmã ficávamos brincando lá. Então tinha maçãs, tinha peras, tinha cerejas, então a gente, nós crianças, não passávamos fome. A minha mãe tinha que levantar três horas da manhã todo dia para ordenhar as vacas, que ele tinha umas dez vacas lá, tinha que tirar o leite delas e limpar tudo lá, tudo, limpar, e depois ir para o campo para trabalhar no campo, porque ele plantava muita coisa, plantava grãos, então tinha que ir lá ajudar e trabalhar. E lá nós ficamos três anos, nessa fazenda. Meu pai vinha de vez em quando visitar a gente, que era no vizinho. Mas ficamos três anos assim desse jeito, trabalhando, dormindo lá. Eu lembro que chegou o Natal, e eu era criança, mas eu aprendi o alemão rapidamente. Rapidinho eu aprendi o alemão. Eu falava com eles assim como se fosse uma alemãzinha, sabe? Chegou o Natal, eu vi que essa Ana, ela se chamava Ana, ela mandava chamá-la tante Ana, tia Ana, para não falar outra coisa. Então nós todos a chamava tante Ana, tante Ana. E o pai dela, ele não era ruim como alemão, porque ele tinha dois filhos no exército alemão e os dois foram mortos lá, então ele tinha raiva de tudo isso, sabe? Então ele mandava o chamar não de senhor, nem nada, vater, pai. “Chamem-me de vater”. Todo mundo o chamava de vater. E ele não era ruim, não. Mas que tinha que trabalhar, isso sim, sem dinheiro, sem nada, a única coisa, por comida. Trabalhava por comida. Então chegou o Natal, a minha mãe nem lembrava mais de nada, só trabalhando, trabalhando, e eu vi que essa tante Ana, ela fazia muitas coisas gostosas para o Natal. Então ela fazia bolachinha, fazia umas coisas, e eu lá perto dela fazendo: “Hum, que bom. Que bom”. E eu pensei: “Nossa, e agora? Vai ter Natal?”. E nós nada. Nós nada. E chegou uma irmã dela de Berlim, com filhos, para passar o Natal com a família. E eu lá entre eles assim, eu pensei: “E agora? Nós não temos nada em casa. Nada. Natal”. Ela pegou, ficou com pena de mim, ela pegou um cartuchinho assim, colocou umas bolachinhas lá, umas nozes. Chocolate, nem pensar. Bala não tinha. O que eu mais tinha vontade, de comer doce, não tinha nada, só açúcar e olhe lá. Ela deu para mim: “Olha, isso aqui é para você, porque o papai Noel vem, mas ele não vem aqui porque ele não sabe que tem criança aqui agora”. Ela foi até bem diplomática. Bom, e assim foi. Nesse meio tempo, era 49, já era 49 quase, o ano de 49. E a Alemanha perdeu a guerra e foi dividida em quatro partes. Quatro partes assim, eles chamavam de zona: zona francesa, zona russa, zona americana e zona inglesa. Em todo lugar tinha estrangeiros, porque todo mundo que eles levaram dos outros países para lá para Alemanha, todo mundo estava lá perdido. Zona russa, quem estava lá, russo, ou polonês, mandaram tudo para a Rússia, sem perguntar, fica lá passando fome. Na americana, eles pegavam algumas pessoas e levavam para os Estados Unidos. Na Inglaterra também, pegavam para a Inglaterra. Agora, na francesa, então eles pegaram todo mundo, inclusive nós, chegaram lá com caminhão do exército, os franceses, tudo armado, chegaram, falaram para esse vater: “Como você está tratando-os aqui?”. E ele então: “Não, não, pode perguntar”. E tinha umas 20 pessoas lá trabalhando com a gente, não só a gente, tinha mais. E a gente nunca falou mal dele: “Não, tá bom”. Então ele foi, eles tinham um depósito de comida, como era inverno, tinha embaixo... Não sei como chama hoje. Embaixo eles guardavam muita comida.
P/1 – Porão.
R – É. Não tinha geladeira, mas guardavam. Pois eles foram lá, os franceses, limparam, limparam aquilo para eles. Tinha vodca, tinha tudo, levaram tudo embora. Tudo embora. E falaram para ele: “Olha, você cuida bem deles, porque daqui a pouco a gente volta e vamos ver como está”. Ele falou: “Ah, meu Deus, e agora? O que eu vou dar de comer para vocês?”. Sabe assim? E eles voltaram mesmo, mas voltaram para pegar a gente para levar embora, para não ficar mais lá. Para não ficar mais lá. Eu sei que essa tante Ana, ela era boazinha para crianças e para nós, ela via, ela chorou quando a gente ia embora. Eles mandaram a gente entrar no caminhão do exército e levaram a gente para a Alemanha lá perto de Friedrichshafen, é uma cidade onde tem porto. Não é mar, é um... Não é lago, não, nem rio, não sei. E é divisível com a Suíça. Do outro lado já é Suíça. E eles levaram a gente por lá perto, que tinha lá um convento de freiras alemãs, mas católicas. Elas tinham que desocupar um bloco todo, de três andares, para acomodar todos os estrangeiros que estavam lá. E tinham que dar de comer, e tinham que dar roupa de cama. Eles tinham que dar. Então nós tínhamos um quarto, com as camas, com cobertores, com tudo como se deve. E elas cozinhavam. Elas tinham uma cozinha imensa, porque era um convento e elas se ocupavam de crianças órfãs e especiais, crianças especiais também. Então elas tinham aquela cozinha imensa, elas cozinhavam bastante, e a gente podia ir lá, quem tivesse alguma coisa para pegar, ou então comia lá no refeitório lá. E lá nós ficamos quanto tempo? Mais três ou quatro anos.
P/1 – Foi a senhora, a sua irmã, a sua mãe e seu pai?
R – E minha mãe e meu pai. É. Nós ficamos lá. E de repente apareceu uma professora, porque tinha muita criança e ninguém sabia nem ler, nem escrever, então essa professora se prontificou. Tinha uma escolinha lá para nós, a gente aprendeu o Polonês, ler, escrever, recitar. E fazíamos peças de contos de fadas e vinha gente aplaudir, era gostoso assim. Tinha uma professora que ensinava dança, então dançávamos essas danças polonesas regionais, era muito gostoso. Ficamos lá, aí chegou, hoje é ONU, antigamente era UNRA, U, N, R, A, a sigla americana: “Olha, vocês não podem mais ficar na Alemanha, só se vocês quiserem ficar. Mas tem vários países que aceitam vocês, vocês podem migrar e ficar me outros países”. Então tinha o quê? Todo mundo queria ir para os Estados Unidos, mas eles não pegavam, só pegavam solteiros, não pegavam famílias. Não pegavam. Inglaterra podia, mas lá o homem tinha que trabalhar numa mina de carvão, então meu pai não quis ir para lá. Tá bom. Tinha a Austrália, que era muito longe demais, também não. Então tinha o quê? Tinha Brasil, tinha Argentina, Chile, e pela Europa, podia ir para a Bélgica, podia ir para a França, podia voltar para a Polônia se quisesse. Mas nós íamos voltar para onde, se não tinha nada? Queimou tudo, aquilo já não era mais Polônia. Se voltasse para a Polônia, o governo teria que dar algum sustento. Mas aí virou comunismo lá, então para quê, não é? Não. Então meu pai foi tão assim: “Eu vou me inscrever para ir para o Marrocos”. Eu falei: “Meu Deus. Marrocos é África” “Não, nós vamos para o Marrocos”. Depois, quando nós vimos tudo, eles mostraram slides, tudo: “Ah, Marrocos não. Pelo amor de Deus, não”. Onde? Imagina. Então Brasil. Tá bom. Minha mãe olhou os slides: “Nós vamos para o Brasil. No Brasil não tem neve e tem muita comida, muita fruta”. A gente via os slides, muita laranja, muita banana: “Vamos lá”. Tá bom. Vamos lá. Então nós também passamos por uma seleção com os médicos, eles estavam vendo se a gente tinha alguma doença, se era alfabetizado, se tinha alguma profissão, os adultos. Tá bom. Ficamos lá esperando. Chegou outro trem, fomos para Áustria. Porque nós íamos para a Itália, para embarcar lá na Itália, em Gênova, para o navio. Bom, ficamos nessa Áustria uma semana, ou duas, de trem. Dia e noite de trem, de trem, de trem. Chegamos a Turim, na Itália, em Turim. Ficamos uma semana comendo macarrão dia e noite, dia e noite, dia e noite (risos). Que lá eles só comem macarrão, né? (risos). Era até engraçado, contando hoje. Bom, aí depois chegou o dia do embarque. Chegamos a Gênova, aquele navio gigante, se chamava General ___________ 0:31:47.6, era americano e era um navio militar. Então não era um navio assim de luxo, nem nada, era militar, eram camas, camas assim, tudo bem precário. Tá bom. Chegamos lá, embarcamos, todo mundo chorava tanto, tanto: “Meu Deus, vamos deixar a Europa. Aonde a gente vai? Para um desconhecido”. Mas no navio estava gostoso mesmo, porque os americanos lá são bonzinhos. E a gente tinha lá a hora de manhã para café da manhã, era bem farto, almoço farto, tudo. Só que todo mundo ficou doente, como fala? Doença do mar. Ficava vomitando, vomitando, vomitando, sem poder comer, sem poder levantar, ficou horrível. Todo mundo ficou doente assim. Tá. Então nós viajamos acho que durante mais de 21 dias nesse navio. E chegamos quase ao Rio de Janeiro: “Ai que lindo. Olha que linda essa cidade”. Aqueles prédios, tudo lá, e aquelas moças bonitas, tudo andando de lanchas e fazendo tchau para a gente, e nós também: “Que bom. Vamos ficar agora aqui. Que gostoso”. Imagina se era lá. Nós descemos do navio e nos levaram em barcas para uma ilha, chamava Ilha das Flores. Você ouviu falar, ou sabe? Era uma ilha que não tinha nada. Nada. Só tinha barracos, barracos, barracos. E a gente lá, acho que tinha mais de, sei lá, duas, três mil pessoas já. E tinha uma cozinha comunitária, era arroz e feijão todo dia, que a gente odiava. Porque na Europa não se come arroz e feijão. Come-se arroz quando alguém está doente, fazia uma canja de arroz. Mas feijão, jamais. Era mais batata, batata, batata. E lá era arroz e feijão, feijão preto ainda por cima. Muitas crianças ficaram doentes, com diarreia, muitas morreram lá na ilha mesmo, sabe? Nós ficamos lá quase um mês nessa ilha. Era a segunda Páscoa que nós passamos lá, fora de casa. Fora de casa. Todo mundo dormia em camas assim, beliches, tudo, e era assim. Também chegou alguém lá do governo e falou: “Vocês não podem ficar aqui. Vocês têm que escolher um estado. Um estado, que o Brasil é grande, vocês podem escolher um estado onde vocês vão querer ficar”. E a minha mãe, quando estávamos na Alemanha, os franceses já falaram uma vez: “Se vocês forem embora daqui, forem escolher um país, se forem para o Brasil, escolham São Paulo, porque lá tem muito europeu, tem muita indústria, lá pode-se trabalhar. Porque se vocês forem para esses lugares mais assim, vocês vão ficar tudo no atraso”. Tá bom. Então a gente escreveu que a gente quer ir para São Paulo. Então de novo vieram todas aquelas bagagens nossas e de novo fomos com aquele trem central, da central, que fazia assim (risos). Nunca vou me esquecer. Levamos uma noite. Uma noite do Rio para São Paulo. Chegamos a Campo Limpo. O trem lá, desembarcamos lá todos, era de novo barracos e barracos e barracos, mas já era um pouco mais... O clima já era um pouco melhor, mais fresquinho, não era tão quente como no Rio. E lá ficamos também. Comida era assim, uma cozinha comunitária, a gente ia lá comer. Era tudo já cozido pelos brasileiros. Mas o feijão já não era preto, era aquele feijão normal. E quem era criança ganhava leite. E em volta tinha muitas chácaras assim dos japoneses, que eles tinham frutas, ovos, tinham chácaras, tal. E a gente então, no meio tempo, podia ir lá e comprar. Comprar com que dinheiro? Não tinha dinheiro. O governo brasileiro deu 12 cruzeiros para cada família, isso em 49. O que era isso? Doze cruzeiros. Nada. Nada. E falaram assim: “Agora vocês não podem ficar mais aqui”. Ficamos dois meses em Campo Limpo, assim, nessas condições. “Vocês podem... Os homens têm que procurar emprego e procurar uma casa para alugar.” Com que dinheiro? Alugar como? Com o quê? Mas tinha que ser. Então meu pai arrumou emprego embaixo, lá na... Como chama lá? Na praia. Cubatão. Meu pai arrumou emprego em Cubatão e ele só voltava uma vez por semana para casa, ficava fazendo lá não sei o quê, mas arrumou um emprego lá. E nós ficávamos lá em Campo Limpo. Só que aí meus pais se separaram. Infelizmente se separaram. Porque depois que meu pai nos deixou lá na Polônia assim, minha mãe ficou com aquele trauma, aquela coisa, e ela conheceu um polonês também, ele era um militar, polonês militar, durante a guerra, quando a gente já estava na Alemanha. E ele veio junto também depois, procurar a gente em Campo Limpo, esse senhor. Então a minha mãe fez o quê? Procurou uma amiga que também veio com a gente e com essa amiga, elas foram procurar uma casa para alugar. Onde? Na Freguesia do Ó, que era completamente longe. Tá bom. Foi essa amiga e minha mãe, foram lá e já trataram, era uma casa, o banheiro era lá fora, de tapume, e era uma cozinha minúscula, que não tinha nada, era só piso de cimento pintado. E a casa era o quê? Era um quarto tijolado, no chão era tijolo, não tinha nada, móveis, nada, nada. E eram 400 cruzeiros por mês. Era muito dinheiro. E ninguém tinha dinheiro nenhum. Então essa minha amiga falou: “Olha, vamos fazer assim, eu tenho só eu e meu marido, e vocês, quatro...” – são duas crianças e os meus pais, que já eram separados, só era a minha mãe agora, no caso. E o outro que ela conheceu não veio junto, ele ficou em outro lugar. “Então nós vamos lá e vamos alugar essa casa nós duas, vamos pagar, eu 200 e você 200.” “Tá bom.” E para chegar, chegamos de trem, de Campo Limpo até Lapa, Piqueri, por ali assim. O trem parou. E para pegar as bagagens, a pé, chegar até a Freguesia do Ó, que era longe, era longe para ir a pé. Passou um carroceiro... (risos). Ah, é uma piada. Passou um carroceiro, então nós pusemos tudo, combinamos lá um preço, e já tinha combinado a casa onde era, chegamos lá, era uma casa como eu já falei como era. Não era nem casa. Água de poço, coisa que na Alemanha era tudo de torneira. Ficou terceiro mundo. E, acredite, a rua era toda esburacada, quando chovia, era aquela lama, que quando dá agora aquela chuva, tudo escorre assim, era assim. Tudo bem. Chegamos lá à Freguesia e minha mãe foi procurar emprego. Onde? Em São Paulo, na Avenida Angélica, na casa de uns judeus. Foi ser empregada doméstica minha mãe. E nós lá. A minha mãe queria que eu estudasse, mas como? Sem dinheiro, sem falar a língua, sem nada. Meu Deus, como vai ser? Aí nós conhecemos uma família que já estava no Brasil há mais tempo, que era vizinha, poloneses também. E ela ficou como intérprete, assim, no caso. E minha mãe queria que eu estudasse, que eu estudasse. Então tinha uma escola do primário, como chamava? Esqueci. Acho que Manoel da Nóbrega, não lembro mais, lá na Freguesia do Ó, e era curso noturno, para quem não sabia nada. Pois minha mãe me matriculou lá. E eu ia lá, então a professora falou: “Você sabe ler?” “Sei”. Em polonês eu sei. Então ela: “Leia aqui”. Então eu lia tudo, daquele meu jeito, sabe? Todo mundo ria, porque era engraçado. Tá bom. Aí acabou lá, eu já não ficava mais lá, já não podia, porque eu era criança e lá tinha adultos estudando, que eram analfabetos. Bom, nesse meio tempo, a minha mãe arrumou um emprego melhor, de duas casas dos judeus poloneses, que falava com eles em polonês, e eles ajudavam bastante a gente, assim, roupa que sobrava, davam para nós, comida que sobrava, davam para nós. Só que nesse meio tempo eu adoeci, eu fiquei com nefrite. Criança, com 12 anos, eu fiquei com nefrite. E como falar? Com quem? Nada. Então aquela senhora que era dona daquele casebre onde a gente morava, ela falou: “Eu vou levar você na Lapa, tem lá um médico alemão, você fala alemão, você explica para ele o que você sente assim”. Tá bom. Então ela me levou, eu fui. Ele falou, falou, tirou radiografia, tudo, acho que nem sei como nós pagamos, não sei como, mas ele deu um monte de remédio e injeção. Injeção onde, se não tinha farmácia como agora em cada esquina? Antigamente eu tinha que andar um morro para tomar uma injeção num convento de freiras. Pelo amor de Deus. E eu tinha tanta dor, mas tanta dor nesses rins, que eu não conseguia... Se eu sentasse, eu não conseguia levantar. E o médico para eu não comer nada com sal, nem carne, nem laranja, tudo muito light, muito assim, e ficar mais deitada. Como? Como ia ficar só deitada? Imagina, tinha a minha irmã pequena, e minha mãe também que trabalhava, vinha, nossa... Fogão era aqueles... Não sei se vocês... Vocês não sabem. Era um fogão de lata assim, com duas bocas. E a gente comprava carvão, tinha um carvoeiro que andava de carroça pelas ruas e vendia carvão de saquinho. Era um horror a nossa vida. Um horror. Roupa, a gente não tinha, nossos vestidinhos eram tudo assim, na Alemanha não tinha, não era moda comprida, nem nada. Diferente. Chegamos aqui, as menininhas tudo bonitinhas, assim, vestidinho, tudo, e eu nada. Bom, tá. E passava também um peixeiro de carroça, que vendia peixe fresco também. Naquela época era tudo assim. Bom, então a gente cozinhava naquele carvãozinho, naquele fogãozinho, tudo. Mas minha mãe nunca podia fazer feijão, porque nem dava. A gente nem comprava. Era sempre ou sopa, ou batata, alguma coisa e só. Carne, pelo amor de Deus, só no Natal ou Páscoa, porque não tinha dinheiro para comprar nada. Então ovos. Mas eram ovos, sendo assim. Fruta, banana só, que era mais baratinha. E esse médico me mandou tomar não sei quantas injeções por... Era por dia, mas não sei quantas, eram muitas injeções. Então eu subia o morro, que tinha um morro lá, onde tinha umas freiras, e elas então se prontificaram a me dar essa injeção. Ah, foi difícil. Foi mesmo. Depois, devagarinho, eu fui melhorando, melhorando. Depois a minha mãe arrumou outra casa, em outro lugar, também na Freguesia do Ó, só que já mais em cima, mais perto da... Não perto da igreja, mas num lugar mais acessível, sabe? E lá nós também pagávamos esse aluguel junto com uma amiga que também tinha duas filhas, polonesas, que vieram juntas. E a gente morava assim, dividia tudo, dividia a comida, dividia o aluguel. Era tudo assim. E a minha mãe com aquela: “Não, você tem que estudar. Você tem que estudar. Você não pode ficar assim”. Tá. Então na Lapa tem... Eu trouxe até o documento, Colégio Campos Salles. E tinha poloneses conhecidos, que a filha deles já estudava lá. Minha mãe foi lá pedir: “Pelo amor Deus. Olha, eu costuro, eu posso fazer alguma coisa, mas põe a minha filha lá, matrícula lá”. Chegamos lá, cadê o... O diretor falou: “Não. Cadê o documento? Cadê um documento?”. Eu não tinha documento. O documento que tinha era que estava junto com a minha mãe, meu pai, e os filhos assim. Eu mesma não tinha. Não tinha. O que vamos fazer? Tinha um padre polonês em São Paulo, na Igreja Nossa Senhora Auxiliadora, lá na Luz, sabe? É. Nós fomos até lá falar com esse padre, porque eu tinha que ter um atestado de que eu era gente. E esse padre deu um atestado para nós, tal, tal, tal. Nós chegamos, entreguei isso para o diretor, ele olhou assim, falou: “Ah, tá bom, eu aceito. Eu aceito. Tá bom”. Ah, eu fiquei tão feliz. Depois, para fazer o uniforme, minha mãe tinha costurar o uniforme, hoje se compra. Minha tinha que costurar uma saia azul marinho, um bolerinho azul marinho, bordadas as siglas lá, eu que tinha que bordar ainda, um camisa de fustão branco, tinha que ser bordada também. Um sapato próprio, um sapato, assim, que tem hoje ainda, mas ele era de cadarço, meia tudo igualzinho. Tá bom. Depois, um dia, lá nessa escola, me mandam: “Olha, você tem que revalidar”. Eu não sabia nem o que era revalidar um documento. “Você tem que revalidar esse documento lá no Tabelião Veiga, em São Paulo.” Eu falei: “Mas onde é isso?”. Ela falou: “Você toma ônibus aqui, você toma ônibus e chega ao Teatro Municipal, ali em São Paulo, que lá tem ônibus que para lá. Você desce lá e pega a Rua Direita”. Eu pensei: “Rua direita era uma direita”. Imagina se era a Rua Direita, que eu sabia o que era. Eu desci do ônibus sem um tostão, sem nada, não sei como eu paguei esse ônibus, tinha que pagar. Eu tinha acho que um real, um cruzeiro. Eu tinha um cruzeiro, paguei o ônibus, desci do ônibus, atravessei aquele Viaduto do Chá, falei: “Bom, ela falou rua direita, vou pegar a direita”. Cheguei ao Largo São Bento. Não, no Largo... Não era São Bento. Onde é faculdade. Onde é faculdade. Faculdade Mackenzie? Não. Não era Mackenzie, não. Faculdade de Direito São Francisco. Eu cheguei lá. Eu falei: “Mas onde que tem esse tabelião? Não tem nada”. Eu nem sabia o que era tabelião, imagina, naquela época. Voltei tudo de novo para o Viaduto do Chá, a pé, tudo a pé, claro. Cheguei lá... E eu tinha vergonha de perguntar para as pessoas o que era, onde era. Havia uma senhorinha bem assim, bonitinha, de chapeuzinho: “Vou perguntar para ela”. Eu perguntei para ela: “Por favor, a senhora sabe onde é o tabelião?” “Olha ali”. Eu estava na rua. Eu já estava na Rua Direita e o tabelião era ali, tinha um negócio verde assim com luzes. Tá bom. Cheguei lá, revalidei o tal do negócio lá e levei de novo para o colégio, porque ela queria de novo. E na volta eu tive que voltar a pé até a Freguesia do Ó, porque não tinha dinheiro. Não tinha dinheiro, eu voltei a pé. Mas fiquei feliz, porque eu já estava matriculada, já ia... Eu morava na Freguesia do Ó, o colégio era na Lapa, e muitas vezes eu ia a pé, mesmo para tomar ônibus, que eu tinha que descer até outro bairro, que chamava Piqueri, que era por lá que passava o ônibus que ia para a Lapa. Eu descia lá na estação, atravessava tudo aquilo e ia. Mas foi gostoso, sabe? Foi. Passou um tempo, eu não me formei por lá porque minha mãe ficou sem dinheiro nenhum para pagar o aluguel, e lá tinha que pagar a escola, não era nada de graça, sabe? Então eu entrei para trabalhar, por meio de uma conhecida também, em São Paulo, na Avenida Ipiranga, onde tinha um consultório dentário. Então eu fui sendo secretária lá, dele lá, do dentista. Fiquei lá trabalhando acho que uns dois, três meses. Mas ganhava pouquinho, pouquinho. Então tinha a hora do almoço, ia almoçar aonde se não tinha nada para comer em casa? Não tinha nada. Eu nem voltava para casa. Eu ficava lá mesmo. Eu comia um pedaço de pão e só. Depois, por meio de outra amiga minha também, que já trabalhava no Mappin, em São Paulo, então a minha mãe falou: “Você não pode arrumar para ela um emprego lá no Mappin?”. Que lá já tinha refeitório para moças. Só para moças, não para todo mundo, para quem trabalhava, era só para moças. Era muito bom. E ela então me apresentou lá. E como eu sabia datilografia, eu tinha aprendido na escola: “Então pode ficar”. E eu fiquei lá. Fiquei até quase me casar. Fiquei trabalhando no Mappin acho que uns dois anos. E depois eu conheci o meu marido, num baile polonês que tinha na Avenida do Estado. Era um casarão velho e todos os poloneses jovens iam lá para dançar. Iam lá. Então era uma matinê, mas era uma matinê assim, de sábado. Mas era uma matinê que começava duas da tarde, porque, imagina... Então começava e a gente ia e ficava até o fim. Até o fim. Até o fim, de madrugada, quando não tinha mais ônibus para voltar. Não tinha mais ônibus para voltar depois. E a gente então ficava, ficava, ficava. Quando voltava para a casa, já era de manhã, pegava o primeiro ônibus que tinha. E foi assim, eu conheci o meu marido lá.
P/1 – Antes de a senhora contar do marido da senhora, eu queria entender como era dentro de casa. O seu pai continuava morando junto com vocês?
R – Não. Meu pai, quando ele soube que minha mãe já tinha arrumado esse outro, ele arrumou a vida dele lá. Ele arrumou amigos e já morava em outro lugar. Continuou trabalhando lá em Cubatão, quer dizer que ele tinha dinheiro. E a nossa vizinha, lá onde a gente morava, na Freguesia, lá embaixo, na Freguesia, ela era uma senhora viúva, e ela estava bem de vida, porque ela tinha uma feira, barraca de feira. Naquela época tinha barraca de feira ainda. E meu pai foi lá, conheceu ela, e lá se juntaram e ele ficou com ela.
P/1 – Mas a senhora e a sua irmã continuavam a ver...
R – Com a minha mãe. Com a minha mãe.
P/1 – Mas vocês continuavam a conversar, visitá-lo?
R – Sim. Sim. Sim. Sim. Meu pai sempre foi assim, presente. Nós também. Mas se separaram e pronto. Foi triste, porque depois a gente sente.
P/1 – E como foi no dia a dia, dentro da sua casa, receber essa outra pessoa que a sua mãe começou a se relacionar?
R – Olha, nós recebemos bem, porque ele era um anjo de bondade. Ele era muito bom. Ele tratava a gente assim como se fosse filha dele mesmo. E minha mãe também, minha mãe era muito autoritária, sempre. Mas foi tudo bem. Ele sempre ajudou. Ele trabalhava, coitado, ele trabalhava num curtume na Água Branca, e a gente morava na Freguesia do Ó e ele não tinha dinheiro para ir de ônibus, ele ia a pé de lá até lá, a pé, ida e volta. Ganhava pouco. E todo o dinheiro na mão da minha mãe. E assim a gente viveu, viveu, viveu. Eu me casei, ele ainda continuou vivo. Foi triste a história também, sabe? Porque no fim, ninguém viveu bem, nem minha mãe, nem meu pai. Meu pai ficava lá com aquela outra pessoa, ela era boa pessoa também, sabe, e a gente mantinha contato sempre, mas não era a mesma coisa que uma família, não é verdade? Não é a mesma coisa que ter uma família. Tanto é que quando eu me casei, eu odiei ter morado com os meus sogros. Eu queria morar eu e meu marido. E por causa disso, não deu nada certo. Não deu nada certo, sabe? Então eu tenho três filhas hoje, uma é a Danuta, essa que veio comigo, a outra é advogada, mora em Curitiba, e a outra, mais nova, tem o quê? Trinta e poucos anos. Só essas três. Mas as minhas filhas também, essas duas mais velhas, também não tiveram muita cabeça. Nem vou falar muito, porque de repente... (risos)
P/1 – (risos) E antes ainda do casamento, dona Ricarda, eu queria saber que costumes da Polônia ainda vocês tinham no dia a dia em casa, de comida?
R – No dia a dia, no dia a dia, não tinha muito costume. Eram comidas polonesas, que a gente gostava sempre de comer, e cantava as canções polonesas, do Natal, e da Páscoa, e mesmo assim, a gente frequentava muito aquela igreja lá no bairro da Luz. Todo domingo tinha missa em polonês. Então a gente ia lá, tal. E eu tomava parte do coral da igreja, essas coisas, sabe, assim.
P/1 – E tinha alguma música que a senhora quando escuta se lembra dessa época?
R – Ai, nossa, tantas. Eu tenho muitos DVDs em casa, tudo polonês. Tudo. Tudo. E eu gosto muito. Eu assisto YouTube tudo da Polônia ainda hoje, eu gosto muito. Eu gosto muito. Então eu tenho saudade, sabe? Tenho saudade. Porque a Polônia hoje é muito moderna. É muito diferente. Eu fui para a Polônia duas vezes já. A primeira vez, ainda meu marido era vivo, nós fomos, e era quase finzinho do comunismo, era quase 1990, e já não tinha quase nada nas bancas assim para comprar, tinha muita gente pobre na rua vendendo medalhinha, vendendo qualquer brochinho, sabe, só paras se manter. Hoje, quando eu vejo pelo YouTube essa Polônia, nossa, está muito para frete. Muito. Tem de tudo, de tudo lá. E a Polônia é muito cultural, sabe? Muito cultural. Que mais? E a gente sempre quando fazia aniversário, tem uma canção que a gente sempre canta.
P/1 – Pode cantar.
R – Cantar? Eu vou te dizer o que significa: que você viva cem anos. É assim: “_______________0:57:01.7”. É assim, que você viva cem anos. Sempre a gente canta isso. E tem muita bebida, muita comida, muita dança. O povo polonês é muito alegre. E quando a gente se encontra assim, que vêm muitos poloneses geralmente na casa, quando é qualquer festividade, sempre se canta e se dança. Sempre. Sempre tem alguém que toca alguma coisa, ou a gente põe uma vitrolinha daquela lá, sabe? E era muito alegre. Era. Hoje é tão diferente. Tão diferente.
P/1 – E comemorando os aniversários, quais eram os presentes que eram dados?
R – Sempre aquilo que a pessoa mais precisava: um sapato, uma roupa. Sempre assim, sabe? E sempre muita comida. Sempre muita comida. E todo mundo gosta de comer, principalmente polonês. Nada de churrasco. Não é moda. Não é moda churrasco. Hoje sim. Mas era sempre comida, muita batata, muito repolho, muita carne, sabe, muita coisa regional da Polônia. Assim.
P/1 – E antes de a gente dar continuidade já para conhecer o seu esposo, eu queria que a senhora falasse o nome dos seus pais, que a senhora ainda não falou.
R – Minha mãe é (Helena, Helena, Helena Struzuzukowski, e meu pai é __________, ___________ Struzuzukowski? 0:58:29.6).
P/1 – E da sua irmã?
R – Minha irmã é (Halina, H, Halina Struzuzukowski? 0:58:42.7).
P/1 – (Halina? 0:58:46.9).
R – (Halina? 0:58:47.6).
P/1 – E como era o seu relacionamento com a sua irmã?
R – Com a minha irmã?
P/1 – Ainda nesse período da infância, adolescência, como vocês...
R – Bom, ela era três anos a menos que eu, mas para mim ela era sempre uma coisinha, sabe, pequena. Ela nunca se interessou por nada muito, nem nada, então era tudo eu. Sempre eu. Qualquer coisa que tinha, recitar algum poema, alguma coisa, então era sempre eu. Ela ficava lá, mas ela não era muito grande coisa. Uma vez nós tivemos que ensinar uma peça em polonês, é claro, que era Branca de Neve. Branca de Neve. Então eu, como era muito magrinha, espertinha, então eu era a Branca de Neve, e as outras meninas, uma era a madrasta, assim, sabe? E tinha um teatro lá onde a gente morava, nesse convento, e as freiras cederam para nós, era um teatro onde elas também acho que faziam alguma coisa, e a gente então participava. E a minha irmã, como era pequenininha sempre, parece que ela nunca cresceu, então ela era um... Como chama? Um anãozinho (risos). E eu era também aquela menina, depois na França você vai ver, todo mundo que se casava, os poloneses lá, as moças que se casavam, de todas eu tinha que levar o véu. Os véus eram moda comprida. Então eu tinha que levar o véu, sempre. Já era moda. Até de outra cidade vinha gente assim, pedia para a minha mãe: “Ela pode vir levar o meu véu lá?”. Eu ia.
P/1 – E ainda entrando nessa parte da adolescência, você conversava com a sua mãe sobre como era ser adolescente, como eram as transformações do corpo?
R – Olha, infelizmente não tinha contatos íntimos com a minha mãe sobre esse assunto. Nada. Nada. Minha mãe era muito ocupada trabalhando e chegava em casa, ela só tinha que trabalhar, lavar a roupa, passar, cozinhar e pagar as contas, sempre falta de dinheiro. Eu nunca tinha uma intimidade de mãe com... Filha com a mãe, falar assim. Não. Nunca. Não era moda. Acho que não era moda. Que nem hoje, hoje a gente conversa até com as netas, eu falo, tal.
P/1 – E a senhora sabia o que ia acontecer com a senhora, ficar mocinha, menstruar?
R – Imagina. Eu não sabia nada. Nada. Uma vez eu levantei da cama: “Oh, meu Deus”. Quando eu vi, eu estava lavada de sangue. E eu assustei. A minha mãe também olhou, mas não falou nada, o que aconteceu, o que não aconteceu. Então logo me levou lá, já falou para eu me trocar, tal, e: “Bom, agora você virou mulher” – ela falou para mim – “Agora você virou mulher. Então você toma cuidado. Agora você toma cuidado”. E só. E esse cuidado, eu também não sabia do quê (risos).
P/1 – (risos).
R – Do que eu tinha que tomar cuidado? Sei lá. Era assim. Era muita ignorância, sabe? Hoje tem livros, tem palestras. Hoje é tão diferente. Graças a Deus, porque antigamente era assim, Deus me livre.
P/1 – E como a senhora foi aprendendo a entender o que estava acontecendo com o seu corpo?
R – Ah, porque depois que eu já comecei a trabalhar no Mappin, a gente conversava com as meninas. Conversava e elas falavam e tal, e conhecia às vezes um rapaz: “Ah, porque esse rapaz comigo está querendo não sei o quê”. Eu pensava: “O que será que ele quer com ela?”. Sabe, é assim. Mas elas explicavam. Então eu soube mais coisas por elas do que pela minha mãe. Da minha mãe, eu não soube nada, não. Ela tinha acho que vergonha de falar comigo sobre isso, sabe? Era diferente a época.
P/1 – E, dona Ricarda, a questão da língua, como foi aprender o português?
R – Facílimo. Mas facílimo. Facílimo. Eu tenho um genro, que hoje ele é separado dessa minha filha, ele veio da Polônia fugido, eu já era casada. Ele veio da Polônia fugido não sei por que. Era comunismo ainda naquela época e ele fugiu para a Alemanha, aí trocou o nome com o sobrenome. Eu sei que ele conheceu um compadre meu lá na Alemanha, compadre que morou aqui, que já conhecemos, e ele deu o nosso endereço, esse compadre, para ele, o nosso endereço de São Paulo, de Santo André. E uma vez eu atendo o telefone, toca o telefone, ele falou em polonês: “Por favor, é da casa do seu (Pavlo? 1:03:47.8)?”. Meu marido chamava (Pavlo? 1:03:49.4). “Sim.” “Eu gostaria muito de conversar com ele, porque é pelo conhecimento do senhor lá” – ele falou, que eu sabia quem era. Eu falei: “Ah, tá bom. Ele vai voltar à noite, pode conversar com ele”. Mas aí eu pensei, eu falei para o meu marido, ele falou assim... Esse compadre, ele era engenheiro. Então ele falou: “Acho que ele mandou um rapaz para mim...” – porque meu marido tinha firma construtora. Então ele falou assim: “Acho que ele vai mandar esse rapaz para mim para aprender alguma coisa aqui, ou trabalhar comigo”. Então ele esperou ele telefonar de noite. Ele ligou de noite, esse rapaz, e no dia seguinte nós fomos lá, ele estava no hotel no Largo do Arouche, esse meu genro, no caso. Chegamos lá, coitadinho, ele era sozinho, com uma malinha, não tinha nada, nada, não tinha dinheiro nem para pagar o hotel. Meu marido falou: “Olha, vamos voltar para casa. Eu acho que eu vou pegar esse rapaz para casa, porque a gente tem duas filhas para casar, quem sabe ele casa com uma”. E eu pensei: “Bom, melhor. Melhor casar do que ficar por aí assim”. Nós chegamos lá, depois eu fui com ele, e ele sabia que a gente vinha, ele se chamava (Piotr, Piotr? 1:05:24.1). E ele sabia que a gente vinha, então ele já comprou um buquezinho de flores para mim, tal, todo assim charmoso. E nós conversamos com ele, meu marido falou assim: “Você tem dinheiro?” “Não” “Você pensa em ficar aqui como?” “Não sei. Que se eu não puder ficar aqui, eu vou ser deportado para a Polônia, porque eles querem me pegar, querem me por na cadeia”. Não sei o que ele fez na Polônia. Diz ele que estava no seminário lá, e acho que qualquer coisa aconteceu, então ele fugiu para a Alemanha, da Alemanha ele veio não sei como para o Brasil, uma história mal contada. Ele falou assim: “Olha, eu vou pagar por você esse hotel que você deve aqui, e você vai morar na minha casa”. E o trouxe para a casa. Trouxe-o para casa e em três meses ele se casou com a minha filha. Ele não podia ficar se ele não tivesse se casado com uma brasileira. Tá bom. Minha filha no começo: “Que?”. Mas eu até gostei, porque ela trabalhava na Cooperativa (Rhodia? 1:06:43.7), em Santo André, e lá ela conheceu um rapaz, um rapaz assim baiano, meio baiano, sabe? Eu pensei: “Ai meu Deus do céu, se ela vai se enganchar com ele, vai ser um desses que vai entrar na família, pelo amor de Deus”. E ela estava aqui pronta já, sabe, para namorá-lo, tal. Eu falei: “Ai, meu Deus”. Aí quando ele apareceu, meu marido falou: “Você vai se casar com ele, viu?” “O quê? Eu?” “Olha, vai ser assim, eu vou te dar um apartamento” – nós tínhamos mesmo – “Vou te dar um apartamento para vocês morarem, vou te dar um automóvel” – que também já tinha – “Vou mobiliar a sua casa, vou fazer o casamento, e você vai passar a sua lua de mel em Foz do Iguaçu”. Ela olhou assim, acho que ela pensou: “Tá bom. Em vez de ficar aqui sempre nas brigas com todo mundo, eu vou lá”. E se casou. Casou-se e hoje ela tem uma filha. A filha dela tem 33 anos hoje já. Mas eles não deram certo depois. Não deram certo. E ele voltou para a Polônia. O rapaz era muito bonzinho, gostava muito da nossa família, tudo, infelizmente não deu certo. A minha neta vai lá visitá-lo sempre. E essa minha filha nunca mais quis ninguém.
P/1 – Carlota, você tem alguma pergunta agora?
P/2 – Eu queria perguntar como você conheceu o seu marido.
R – Pode perguntar. Ah, então, eu já falei que tinha na Avenida do Estado, que hoje é uma tranqueira essa Avenida do Estado lá, e lá tinha um casarão, que hoje acho que já até caiu, caiu de velho, era um sobradão e tinha umas pessoas acho que morando mais embaixo, tinha um porão que era feito como se fosse um salão. Um salão, um bar, alguma coisa assim. E todos os poloneses jovens, no caso, que vieram da Europa, se encontravam lá, todo mundo. E sempre tinha baile. Sempre tinha baile. E o baile era assim, não era orquestra, não era nada, era uma vitrolinha assim que tinha que por lá, então tinha que ficar sempre alguém lá para por a vitrolinha, então tinha que correr rápido para pegar a moça para dançar, porque acabava a música logo. Era assim. E eu ia sempre lá. Eu sempre ia lá. Morava na Freguesia do Ó, e aquilo tinha que tomar ônibus para descer depois. Onde eu descia? Onde hoje é... Onde hoje é estação... Era uma estação, mas não era da Luz, era outra estação. Eu descia lá e ia a pé. E depois eu tinha que ficar lá dançando até cinco horas da manhã, porque não tinha ônibus. Eu tinha que esperar o ônibus para voltar. Então eu ia lá e uma hora o meu marido apareceu lá. Ele não conhecia nada. E ele já tinha chegado ao Brasil dois anos antes de nós, então eles já estavam mais ou menos bem, porque eles vieram com uma família, vieram os pais, e dois filhos adultos, e mais uma irmã, então eles já logo fizeram a vida, já compraram logo um terreninho lá na Vila Pires e já construíram uma casinha. E ele já comprou logo um carro, um táxi, no caso era um táxi, ele trabalhava de taxista, meu marido. Então tinha muitos americanos que vinham para trabalhar aqui em São Paulo, o que era mesmo? Na refinaria. Na refinaria ali onde tem gás. Não sei se vocês sabem. É lá para cima de Santo André, petróleo. Então quando vinham os americanos, eles não sabiam nada de português, e meu marido falava inglês, então ele era assim, motorista das mulheres deles para levar para fazer compras em São Paulo, no __________ 1:11:49.3, porque não tinha outro lugar, ___________ 1:11:51.9 não iam lá comprar. E levavam os filhos deles nas escolas americanas, que podiam. Então ele veio lá para, sei lá, dançar um pouco. Ele chegou assim, parou na porta e eu olhei. E nós, todas as moças sentavam assim em volta do salão, com as cadeiras, e os homens todos na porta olhando assim: “Vamos ver que eu vou pegar agora”. Era muito precário. Ele chegou assim, ele ficou olhando, olhou, olhou, ________ 1:12:24.9 chegou em mim. Ele veio, me tirou para dançar, e já logo começou a perguntar: “E onde a senhorita mora” “Nunca ninguém falou assim comigo” “Por quê? Podia falar diferente?”. Eu falei: “É” “E onde a senhorita trabalha?”. Eu falei: “No Mappin”. E falou não sei o quê, tal, tal. E eu pensei: “Oh, mas que cara tão assim, então”. Dançou, dançou, dançou. Eu cheguei à casa, contei para a minha mãe. Não é que no dia seguinte eu fui trabalhar no Mappin, quem aparece na minha frente? Ele. Ele não acreditou que eu trabalhava no Mappin. Ainda falei que eu trabalhava no escritório. Eu era entrevistadora das pessoas que queriam crédito. Então eu sabia falar bem o português e sabia escrever à máquina. Que todas as polonesas que vieram nessa época que eu vim trabalhavam de operárias, porque não sabiam nem falar direito, nem nada, sabe? Então ele queria saber: “Ela está me enganando”. E foi assim. E assim foi, acho que o prazo de um ano já logo nós nos casamos.
P/1 – Mas nessa primeira vez que ele foi visitá-la no emprego, qual foi a sua reação?
R – Eu fiquei assustada: “Ah, meu Deus, o que será?”. Ele veio ver, eu estava realmente datilografando, conversando com as pessoas. E outra coisa, ele falou que ia me levar ao ponto do ônibus. Eu falei: “Ah, meu Deus, para quê?
Eu vou tomar ônibus e vou”. Onde era? Lá no Largo Paissandu. Era lá. O meu ponto de ônibus era lá. Fui lá e ele atrás de mim. O ônibus chegou, eu entrei no ônibus, ele entrou, eu falei: “Mas e agora, meu Deus, o que eu vou falar para a minha mãe?”. Minha mãe era muito assim. Chegamos lá ao ponto final, eu desci, ele também. Eu fui indo para a casa, minha mãe abriu, minha mãe olhou, eu falei para a minha mãe: “Olha, eu não tenho nada com isso, eu não o convidei para vir. Eu não o convidei”. Mas ele, sabe, logo entrando, o polonês tem mania de beijar a mão da mulher, sempre. Sempre. Pode ser solteira, casada. Ele já logo foi entrando, cumprimentou daquele jeito, minha mãe já ficou mais assim. “De onde a senhora é?” É do mesmo lugar que ele era, quase lá vizinho da Polônia. Eles também fugiram como nós. Logo conversa vai, conversa vem, e minha mãe falou assim para ele: “Olha, então...”. Não, ele falou: “A senhora precisa ir lá conhecer onde os meus pais moram”. Santo André onde ele morava. Para nós era interior. Eu morava na Freguesia do Ó, para mim, Santo André era interior. “Como nós vamos lá?” “De ônibus.” “Onde que toma?” “No Parque Dom Pedro.” “Como eles vão fazer? Vamos. Vamos ver. Vamos. Vamos.” E fui uma conhecida comigo, com o marido dela, nós éramos vizinhos. “Vamos lá” – a minha mãe falou – “Eu não vou sozinha”. E minha mãe não queria ir com esse marido atual dela, só nós. Porque era vergonha para ela. Era vergonha. Nós fomos a esse Parque Dom Pedro, tomamos o ônibus Santo André. Em vez de pegar logo o Santo André, Vila Pires, eu pensei: “Santo André”. Mas ainda bem que tomamos Vila Pires, porque era lá que eu tinha que descer mesmo, já era... Descemos no ponto final e nós falamos: “Mas como nós vamos achar seus pais lá”. Ele falou: “Olha, quando vocês descem lá no ponto do ônibus, vocês perguntam: Onde é o bar da Vanda? Era a irmã dele que se chamava Vanda. “Ah, logo nessa esquina aqui. Olha, vai lá, desce ali, pronto”. Realmente, chegamos lá, tinha um barzinho. Um barzinho com aquela porta e tudo e um senhor atrás do balcão parecido com o Paulo. Era o pai dele. Nós chegamos lá, ele já logo tocou uma companhia, já saiu a mãe dele,
e a irmã toda: “Ah, mãe.... Vamos entrar. Vamos entrar. Vamos entrar”. Entramos. Olha, isso era acho que sábado e já era quase seis horas da tarde, era bem tarde, e para voltar depois? E para voltar? Tinha que tomar dois ônibus. Então nós ficamos lá, comemos, e conversaram, minha mãe lá com as duas, e conversaram. “Não, não, então vocês ficam de noite, vocês não vão, vai dormir todo mundo aqui” “Onde? Como? Como eles vão dormir aqui todo mundo? Como?”. Então essa Vanda, essa irmã dele, falou: “Não, não, vocês vêm...”. Ela tinha uma casinha no fundo, só tinha um dormitório. “Nós vamos nos acomodar lá. Nós vamos dormir lá em qualquer lugar.” Dormimos. Dormimos lá, no dia seguinte de manhã a gente levantou, já a mãe dele já preparou o café e eu já vi que o Paulo, no caso, já tinha saído com o carro, taxista, porque tinha que levar esses americanos lá não sei para onde passear. E o irmão dele, ele tinha caminhão... Naquela época, olha, eles eram ricos. Nós não tínhamos nada, eles eram ricos, um tinha caminhão num ponto lá que fazia mudanças, e esse outro era taxista, meu Deus, era rico mesmo. E eles já tinham bar, já tinham casa, tudo. Então nós chegamos à casa, tomamos o ônibus, viemos já. E minha mãe falou: “Eles são bem...”. A mãe dele já tinha geladeira, que a gente não tinha, já tinha fogão a gás, que a gente não tinha (risos). Era um horror, viu? Um horror. E minha mãe falou assim: “Não sei, mas eles parecem ser tão caipiras, a mãe, a mãe com o pai”. E eles eram mesmo, assim, bem gente assim simples. Simples. Os meninos não. Os meninos que eram mais assim, espertos. Então foi, foi, foi, foi, ele veio de novo me ver lá em casa já de novo, minha mãe falou assim: “Olha, a minha filha vai fazer 18 anos...” – eu – “Daqui uma semana ou duas, então você vem, vem aqui para a gente comemorar junto”. Ele veio, trouxe a irmã, o cunhado, o irmão, a mãe, veio todo mundo. Ai meu Deus. E assim foi indo, foi indo, foi indo, ele já logo pediu para a minha mãe a minha mão e já foi, já trouxe a aliança, já ficou noivo, e daí para a frente foi rapidinho o casamento.
P/1 – Mas quais eram os sentimentos da senhora?
R – Olha, deixe-me lembrar direito (risos). Eram assim, tanto de alegria, como de tristeza, porque eu não sabia nada de nada. Nada de casamento, nada de nada. Então eu pensei: “Mas, meu Deus... Bom, de uma maneira ou outra, eu vou ter que me casar um dia. Então já que ele é assim...”. Minha mãe falou assim: “Olha, eles estão bem, pelo menos você vai ter tudo, tal, igual”. Eu sei que foi um casamento, mas não foi um casamento bom, não. Se isso for para o DVD, para o YouTube, Deus me livre. Mas não foi uma coisa assim, do jeito que eu imaginava não. Eu tinha muitos sonhos. Eu era uma menina muito estudiosa, eu gostava muito de ler, eu devorava livros, tanto é que hoje na minha casa, eu tenho umas paredes cheias de livro, livro, livro. E eu adoro ler, tanto em polonês, como em português, eu leio mesmo, sempre. E eles não eram de nada disso. Então eu me senti como um peixe fora d’água com eles. Porque no fim eu tinha que ir morar com eles todos juntos, ainda com o pai e a mãe dele juntos, e ela era tão diferente de mim, diferente da minha mãe, então foi difícil. Foi difícil. Mas as crianças foram nascendo, eu também tive vários problemas de saúde, que eu não podia nem cogitar nada de ficar morando sozinha em algum lugar, porque não dava. E assim foi. As meninas foram se casando, só ficou a Lúcia agora em casa. Casou-se também. Todas são casadas.
P/1 – Mas conta para gente como foi o preparativo para o casamento. Como vocês planejaram esse dia?
R – Olha, eu não planejei nada de verdade. Minha mãe foi comprando meu enxoval. Ela ia à 25 de março, que era baratinho e tudo podia comprar, então ela ia lá, ela economizava, economizava, pegava meu dinheiro que eu ganhava também, um pouco no Mappin, então ela comprava tudo para mim: “Olha isso aqui, tal. Isso aqui é de mesa, aqui é de cama e mesa, tal, tal, tal”. Tá bom. Mas o casamento em si não foi o que eu pensei. Eu não escolhi nem o vestido de noiva que eu queria, porque veio a irmã dele, essa Vanda, e falou: “Olha, eu vou levar você numa loja na Vila Mariana, que é moda, é de modas, e lá eles fazem vestido de noiva. E eu pensei: “Vou escolher o vestido do meu gosto”. Não. Tinha que ser mais ou menos do gosto dela, porque não podia gastar muito. Então eu tenho o meu vestido de casamento. Não. Não tenho mais, tenho a foto. Mas não era isso que eu queria. Não era isso que eu queria. O que mais? O casamento não tinha muitos convidados, não, porque a gente não tinha muitos conhecidos. E o casamento foi lá na Igreja de Nossa Senhora da Luz. Foi lá naquele padre polonês. Foi lá. Foi celebrado lá. E nós chegamos ao casamento, era em Santo André, numa casa onde que acabei ficando morando lá. Então eu não tinha... Quem cozinhava todas as comidas era a mãe dele. Minha mãe ajudava. E não era um casamento. Hoje quando eu vejo: “Ah, que coisa mais linda”. Todo mundo vai... Não tinha lua de mel, não tinha nada. Não tinha nada. Porque eu tinha que ficar lá na casa mesmo, ia viajar para onde, se não tinha dinheiro nenhum? Então eu ficava lá. E outra, minha mãe não quis voltar para casa, porque já era madrugada, então ela dormiu em outro quarto, ao lado do meu. Ah, sabe, não foi legal. Não foi legal. Então, na verdade, a minha vida toda foi um fiasco, para mim. Para mim. No fim aconteceram coisas horrorosas depois, e eu não vou nem comentar, sabe? Mas foi assim. A minha alegria foi: a Danuta casou, esse rapaz, mas ficou bem, foi tudo bem, nasceu a menina, depois eles viajaram bastante. Ele ficou muito bem no Brasil, ele tinha muito dinheiro. Ele trabalhava com importação e exportação, e se juntou com um judeu em São Paulo, então ele viajava muito, muito, e tinha muito dinheiro, e comprava muitas joias para a minha filha. E viajavam todos eles, foram para a Áustria, foram para a Alemanha, e foram para não sei para onde, e ficaram nos melhores hotéis, ficaram em castelos na Polônia hospedados, estavam muito bem. Depois não sei o que aconteceu. O Diabo quando entra, eu falo isso, quando o Demônio quer, ele entra mesmo, e quem não tem força... Por isso o Salmo 91, sempre, viu? Sempre. Se você pegar a Bíblia, leia, todo dia. É verdade isso.
P/1 – Dona Ricarda, eu vou perguntando, se tiver alguma coisa que a senhora não queira responder, é só falar, tá?
R – Tá.
P/1 – Mas eu vou perguntando, tá?
R – Tá.
P/1 – Ainda logo depois do casamento, eu queria que a senhora falasse como vocês se organizaram na casa do seu sogro. Como foi separado a vida de vocês, com a vida da família dele?
R – Porque assim, quando eu me casei, o meu marido já tinha comprado aquela casa que eu falei para você que eu fiquei morando lá.
P/1 – Sim.
R – A minha sogra morava na Vila Pires, lá onde nós a conhecemos, quando fomos lá. Ela tinha casinha lá. Ela morava lá, a filha dela morava no fundo, tinha uma casinha também. E eu quando me casei, fiquei morando nessa casa. Não fiquei muito tempo morando sozinha, logo ele trouxe a mãe, com o pai, para morar comigo. E é onde...
P/1 – Por quê?
R – Por quê? Porque a mãe disse que não aguentava ficar sem esse filhinho. Ah, umas coisas bobas. E, no caso, nesse meio tempo, o irmão dele mais velho se casou de inveja, porque o outro tinha casado. Tem essas coisas na família. Então a minha sogra tinha que sair da casinha dela, e quem morou lá foi o meu cunhado com a minha cunhada, no caso. Eles moraram só eles dois. E esses dois velhos tinham que vir, e a minha vida foi um inferno. Nunca queira morar com ninguém. Com ninguém. É muito ruim, tira toda a liberdade. E ela era completamente diferente, tudo, a postura, tudo diferente. Tudo diferente. Então eu não fui feliz, não.
P/2 – Vocês moraram...
R – E olha que vivi com ela 30 anos. Trinta anos. É muito tempo. É muito tempo. É ruim. É ruim.
P/1 – E como a senhora... Mantinha contato ainda com os seus pais?
R – Claro. Claro.
P/1 – Como ficou esse relacionamento? Em que momento a senhora voltava para casa?
R – A minha mãe vinha, vinha me visitar sim, mas a minha sogra sempre botava alguma coisa que era para a minha mãe ir logo embora, ou então ela provocava uma briga para não ter... Sabe? E a minha família mesmo não era bem quista por eles, não. Nem a minha irmã. Minha irmã também se casou depois de mim. E ela, por exemplo, se ela viesse com o marido na minha casa me visitar, então qualquer coisa a minha sogra já inventava que sumiu alguma coisa da casa dela e quem levou foi a minha irmã. Sabe essas coisas assim de baixaria? Meu pai raramente vinha em casa, porque ele já morava com outra senhora. E às vezes ela vinha também com ele, mas não era, assim, uma harmonia. Não era.
P/1 – E a senhora conversava com o seu esposo sobre isso?
R – Mas ele estava sempre a favor da mãe. Sempre. Sempre. Não adiantava falar nada. Não adiantava. Hoje, eu falo, acho que ele foi macumbado, viu? Não, de verdade. Tudo que ela mandava, ele fazia. Tudo. Tudo. Como pode?
P/1 – E a senhora buscava refúgio de alguma forma? Como a senhora tentava fugir um pouco daquele ambiente, daquele contexto da sua casa?
R – Bom, depois que as crianças começaram a nascer, então eu me ocupava com elas, lógico. E com criança pequena, assim, uma hora está doente, outra hora não sei o quê, tal, sempre tinha alguma coisa. Então vinha a Páscoa, vinha Natal, e eu queria muito ir a minha mãe sempre. Então pelo menos isso eu ia. Quando era Páscoa, Natal, eu ia à casa da minha mãe com as crianças e tudo. Mas mesmo assim, eu com... Quer ver que idade eu tinha? Acho que não tinha nem 30 anos quando eu fiquei com derrame. E fiquei sem andar, sem falar, e depois devagar foi, foi, foi, e virei normal. Mas era um terror. Um terror.
P/1 – Se a senhora puder contar como tudo isso aconteceu.
R – Eu acho que foi tudo de tanto sofrimento, de tanta coisa que eu passei na minha cabeça sempre, sempre, sempre. E eu tinha a Lúcia, a minha filha mais nova, pequenininha. E eu tinha que ficar no hospital, porque eu estava doente, e a Lúcia ficou assim, jogada lá. A minha sogra era uma caipira. Vinha aquela Vanda lá, só ficava comendo, bebendo. Minha mãe vinha de vez em quando. Minha mãe ficava comigo no hospital, mas de vez em quando eu falava: “Vá lá ver como está”. Porque as outras duas já eram maiorzinhas, a Danuta já tinha 12 anos, a outra tinha nove, e a Lúcia era pequenininha, não tinha nem dois anos ainda, um ano e meio. Então minha mãe chegava, ela falava: “Ai, meu Deus, essa Lúcia está toda andando assim com aquela sujeira pendurada nela”. Não a trocavam muito, ficava assim. E quando eu voltei do hospital, a Lúcia não me reconheceu. Eu fiquei tão triste. Porque eu falava, mas a minha língua dobrava diferente, eu já não era... Sabe? Foi horrível. Foi horrível. Foi por Deus, por isso Salmo 91, viu? De verdade. É o único que salva. O único que salva, não tem outro, porque é Deus. E eu passei por várias coisas assim ruins na minha vida. Várias. Não sei por que era. Eu sempre... Ou eu caía e quebrava o braço, ou eu caía e quebrava a perna, e eu sempre tinha alguma coisa, que eu não podia me entregar totalmente, eu com a minha família, eu. Sempre dependendo, dependendo, ah, não. Até pouco tempo, o quê? Faz uns três anos, acho, eu caí na minha cozinha e quebrei a minha cabeça. Quebrei. Quebrou o casco da cabeça. Ficou uma poça de sangue. Quando eu levantei, eu falei: “Ué, de onde é esse sangue?”. E era o meu. E eu pagava um hospital em Santo André, e lá os médicos falaram que eles queriam me operar, abrir a minha cabeça. Minha filha falou: “Não” “Ah, porque tem um coágulo, ela vai ficar assim sem nada, vai ficar inerte”. E a minha filha trabalhava já na Prevent, essa, e ela foi, conversou lá com os médicos e eles pegaram: “Não, não. Sua mãe vai pagar e ficar na Prevent”. E lá eles não me operaram. Eles simplesmente me davam bastante remédio, bastante coisa. Acho que davam tanto remédio, que eu ficava sempre dormindo só. Só dormindo. Só dormindo. A minha filha Lúcia às vezes chegava lá e falava: “Mama. Mama”. E eu nada. E eu nada. Uma vez chegaram os médicos lá perto de mim e todas elas lá junto, as minhas filhas, o médico falou: “Olha, eu vou falar uma coisa, a sua mãe, ela vai sair do hospital, mas ela não vai falar, não vai ouvir e não vai andar. E eu ouvindo tudo, falei: “Não pode ser. Eu vou ficar tudo sem nada disso? É mentira. Não pode ser” – eu comigo no meu íntimo. Bom, depois eles me deram alta. E eu não andava mesmo. Eu andava com aquele andador, sabe, assim. E, sei lá. Falava, porque a minha cabeça ficou assim, normal. Eu cheguei em casa, tinha empregada, essas coisas, uff, foi horrível. Não gosto da minha vida de verdade. Não gosto da minha vida. Então foi assim, tudo... Hoje eu me sinto bem. Eu ando assim de bengala porque eu não tenho muito equilíbrio agora, depois desse tombo. Mas assim em casa, eu faço tudo, eu ando bem na minha casa, eu conheço a minha casa, tudo. Mas na rua, eu não saio mais na rua para nada, para andar sozinha. Minhas compras, sempre a Lúcia que faz, a que fica mais comigo, mora na outra rua. Então quando a gente sai a algum lugar, eu vou com elas, mas eu vou de bengala. Então é assim, desse jeito. Então eu odeio a minha vida, te dizer a verdade. Porque eu imaginava a minha vida tão diferente. Tão diferente, sabe?
P/1 – Quais eram os planos?
R – Eram planos de ser sempre normal, feliz com a família. Doença sim aparece, acontece, mas ficar sempre, sempre, sempre com alguma coisa, não. Eu não aceito isso. Não aceito mesmo. Tanto é que eu fiquei revoltada até lendo a Bíblia, sabe por quê? Porque tem um Salmo, não lembro qual é, 34, acho, que diz assim: “Senhor, cuida de mim, porque você cuida de mim desde que eu estava no ventre da minha mãe. E eles já fez os planos para a sua vida, tudo que você ia passar”. Eu falei: “Então por que me fez nascer?”. Se ele já fez o plano todinho para mim, então eu tive que passar por tudo isso, então por que ele me fez nascer? Deixasse-me morrer. Então às vezes eu fico revoltada mesmo, de verdade. Não sei se isso vai para o YouTube, mas que vá (risos). São coisas que acontecem na vida da gente que a gente não espera. Não, esperar, espera, que nem a minha irmã, a minha irmã tem a vida totalmente tranquila, sempre boa. Nunca teve nada de doença grave, o marido bom, sempre, sempre, amigo dela, sempre a favor dela, faz tudo que ela quer, sabe, tudo, A única coisa ruim que aconteceu com ela, que ela perdeu um filho já com 30 e poucos anos, Ele bebia. Era alcoólatra mesmo, ele bebia, no fim ele quase se separou da esposa ele. E ele então chegou em casa já acho que até bêbado, caiu lá no quintal dele e morreu lá. Foi coisa triste, sabe? Um rapaz tão bom. Ele era bonito, inteligente. Então a única coisa de ruim que aconteceu para a minha irmã foi isso, que ela perdeu esse filho.
P/1 – Eu posso voltar um pouquinho no tempo?
R – Sim.
P/1 – E queria que a senhora contasse como foi a primeira experiência da gestação. Como foi descobrir que a senhora ia ser mãe?
R – Ah, como eu descobri. Então, claro que as regras pararam, então eu fui ao médico, aí ele me fez uns exames, tal, e falou: “Olha, você está grávida, tal”. Eu fiquei toda feliz, nossa. Dois anos ficou sem eu ter filho nenhum. “Ah, poxa vida, que bom.” Mas a minha gestação não foi muito boa, porque a minha sogra era muito ignorante, então ela não me preservava de algumas coisas, por exemplo, pegar um peso, fazer alguma coisa assim mais assim, sabe? Ela não me preservava. Então quando a Danuta ia nascer, eu já sentia as dores do parto uns dias antes. Já sentia, achava que já logo ia nascer. E quando eu cheguei ao hospital, era tudo lá em Santo André, a Danuta não queria nascer. Eu fazia tudo que o médico mandava e nada, e nada, e nada. Chegou outro lá e falou assim: “Nós vamos ter que abrir, fazer cesárea”. Mas depois, na última vez que fiz uma força, força, a Danuta nasceu. Nasceu, mas eu fiquei muito mal, porque eu passei muita dor, muita dor. Por baixo me arrancavam tudo assim para abrir, um horror, um horror. E eu tinha que ter uma dieta tranquila, mais deitada, mais repousando, tudo. Não, eu cheguei à casa, do hospital, a minha sogra me mandou tirar água do poço. Ignorante. E eu não sabia, que se estivesse com a minha mãe perto, minha mãe pelo menos... Minha mãe estava longe, minha mãe estava na Freguesia do Ó, e eu em Santo André, é longe. Então eu fui tirar aquela água do poço assim, lavando as fraldas. “Imagina. Na Polônia...” – ela falou – “A mulher quando dá a luz, ela vai trabalhar no campo. Imagina. Não tem nada de dieta. Nada.” Sabe o que aconteceu? Eu peguei uma hemorragia quando eu cheguei ao hospital, porque no fim, não é que eu tive logo em seguida, os meus seios ficaram tão cheios de leite que eu fiquei com mastite. Os dois. Tinha que macetar. Macetar tudo. Os dois. Saiu tanto pus, tanto pus. E tinha que dar de mamar para essa menina, um horror. E quando eu fui à farmácia para tomar uma injeção, que acharam que eu tinha que tomar bastante antibiótico, no que eu tomei a última injeção, pronto, o meu sangue jorrou. Aí eu fiquei de novo no hospital, tive que tomar sangue, teve que fazer curetagem. Olha, a minha vida foi um fiasco, e por causa dessa sogra. Porque se eu estivesse pelo menos sozinha, assim, eu já ia me preservar mais. Mas ela mandava isso, isso. Depois, de tanto lavar roupa para toda família, para toda família, e levar água, tirar água do poço, e esfregar, e tinha um sabão em pó que chamava Pox, era soda pura aquele Pox, e eu lavava, lavava. Sabe o que eu fiquei? Com uma alergia nas mãos, todas, fiquei sabe quantos anos? Dez anos com alergia nas mãos. Dez anos. Tudo parecia casca de peixe. Era cascão. Eu tinha vergonha de dar a minha mão para alguém, porque não passava com nada. E eu ia ao médico, o médico falava assim: “Fica de longe”. Pensou que era lepra, sabe? Pensou que era lepra. Ele sentava lá e eu assim com as mãos para ele. Nada. Sabe como eu me curei? Uma benzedeira. Ela falou: “Olha, você vai aos campos assim e você apanha uma planta que chama cravo de defunto. É uma planta boba lá. Você a ferve bastante, põe numa bacia, e que toda vez que você passar por ela, você põe a mão e deixa secar”. Foi assim que eu sarei.
P/1 – E como a senhora conheceu essa benzedeira?
R – Porque o meu marido levava uns homens para trabalhar na Ford, de caminhão, na Ford, ele dava carona para eles. E ele comentou isso e um deles falou: “Olha, a minha esposa conhece uma senhora que é benzedeira, quem sabe melhora?”. Foi assim. E eu fui nessa senhora e ela fez isso. Que horas são, hein, gente?
P/1 – Agora são dez para as quatro. A senhora está bem?
R – Não, eu estou bem. A minha filha que vai atender alguém não sei que hora.
P/1 – Posso continuar?
R – Pode.
P/1 – Qualquer coisa a gente para daqui a pouco para perguntar para ela se tudo bem o horário. Pode ser?
R – Tá. Pode. Pode.
P/1 – Falando nela, eu queria saber ainda sobre o nascimento dela. A senhora sabia que ia ser uma menina? Como que...
R – Não sabia nada. Não sabia nada. Nada. Naquele tempo, ninguém falava nada, se era isso, era aquilo, nada. Imagina. Então ela nasceu. Ela nasceu saudável. Bem saudável. Bom, o que mais?
P/1 – E por que o nome dela? Eu queria que a senhora falasse um pouco da escolha do nome dela.
R – Da Danuta? Então, porque Danuta é um nome genuinamente polonês. Era uma princesa, épocas atrás, chamava Danuta. A minha sogra queria: “Ah, põe o nome dela de Francisca”. Eu falei: “Francisca?” “Não, então põe o nome de Benedita” “Ah, pelo amor de Deus” “Antônia” “Não. Nada disso. Eu vou por Danuta e fim de papo”. E foi assim. E ficou Danuta. Porque a minha sogra era muito atrasada, sabe? As irmãs dela, uma se chamava Estanislava, a outra se chamava... Como chamava lá mesmo? Ah, Benedita... Ah, uns nomes estrambólicos, sabe? Então ela queria que fosse assim.
P/1 – E a senhora já contou um pouquinho, mas que queria saber como foi o começo da segunda gravidez. Porque teve um tempo, né, entre uma e outra.
R – Ah, teve. Teve,
P/1 – Como aconteceu?
R – A segunda gravidez foi tudo de repente assim também. Não era nada planejado, como hoje eles planejam. Nada planejado. Então eu já tinha... A Danuta tinha quase três anos já, e aí eu percebi alguma coisa, que acho que eu estou grávida de novo. Mas aí a gravidez já foi bem mais tranquila, o parto também foi excelente, porque eu já sabia mais ou menos como era. E eu fui a um hospital diferente já, e tal, tinha enfermeiras boas e tudo, parteira. Eu sei que depois, quando nasceu a Irena, ela chamava Irena, chama Irena... Foi bom. Foi bom. Foi bom.
P/1 – E por que Irena?
R – Porque o meu marido tinha uma namorada que chamava Irena (risos).
P/1 – (risos).
R – Ele tinha o nome de todas... São tudo namorada dele, eram também: Danuta, Irena, Lúcia, tudo. Era tudo nome de namoradas dele. Eu falei: “Ah, que seja”. Falei: “Deixe você se lembrar delas”.
P/1 – E, dona Ricarda, tirando essa parte dos seus sogros que moravam, que estavam no dia a dia, como era o seu relacionamento com o seu esposo?
R – Ah, era muito, assim, conturbado mesmo. Porque, por exemplo, ele quando chegava do serviço, ele me cumprimentava, tal, e a velha já olhava meio assim: “E para que? Para que você está indo beijá-la? Para que?”. Assim desse jeito, sabe? Não tinha liberdade. Não tinha liberdade. Então mesmo assim, para fazer alguma coisa, então eu... É costume sentar no colo do marido. Então eu fazia assim, ela: “Não faça isso, você vai tirar a pele... Você vai puxar a pele dele lá”. Olha, era uma ignorância total. Então eu não tinha liberdade nenhuma. Nenhuma com ela morando lá. E ela sempre morou. Sempre. Trinta anos, imagina.
P/1 – E quando acabou isso?
R – Quando ela morreu.
P/1 – E como foi?
R – Como foi? Porque ela de repente deixou de andar. De repente. Não se sabe por quê. Ela deixou de andar, então ela ficou de cadeira de rodas dentro de casa, eu a levava para cá, para lá. Uma hora, ela era tão má, tão má, que uma hora eu estava na cozinha lavando a louça, ela no corredor, ela parou assim e falou para mim: “Sua vaca, eu já estou esperando há 12 anos que você morra e você está viva”. Doze anos, porque eu tive esse derrame, eles pensaram que eu ia morrer logo. E eu não, eu me reabilitei e fiquei. Então ela esperou 12 anos e eu não morria. E ela falou isso na minha cara. Aquela vez, acho que uns três dias eu não comi nada. E eu falei isso para o meu marido, ele: “Ah, ela não sabe o que fala” “Ah, é? Não sabe o que fala, é?”. Ela era muito má. Muito má. E depois ficou insuportável ela ficar junto comigo na mesma casa. Ficou insuportável. Então o meu marido procurou uma dama de companhia. Faz de conta, que uma dona de companhia para ela, no caso, que tinha que levá-la para dar banho, para tudo, sabe? Só que a mulher não aguentou. Ela não aguentou. Porque ela era tão má, essa minha sogra, que a Eni, ela chamava Eni, ela era bem morena, a levava na cadeira de rodas no banheiro, a tirava da cadeira, botava no vaso, e ela ficava lá. Em vez de ela esperar que a Eni fosse lá puxar a descarga, alguma coisa, ela pegava o dedo dela e sujava a parede. A Eni me chamava: “Dona Ricarda, olha, vem ver o que essa velha lazarenta...”. Eu cheguei, ela falou assim: “Foi ela. Foi ela” (risos). Viu que safada? Isso vai no YouTube? Porque se vai, todo mundo vai... Deus me livre (risos).
P/1 – (risos).
R – Ela era muito má. Muito má. Tanto é que ficou tão ruim a convivência dela em casa mesmo com a gente, que meu marido não aguentou. Porque quando ele voltava, era só em cima dele assim: “Porque ela, porque ela...”. Eu, eu, sempre eu, eu, eu, a ruim, eu tudo, tal. Então o que ele fez? Pôs ela uma noite na casa da filha, a filha não aguentou. A filha não aguentou: “Pode vir buscar. Eu não a quero mais aqui”. O outro filho não quis saber de nada. De nada. “Comigo junto? Não. Jamais.” Então o que ele fez? Ele tinha um apartamento na Praia Grande, esse meu cunhado, que o meu marido que deu de presente para ele. Ele falou: “Olha, então eu vou por a mãe lá e vou por duas mulheres lá para tomar conta dela” – dessa mãe. Tá bom. Então ele levou e ela ficou lá. Tinha duas mulheres realmente, uma que dava de comer, dava banho, tudo, companhia para a dona Emília, tal, tudo. E um dia o Paulo falou assim para mim: “Vamos dar um passeio lá na Praia, vamos visitar a minha mãe”. Quando eu cheguei, ela estava toda risonha quando viu que ele entrou assim, quando ela me viu, ela ficou daquele jeito. E as moças falavam para mim: “Olha, dona Ricarda, ela odeia a senhora de uma maneira, que ela vira, ela fica sentada na cadeira, olhando para o lado onde é Santo André, e fala: ‘Morra, vagabunda’”. Para mim. É. Coisa que nem parece que é verdade, não é mesmo? Não parece verdade. Mas existe gente assim, ruim. Existe. E eu na época ainda não sabia que tinha que recitar sempre o Salmo 91. Não sabia. Eu não sabia. Eu orava lá do meu jeito, mas desse jeito, eu não sabia. Hoje, eu levanto de manhã, a primeira coisa, Salmo 91. E depois, quando eu vou dormir, antes de dormir, eu janto, tomo banho, ponho minha camisola, assisto um pouco de TV, Salmo 91 e vou dormir. Sabe? É assim que tem que ser agora. Porque agora eu sei o que é bom. Então foi assim. A minha vida foi muito difícil.
P/1 – E como a sua sogra faleceu?
R – Ela faleceu sentada na cadeira de rodas. Porque depois nem o meu cunhado queria mais ela no apartamento lá: “Ah, ela me sujou tudo, ela fica urinando na cadeira, ela fica urinando aqui, está tudo fedido, tudo manchado, eu não a quero mais”. Então meu marido pegou, a levou para... Não para Santo André, depois de Ribeirão Pires. Ele tinha construído lá uma casinha, uma casinha para a amante dele, ele tinha amante, isso é outra história, então ele pegou e a levou lá, com quatro mulheres cuidando da dona Emília. Tinha jardinzinho na frente e elas cuidava na cadeira de rodas. Então elas cozinhavam, davam banho nela, tudo. E o meu marido ia lá quase todo dia ver como a mamãe estava. Era uma coisa assim, sabe, horrível. Horrível. Eu sei que depois uma hora ele ligou para mim, falou assim: “Eu vou lá, porque parece que a mãe morreu”. Eu falei: “Como? Como morreu?”. Ela morreu na cadeira de rodas. Elas que avisaram, as empregadas, lá para ele. Ela se sentiu mal, alguma coisa assim e ficou. Ficou e morreu. E para transportar o corpo dela de lá até Santo André no cemitério de Vila Pires, é longe, tinha que ter comunicado polícia, não sei, e
por cada cidade que você passa, tem que pagar uma taxa. Para não fazer isso, as duas empregadas sentaram atrás, a velha no meio, uma segurava de um lado, ela foi sentada, morta (risos).
P/1 – (risos).
R – Até São Caetano. Meu marido a levou até São Caetano no hospital, para fazer... para dar...
P/1 – O óbito.
R – O óbito. E não quiseram dar: “Mas como ela morreu? Nós não cuidamos...”. Mas ele escorregou lá um negócio, eu vou te falar, é uma história... (risos).
P/1 – (risos) Dona Ricarda (risos).
R – Sim. Foi assim. Foi assim. Depois tinha o tal do velório, lá na Vila Pires já. Então veio todo mundo lá. O meu cunhado contava piadas com o amigo dele e ela lá no caixão. E eles: [som de risadas]. E meu marido lá do outro lado, sentado, o tempo todo: “Pronto, morreu a mamãe”. Ai. Sabe, eu não tenho pena de quem morre assim, ruim. Porque todo mundo tem que morrer, meu Deus do céu. Eu falei para Deus: “Leve-me, Deus, já desse mundo, porque eu já estou cheia daqui, sabe? Eu acho que quero ficar lá, me dá lá um jardim para eu cuidar e tudo bem”. É verdade. Eu já estava tão cansada da minha vida. Tão cansada.
P/1 – Mas, dona Ricarda, com a saída da sua sogra de casa, ou até com o falecimento dela, não mudou alguma coisa entre...
R – Mudou. Mudou. Mudou. Porque depois essa amante dele parece foi o traindo, alguma coisa, não quero entrar muito em detalhe, sabe, mas aí ele começou a ficar mais em casa, e a gente até viajou para a Polônia. Porque ela já não existia mais, a mamãe, que não ia... Ela não ia deixá-lo sair comigo, imagina. Então foi melhorando. Mas logo depois ele morreu, ele era diabético. Ele era diabético e cada pouco ele tinha má circulação nos pés. Começou a cortar um dedo, outro dedo, outro dedo, cortou outro dedo, ficou só assim. Mas ele vivia ainda, ficava em casa. Eu que cuidava dele de tudo, de tudo. Mesmo com tudo aquilo que a mãe dele fez e o que ele fez para mim. Então eu cuidava. Uma vez eu o encontrei morto no quarto. A gente ia dormir e ele falou: “Tá, então eu vou dormir lá e você fica aqui”. Eu ia dormir no quarto lá da Lúcia mesmo. E eu fiz isso. Ele ainda foi ao banheiro, tal, foi lá ao quarto, fechou a porta, e no dia seguinte a Lúcia veio, que ela sempre vinha cedo me ver, ela chegou, eu falei: “Lúcia, sabe, eu preciso comprar algumas coisas, mas eu vou pegar o carro do seu pai, que tá logo aí, só que eu vou pegar a chave”. A chave ficou sempre no paletó dele, mas o paletó não estava lá, eu falei: “Deve estar no quarto”. E eu não conseguia abrir a porta, ele já estava deitado na porta por dentro do quarto. Deu infarto, assim, violento. É. Morreu ali.
P/1 – E como foi depois disso?
R – Ah, depois disso, bom, eu não consegui ficar naquela casa. Não consegui. Não consegui. Toda noite ou eu dormia na casa da Danuta, que era numa outra casa, ou eu dormia na casa da vizinha, ou na casa da Lúcia. Não quis ficar na casa. Para mim, parecia que estava todo mundo andando lá no... Depois melhorou. Melhorou sim. Mas aí tinha que fazer inventário das coisas que sobraram, e meu marido era um... Ele não era normal, porque tudo que ele comprava de terra, de casa, de qualquer coisa, ele comprava no meio, junto com o irmão, era meio a meio. O irmão morreu, a cunhada morreu, ficaram as sobrinhas. Até hoje tem uma terra, faz 30 anos, em Ribeirão Pires, lá em Suzano, que está lá no “ata, não desata”, porque elas nunca ficam de acordo para vender. E está lá. Foi um horror. Tudo foi um horror.
P/1 – E como foi se redescobrir, a Ricarda sem ninguém, sem o marido, sem a sogra? O que a senhora fez no seu dia a dia, depois...
R – Eu saí daquela casa. Tinha um terreno que ele passou para o meu nome em vida, porque antes de ele morrer, nós fizemos a separação nossa. Eu separei com ele. Eu me separei dele, porque a advogada falou: “Olha, é melhor você se separar, porque a outra vai começar a entrar, viu?”. Então nós fomos ao cartório, fizemos a separação, ele dividiu os bens: “Isso fica para você, isso fica para as filhas”. Assim, sabe? Então tinha um terreno, eu vendi esse terreno e comprei para mim um apartamento lá em Santo André, no centro. Aí eu falei: “Quer saber? Agora eu vou fazer tudo aquilo que eu não pude fazer”. Então fui fazer ginástica (risos), eu fui fazer trabalho manual, que eu gostava de fazer, de aprender, eu fiz curso de bordado, de bijuteria, fiz curso de porcelana, fiz curso de raiolo, que até hoje eu bordo tudo, faço a raiolo. Fiz tudo aquilo que eu não pude fazer. Tudo aquilo que eu fiz. Só não viajei sozinha. Viajei sim, minto. Viajei. Peguei a sogra da minha filha, da Irena, peguei-a e mais uma vizinha que queria conhecer a Polônia, e nós em três fomos para a Polônia. Fomos para a Polônia. Aí eu fui livre para ver, para conversar com as pessoas, para comer aquilo que eu quisesse, comprar aquilo que eu quisesse, sabe? Aí foi bom.
P/1 – Ah, conta um pouco mais dessa viagem.
R – Da Polônia?
R – Sim. Então eu esperei vir para a minha prima que mora em Varsóvia. E ela está bem assim, ela se casou com um militar, coronel reformado, esse meu primo. Então eu escrevi para ela, falei: “Olha, eu venho para Polônia sim, mas vem duas mulheres comigo” “Não tem problema, a gente se acomoda”. Tá bom. Então nós chegamos lá ao aeroporto e ela já estava me esperando com flores. E ficamos na casa dela. Ficamos na casa dela, ela acomodou de um jeito, ela tinha três quartos só e uma cozinha pequena, mas todo mundo se acomodou e ficamos lá. Então eu passeei bastante por lá e fui ver os outros meus primos, eles têm carro, a gente ia de carro, eu pagava a gasolina para eles, a gente almoçava em restaurantes diferentes, era tudo gostoso. Tão gostoso era. Muito bom. Eu voltei para casa, e o que depois? Vida normal. Começou a vida normal.
P/1 – Dona Ricarda, eu perguntei para a senhora qual a sensação de voltar para o seu país.
R – Olha, quando eu estava chegando com o avião, eu olhava aquilo, falei: “Oh, é a minha terra isso aqui”. Porque fica, sabe, aquela coisa. Não adianta falar que não, porque fica. Se vocês saírem, de repente dá saudade do Brasil, sabe? Então eu falei: “Meu Deus do céu, é Polônia. Isso aqui é Polônia”. Então eu chorava de emoção. Chorava mesmo. Depois lá, quando eu fui ver tudo aquilo, meu Deus, tudo aquilo para mim era tão maravilhoso. Eu fui ver os museus de lá, fui ver Auschwitz, fui visitar Auschwitz também. Pensei: “Agora eu vou ver tudo aquilo que eu não pude nunca ver”. E fui ao teatro, naquele teatro mais famoso lá de Varsóvia. Ah, foi muito gostoso. E quando eu fui embora também eu chorei muito. Mas não voltei mais. Não deu para voltar mais. Tem coisas que acontece na família, não é sempre que a gente pode, né? Hoje já eu, se tivesse 20 anos a menos, eu iria, mas agora, agora eu não vou, não. Não vou.
P/1 – Alguém quer fazer alguma pergunta antes de eu continuar?
P/2 – Eu queria perguntar, que você falou que você gostava muito de ler, e gosta ainda. E eu queria entender melhor como é a sua relação da leitura e se isso era parte…
R – Eu li a história da Polônia de cabo a rabo. Inteirinha. Que são muitos volumes. Muitos. E eu gostava muito de me interessar por isso. E muitos romances também, eu li muitos. Que a Polônia tem muitos autores que foram até traduzidos para o português. Tem, sabe? Então eu li todos eles. Quase todos eu li. Eu tenho coleções e coleções na minha casa. Então eu ocupo meu tempo assim, eu faço almoço todos os dias, não para mim, a minha filha vem com o meu genro, a Lúcia... Ela odeia cozinhar. E essa Lúcia, ela é uma cuidadora de animais. Então quando alguém vai viajar, então: “Lúcia, você pode vir tal dia? A chave está lá na caixinha, tal, tal”. A Lúcia chega, é gato, é cachorro, é papagaio, é peixe, qualquer coisa, ela vai e cuida. Ela dá de comer, e tudo, ela passeia com o cachorro. Com gato não, mas com cachorro. Então é assim, ela cuida disso, não tem tempo de cozinhar mesmo. Então eu cozinho, faço almoço, eles vêm almoçar comigo, então eu sempre tenho companhia. Depois o quê? Depois eu faço alguma coisa em casa, eu sento, eu leio, eu vejo YouTube, eu vejo notícia, eu leio bastante também. E eu telefone bastante para todo mundo. Eu tenho na Polônia, tenho um primo nos Estados Unidos, eu tenho também... Então para que dinheiro? Eu vou guardar para que? A gente morre, deixa tudo aí. Então é isso.
P/1 – Dona Ricarda, a senhora conta com muita propriedade dos fatos, da infância, a senhora era muito criança quando tudo aconteceu. Como a senhora...
R – Mas eu tenho boa memória. E eu me interessava sempre por tudo. Sempre me interessei muito. Acho que é por isso, viu? Sempre. São coisas assim que às vezes passam na minha cabeça assim despercebido. Por exemplo, a gente estava na Alemanha, então eu pequena, seis anos mais ou menos eu tinha, e esse alemão, ele era bom para a gente, falei já, então ele tinha uns óculos, vater, né, ele falava, e ele pôs esses óculos no peitoral da janela, lá são peitorais para dentro, bem largo assim, onde eles põem vaso de flor. Ele deixou esses óculos lá. E eu com a minha irmã, nós pegamos esses óculos, nós começamos a brincar. Não é que quebrou. Quebrou os óculos. E eu o coloquei lá mesmo. É claro que ele chegou, quando ele viu, ele já brigou com a Ana, com a filha dele: “Ana, Ana” “Ah, isso aqui foi a...” – ela falava para mim ________ 2:04:31.2 – “Foi a _______ 2:04:33.1 que fez isso”. E contou para a minha mãe. A minha mãe deu uma surra em mim, mas uma surra, que essa Ana, ela mesmo pedia: “Não bata mais. Não bata mais”. Porque a minha mãe era muito assim, sabe? Então foi uma das coisas que eu fiz que foi errado. E outra coisa, eles eram católicos, então ela me levava aos domingos na missa com ela. Ela me pegava pela mão e ia com ela, a pé mesmo, numa igrejinha lá perto. E ela conhecia muito esse padre. E ela queria agradar o padre, e eles tinham um pomar e ela tinha muitas pereiras, aquelas peras assim para exportação, grandes. Então ela arrumou um cesto assim com aquelas peras, deixou-as todas brilhando bonitinhas assim num quarto lá, para o padre. Eu descobri esse quarto e as peras (risos).
P/1 – (risos).
R – Eu com a minha irmã comemos todas. Todo dia a gente ia lá, comia, comia, comia, e não falava nada. E ela também não ia lá para ver. Quando o padre chegou: “Ah, tal, tal, tal, tudo bem”. Mandou o padre sentar, fez para ele um café, tal, e foi buscar o cesto. Cadê? Não tinha nada. Não tinha nada. Ela sabia que fomos nós. Ela falou para o pai, para o pai dela, falou: “Não fala para a Helena, não” – minha mãe chamava Helena – “Não fala, porque ela vai matar essas crianças. Não fala”. Foram coisas bobas de crianças, mas era porque a gente tinha fome, eu acho também, então a gente comia, estava tão bom.
P/1 – Dona Ricarda, a gente tá chegando no fim já da nossa conversa. Mas antes, Carlota, tem mais alguma pergunta?
P/2 – Não.
P/1 – Paulo? A senhora tem mais alguma história para contar, que a gente não incentivou?
R – Então, lá tinha muitos trabalhadores, falei, no campo, e sempre à tarde ela chamava... Não, não chamava, porque era longe, ela mandava para eles lanche, um lanche, um jarro desse tamanho de ________ 2:06:47.2. _______ 2:06:47.9 é um suco de maças destilado meio, e um cesto grande assim, e lá ela colocava pão e uns copos assim, para levar lá para os trabalhadores. E, olha, mas ela foi muito boba também, eu era pequena, tinha sete anos, mais ou menos, e eu tinha visto numa revista que tinha umas mulheres lá na África que levavam tudo na cabeça (risos). Já deu para imaginar, né? E ela falou para mim: “Olha, você vai lá e leva isso lá para eles, porque eles estão esperando” “Tá bom” (risos).
P/1 – (risos).
R – Eu passei um pouquinho, coloquei o cesto em cima da cabeça, e o jarro, e o negócio na mão, e fui andando. Dei dez passos, aquilo caiu, quebraram todos os copos, quebrou tudo. O jarro eu segurei. E eu cheguei lá e levei aquilo que sobrou. Ele xingou tanto essa filha: “Como ela pôde, para tantos trabalhadores, ter um copo?”. Não contaram para a minha mãe também. Minha mãe batia muito. Ela batia sem dó. São coisas. Deixe-me ver o que mais. Ah, mais nada assim que eu me lembre. Às vezes eu me lembro de coisas, falo para a minha irmã: “Você lembra?” “Eu não. Não me lembro de nada, eu tinha só um ano”. Mentirosa. Ela tinha três, quatro anos.
P/1 – Como é a sua relação hoje com ela?
R – Ah, distante. Porque ela mora agora na Praia Grande, e eu moro em Santo André. E ela quando vem visitar a filha, que mora em Santo André, que é quase o mesmo bairro, ela não vem a minha casa. “Não, eu não venho porque o Eurico” – o marido dela – “Ele não gosta de ir à casa de ninguém. Ele quer vir à filha, vai comer alguma coisa e quer ir embora para a casa.” Tá bom. Então quando eu vou para a Praia Grande, que eu tenho uma casa lá na praia, quando eu vou para lá, eu também não vou para a casa dela. Não vou. Não vou. Eu telefono para ela: “Ah, mas você está aí?”. Falei: “Sim, mas o...” – eu jogo a culpa no meu genro – “Não, porque o Roberto precisa voltar logo para a casa”. Ah, então tenha dó. É bem assim. Quando é aniversário, eu mando presente para ela, a minha filha leva para a filha dela que mora perto, e ela: “Ah, que lindo”. Tá. Tá lindo. “E por que você comprou?” Eu falei: “Porque, (Halina? 2:09:36.4), logo, logo, nós não vamos mais fazer aniversário. Você já percebeu a idade que a gente tem? Logo, logo, não tem mais aniversário de vida”. É assim, desse jeito.
P/1 – Eu tenho mais duas perguntas para fazer para a senhora.
R – Pode ser. Pode falar.
P/1 – A primeira é: como a senhora se sentiu hoje contando a sua história para a gente?
R – Eu gostei. E gosto de contar. A Danuta sempre fala: “Mama...”. Que eu falei para ela: “Danuta, acho que um dia eu vou com você nesse São Bento, naquele mosteiro”. Ela: “Mama, você não pode, porque você fala muito. Lá não pode falar nada”. Eu falei: “Nada?” “Não, você não pode ir”. Porque eu gosto de falar. Eu gosto. Eu gosto de contar as coisas. É que eu não tenho para quem contar de verdade. A minha filha Lúcia é sempre muita ocupada com essas coisas que ela tem para tomar conta dos gatos e cachorros, marido. Então é assim, ela: “Ah, não, mas de novo essa história?”. Então eu paro por aí. A Danuta não tem tempo. E ela também não se interessa muito, não. A única que se interessa de verdade é aquela que mora em Curitiba, a Irena. Ela se interessa bastante, tudo que eu contava... A minha mãe também gostava muito de contar as coisas, então ela também se lembra de muita coisa do que minha mãe contava, e ela gostava muito de conversar com a minha mãe. É assim. Tem várias histórias, mas assim no momento, tem que se lembrar.
P/1 – Posso ir para a última pergunta então?
R – Pode.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse para a gente quais são seus sonhos hoje?
R – Meus sonhos hoje? Hoje eu quero ver minha família em paz, todo mundo junto, não se separando, não brigando. Porque essa minha filha de Curitiba se casou quatro vezes. Então eu também não gostei. Uma vez ela foi para o Canadá, se casou lá, nós fomos lá visitá-la e ela voltou com a gente. Deixou o marido lá e... Sabe, são coisas assim que machucam mesmo, coitado do rapaz. Depois ela chegou aqui, se casou com um, também não deu certo. Agora se casou com um e ela falava para mim: “Não sei, não”. Falei: “Irena, você dá um tempo nessa sua bunda” – Falei bem assim – “Porque não dá mais, viu, menina? Não pode. Agora você tem a filha e a filha já quase vai casar também, já tá namorando e tudo. Você vai fazer... Agora não pode mais. Fica aí. Fica quieta”. Então meu sonho agora é ver todas elas felizes, calmas, e todo mundo com saúde, pelo amor de Deus. Saúde, que vivam tranquilas, e sei lá. Para mim, o que eu gosto, ler. Gosto de vir para a Praia Grande, na minha casa, de vez em quando ir a um restaurante quando alguém me convida, sozinha eu não vou mais. É isso, uma vida tranquila que eu quero para mim.
P/1 – Então, dona Ricarda, eu queria agradecer por esse presente que a senhora deu nessa tarde, que foi contar a sua história.
R – Imagina. Imagina.
P/1 – Foi uma delícia ouvir a senhora.
R – Foi? Que bom. Que bom.
P/1 – Muito obrigada.
R – Imagina. Para mim foi um prazer. A Danuta falou, porque eu falei: “Danuta, não tem como desistir hoje dessa entrevista?” “Mama, o que é? Você está com medo?” “Não medo. Medo do quê? Medo eu não tenho”. Mas eu falei: “Eu estou atrapalhando a sua vida, você tem que me trazer, levar e tudo” “Pode deixar, eu vou atender a minha paciente não sei que horas lá, logo mais, seis horas”.
P/1 – Que bom então que a senhora veio.
P/2 – Muito bom.
P/1 – Muito obrigada. Obrigada mesmo.
R – Que bom. Obrigada. Eu que agradeço.Recolher