Projeto Conte sua História
Depoimento de Guilhermina Vieira Cuco
Entrevistada por Glaucia Ribeiro de Lima e Henrique Tadeu da Silva
São Paulo, 21 de junho de 2011
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV303
Revisado por Adriano dos Santos Silva e Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 − Dona Guilhermin...Continuar leitura
Projeto Conte sua História
Depoimento de Guilhermina Vieira Cuco
Entrevistada por Glaucia Ribeiro de Lima e Henrique Tadeu da Silva
São Paulo, 21 de junho de 2011
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV303
Revisado por Adriano dos Santos Silva e Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 − Dona Guilhermina, eu queria que a senhora começasse dizendo seu nome inteiro.
R − Meu nome é Guilhermina Vieira Cuco.
P/1 − Seu local de nascimento e a data de nascimento.
R − O local onde eu nasci? Eu nasci no Bairro dos Ferreiras, no município de Porangaba.
P/1 − Que dia?
R − No dia vinte e um de dezembro de 1928.
P/1 − Está certo. E quais os nomes dos seus pais?
R − Meu pai se chamava Leandro Sebastião Vieira e minha mãe se chamava Maria Hortência.
P/1 − E o que eles faziam?
R − Eles trabalhavam na roça.
P/1 − Lá em Porangaba?
R − Não. Eles trabalharam muito tempo aqui. Depois mudou para o Paraná. Quando foi que a gente mudou para lá em 1942 ou 1943. Por aí que nós mudamos para o Paraná.
P/1 − E a senhora já nasceu?
R − Eu nasci aqui em São Paulo. Em Porangaba. Bairro Ferreira.
P/1 − E a roça que a senhora está falando é em Porangaba?
R − É. Nós não tínhamos casa. Meus pais moravam aqui e depois resolveram ir embora para o Paraná. E foi. Naquela época de sertão. Porque essa época lá era sertão.
E nós mudamos para lá.
P/1 − Quantos anos a senhora tinha?
R − Devia ter uns treze, quatorze anos, por aí... Mas depois nós chegamos lá no meio do mato e eu não pude nem... Meu pai fez uma casa de vara, sabe? Não era nem de tábua, nem nada. Era vara cortada lá no meio do mato. Era aquela casa de vara lá. Morava lá. Nós ficamos lá. E de noite a minha mãe pegava o pano de bater feijão e colocava todo assim em volta da parede para tapar os buracos, para não aparecer para fora. Medo. Porque tinha criança pequena e tinha medo de onça. E a gente ficava lá. Depois os mosquitos começaram a morder muito a gente, e ficou muita ferida em mim. Em todos nós. Aí ele pegou e pediu para um homem que era conhecido dele, que morava mais perto de Bandeirante, para a gente ficar na casa dele. Só que esse homem, também era vizinho nosso daqui, que foi junto para lá. E tinha a família dele lá e ficou mais perto da cidade. E ele nos deixou ficar dormindo na casa dele. E o lugar que o fazendeiro deu para ele fazer a casa dele era o curral. Onde os bois ficavam. E era terra assim. A gente ia dormir lá com eles. Eles limpavam tudo e ficava tudo limpinho, mas quando chegava de noite... Quando era de manhã cedo, amanheciam aqueles rolos de piolhos de cobra. Sabe piolho de cobra? É um bicho que tem um monte de pernas assim. Na cama. Nós morríamos de medo daquilo lá. Morria de medo. Nós sofremos lá. Tanto que meu pai ficou doente. Meu pegou aquela maleita que dava naquela época.
P/1 − Com é que chamava a doença?
R − Febre ou maleita. Ele pegou e ficou ruim. E nós continuamos a ficar lá. Até que depois o dono da fazenda mandou nós vir morar na Colônia. Aí nós ficamos na Colônia. Assim mesmo lá na Colônia tinha muita coisa. Muita coisa que era ruim. Sabe por quê? Tinha bastantes casas. Era Colônia Santa Isabel.
P/1 − Ainda em Bandeirantes, também?
R − É em Bandeirante. Aí já era mais perto da cidade. Mas só que de noite. Chegava à noite as galinhas lá no poleiro com aquele barulho. Mas tinha tanto bicho naquele poleiro de galinha. Papai foi ver. Era bicho que mordia as galinhas. Eram percevejos que mordiam as galinhas. Era aquele barulho de noite. E dentro de casa. A mãe dormia assim com as crianças debaixo do braço assim, com medo de por na cama assim e os bichos morder. Ai meu Deus do céu... Nós sofremos naquele lugar. Até que um dia o dono da fazenda resolveu lotear lá um lugar e meu pai comprou nove alqueires de mato. Aí nós fomos embora para o mato.
P/1 − E esse lugar era onde?
R − Esse lugar era Beira do Laranjinha, do Rio Laranjinha. Naquela época era bem na beira do Rio Laranjinha, onde os índios ficavam. Então, tinha o lugar onde o papai fez a casa. Fez um rancho lá. Então ficava, tinha as coisas deles, que eles largaram lá. Que foram embora.
P/1 − Que os índios largaram?
R − Sim. E atravessaram para o outro lado do rio, que era mato. Aí do outro lado do rio ninguém ia, porque era mais sertão ainda. E a gente, nós morávamos entremeios dois rios. O Rio Laranjinha e o Rio das Cinzas. Que Bandeirantes fica entremeio o Rio Laranjinha e o Rio das Cinzas.
P/1 − Esse outro lugar que a senhora está falando ainda era Bandeirantes?
R − É em Bandeirantes isso aí.
P/1 − Também. Esse lugar era à beira.
R − Onde ele comprou era à beira do Rio Laranjinha. É município de Bandeirantes. E daí a gente ficou morando lá. Aí foi lutando. Lutando até venceu um dia de poder melhorar de vida. Depois passado muito tempo meu pai voltou para aqui de novo. Outra vez.
P/1 − Para Porangaba?
R − Mudou aqui para São Paulo. Daí eu vim também junto com eles. E aí eu já estava casada.
P/1 − Espera só um pouquinho Dona Guilhermina. E esses anos que a senhora ficou em Porangaba? Como é que era lá?
R − Era muito criança ainda.
P/1 − A senhora não lembra?
R − Lembro, lembro muita coisa. Eu era muito arteira.
P/1 − O que a senhora fazia?
R − O que eu fazia? Eu fazia muita arte que a minha mãe falava assim: “Não bate nela não. Porque ela tem problema na cabeça.” (Risos) Eu vivia subindo nas árvores. A gente montava a cavalo. Ficava correndo a cavalo. Assim. Burro bravo mesmo a gente montava. Encostava no barranco lá e colocava. Às vezes nem um forro não colocava. Encostava lá e ficava bem a rédea assim para poder montar. Ficava virando. Quando escapava de lá, ia embora que nem doido. Porque a gente já estava em cima. Ah. Meu Deus do céu... Eu fiz arte. Muita arte. Hoje eu me arrependo, porque eu penso assim. Muitas vezes fazia até mamãe chorar. Fazia. Fazia. Hoje eu me arrependo. Porque que eu fazia isso? E a gente montava no pasto assim de noite. Tinha um cavalo lá e tinha a minha colega. Lá em Bandeirantes mesmo.
P/1 − Agora em Bandeirantes que a senhora está falando?
R − É. Em Bandeirantes. Que eu fui lá eu era criança. Nova ainda. Então lá em Bandeirantes a gente fazia isso. Montava em cavalo no pasto sem freio, sem nada. Aí a gente pegava e eu falava para ela assim: Monta com a cara para trás. E eu monto com a cara para frente. “Não.” Ela falava: “Eu tenho medo.” “Você tem medo? Então vai você com a cara para frente, que eu vou montar com a cara para trás.” Por isso que a mãe falava. A mãe chorava até. De tanta arte a gente fazia. Eu não sei por que a gente fazia arte daquele jeito, viu? Eu era a mais levada. Todo mundo.
P/1 − A senhora era a mais velha?
R − Era a mais velha.
P/1 − De quantas irmãs?
R − Eram nove irmãos.
P/1 − Nove irmãos. Quantas mulheres e quantos homens?
R − Dois homens e o resto era mulher.
P/1 − Sete mulheres e dois homens.
R − É. E eu sei que tinha... Nossa. A gente brincava muito. A gente brincava. Hoje ninguém brinca mais. Não brinca. Nós tivemos uma infância. Nós subíamos aquelas árvores. No fim a mãe nem ligava mais. Porque a gente teve infância. Entrava no meio do mato lá e ficava subindo nas árvores. Muita arte que eu nem falo.
P/1 − Fala. (Risos)
R − É. A gente fazia muita arte. Até que depois até eu casei e depois acabaram as artes.
P/1 − E a senhora ia à escola nessa época?
R − Eu ia. Eu fiz até a quarta série.
P/1 − Lá em Porangaba?
R − É. No bairro. Era um bairro. No sítio tinha as escolas e as professoras vinham de Tatuí para dar aula lá. Era professora do estado mesmo que vinha.
P/1 − O que a senhora se lembra da escola?
R − Eu lembro muita coisa também. Eu gostava muito de estudar. Gostava de escrever. Na escola eu me lembro das minhas professoras que eu nunca mais eu vi. Tinha a dona Bárbara. Tinha outra que chamava Dona Dirce. Tinha a Dona Lázara. Era bem morena. A gente gostava dela. E tinha uma lá que puxava as orelhas da gente. Ela chamava Dona Lurdes. Ela não tinha paciência não. Uma vez ela deu...Ela ficava na casa da minha tia.
P/1 − As professoras ficavam hospedadas?
R − É. Ficava hospedada na casa dela, no sítio. Durante a semana. Ela dormia lá. Comia lá. Na casa da minha tia. E a minha prima estava estudando lá. Um dia ela deu uma reguada na cabeça dela que cortou. Mas aquele dia ela ficou tão nervosa. Ela ficou o dia inteiro com a porta do quarto fechada. Nem comeu, nem nada. Ficou nervosa. Porque ela ficou com medo de alguém denunciar ela, né? Mas já tinha essas professoras bravas que beliscavam o braço da gente, até deixar roxo. É. Tinha. Mas eu gostava de ir à escola. Sempre gostei de ir à escola. Sempre gostei de escrever. Era um papel assim. Um jornal. Qualquer papelzinho que eu achava gostava de ler. Gostava de escrever poesia. Eu gostava de escrever poesia.
P/1 − Desde pequena?
R − É. Desde pequena ficava arrumando rima assim. Eu ficava. Eu gostava desde criança. Eu gostava. Mas só que era muito levada. E minha mãe falava assim que eu era doente da cabeça. Mas não era doente nada. Era sem vergonha.
(Risos)
P/1 − E aí todo esse período da escola, a senhora estava em Porangaba?
R − Estava.
P/1 − Aí quando a senhora foi para Bandeirantes, a senhora parou de estudar?
R − Parei. Aí não fui mais à escola. A mamãe não deixava ir à escola para não atravessar a linha do trem. De medo. Nós não fomos à escola lá por causa disso. Aí minha irmã estudou, mas ela morava lá em Bandeirantes. Ela até era diretora aqui de São Paulo. Ela foi, a minha irmã. Foi diretora do Ginásio aqui. A minha irmã mora lá em Piracicaba. Ela conseguiu. Mas nós não. Nós não conseguimos, porque a mãe não deixava atravessar a linha do trem. Era perigoso. Mas podia qualquer um levar. Ninguém levava aí só fiz até a quarta série. Até o quarto ano do primário. Agora depois que fiquei aqui, e depois que o meu marido faleceu, eles fizeram a matrícula minha para...Eu não queria. Eu falei: “Eu não vou à escola aqui.” Foi ela que fez. A Isaura.
P/1 − Na Universidade da Terceira Idade?
R − É. Da terceira Idade. Aí eu fui e gostei. E fiquei até pouco tempo. Mas é muito bom.
P/1 − Daqui a pouco a gente fala disso. Vamos contar um pouco mais. A senhora estava dizendo que vocês saíram de Porangaba e foram para Bandeirantes e mudaram de sítio. Daí de Bandeirantes vocês vieram aqui para São Paulo. E por que vocês vieram para São Paulo?
R − Meu pai vendeu o sítio que era dele. Nós estávamos no sitio e depois ele vendeu. Ele queria que nós viéssemos aqui porque o meu marido...
P/1 − A senhora já era casada.
R − Já. O meu marido tinha direito de um emprego público. Então meu pai falava: “Vamos lá junto com nós. Vamos morar lá que você vai conseguir.” Porque ele foi ex-combatente. Aí a gente veio para cá. Só que nós fiquemos em uma casa.
P/1 − Já chegou a Osasco?
R − É. Em Osasco. Morava numa casa. Nós ficamos com tanta dificuldade que só ficou com o fogão, a cama, uma máquina de costura que eu tinha...E as crianças que eu tinha. O fogão de carvão, sabe? Você ia ferver. A criança gritando de fome. Você ia fazer o leite e ia ferver a água para fazer o leite para a criança beber, não conseguia. Porque tinha que ficar abanando assim com uma tampa para o carvão pegar fogo para ferver a água. Meu Deus. Sofri muito. Aí comecei a sair também. Aí eu ia atrás. Ele fazia o processo em Brasília para ele se aposentar. E vinha indeferido por falta de verbas. Passava um ano. Vinha indeferido por falta de verbas. Era assim. E não davam a aposentadoria dele. Aí eu comecei a ir atrás também. Ele ia. Nós íamos à Assembleia. De um lugar para outro para ver se conseguia. Depois eu comecei a ir atrás também. Porque ele já estava tão desanimado. Ele falava assim: “Ah, larga mão de ser boba. Deixa isso para lá. Isso não vai sair nunca.” Ele falava. Ele já estava desanimado. Não vai nada. Até que um dia nós estávamos prontos para voltar para Bandeirantes, para ir morar com meu sogro lá no Rondão. Quando nós estávamos dentro do trem. Nós vimos meu pai entrando. “Pode voltar para trás, porque a Faculdade de Medicina de São Paulo o chamou para trabalhar lá.” Arrumou emprego lá.
P/1 −
Aqui na Doutor Arnaldo?
R − É. Aí tivemos que voltar para trás. Vendemos as passagens e voltamos para trás. Aí ele começou a trabalhar no outro dia. E a nossa vida foi melhorando.
P/1 − Foi trabalhar onde?
R − Foi trabalhar na Faculdade de Medicina de São Paulo.
P/1 − Mas a senhora falou uma palavra. Podia?
R − No outro dia ele. Chamou ele.
P/1 − Ah. No outro dia. Desculpa.
R − Eles foram chamar ele. E no outro dia ele já começou.
P/1 − Entendi. No dia seguinte ele começou a trabalhar.
R − É. Começou a trabalhar.
P/1 − O que ele fazia lá?
R − Ele trabalhava lá com as coisas que ele fazia. Trabalhava de jardineiro. Trabalhava lá. Tudo. Fazia limpeza dentro onde as mulheres trabalhavam lá. Ali na Escola de Enfermagem no Hospital das Clínicas. Ali ele ficou vinte e cinco anos. Mas a aposentadoria nada. A aposentadoria do exército nada. Mandava processo lá para Brasília e nada. Só enrolava. Aí eu comecei a ir atrás. Aí um dia eu marquei uma entrevista com o Rossi. Naquela época era o Francisco Rossi que era o prefeito de Osasco. Aí marquei uma entrevista com ele e falei com ele. Falei com ele e ele disse: “Sabe o que a senhora faz? A senhora vai lá.” Mesmo pelo Estado podia aposentar e não aposentava. “A senhora vai lá ao Departamento do Estado e a senhora fala lá e conta tudo.” Fala tudo certinho e me encaminhou bem. Aí eu fui. É lá na Bela Cintra, uma travessa da Paulista ali. Aí eu fui. O meu marido falou: “Você é boba. Você não vai conseguir nada.” Eu fui e procurei até achar. Conversei lá com eles tudo lá em cima. Não sei o que eles eram lá em cima. Não sei se eles eram jornalistas. E me mandaram para baixo, para o sétimo andar que tinha duas advogadas. A senhora escolhe uma. As duas conversaram comigo. Aí meu marido estava trabalhando doente, porque ele tinha feito ponte safena. Estava doente. Aí eu perguntei para eles quem que tinha problema de angina podia trabalhar. Não. Tinha dias que ele subia aquela rua lá de casa e parava não sei quantas vezes. Aí eu fui lá e conversei com eles.
Aí a advogada me deu um papel para mim e falou: “A senhora leva esses papéis aqui para a Escola de Enfermagem e a senhora entrega lá na Diretoria.” Aí eu cheguei e entreguei os papéis lá na Diretoria. Meu marido estava trabalhando lá. Aí a chefe de serviço falou: “Quem mandou a senhora aqui? Quem mandou esses papéis aqui?” Eu falei assim: “Foi o Departamento de Estado que mandou trazer aqui, porque eu fui lá porque ele está trabalhando doente.” Falei assim. Aí ele pegou e falou assim: “Chama ele. Chama o Sebastião e manda ele embora. Manda trocar a roupa e manda ele embora.” Daquele dia em diante ele não trabalhou mais. Aí foi tirando licença. Tirando licença.
Tirando licença. Eu que vinha pegar aqui na Dona Paulina. Tem ali perto da Praça da Sé. Tem uma rua ali que tem o Departamento de Estado ali. Ali eu vinha pegar sempre os papéis para ele passar no médico. Cada 15 dias passava no médico e aí vencia aquele lá e pegava outro. Assim até aposentar. Aposentou pelo Estado. Aí saíram as duas aposentadorias. Saiu do Estado e saiu do Exército. Só que naquela época não podia ter as duas aposentadorias.
P/1 − Teve que escolher?
R − Teve que optar por uma. Ou do Estado ou do Exército. Aí ele pegou e ficou com a do Exército que recebia mais. Agora a do Estado ficou por isso mesmo. Trabalhou todo esse tempo todo e não recebeu nada. Agora a gente entrou na justiça porque tem uma lei aí que pode pegar duas aposentadorias. Você já sabe quanto tempo faz? Quantos anos já faz que eu pus isso na Justiça? A USP não deu autorização ainda. Não fala nada. Mas agora está para a gente ver. Está o advogado tomando conta disso. Não sei se o advogado não vê direito isso aí. A gente tem que estar vendo no computador. Se o advogado está fazendo direito ou não. Tem que estar avisando ele tal coisa assim, assim. O advogado também. É demais, viu.
P/1 − Deixa eu falar uma coisa no fim. A senhora não contou lá atrás em Bandeirantes como é que a senhora conheceu o seu marido. Como a senhora namorou.
R − Quando eles vieram. Vieram em três.
P/1 − Quando eles chegaram da Itália?
R − É. Veio um japonês chamado Moriba. O Antonio Messias e o Sebastião.
P/1 − Chegaram lá em Bandeirantes?
R − É. Nós estávamos na roça. Lá no café. Nós escutamos um monte de rojão. E o meu cunhado. Esse moço que estava trabalhando junto com nós. Ele não era meu cunhado ainda. Não era casado ainda. Aí nós falamos assim: “Olha quanto rojão. Vamos lá ver.” E nós largamos o serviço e fomos lá ver. E fomos encontrar eles lá. Aí foi assim. E aí depois dali eu casei em 1946.
P/1 − Mas como foi? Ele viu a senhora? Conversou com a senhora?
R − Ah. Conversou. Saía junto assim e depois de um tempo casou.
P/1 − Casou depois de quanto tempo?
R − Eles vieram em 1945 e eu me casei em 1946.
P/1 − Depois de um ano.
R − Depois de um ano. E daí a gente ficou morando lá em Bandeirantes. E depois de Bandeirantes nós mudamos para Abatiá. Abatiá é uma cidade lá perto de Bandeirantes. Aí meu sogro comprou sessenta e oito alqueires de mato lá em Abatiá. E fez cinco casas no meio do mato. Derrubou as árvores e fez as casas lá e aí nós fomos morar para lá. Aí tinha a minha casa também e fiquei um pouco de tempo lá. Depois ele vendeu lá e depois ele comprou a serraria lá.
P/1 − Ficava onde a serraria?
R − A serraria. A primeira ficava em... Agora não lembro o nome. É perto de...
P/1 − Não tem problema. Depois a senhora lembra.
R − Não estou lembrando o nome. Itaguajé. De lá de Itaguajé mudou lá a serraria lá para o Rondon, onde o Senhor Mauro trabalhava com eles. Puxava as toras com ele lá. E foi assim que a gente conheceu. Conhecemos eles. Morava tudo na Colônia lá. Até agora tem a serraria lá.
P/1 − Até bem pouco tempo tinha a serraria lá?
R − Tem. Porque nós fomos. Agora quando foi fazer o lançamento do livro lá, nós fomos lá.
P/1 −
É verdade.
R − Nós filmamos lá. Vimos a casa da minha sogra, que morava tudo lá. Tem em casa o filme. A gente como estava lá. Tem gente morando lá. Está enrolado lá agora. Não sei por que entregaram a serraria para o Banco do Brasil. Só que o Banco do Brasil embargou. Está embargado por causa que não foi todos os herdeiros que assinou. Nós mesmos não assinamos. Nós estávamos aqui.
E está parado tudo lá. É um rolo, viu.
P/1 − Dona Guilhermina, e depois de Rondon aí que o seu sogro vendeu e vocês vieram para São Paulo, que é a outra história que vocês estavam contando.
R − De Rondon não. Nós viemos para Bandeirantes. De Bandeirantes nós ficamos lá no sítio. Quando nós morávamos em Itaguajé meu sogro mudou a serraria para Rondon. Então meu marido não quis ir para Rondon.
P/1 − Vocês não chegaram a ir com ele?
R − Não. Nós voltamos para Bandeirantes. E ficamos em Bandeirantes num sítio que era do meu pai. Aí depois de lá nós viemos embora com meu pai para cá. Só que a gente ia passear lá em Rondon. Lá na casa deles. Sempre a gente ia lá. E até agora eu vou. Agora que nem esse aí da serraria lá acabou. Não acabou. Ainda tem lá. O Chitãozinho e Xororó vão lá. Ainda filma lá tudo. Eles vão lá sempre. Vão filmar lá.
P/1 − Os pais do Chitãozinho e Xororó trabalharam com o seu sogro?
R − Com meu sogro. Eles puxavam toras com o caminhão. O Seu Mário.
P/1 − Seu Mário que é o pai dos dois?
R − O pai deles. Então, os meninos eram pequenos naquela época. Depois que eles saíram de lá eles já estavam grandinhos. E afora eles foram esse tempo atrás e filmaram a casa onde eles moravam. Tem lá a casa deles ainda. Onde eles moravam na Colônia. A casa de tábua, de vez em quando eles vão lá. Vão passear lá. Só que é meio difícil agora. Parece que a turma tem medo de todo mundo.
P/1 – Por que que a senhora tá falando isso?
R − Porque eu sei que é. Porque lá, outra vez que eles foram lá, os meus sobrinhos contaram que eles ficaram em cima do caminhão e nem desceram. Nem de cima do caminhão descia. Eles foram lá à serraria. E filmaram lá tudo, mas ficaram com medo.
P/1 − Entendi. Mas agora vamos voltar para onde a senhora estava contando. A senhora foi lá e conseguiu a aposentadoria. Daí finalmente ele conseguiu. Ficou tirando licença, licença e licença. E ficou em casa.
R − Conseguiu. Do exército ele conseguiu. Do Estado nós temos lá o papel do Diário Oficial do dia que ele aposentou. Só que naquela época não podia ficar com as duas. Tinha que ficar com uma.
P/1 − Ele optou pela aposentadoria do Exército.
R − Agora pode. Então entrei na Justiça. Está nas mãos da justiça isso aí.
P/1 − E quando que nasceu o seu primeiro filho?
R − Em 1948. O primeiro.
P/1 − A senhora estava onde?
R − Bandeirantes. Morava junto com a minha sogra. Morava junto na mesma cama.
P/1 − Quantos filhos a senhora tem?
R − Onze.
P/1 − Onze?
R − Estão todos casados. No livro tem todos eles. Só tem duas que estão solteiras. Que é esta que está aí e a outra que está lá. É noiva. Mas já está bem. Já não é nova também não.
P/1 − E a maioria dos filhos nasceram em Bandeirantes?
R − Não. Em Bandeirantes nasceu o mais velho. O Aparecido. A Conceição. Não. O Aparecido. A Terezinha e a Conceição e o Mauro nasceram em Bandeirantes. Agora os outros. Nasceu a Isaura e essa aí que está aí. A Isaura e o José e a Maria nasceram lá em Abatiá. E a Fátima. A Ana e a Silvana nasceram aqui em São Paulo. Em Osasco. Acho que eu contei tudo, né? É bastante. Não dá nem para contar. (Risos) Você vê a gente cuidar de todas essas crianças não é fácil. Não é fácil não.
P/1 − E todo esse tempo que ficou esperando cargo público, o que vocês faziam?
R − Que nós fazíamos? Nada. Não fazíamos nada. Os outros que davam comida para a gente. Ele não arrumava o emprego e eu com aquela criançada em casa. Não podia trabalhar. Quem dava comida para nós era minha mãe. E os vizinhos que eram conhecidos. Que dava. E ajudavam a gente. E era assim a vida. Mas a minha mãe que ajudava. E meu pai. Meu pai morava. Já fazia tempinho que estavam morando lá. E era assim. Eles levavam as crianças para lá e dava comida para eles todos e depois...Até aquele dia que recebeu o primeiro pagamento. Foi a maior festa, ele comprou o fogão. Que era fogão a carvão, que ficava abanando. Aí podia dar comida para as crianças folgado. Daí melhorou a vida da gente. Daí melhorou tudo. Nós lutamos tanto até que conseguimos comprar um terreno em Osasco e fizemos a nossa casa. Mas quem arranjou dinheiro para nós comprar essa casa. Fazer essa casa?
A Dona Maria Rosa que era, trabalhava na Escola de Enfermagem e ela pegou e arrumou. Arrumou dinheiro e ela falou assim: “Vou arranjar dinheiro para você, Sebastião. Você tem bastantes filhos. Eu vou te arrumar para você fazer a sua casa. Depois você vai me pagando como pode.” Fez assim. Foi pagando de pouquinho em pouquinho, até que pagou tudo. E conseguiu a casa. Que é a casa onde eu moro até hoje.
P/1 − E foi o Seu Sebastião que subiu a casa?
R − Foram eles que fizeram. E o meu filho que tinha dezoito anos e fazia. Foi a primeira casa que ele fez. Meu filho. E ele ajudava. Ele sabia fazer. Ele ajudava a fazer, a cobrir, pôr a madeira, tudo. Eles faziam tudo essas coisas. Porque eles são família de italianos e são gente que qualquer serviço para eles é serviço. Lá era assim. Meu sogro era assim, tinha todos os filhos, os filhos iam casando e ficavam morando junto todo mundo na casa. Eu mesma morava. Casei e fiquei morando na casa junto com eles. A minha cunhada casou e ficou morando junto. Era assim. Tinha que dividir o serviço. Um fazia uma coisa e outro fazia outra. Para não ficar brigando. Eu não brigava, né? A minha cunhada era meio assim. Não tinha muita paciência. E depois mudamos tudo e fomos morar tudo pertinho uma da outra. E combinava todo mundo. E era assim. E quem dominava o dinheiro. Ele que mandava: “Faz isso, faz aquilo.”
P/1 − Seu sogro?
R − Meu sogro. É. Ele mandava em tudo.
P/1 − Como ele chamava?
R − Pedro Cuco. Esses italianos mesmo. Ele nasceu lá.
P/1 − E sua sogra. Como chamava?
R − Ana Naime. Nasceram lá na Itália. Ele nasceu na Itália e ela nasceu na Áustria. Então, era assim a vida. Ele que dominava tudo. Ele mandava os filhos fazer. E tinha que fazer. Todo mundo trabalhava junto. Quando ia fazer compras era todo mundo, era assim. Mas só que a gente não gostava daquilo. Meu marido como já tinha saído de casa. Já tinha ido lá para a Itália. Já tinha ido para tudo quanto era lado. Ele não achava muita graça naquilo. Até que saiu do meio deles. Veio para cá.
P/1 − Por isso que vocês vieram para cá?
R − É. Já não gostava muito daquele regime deles. Mas não era ruim. Eles não eram pessoas ruins. Eram pessoas boas. Gente amorosas que eles eram, mas só faziam as coisas quando tinham necessidade assim. E acudia também. Mas trabalhar, ele mandava. Faz isso. Faz aquilo. Formava café lá em Osasco. Osasco não. Lá em Bandeirantes. Lá em Abatiá também formou muito café. Muito café lá. Quando vendeu o sítio lá tinha muita lavoura de café. Vendeu e depois que comprou a serraria. E foi para lá. E agora moram tudo lá em Rondon. Tudo lá. Os outros meus sobrinhos.
P/1 − Toda família do seu marido?
R − É. Ainda mora lá ainda. E aí eles falaram para eu fazer o lançamento do livro.
P/1 − E Dona Guilhermina, o que o Seu Sebastião contou para a senhora da época que ele viveu na Itália?
R − Ah. Ele contou muita coisa. Mas só que ele não gostava muito de falar. Mas às vezes ele falava alguma coisa. Ele contava. Uma vez ele ficou num buraco lá. Três meses dentro de um buraco em cima dos sacos de areia. Ele e o Moriba, que é japonês. Ele está vivo o Moriba ainda. Aí ele pegou e ficaram lá dentro e só saíam para pegar a marmita de comida deles. O Moriba saiu. Veio uma rajada assim. Pegou na capa dele. Furou toda a capa dele. É. Jogavam bomba em cima. Caíam aquelas bombas em cima. Dizem que eles iam ver o que tinha dentro da bomba porque não estourava. Eles iam ver e tinha um papelzinho escrito assim: “Dessas haverá muitas.” Sabe quem fabricava essas bombas? Eram as pessoas que estavam prisioneiras dos alemães lá. Eles colocavam para trabalhar lá. Eles faziam isso contra os alemães.
P/1 − Os judeus?
R − É. Contra eles. Eles faziam. Jogava a bomba e a bomba não explodia.
P/1 − Ah. Entendi. Eles sabotavam a bomba para não explodir.
R − Para não explodir. Só que eles colocavam um papelzinho escrito assim: “Dessas haverá muitas.” E eles chegavam contentes. Porque não estourava. Mas tinha algumas que estouravam. E ficavam no gelo, andando no gelo. Conforme. Era pior na época do gelo. Porque daí as minas ficavam escondidas. Ele falava que ficava escondida. Às vezes estava em cima. Que nem uma vez que eles iam com o caminhão e ele falou que quando o comandante percebeu que estava em cima da mina, ele parou. Ele mandou parar. E era uma mina. Se estivesse um pouquinho para frente tinha explodido tudo. Jogado no ar aquilo lá. Muitas vezes, muitas vezes. Muita coisa ele contava. Ele falava assim. As meninas. As minhas meninas falavam assim. Perguntava para ele assim: “Ô, pai. O senhor via muito sangue lá? Matava alguém?” Ele falava assim: “Não. Eu não via nada. A gente atirava lá.” Falava assim: “Agora ver quem morria a gente não sabia. Quem que matava e quem que não matava.” Falou assim. Porque a Cruz Vermelha passava atrás e ia recolhendo tudo. Os que estavam vivos. Ia recolhendo as pessoas. Então ele falou que aquilo ali era muito triste para eles. Ele não gostava. “Eu não gosto de ver sangue.” Ele falava. “Não gosto de ficar falando.”
P/1 − E ele contou para a senhora porque se alistou?
R − Por quê?
P/1 – Por que ele foi para a guerra.
R − Ele foi para a guerra porque ele foi sorteado. Ele trabalhava. O pai dele já morava lá no Paraná essa época. Eles mudaram para lá primeiro que nós. Então ele foi sorteado. Naquela época era sorteio. Não era assim de alistar assim. Era sorteado. Eles falavam que era fulano e tinha que ir. E aí ele não recebeu a notícia que tinha sorteado. Ninguém avisou. Aí quando veio dois. Um pessoal do exército. Foi lá. Os moços foram buscar ele lá. Levou ele. Ele serviu em Ponta Grossa. Levaram para lá. Ficou detido lá no quartel. Acho que não sei quantos dias lá ficou detido no quartel por causa que ele não atendeu o chamado. Como se ninguém avisou, como ele ia atender o chamado. Ficou lá detido e depois de lá já foi. E é assim que eles fizeram. Não era assim que nem agora, vai, se alista...Era sorteio.
P/1 − Entendi. Era sorteio.
R − Era sorteio. E ele foi sorteado e foi. Aí a mãe dele já pensava que ele tivesse morrido já. Pensava que estava morto já. Porque escrevia carta e ninguém respondia. Pensava que já tivesse morrido. Não tinha notícia mais. No fim não tinha notícia. E era assim que ele falou. Era muito ruim. Quando foram. Foram de navio. Ele falou que no começo eles estavam com medo. Estavam com um medo de ir. Aí começaram a dar um chá para deles lá dentro do navio e acabou o medo de todo mundo. Viraram o bicho lá.
P/1 − Que chá seria esse?
R − Porque aquele chá, acho que era alguma droga, às vezes, né? Eu estou falando aqui e não pode falar essas coisas. Mas acho que era. Como é que criavam coragem de ir. Aí já ficavam tudo danado lá. Aí foram assim mesmo. Mas no começo que eles entravam lá. Um chorava. Outro gritava que não queria ir, era aquela bagunça...Mas foram. O avião foi por cima levando o submarino por baixo. O avião por cima do navio para levar eles lá. Mas eles assim que quando chegaram lá, eles já viram o estrago que estava. Em Nápoles, acho que é...Os prédios derrubados, tudo queimado. As coisas todas bagunçadas. Já começaram a ver tudo. As pessoas lá que ficavam sem pai, sem mãe. As crianças que ficavam sem pai e sem mãe. Aquela tristeza. Aquele horror da guerra. Tinha muito horror. Ele falava disso aí. Aquelas pessoas que pediam pelo amor de Deus para não estragar a família deles. Porque pegasse tudo, mas não destruísse a família deles. Era assim. E muita coisa que ele contava. Tinha dia que ele contava. Mas tinha dia que ele não gostava de contar não. As meninas perguntavam e ele falava que não ia contar não. Não gostava de contar muito não. Mas todo mundo tinha aquela curiosidade de perguntar para ele, né? As pessoas de fora assim perguntavam. E também quando ele veio foi paquerado. Foi muito paquerado.
P/1 − Ah, é?
R − Foi, nossa...
P/1 − E como é aquela história. Ele tinha uma namorada quando foi, não tinha?
R − Tinha. Mas ela nem lá foi. Porque ela falou daquele jeito, que eu falei já hoje.
P/1 − Então. Como que foi?
R − Não. Ela falou que se ele voltasse são e não tivesse nenhum defeito, que ela casaria com ele. Se não, não.
P/1 − E ele chegou a receber essa carta lá?
R − É. Já estava casado. Agora ele ficou em dúvida. Falou: “Escrevo para ela ou não?” Perguntando para mim. “Escreve, ué. Escreve falando que você já casou.”
P/1 − Ah. Quando ele estava aqui que ele recebeu a carta?
R − Não. Estava lá no Paraná ainda.
P/1 − Aí ele não respondeu. Daí ele chegou e casou com a senhora?
R − Não. Mas eu morava lá também. Casei lá em Bandeirantes.
P/1 − Mas aqui que eu falo é no Brasil.
R − É. Foi.
P/1 − Daí que ele resolveu.
R − Ela mandou a carta.
P/1 − Ela mandou a carta que ela já soube que ele já tinha chegado a Bandeirantes.
R − Que ela soube que todo mundo chegou. Então ela mandou a carta falando que se ele estivesse são...
P/1 − Mas a senhora já estava namorando. Então, a senhora já estava contando que a senhora já estava começando a namorar com ele. E ele tinha recebido a carta e perguntou para a senhora se respondia ou não. E aí?
R − Eu falei: “Responde. Já estava com o casamento marcado já.” Daí ele respondeu que não queria mais. Que já ia casar, né. E era muito tempo. Ela morava em Dois Córregos. Essa moça. Morava lá. Depois já estava casado mesmo.
P/1 − Vamos voltar lá onde a gente deixou. Recebeu a aposentadoria e foi para casa. Aí viveu mais tranquilo?
R − O quê?
P/1 − Aí ele aposentou e ficou em casa.
R − Aposentou pelo Estado. Ficou. Aí não podia trabalhar mais não. Pelo Estado não, pelo Exército.
P/1 − E ele estava bem de saúde?
R − Ãh?
P/1 − Estava bem de saúde?
R − Não. Porque ele fez cirurgia de ponte safena. Aí ele ficou mais uns, não sei, uma porção de anos ainda ele ficou bem. Voltou a trabalhar de novo. Depois ele teve outro problema na cirurgia. Cirurgia não. No coração. Aí o médico da Beneficência Portuguesa queria operar ele já no outro dia. Só que ele falou que não. Que não. Que ele não queria operar mais. Que ele não queria operar mais, porque ele sabia o que ele já tinha passado. Ele colocou duas pontes safenas. E abriu o peito. E depois tinha que abrir tudo de novo. Aí ele não queria. Aí a médica começou a apurar para mim: “Vê se a senhora o convence a operar de novo, ele já está aqui mesmo...Amanhã já faz. A gente já faz a cirurgia.” Aí eu falei para ele. Não quis. Daí ela ficava me apurando. Eu falei: “Não. Eu falei para ele se ele queria fazer. Não quis. Então não sou eu que vou forçar ele a fazer isso se ele não quer.” Aí eu falei assim: “E se ele faz e ele morre lá na mesa?” Aí o médico falou assim: “É verdade.” Falou assim: “Ele está arriscado a ficar na mesa de cirurgia e nem sair.” Falou. Então, não quis. Aí passou cinco anos ainda. Aí eu fiz cinquenta anos de casada.
P/1 − Teve alguma festa?
R − Teve. Fez uma festa. Teve reportagem lá. Lá em São José do Rio Preto. Aí teve uma festona lá. Aí fez cinquenta anos de casados. Estava muito bonito lá. Acho que tinha umas cem pessoas. Veio gente de lá do Paraná, veio de tudo quanto é lugar, os parentes. Foi todo mundo lá. Estava bonita a festa. Daí depois que ele veio embora para casa, ele falou assim: “Agora já posso morrer. Já fiz o que eu queria.” Falou desse jeito. E quando foi o outro ano, morreu. Morreu em 1967?
P/1 − Não. Espera. A senhora casou em 1946.
R − Eu casei em 1946.
P/1 − Foi em 1997, foram seus cinquenta anos.
R − Os cinquenta anos. Aí no outro ano ele morreu. Foi mesmo disso. Deu uma parada cardíaca fulminante. Morreu na hora. Estava bem. Não estava sentindo nada. Às vezes ele ficava nervoso também. Era uma pessoa quieta. Não era uma pessoa assim que gostava de conversar. Quando ele veio era mais quieto ainda, porque essas pessoas...Ou fica louco ou qualquer coisa acontece. E ele era quieto, uma pessoa quieta. Às vezes ele sentava lá para fora, em qualquer lugar, e ficava com a mão na cabeça. E eu falava: “Ih. Já está de cabeça baixa. Não gosto de gente que fica com a cabeça baixa não.” Falava assim. Aí ele reanimava. Toda vez eu falava: “Para que ficar triste aí. O que está pensando?” Falava assim, aí ele já reanimava e melhorava o modo dele. Mas sempre foi uma pessoa boa. Não era uma pessoa ruim. Uma pessoa assim. Ah, uma vez também...Falando de pessoa boa, lembrei. Logo que eu casei, numa noite eu estava dormindo. Eu acordei e ele estava segurando no meu pescoço assim.
P/1 − Ah, estava...?
R − É. Acho que estava pensando que estava lá. Ele falou que estava pensando que estava lá. Estava me enforcando. Falei: “Meu Deus do céu!” Fiquei com um pouquinho de medo. De cisma. Porque era casado novo. Pensei: “Nossa. Olha. Para que você está fazendo isso?” Ele estava sonhando. Estava sonhando que estava me enforcando. Enforcando eu, não. Estavam enforcando os outros lá. Oh, outra coisa lá na Itália que eles fizeram, eles fizeram uma patrulha e pegaram um alemão lá. Eles arrancaram todas as medalhas dele. Trouxe uma baioneta. Eu tenho guardado as coisas que eles pegaram. Pegou as medalhas dele. Eles arrancaram tudo. Numa patrulha que eles fizeram e ele estava no meio. Muita coisa. Não era sempre que ele gostava de contar para a gente...É, não é fácil não...
P/1 − E depois que ele morreu, dona Guilhermina. A senhora ficou morando com os seus filhos?
R − Eu fiquei morando com as duas meninas. Com elas. Eu tenho os meus filhos, mas são todos casados.
P/1 − E aí que ela...Depois da morte do seu marido que ela matriculou a senhora na Universidade da Terceira Idade?
R − Depois que ele faleceu que a Isaura matriculou lá na Terceira Idade.
P/1 − Aí a senhora estava contando que não queria ir.
R − Eu não queria ir e depois eu fui. Eles obrigaram a ir. “Vai sim! A senhora vai! Vai!” Aí eu fui e gostei.
P/1 − O que vocês faziam lá?
R − A gente fazia um pouco de cada coisa. Um dia tinha médica. Outro dia fazia literatura. Outro dia tinha história. Era assim. Agora não é mais que nem primeiro que a gente copiava tudo lá no quadro para a gente estudar. Agora já vem pronto. E só fazer uma cruzinha ali e pronto. O que é certo e o que é errado. Então era mais fácil. E eles explicavam para a gente tudo certinho. A gente participava do rádio. Tinha o Rádio Guadalupe. E a gente perdia a timidez de falar. Lá né? Aí eu contava as minhas historinhas lá no rádio. A gente falava com os outros lá do outro lado.
P/1 − Quando que a senhora começou a escrever as histórias?
R − Quando as minhas crianças eram todas pequenas.
P/1 − Ah, desde muito tempo.
R − Eu ia escrevendo e guardando. Escrevendo e guardando. Tinha um monte de caixa cheia de cadernos escritos lá.
P/1 − Aí quando a senhora foi para a Universidade a senhora pegava a suas histórias e lia na rádio?
R − É, não… É. Eu contava o que eu escrevia. Mas eu continuei escrevendo. E as professoras viam na escola. Tinha uma professora que chama Roseli e ela que me incentivou a escrever, a fazer o livro. Então ela via. E dos contos. Agora ela quer que eu faça dos contos. Ela falou para mim: “Agora a senhora vai fazer um livro e escrever os contos que a senhora escreve.” Ela falou: “Vocês vão ver os contos depois.” Eu já comecei a escrever. Eu já tenho uma porção escrita no computador, eu não sei...
P/1 − E a senhora que está escrevendo no computador?
R − Eu estou. Eu vou digitando lá. Agora que eu fiquei doente. Eu fiquei muito doente esses tempos. Eu fiquei internada. Agora que eu melhorei um pouco, mas não estou bem ainda.
Então, às vezes eu sento um pouco e canso muito. Eu levanto, né. Porque ali fica forçando muito a cabeça da gente. Eu tomei muito antibiótico, que eu fiquei meia.
A cabeça da gente não fica muito boa não. E estou até agora meio rouca. Fiquei internada no Hospital Santa Catarina. E agora eu estou tratando ainda. Estou tratando. Essa semana mesmo fiz exame de cardiologia. Fiz um monte de coisas.
P/1 − E o que mais que vocês faziam? Tinha rádio. E aí a senhora contava as histórias.
R − Ele fazia teste com a gente. Lá na faculdade tem um negócio de rádio. Então a gente fazia um teste lá. Teste de voz. Ficava lá para trás lá, de duas em duas. Cada hora que acendia a luzinha vermelhinha lá, aí você fala. Para a gente falar. Para ouvir a voz da gente. Então a gente fazia todas essas coisas ali. E depois o rádio era lá no Dezoito. Em outro bairro. Então a gente...Vinha artista lá também. De vez em quando vinha. E a gente ficava lá. Tinha uma turma. Toda aquela turminha ficava lá. Falava com um com o outro. Uma contava para o outro. É gostoso. Eu gostava muito de lá, eu gostava. A gente perde a timidez de falar. Não é que nem era o primeiro. Eu falava com os outros de fora também.
P/1 − Quantos anos que a senhora fez?
R − Um ano.
P/1 − Foi um ano?
R − No rádio?
P/1 − No rádio não. Na Universidade.
R − Dois anos eu fiquei. Dois anos. Mas eu já tinha pegado o diploma, mas eu fiquei e continuei.
P/1 − A senhora pegou o diploma com um ano, mas depois voltou.
R − Podia ficar lá. E agora pode também. Elas já me chamaram lá. Até as professoras antigas, essas de manhã me chamaram. Porque tem uma neta que estuda faculdade lá na FITO [Fundação Instituto Tecnológico de Osasco].
P/1 – Chama-se FITO?
R − É. Ela me chamou para ir lá para ela apresentar eu para os outros alunos. Só que eu não pude ir porque eu não estava bem. Falei para ela: “Natália, eu não posso ir agora. Você fala para ela que eu não posso ir”. Ah, eles me ofertaram um emprego também.
P/1 − De quê?
R − De contar histórias nas classes para as crianças. Aí eu falei assim: “Não. Eu não vou. “
P/1 − Por quê?
R − Por que hoje está muito difícil. As criançadas de hoje não são que nem primeiro não. Quando você entra na sala, já olha você do pé a cabeça.
“De que jeito que isso aí está?” Bom que eles ficam tirando uma com a minha cara lá? Falei: “Não vou não.” Mas eles me ofertaram. Queriam que eu fosse. Contar histórias para as crianças. E mais fácil contar histórias para as crianças pequenas. Falei: “Mas não é só para os pequenos nada.” Aí eu não fui. Não fui. Eles queriam que eu fosse contar histórias lá. As histórias que eu escrevo, eles vêem. Então tinha história de coisa antiga. Essas coisas. Aí então acho que eles queriam que eu fosse contar lá para as crianças peraltas que não têm medo das coisas.
P/1 − E como foi escrever o livro?
R − O livro eu escrevi.
P/1 − Foi nessa época que a senhora estava na Universidade?
R − Não. O livro eu escrevi em casa. Já tinha saído da faculdade. Foi quando eu saí de lá. Só que a Marilza, a Marilza não. A Roseli. Essa professora que foi minha, ela falou para eu fazer. Aí eu fui a casa e fiquei pensando. “Ah, eu vou fazer o livro”. Comecei a escrever. Mas é difícil para a gente escrever. É difícil. Porque cansa. Ontem mesmo eu sentei um pouco lá para escrever umas coisas lá. Nossa. Estava ruim. Deixa eu levantar daqui. Estava frio. Estava lá no sol. Colocava a mesa lá no sol, e fiquei sentada lá. Mas aquele claro estava fazendo mal. Aí peguei e parei. Escrevo uma coisa e paro. Mas primeiro eu escrevi bastante. Eu tenho bastante coisa escrita ainda. Agora para o livro. Para o próximo livro. Eu tenho os contos que já dá para fazer o livro. Já dá. Eu estou pegando do caderno e passando no computador para depois imprimir, que eu já escrevi. E tenho também um caderno que a minha filha comprou para mim cheio também. Escrito lá. Desde quando eu estava na escola.
P/1 − Desde quando a senhora era pequena.
R − Acho que você já viu aquele livro?
P/1 − Não.
R − Você pergunta como você era quando estava na escola e depois quando era maiorzinha. Depois quando era avó. Quando era casada.
P/1 − Entendi. Está contando desde que a senhora era pequena?
R − Isso aí é para outro livro. Isso aí não vou pôr junto. Historinhas para crianças também. Coisinha para criança.
P/1 − Então a senhora está escrevendo três, na verdade?
R − Não. Estou escrevendo um só.
P/1 − Que é o de contos.
R − Estou fazendo só o de contos, porque é muita coisa.
P/1 − Mas é esse?
R − Esse já está escrito no caderno. Está guardado.
P/1 − Está pronto. E as histórias para crianças?
R − As historinhas para criança eu tenho que copiar do caderno e passar para o computador.
P/1 − A senhora já tem também?
R − Eu tenho. Eu escrevo bastante coisinha lá. As crianças gostam né? As crianças gostam que a gente conte a história. Eu nem lembro mais tanta coisa que passou na minha vida. Que eu nem lembro mais. Eu lembro, mas a gente, o modo de a gente contar, quando a mamãe, quando a gente foi para o Paraná. A gente era tudo pequeno. Que trabalhava na roça. Não que trabalhava. Nós íamos lá à toa. Não que trabalhava na roça. A gente, a minha mãe levava comida. Levava um caldeirão assim. Levava as colheres tudo. Aí todo mundo sentava lá no chão lá e comia na terra. Sentado na terra lá e comia naquele caldeirão todo juntos. Ali a mistura de lá. Ela fazia a comida dela e tinha as misturas que ela colocava. Mas a sobremesa de lá era mamão e melancia.
P/1 − Que pegava na hora.
R − Tomate, melancia e mamão. É nativo daquele lugar lá.
P/1 − Pegava na roça ali mesmo?
R − É. Pegava na roça. Lá no Paraná era assim. Você derrubava o mato e já nascia aquele monte de pé de mamão. Aqueles mamões docinhos que só de ver. E aquilo que era a sobremesa da gente lá. Tinha muito daquele lá.
Mamão, melancia e tomate. Tomate desses tomatinhos. Nossa, mas tinha. Nascia lá. Não sei se é passarinho que leva a sementinha. Sei que tinha muito. Bastante. Lá era muito bom para dar as coisas. Era muito bom.
O que se plantava dava. Era uma terra vitaminada lá no Paraná. Tinha vitamina aquela terra. É terra vermelha. Ruim para você ficar, mas aquela terra tem vitamina. O que você planta dá. Até hoje é assim. Eu acho. Eu gosto do Paraná. Até hoje. Eu sempre falo. Se fosse para eu comprar um terreno ou uma casa ia comprar lá no Paraná. Paraná é muito bonito. Você já foi lá?
P/1 − Já. Deixa perguntar para a senhora. Qual o sonho que a senhora tem?
R − Sonho? Para eu fazer?
P/1 − É.
R − Escrever um livro. Copiar e fazer o livro. O que eu gosto de fazer. Eu não faço nada mais. Depois que eu fiquei doente agora eu não faço mais nada. Eu levanto cedo. Tomo um banho e sento lá no sol. Fico lá sentada lá no sol. Fico que nem um bibelô o dia inteiro. O que eu vou fazer? Eu tenho que fazer alguma coisa. Senão, a gente morre. Não posso fazer mais nada. Não faço comida. Não limpo casa. Não faço nada. Não lavo roupa. Esses dias estava todo mundo lá. Porque as meninas fazem para mim. Porque eu estava doente mesmo. Eu fiquei muito doente. Então fica lá que nem um bibelô. Ah, como eu não gosto disso. Eu não gosto. Eu gosto de fazer as coisas. De andar. Mexer com uma coisa e com outra. Primeiro eu ia andar em volta de casa. Minhas flores. Eu planto flores. Tem bastantes flores lá. Aquelas flores bonitas assim. Eu gosto de ver. Eu gosto de plantar flores. Eu gosto né, dessas coisas. Aí eu estava falando para as meninas: “Se eu vir uma coisa assim, que nem a senhora. Se você me der os dados eu escrevo”. Ele também. Se você fizer um flor. Você vê uma flor assim. Eu vejo aquela flor. As folhinhas dela. Eu escrevo daquela flor. Aí faz uma história daquela lá. É assim que eu faço. Eu tenho facilidade de fazer. Eu escrevo fácil. Eu tenho facilidade de fazer. Mas só que a doença judiou de mim essa vez. Dessa vez eu fiquei muito ruim. Deu pneumonia em mim.
P/1 − Mas agora a senhora já está melhor.
R − Eu melhorei. Estou meio lá. Não está muito bom ainda. Estou tossindo ainda.
P/1 − Dona Guilhermina, como é que foi para a senhora contar a sua história aqui hoje?
R − Contar? Ah, eu gosto. Eu gosto de conversar. Eu não gosto de ficar quieta. Eu gosto de conversar. As meninas falam: “A mamãe fala que nem o homem da cobra.” (Risos) Mas não é. Eu gosto de conversar. Eu não gosto de ficar em silêncio. Eu não gosto. Eu gosto de assistir televisão. Eu não gosto de assistir baixinho. Eu gosto assim para eu ver bem. Escutar bem. Eu gosto. Eu sou religiosa. Eu gosto de assistir Canção Nova. Eu gosto de tudo essas coisas. Coisas mesmo. Agora mesmo quando eu fui lá ao hospital. O padre ia lá com outra moça. Ele ia todo dia lá. Ele ficava conversando conosco. Comigo. Ficava conversando com a gente e mais as moças lá. As enfermeiras não me deram sossego o tempo inteiro lá. Eu chegava lá e falavam assim: “Oi, rainha.” Porque eu estava sentada. Tomava banho e ficava sentada no sofá. Não deitava durante o dia. Eles falavam: “Oi, rainha.” A outra vinha: “Oi, fofa.” Uai, porque eu uso fofo, ué. Falava assim para mim. A outra vinha e falava assim: “Oi, gatona”. Apontava a cabeça lá e já falava isso. Falei: “Não me deixavam sossegada.” As meninas ficavam o tempo inteiro lá. Quando foi para vir embora. Eles ficaram tudo atrás da gente. Coitadas das meninas. O quarto estava sempre cheio de gente. Porque eu gosto de conversar. Então elas pegaram confiança comigo. E falava isso para mim. E eu dava risada deles. Até o padre e a moça que vinha lá, ficava lá conversando com a gente. O médico. Agora vamos ver o que vai dar. Precisa mais de saúde para você poder fazer as coisas. O que eu estou precisando para mim é isso. Sarar. Melhorar bem isso daí. Porque eu perdi a fala. Ainda estou meio ruim de falar. Eu perdi a fala duas vezes esses tempos. Com esse negócio aí.
P/1 − Mas hoje estava forte. Não estava?
R − Estava. Mas você sabe que eu perdi a fala e fiquei que não falava. Para eu falar, eu tinha que falar bem forte para sair minha fala. Eu tive falta de oxigenação no pulmão. É isso.
P/1 − Agora a senhora deve estar bem melhor?
R − Eu melhorei, né. Mas tem que fazer exercícios. Vou fazer exercícios agora.
P/1 − Está bom, Dona Guilhermina. Obrigada viu, pela senhora vir contar a sua história.
R − Se é para falar, eu falo a noite inteira.
P/1 − A gente marca outro dia e a senhora continua.Recolher