P1- Judith Ferreira.
P2- Damaris do Carmo.
P1- Dona Mirian, a gente pede, por favor, pra começar, que a senhora diga o seu nome completo, local e data de nascimento?
R- Miriãn Linhares Garcia Pereira, eu nasci em Lavras da Mangabeira, no Ceará, em 6 de junho de 1945.
P1- E qual o nome dos...Continuar leitura
P1- Judith Ferreira.
P2- Damaris do Carmo.
P1- Dona Mirian, a gente pede, por favor, pra começar, que a senhora diga o seu nome completo, local e data de nascimento?
R- Miriãn Linhares Garcia Pereira, eu nasci em Lavras da Mangabeira, no Ceará, em 6 de junho de 1945.
P1- E qual o nome dos seus pais?
R- Pedro Garcia Filho, meu pai e Dulce Ferrer Linhares Garcia, minha mãe.
P1- Onde eles nasceram?
R- Meu pai nasceu nos confins da Paraíba, em Brejo da Cruz, perto de Catolé do Rocha e a minha mãe nasceu em Lavras da Mangabeira, no Ceará.
P1- E quais eram as atividades deles?
R- Minha mãe era professora, meu pai era fazendeiro e comerciante na Paraíba. Não sei se já é pra falar como é que os dois encontraram, né? É meio atávica a história. Havia uma rixa entre as famílias, eu tinha um tio que ia se ordenar padre e alguém disse que ia matá-lo. Então, ao invés de ele se ordenar no Ceará, ele foi se ordenar na Paraíba. Como ele se ordenou na Paraíba, foi ser vigário de uma cidadezinha no interior da Paraíba. A minha mãe foi passear lá no interior da Paraíba e conheceu o meu pai. Aí, se casaram. Então, eu tenho alguns irmãos que nasceram na Paraíba e outros que nasceram no Ceará, porque depois meu pai comprou a fazenda do meu avô e veio morar no Ceará. Então, eu sou esse misto ambulante cearense-paraibana com muita honra, com muita alegria, com muito prazer.
P1- E a senhora lembra dos seus avós maternos e paternos?
R- Lembro. Meus pais, meu avô e minha avó têm também histórias, né? A minha avó era uma pessoa muito autoritária, muito brava, muito temida na região e ela se separou do meu avô quando ninguém se separava, né? Por exemplo, lá pelos idos de 1920, não sei, expulsou ele de casa, fez ele correr de casa. Ele foi morar numa cidade vizinha e ela ficou lá, autoritária, mandando em todo mundo. Brigava com todo mundo da cidade, todos tinham medo dela e eu lembro. Convivi com ela um pouco, porque ela morreu em 1950, eu nasci em 1945, né? Mas morria de medo, todo mundo tinha medo dela na cidade [risos]. A velha era brava! [risos]. Meu pai, depois de algum tempo, comprou a fazenda do meu avô e veio morar no Ceará, aí a gente veio morar no Ceará, tá? Meu pai era uma pessoa, assim, muito, tipo assim, muito bravo também, muito autoritário e minha mãe muito poeta, professora, né? Não sei como é… Não deu certo, né? Se arranjaram lá e viveram. Tiveram um monte de filho, mas não tinha nada a ver um com o outro, né? Embora meu pai fosse um pouco visionário. Meu pai devia ter o quarto ano primário, mas ele educou todos os filhos. Eu tenho vários irmãos médicos numa época em que era difícil
as pessoas estudarem. Ele fazia os maiores sacrifícios. Na época da seca ele pôs todo mundo pra estudar, ninguém trabalhou, todo mundo estudou, todo mundo se formou. Ele tem o maior prazer de mostrar a galeria dos filhos formados, porque a minha mãe era estudada, como se falava. Ele não. Então, acho que era uma forma dele compensar. E ele tem uns feitos históricos, por assim dizer. Por exemplo, muito cedo, ele queria que eu viajasse, só que ele não me deixava viajar sozinha. Eu estudava em colégio de freira e ele arrumava as freiras pra me mostrar o Brasil. Então, muito cedo, morando no interior da Paraíba, do Ceará, eu conheci o Brasil inteiro, porque ele achava que aquilo lá era uma aquisição na cabeça dele, né? A pessoa viajada muito jovem era importante, né? Embora ele tivesse outros trancos, assim, que não agradava nada, muito autoritário, brigava com todo mundo, impunha as coisas, ninguém falava mais alto que ele. Mas ele tinha essa coisa, ele perseguia essa coisa de educar os filhos, de formar os filhos. Todos nós formamos com panca de gente rico, né?
Assim pra região. Ele fazia das tripas coração mas, todo mundo tinha uma casa grande em Fortaleza, lá na aldeota e estudavam lá sem trabalhar. Ele mantinha todos lá, só que entrávamos nas universidades públicas, né? Não tinha esse negócio de passar nos vestibulares, mas, ele mantinha todo mundo, ninguém trabalhava, mas tinha que estudar e tudo. Punha empregado, enfim. Agora, tinha umas coisas, assim, muito complicadas, ele era muito mão-de-vaca,
muito autoritário, né? Mas, tinha esses valores. É com ele que a gente, hoje, preza muito. Na época, sofríamos um pouco com aquela autoridade dele, muito ferrenha, né? Gritava com todo mundo, por outro lado, nos deu a chance de recolher a poesia do nordeste, a vontade também de estudar. Todo mundo é estudioso na minha casa, todo mundo gosta de estudar e todos têm muito carinho por nosso pai.
Hoje é muito, né? Faleceu. Tem a minha mãe com 86 anos.
P1- Quantos irmãos?
R- Olha, irmãos filhos da minha mãe são nove, mas têm os filhos, na época chamavam de bastardos, né? Ih, meu pai tinha um monte de filho com as pessoas que moravam lá com a minha avó. De vez em quando eu conhecia um irmão, uma irmã [risos]. Isso no nordeste, na época era muito comum, né? E não tem conta. Eu tenho hoje ainda um irmão, é um dos irmãos médicos que mora em João Pessoa. Esse se deu muito bem, mas também era daqueles que o meu pai tinha e largava. Que tinha com... sabe aquela coisa que tinha no nordeste, hoje não tem mais também, os agregados. Então, as pessoas muito pobres que não tinham o que comer e vinham pras casas das pessoas que tinham mais condição. Ali ficavam como empregados, como escravas, né? Aí, os patrões usavam de todos os serviços prestados, as pessoas engravidavam e era assim. Eu conheci vários irmãos, eu conheci duas gêmeas, que morreram, não tive a menor convivência com elas. Um outro que morreu também, era filho, assim, de gente que morava na casa da minha avó. Agora, esse que mora em João Pessoa, inclusive a gente tem amizade, depois de muitos anos nos aproximamos. Ele foi muito... teve muita vontade de crescer, venceu todos os obstáculos. A mãe odiava o meu pai e preparava o menino pra matar meu pai, têm essas coisas, né, no nordeste. O menino a vida inteira cresceu com aquela vontade de matar o meu pai. No futuro, depois de muitos anos, ela morreu louca e ele se encontrou com os meus outros irmãos que também eram médicos. Ficaram amigos e hoje a gente tem a maior amizade, muitos anos depois. Eu não tive convivência com ele porque eu nem podia chegar perto dele e ele de mim, não dava nem pra encontrar [risos].
P1- Agora se conhecem.
R- Agora a gente se conhece, temos a maior amizade. Ele tem cinco filhos, adoro os filhos dele, os meninos, né, me visitam, a gente têm amizade. E é o que mais parece com o meu pai. É igualzinho ao meu pai, igual em tudo, até no temperamento, no autoritarismo, igualzinho. Já meus irmãos não parecem tanto com o meu pai, meus irmãos, filhos da minha mãe, não parecem tanto com o meu pai, quanto ele, em tudo.
P1- E na sua infância, como era a casa onde a senhora morava?
R- Na Paraíba, a minha casa era a maior da cidade, um casão. Inclusive, eu passo lá hoje, porque eu achava ela enorme, aí eu fui outro dia na Paraíba e achei a casa pequenininha. Porque era uma casa grande, na ponta da cidade era a maior. Meu pai tinha recursos, né? Não é isso que se falava na época? Quer dizer, lá naquela miséria ele era poderoso, tinha recurso. Eu me lembro, na primeira imagem que eu tenho dessa infância é dessa casa, nessa cidadezinha, Brejo do Cruz. É vizinha da cidade que é famosa, porque tem lá o Chico César, que é de lá e o Glauber Rocha. O Glauber Rocha não é baiano, ele nasceu lá em Catolé, agora morou a vida inteira na Bahia. E o Auto da Compadecida, de quem é o Auto da Compadecida? João Cabral, não, mas de um autor aí do Auto da Compadecida que é de lá também. Então, é uma cidade que tem pessoas famosas, é pertinho dessa cidade e perto de uma serra maravilhosa. A imagem dessa serra é muito forte na minha infância, sabe? Eu a visitei, há pouco tempo, faziam muitos anos que eu não ia lá e fui ver a minha casa. E eu lembro da minha casa, era cheia de buraco de bala, porque tinha a histórias dos cangaceiros na Paraíba. Eu conto essas coisas no Bradesco, o povo fica com um olho assim pra mim e eu digo: “Gente, eu convivi com essas coisas, assim, né?”. Ver essas coisas de gente vindo matar não sei quem, de o cara tá conversando com o meu pai na calçada, Chico Maia e o outro esperando lá fora pra matá-lo, né? Aí ele saiu da minha casa e o cara foi lá e cortou a orelha dele.
P1- A senhora era criança nessa época?
R- Era. É terrível essas coisas ainda, né? Eu saí da Paraíba, quando eu tinha o quê? Eu tinha 10 anos quando saí da Paraíba. Então, eu tenho vários episódios muito claros na minha cabeça, assim. Esses episódios que a gente pensa que só estão nos livros, né? Histórias que eu vi. Tem uma igreja na minha cidade que todos os santos foram pessoas que morreram num dia só e eu me lembro perfeitamente desse dia. Meu pai tinha um armazém grande e começou uma briga política. Nessa briga política mataram seis pessoas em um mesmo local e foi aquela coisa, aquele corre-corre na cidade. Eu lembro perfeitamente, era pequenininha e aí correu todo mundo e se trancou porque vinha outra turma vingar a morte. Não parece coisa de romance? Então, agora quando eu fui, eu olhei. Eu ficava na pontinha dos pés pra ver os caras entrando todos com bacamarte, assim nas costas, pra vingar a morte daqueles seis. Porque os seis ficaram estirados lá no chão da rua, ninguém nem chegava perto, de medo. Eu me lembro de ver esses caras entrarem na cidade pra vingar essas mortes. Meu tio era o vigário da cidade, que estava lá, né? Então eu lembro dele fazendo, rezando em cima dos mortos, os caras mandando eles saírem de perto e não sei o quê. Essas imagens povoam mesmo a minha infância, essas coisas fortes assim, né?
P1- E como era o dia a dia da sua casa, a sua infância?
R- Muitos filhos, eu não me lembro da minha mãe sem estar grávida, que era um filho atrás do outro. A minha memória de infância é a minha mãe grávida. Muito humilhada. Humilhada não, como eu diria pra vocês? Ela não tinha assim, não tinha agressão verbal, mas, a gente sentia aquela coisa dela muito pequena na frente dele. Ele era o dono da história, ele era o dono do pedaço. Ela sempre abaixava a cabeça e sempre grávida. Toda memória que eu tenho. Mas, era uma casa muito movimentada, muito alegre, sabe?
P1- Brincadeiras?
R- Brincadeiras. A gente brincava muito de roda.
P1- Qual era a brincadeira preferida?
R- A minha brincadeira preferida era de roda, era ciranda. Essas coisas eu tive na infância, né? Tinha também o cordão verde, o cordão vermelho, o cordão azul, porque o meu avô era o padre da cidade e a gente participava das festas. Eu li um livro, História da Infância, de um autor francês e ele conta que é hoje o privilégio de uma criança lembrar disso aí, uma pessoa lembrar, porque isso é idade média, né? É você fazer a festa na rua, você ir lá, conhecer o músico, você tem a praça, tem o coreto. Essas coisas todas eu lembro, tá? Isso foi a minha infância, muito jogo, muita brincadeira, mas, muita autoridade, muito autoritarismo do meu pai. Ele sempre vigiava, sempre estava por perto, sempre olhava. Estava a gente brincando na rua e ele ficava lá olhando. E uma serra enorme na minha frente, que está lá, aquela serra linda, maravilhosa. A gente brincava na beira, no pé da serra.
P1- E lembranças mais marcantes, várias, né? Mas, a que mais marcou a infância da senhora?
R- A infância eu acho que era a cidade pequena, o povo da cidade, aquela coisa do meu tio ser o vigário. A igreja era um ponto importantíssimo, um ponto de concentração, um ponto, não bem de poder, mas, era um ponto de referência na cidade. Então, eu era a sobrinha do padre, eu era o anjo, eu ia na procissão, eu coroava a Nossa Senhora, esses negócios, né? Essas coisas são muitos fortes. Vamos dizer assim, eu tive uma infância, como é que se diz, em que eu era o centro das coisas. Era o centro das coisas na minha cidade, né? Então, eu aparecia mais, eu entrava lá na procissão. A minha mãe era professora, na época, ela não estava mais ensinando, ela cuidava da gente. Mas, a minha mãe escrevia muito bem, então, fazia o discurso de não sei quem, escrevia texto não sei pra quem. Tinha uma festa e era a minha mãe que escrevia o discurso dos políticos. Isso aí eu lembro muito e eu era a filha da dona ____ e a filha de seu Fiel. O nome dele era Pedro, mas todo mundo conhecia por seu Fiel. Então, foi uma infância, o que eu diria pra vocês, uma infância em que eu tinha identidades. É bem isso aí, porque eu lembro que muitos anos depois a minha filha foi para a minha cidadezinha e ela ficou louca porque nasceu em São Paulo, ela ficou impressionada. Lá, ela tinha um nome, ela era Juliana, filha de Mirian e neta de seu Fiel. Então, na minha infância eu tinha identidades. As pessoas sabiam o meu nome e eu sabia os nomes das pessoas, tá? Então, acho que isso foi a coisa mais forte. Comecei muito cedo a estudar e a ler, com 12 anos eu lia o Direito de Nascer. A minha mãe lia muito e eu devorava os livros. Então, comecei a ensinar, a dar aula para minhas colegas muito cedo também, enfim. E essa coisa também da aura intelectual muito cedo. As pessoas me descobriram, eu descobri, sei lá, a coisa de gostar de escrever, de fazer poemas não sei de quê, isso aí foi uma coisa que... Por outro lado, afastou uma outra coisa da vida, por exemplo, eu sempre tive dificuldades com Matemática. Então, todo mundo diz: “Não, saber escrever ela sabe, agora Matemática ela não sabe nada” e ainda hoje eu sou assim. Eu não sei somar nem dividir e multiplicar [risos].
P1- E como era a cidade nesse tempo todo, tão quente, tão cheia de...
R- Era uma cidade quente em todos os sentidos, no sentido físico...
P1- Era pequena?
R- Pequena. Devia ter o quê? Aquela laje imensa, aquele lajedo, o lajedo tomou conta de toda cidade. A serra é imensa, toma conta da cidade inteira. E aquele sol batia na pedra e virava, esquentava. Muitos anos depois, meu marido foi daqui de São Paulo conhecer e desmaiou. Diz ele que foi o calor, mas, não foi calor não. Ele desmaiou porque o meu pai estava sentado aqui e um primo meu sentado aqui e o meu primo contando para o meu pai que pagou não sei quanto pra não sei quem matar alguém. E o cara na hora que foi matar, o revólver enroscou e o outro passou a navalha nele. Aí o meu marido foi amarelando, assim, aí ele diz: “Aí eu desmaiei foi do calor.” Que calor, desmaiou foi da história… Então, a cidade era assim pequenininha, três ruas só tinha a cidade. Hoje está um pouquinho maior, mas é pequenina ainda. E essa coisa de você conhecer todo mundo, de ir pra escola. O centro da cidade era a igreja, a escola, né? A praça, a pracinha com árvore na praça, assim me lembro. A música tocando, aquela poeira atrás dos músicos, a gente com os músicos da cidade. Não tem mais isso hoje não, nem cidade pequena tem mais isso hoje, né?
P1 – E a adolescência? Aí a senhora saiu de lá?
R- Na adolescência eu saí de Lavras. Aí, fui para um colégio interno, fiquei 12 anos em um colégio interno com freiras.
P1- Com quantos anos a senhora foi para o colégio interno?
R- Eu fui pro colégio acho que em 1969.
P1- A primeira escola foi onde?
R- Não. Teve grupo escolar no Brejo do Cruz, na Paraíba, depois em Lavras, eu acho que uns dois anos mais de grupo escolar também e logo em seguida fui para o colégio interno.
P1- No Brejo do Cruz, a senhora entrou com quantos anos na escola?
R- Na escola, acho que com uns sete anos.
? Com sete anos?
R- Acho que foi.
P1- A senhora lembra dessa escola?
R- Lembro. Primeira escola, primeira professora. Cira foi a primeira professora que me ensinou a ler. Eu com essa coisa de querer ser muito sabida, peguei o caderno a primeira vez e tinha marcas no caderno, então eu enchia o caderno de garatuja. Isso, hoje, no construtivismo era o erro construtivista, mas na cabeça do meu pai não era erro construtivista coisa nenhuma. Ele ficou muito bravo: “Como estragou o caderno todo, não sei o quê”. Eu querendo me mostrar, me exibindo lá pra ele que já sabia escrever. Mas, eu copiei as garatuja lá, as garatuja não, as marcas que tinham lá no caderno. Então, foi uma coisa muito triste pra mim naquele dia, sabe? Eu achei que era sabida e eu não sabia porra nenhuma, só estava... [risos].
P1- Só estava rabiscando, segundo ele.
R- Só estava rabiscando. Isso foi o meu primeiro contato formal com as letras e decepcionante ao mesmo tempo [risos].
P1- E a senhora lembra como era a escola? Lembra como era o dia a dia da escola?
R- Lembro perfeitamente, sala de aula, as professoras. dona Maria Olívia era diretora da escola, Maria Alice era a minha prima, era sobrinha do padre, também morava na casa do padre, era professora da escola. Era uma escola que não tinha banheiro, a gente tinha que ir pra casinha quando queria fazer xixi. Ia todo mundo pra casinha, que era uma árvore bem grande lá longe, tá? Aí, tinha a fila dos meninos e a fila das meninas. As brincadeiras eram essas, a gente brincava mesmo no pátio, né? Na hora do intervalo tinha roda, brincar de roda, ciranda, a gente brincava muito de ciranda, passa-passa, pega-pega. Essas brincadeiras todas eu tentei resgatar aqui, eu tento porque tem o Recreio Feliz aqui. Eu trouxe todas essas brincadeiras, então eu tenho um canto de cada brincadeira, porque não tem na rua mais, a escola tem que resgatar, né? Essas coisas todas eu vivi assim intensamente.
P1- E algum professor que marcou mais?
R- Mais pra frente, no colégio das freiras.
P1- Qual a lembrança mais forte da escola que a senhora tem?
R- De escola infantil ou...
P1- Infantil primeiro.
R- Infantil? A Maria Lígia, diretora da escola. Eu achava uma mulher muito independente, assim, muito arrojada pra época. Claro que eu não tinha essa visão de arrojada, mas eu já a achava 10, porque ela era de uma família muito valente lá da cidade, família que mandava matar o povo. Ela levantava a cabeça e tinha assim uma coisa, uma aura de confiança uma coisa que me atraía muito, acho que uma coisa de... Aquela imagem dela muito forte foi uma coisa marcante pra mim. Não tinha tempo ruim pra ela, sabe? “Eu quero, eu mando”. Não sei porque que isso foi…[risos].
P1- Era a diretora da escola?
R- Depois, isso foi muito difícil para eu ter que organizar na minha cabeça, né? Muito cedo, eu tive muito poder na mão e fiquei muito... Foi difícil, depois eu comecei a entender, a compartilhar as coisas, ainda é difícil. Eu tenho uma tendência muito grande ao autoritarismo.
P1- E aí foi para a outra escola?
R- Aí eu fui pra Lavras, a minha família toda foi pra Lavras, já no Ceará, né? Em Lavras eu fiquei uns dois anos, mais ou menos, estudando na cidadezinha e meu pai me pôs em um internato de freira. Aí foi uma vida, tem uma história, tem mil histórias nesse internato. Eu só faltava matar as freiras, mas também elas só faltavam me matar, aquelas...
P1- Por quê? Por que não deu muito certo?
R- Não, porque eu ainda cheguei a pegar no internato uma época em que você não tomava banho pelada, você acredita em uma coisa dessa? Foi por pouco tempo isso, um ano mais ou menos e pouco. A gente entrava em um corredor assim, num negócio grande lá. O colégio tinha as maiores, as menores e as médias. Tinham 250 meninas internas no colégio.
P1- Só meninas?
R- Só meninas. Imagina, a gente ia ver menino só na época da Páscoa. A gente via os meninos do outro colégio dos padres, mas de longe, não chegava perto. E tem umas fotografias engraçadas aí, depois vocês vão ver. Na época do São João, como não podia entrar menino no colégio, a gente se vestia. Tinha umas meninas que se vestiam de meninos pra dançar quadrilha. Então, tem um monte de foto aí, eu estava vendo e lembrando. Era assim, as irmãs eram ortodoxas. Aquela coisa em que você rezava de manhã, de tarde, à meia noite, de madrugada. Aquelas rezas em excesso, assistir missa cinco horas da manhã:
“Louvado seja o nosso senhor Jesus Cristo”. Essas coisas. Aí não ia dar certo comigo, né? Como não deu, teve muito conflito, eu tive muito conflito com as freiras. E foi tão grande de não querer rezar, hoje eu não rezo mais nada não. Acho que foi muito forte aquela imposição da religião, você tinha de rezar de qualquer jeito, sabe? Foram muitos anos com aquelas freiras.
P1- Quantos anos? Foram 12 anos, né?
R- Eu fiquei 12 anos no colégio das freiras.
P1- Ia pra casa quando?
R- Só nas férias. Se aprontasse qualquer coisa, tinha umas saídas no domingo, a gente ia pra missa no seminário e não sei o quê, mas, se aprontasse qualquer coisa, eu sempre estava aprontando, e eu não saí. Tinha ano que eu entrava em agosto, só saía em dezembro. Elas mudavam a cor da frente da escola e eu tomava um susto quando eu via porque eu não saía de jeito nenhum. Aprontava coisas que não tem significado nenhum hoje. Mas, lá no contexto tinha. Por exemplo: levava galinha para o dormitório das meninas e a galinha ficava lá, quando era meia noite, que estava todo mundo dormindo, nós soltávamos a galinha no dormitório. Era um auê aquela galinha no meio do corredor, pra baixo e pra cima e as freiras acendendo vela, essas bobagens, né? Que na época isso tinha uma dimensão assim, né? Uma coisa... Por exemplo, eu fui coroar Nossa Senhora um dia e o bispo foi convidado, eu me escondi, não apareci lá na hora. Todo mundo esperando e a gente escondida debaixo de um balcão e as freiras desesperadas procurando. Aí eu não ia de jeito nenhum e quando elas me acharam eu só ia se me dessem não sei o quê lá e o bispão lá esperando a coroação [risos].
P1- E nada aconteceu?
R- Não. Depois de muito tempo eu apareci pra coroar a santa. Mas, isso tudo é em função da repressão, era uma repressão muito grande no colégio, sabe? Era uma coisa horrorosa. Depois, as coisas foram ficando mais amenas e aí eu passei a ser professora desse colégio.
P2- Como que tomava banho?
R- Sim, era um roupão azul marinho. Lembro perfeitamente do meu, ele era azul marinho com um negocinho vermelho aqui, onde você enfiava assim parecido com este vestido aqui, só que era um buracão aqui. Você entrava em fila no banheiro, aí a freira abria uma torneira, a água caía na sua cabeça, ela dava alguns minutos e fechava, abria de novo. Mas, muito cedo as maiores já ensinavam pra gente: “Olha, tira o roupão, põe debaixo do pé e toma banho pelada.”
P1- E aí? A freira via?
R- Não, não via. A gente aprendia. As meninas ensinavam que elas não iam ver a gente tomar banho, mas elas incomodavam, elas abriam a torneira. Isso demorou muito pouco, acho que foi pouquíssimo, não chegou a ser nem um ano e depois já foi liberado o banho, né? Mas, era uma coisa horrível, a gente não podia pegar na mão da outra dentro da escola.
P1- E as notas, as aulas eram normais?
R- Sempre fui a primeira aluna. As aulas eram ______ muita reza, muito sofismo, muita coisa... Bom, para encurtar a conversa, nesse colégio eu ia ser expulsa, porque eu fiquei amiga do pessoal da subversão, né?
P1- Que pessoal era esse?
R- Ah, eram os anos 1966, 1964, né? Na época da ditadura eu comecei a ler Marx, imagina, eu com o que, quantos anos? Eu lembro que ______ e as freiras no meu pé.
P1- E conheceu mais gente que lia isso?
R- Conheci muita gente que lia isso e a gente se correspondia. Muita gente foi presa e aí já estava perto de eu ir pra Fortaleza, namorei com um cara que foi preso, que foi exilado, que estava naquela coisa lá daquele____ ... Aquele povo que foi exilado. Um cara que era revolucionário mesmo do MR-8 [Movimento Revolucionário Oito de Outubro].
P1- A senhora já estava fora do colégio?
R- Nada, eu estava no colégio ainda, porque foi assim: quando eu terminei o curso normal, o meu pai disse que eu só faria faculdade se fosse para morar com as freiras. Aí eu não tive muita saída, fiquei um ano ainda no Crato fazendo o primeiro ano de Letras. Aí, foi quando eu conheci esse rapaz em Recife, no auge da subversão, aquelas brigas grandes de polícia com estudante, com não sei quem, eu conheci esse cara. Ele era de Recife e foi fazer um trabalho em Crato, aí pronto, a carreira subversiva que já estava bem desenvolvida na minha cabeça foi coroada.
P1- ______.
R- Ele foi preso com o Carlos Zaratin, irmão do Zaratin. Os dois foram presos juntos, porque eles foram acusados de jogar uma bomba no aeroporto de Recife pra matar o Costa e Silva. Olha bem com quem eu andava na época [risos]. Não foram eles, foi o quarto exército, tá? Vocês não eram desse tempo, mas tinha aquela coisa do exército fazer e os subversivos tomarem a culpa. Então, morreram as pessoas, mas não morreu o Costa e Silva. E ele foi preso, foi exilado na França, nunca mais o vi. Ele morreu, teve um câncer por conta de algumas torturas lá. Foi torturado e morreu 15 dias depois da morte do meu marido. Eu não cheguei a vê-lo quando ele voltou da Europa, depois do exílio. Mas foi uma coisa muito forte.
P1- A senhora terminou o colégio e ficou mais um tempo lá ainda?
R- Fiquei um ano fazendo o primeiro ano de faculdade, morando no colégio e sendo professora, onde eu aprontei todos esses negócios aí.
P1- Aí já estava melhor a convivência?
R- Já estava melhor, porque eu saía à noite pra ir para a faculdade. Eu dava aula durante o dia e à noite saía. Eu só não podia dormir fora. Então, eu tinha esse namorado revolucionário que veio do Recife e era uma confusão também com as freiras, porque eu não podia dormir fora de jeito nenhum, voltava da faculdade pra casa. Esse foi o último ano que eu passei em Crato. Aí, fui pra Fortaleza em 1968, foi quando saiu o AI-5 [Ato Institucional nº 5].
No dia 18 de dezembro de 1968 saiu o AI-5. Eu estava fazendo Jornalismo na época, fazia Letras. Fazia duas faculdades ao mesmo tempo e saiu o AI-5. Ele estava preso já em Recife e, Ave-maria! A família ficava preocupada porque eu era muito envolvida com essas pessoas. Eu não era da linha de frente. Nunca tive coragem pra... Mas eu era de todos os movimentos da faculdade. Em uma época, a reitoria cancelou a minha matrícula, foi o Zé Dirceu junto com o Genoino. Eu fui colega do Genoino, colega não, contemporânea, na época em que ele fazia, o que ele fazia? Filosofia, eu fazia Letras. Eu era muito chegada com essas pessoas, mas eu não tinha coragem de ir para aqueles movimentos de frente. Eu morria de medo da polícia, mas eu fazia parte. Por exemplo, muitas noites fiquei na faculdade. O Genoino brigava lá com a polícia, a polícia fechava a faculdade e a gente ficava lendo, estudando, esses negócios, né? Mas eu nunca fui da linha de frente. O pessoal ia pra Ibiúna, na época eu não fui, foi todo mundo preso aqui. O Zé Dirceu que organizou o congresso, super desorganizado, né? Aí, todo mundo foi preso. Mas, nessa época eu não vim pra cá. Ia muito para o Rio na época da UNE [União Nacional dos Estudantes], no congresso, não sei o quê lá. Nisso aí eu já estava morando em Fortaleza, estudando lá na Universidade Estadual de Fortaleza, nessa época.
P2- Qual o curso?
R- Eu fiz Letras e Pedagogia. Pedagogia foi depois. Na época eu fazia jornalismo,
e o nome não era esse, era Ciências Sociais. Eu fazia Ciências Sociais e Letras na Faculdade Estadual, as duas eram na Faculdade Estadual. Aí também era professora, depois comecei a trabalhar como orientadora também na rede pública.
P1- E o que fez a senhora a escolher esses cursos, essa carreira?
R- É o seguinte: eu queria ser jornalista, só que no auge do meu curso de jornalismo chegou o AI-5. Como é que eu ia ser jornalista com toda essa vontade de escrever com o AI-5 na minha cabeça? Aí eu resolvi debrear, como na época a gente chamava, debrear. Os ______ chamava de debrear, pessoal da universidade, Genoino usava muito essa palavra. Debrear é quando você tem um ideal político, mas você não tem peito pra ir em frente, né? Não tem. Aí, você vai fazer outra coisa. Então eu fui pra área, já dava aula, já tinha sido professora lá no Crato, já gostava também. Fui ser professora e depois fui fazer o curso de Pedagogia. Na época, fazíamos concomitante, hoje também se aproveita cadeiras, né? No mesmo período que eu conclui Pedagogia, eu conclui também Letras, quase na mesma época. Então aí eu virei professora.
P1- E depois saiu do colégio? Como chamava esse colégio?
R- Qual colégio?
P1- Esse de freiras.
R- Colégio Santa Teresa no Crato.
P1- Colégio Santa Teresa no Crato.
R- É, no Crato. E o colégio Nossa Senhora Assumpção que era em Fortaleza, era da mesma congregação, eu também dei aula lá. Algum tempo eu dei aula nesse colégio e no colégio público também, que eu não lembro mais o nome.
P2- Aula do quê a senhora deu?
R- Aula de Português.
P2- Durante o curso de faculdade?
R- Durante a faculdade, aula de Português.
P1- E quais cursos a senhora realizou? Até então a senhora tinha?
R- Eu concluí mesmo Letras, conclui Pedagogia. Jornalismo, no último ano eu casei, não apresentei o Trabalho de Conclusão no curso de Jornalismo. Então, outro dia eu fui lá na faculdade tentar resgatar alguma coisa, eles me dão todos os créditos, mas não dão o diploma porque eu fui embora para São Paulo, no último ano. Então, eu concluí mesmo Letras, concluí assim, tenho diploma, né? Letras e Pedagogia.
P1- E como era a turma da senhora?
R- A turma de quê? Pedagogia ou de Letras?
P1- A de Letras.
R- Era um povo, assim, metido nos movimentos revolucionários, que eram muito fortes na universidade, né? Na época. Eram pessoas muito voltadas para as Ciências Sociais, eram pessoas, eu não diria revolucionárias porque isso era meio, eram meio fugidias. Ninguém era revolucionário porque todo mundo tinha medo da polícia, né? Morria de medo da polícia a minha turma. Mas, era um povo, assim, que me agradava muito, porque estavam preocupados com as questões sociais do Brasil, com os movimentos na época. O que era de movimento forte? Era a UNE mesmo, a UNE nos mobilizava muito na época. Na época tinha um jornal, não era o Opinião, era um jornal que circulava pela UNE, uma revista, essa revista circulava muito, a gente discutia muito os temas. Foi uma época bem rica de percepção de mundo, foi a época dos grandes festivais de São Paulo, foi a época da...
P1- Isso 1960 e...
R- 1968, 1969. Meus amigos, muitos foram presos. Então, foi uma época muito rica de ideias. Eu digo para minha filha que acreditávamos que iríamos mudar o mundo. É tão engraçado aquele grupo de jovens, a gente ficava numa sala fechada. Eu cheguei a participar de leituras, assim, você, a pessoa pingando. Era tudo proibido, né? A gente acreditava que ia mobilizar e ia mudar o mundo, acreditávamos que iríamos fazer uma revolução, que essa revolução poderia mudar o país. Era um ideal ingênuo, mas era verdadeiro, a gente achava que ia acontecer isso.
P1- E as formaturas?
R- Na época das formaturas ninguém tinha muita vontade de ir, porque tinha aquela coisa da rebeldia de não querer ir lá e de fazer aquela coisa formal. Porque achávamos que pouca gente se formava, que era privilégio de classe conseguir um diploma e ainda é, né? Isso há 20, 30 anos era privilégio e eu lembro, acho que eu nem fui. Colei grau acho que de Pedagogia, de Letras eu nem colei grau na época.
P1- E a senhora tem contato com os ex-alunos nesse tempo?
R- Tenho com algumas pessoas. Eu tenho uma grande amiga, cujo irmão foi assassinado em Marabá. Eu morei na casa dela na época, o Genoino estava preso em Fortaleza, depois ele fugiu e foi pra Marabá com (Beberson?). Essa amiga minha é desse período da universidade, ela mora nos Estados Unidos, mas a gente tem muito contato, né? Ela foi torturada, foi presa, ficou muito machucada, terminou casando com um americano e não podia entrar nos Estados Unidos porque a ficha dela entrou pela Suíça. Então, a pessoa cuja lembrança pra mim é muito forte, eu tenho uma relação muito forte com ela, eu convivi esses anos todos. Fui para Rio de Janeiro com ela, ela estava lá no Rio de Janeiro na época e depois foi presa e foi para o Piauí, foi muito torturada. Então, é uma pessoa que eu guardo essa lembrança. Agora tem uma outra pessoa, a Eulália, que era o outro lado da moeda, era uma pessoa que dizia: “Gente, não se mete nisso não”. Também ficou muito próxima a mim, é o contraponto de uma a outra, né? Mas, que também era uma pessoa que cuidava de mim, engraçado isso, né? Ela cuidava, tinha uma passeata e ela: “Não, não vai, é melhor ficar aqui, vamos ler.” Ela tinha, assim, uma coisa muito legal comigo, então, são duas pessoas que eu tenho próximas a mim dessa época da universidade por razões completamente diferentes: a Ione era revolucionária, aquela pessoa idealista que me inspirava também. Era muito mais ousada do que eu, muito mais corajosa do que eu, mas me inspirava muito. E a Eulália era o lado da temeridade: “Olha não vai, tenha cuidado, fica com a tua família.” Então, eu tenho essas duas grandes amigas da universidade.
P1- E a senhora começou a trabalhar, então, quando começou a lecionar?
R- Sim.
P1- Com quantos anos?
R- Eu comecei a trabalhar com 18 anos.
P1- E lecionava no colégio.
R- É.
P1- E a senhora lembra do primeiro dia em que foi dar aula?
R- Sim, professora de Francês. Era nesse colégio lá. Eu ainda era aluna do colégio, dos últimos anos. Fui dar aulas de Francês, primeiros dias. Lembro demais. Eu tenho alunas ainda que lembram, pessoas que lembram.
P1- É? Como é que foi o primeiro dia?
R- No primeiro dia eu queria ser muito sabida, falava assim francês o tempo todo, me mostrando, me exibindo e não sei o quê. Falando francês errado, depois eu via que falava tanta besteira. Mas, raro falar isso, professora de francês no colégio onde eu estava estudando ainda, né? As meninas próximas da minha idade, ainda aquilo foi uma coisa muito boa pro meu ego, né, pra minha auto-estima.
P1- E ficou dando aula lá?
R- Fiquei um tempo dando aula lá.
P1- Depois, em que outros lugares a senhora trabalhou?
R- Aí, eu fui eu dei aula, depois eu fui para esse colégio de freiras também dar aula em Fortaleza. Depois eu fui dar aula, gente eu estou com o nome do colégio na minha...colégio estadual.
P2- E a senhora, como professora, como se relacionou nesse colégio de freiras? Como aluna nós já sabemos.
R- Ah, como professora era complicado, porque de vez em quando eu fazia alguma coisa que as freiras tinham que vir pra amaciar o negócio, né? Porque eu empolgava muito as meninas. De vez em quando, vinha uma freira pra ajeitar o negócio [risos].
P1- Que a senhora tinha desajeitado [risos].
R- Eu mobilizava exageradamente as meninas, né? Eu me lembro que uma vez tinha um negócio complicado,
uma menina foi mostrar o corpo pra outra, estava crescendo, não sei o quê. A freira ficou horrorizada e disse que era o demônio. Eu fiquei louca! Aí, eu fui tomar satisfação com a freira e foi uma confusão grande isso aí. Ela disse que eu tinha que tomar conta da minha vida, que eu deixasse pra fazer isso quando os filhos fossem meus e que eu não tinha nada haver com isso. A menina chorava de medo da freira e a freira dizendo que aquilo era o demônio. Sabe como que é adolescente, a curiosidade de você mostrar pra outra, olha, que coisa horrível. Aí eu vivia brigando lá.
P1- Brigava com a freira pra freira não fazer isso.
R- Agora, só um detalhezinho aí: esses anos todos eu fui a primeira da sala, em tudo. Eu tirava dez assim.
P1- E as alunas gostavam, né?
R- As alunas gostavam e as freiras também. Eu só não valia nada assim, era uma coisa horrível. Uma vez, eu enfiei um garfo no véu da freira, coitada, puxei o véu da freira, apareceu a “carequinha” a freira saiu chorando, gritando.
P1- Era briga feia.
R- É, não eram coisas pesadas, mas naquele contexto de austeridade, como é que se diz, de repressão, isso era o fim.
P1- Então, em que outros lugares a senhora trabalhou mesmo? A senhora deu aula em outros colégios?
R- Dei aula no estadual e no colégio de freiras, lá também em Fortaleza.
P1- Mas, já depois de formada?
R- Não, ainda estudando.
P1- E morando lá dentro?
R- Não. Eu fiz o primeiro ano em Crato, aí eu fui pra Fortaleza. Na época, alguns irmãos meus estudavam em Fortaleza, mas nós não tínhamos casa ainda, cada um estudava, não era universidade ainda, era Casa do Estudante. Eu fui para Fortaleza pra um colégio de freiras da mesma congregação do Crato e morei lá dois anos, até o meu pai comprar uma casa pra gente lá em Fortaleza. Juntou alguns, porque muitos estudavam em João Pessoa, outros em Natal, outros em Fortaleza, não sei o quê. Aí, ele comprou essa casa e juntou quase todo mundo, alguns ainda ficaram longe. Aí, eu era... Essa coisa de autoridade que eu estou dizendo pra vocês, muito cedo eu tive essas coisas, né? Eu era... Tomava conta dos meus irmãos, administrava a casa, tinha autoridade, muito cedo tive carro. Nossa, na época alguém ter um carro. Eu tive carro com o que? Com 18 anos eu tive carro, sabe? Você tinha o poder, né? Uma coisa... Eu acho que isso foi muito mal conduzido na minha vida, isso de ter o poder muito cedo, sabe? De mandar nos outros, de não sei do quê. Lá em Fortaleza, eu cheguei nesse colégio das freiras e, de repente, virei coordenadora do colégio, tá? E no primeiro ano eu mandei demitir um monte de gente, foi uma confusão, né? As freiras me davam também essa coisa, sabe, de poder fazer as coisas muito cedo, de decidir, de tomar decisões muito cedo. Isso teve dois lados na minha vida: um lado foi esse da intrepidez de ter coragem de fazer as coisas; por outro lado, eu ainda tenho dificuldade de administrar hoje essa coisa de mandar nos outros, sabe, de querer ser poder. Tem um lado bom que é o lado de você ir abrindo portas, né, de você ir impulsionando e alavancando as coisas, mas esse lado que você tem que se posicionar e se policiar o tempo todo, se não, você fica se sentindo o “rei da cocada preta”, né? De querer mandar nos outros.
P1- Não é muito bom, né?
R- Não é muito bom não, eu acho que não é.
P1- E quando você começou a trabalhar na Fundação Bradesco, a senhora já conhecia a Fundação?
R- Não conhecia nada da Fundação. Eu casei, vim morar em São Paulo, estava trabalhando em um colégio em Cotia e estava na representação do Governo do Ceará em São Paulo. Eu tinha dois cargos públicos quando vim de Fortaleza para cá. Fiquei no escritório de representação que tinha o Governo do Ceará no Estado de São Paulo. Aí, eu estava trabalhando, era um expediente lá e outro no colégio, num colégio na “Raposo”, na Granja Viana e o psicólogo de lá era o psicólogo aqui na Fundação Bradesco. Aí ele começou a me falar: “Oh, menina, vai ter uma seleção pra professores de português, você não quer ir lá?” e não sei o quê. Aí, eu falei que nunca tinha ouvido da Fundação Bradesco. Cheguei lá, era a Regina a diretora. Ela me deu um chá de cadeira de oito horas, fiquei oito horas esperando [risos]. Daí, eu cheguei, estava havendo mesmo a seleção pra professor e eu tinha feito, na mesma época em São Paulo, um concurso, fazia muitos anos que não havia um concurso público em São Paulo, eu fiz e fui aprovada. Esse concurso me abriu, assim, todo mundo achava que eu era the best, né? Chegar lá do Ceará e passar num concurso para professor que era um... sabe assim? Faziam não sei quantos anos que não havia um concurso no Estado de São Paulo. Então, foi a primeira coisa que a Regina perguntou: “Fez concurso?” Ela falava forte assim, a gente tinha medo dela, mas ____. Vocês conheceram a Regina, é um amor de pessoa, mas ela é austera também, na época ela era muito austera: “Passou no concurso do Estado?” .“Passei”. “Que lugar tirou?”. “Oitavo.” Não sei quantas mil pessoas fizeram. “Então, você vai passar também neste aqui, você vai ser a minha professora na Fundação Bradesco”. Daí, fiz as provas todas, fiz as entrevistas todas e fiquei como professora de Português aí e na Granja, tá?
Foi na época que saiu a chamada para o Estado, eu deixei a Granja, na verdade eu não deixei, eles me mandaram embora. Também, eu fiquei fazendo umas revoluções lá porque só era filho de gente muito rica na Granja e eles humilhavam muito os professores, menininho filho de alemão, aquele pessoal. Era muito difícil a convivência lá porque eles achavam que todos nós éramos empregados deles, professores, né? Então não deu certo não, me mandaram embora, fiquei um ano e pouco lá. Aí, assumi no Estado como professora de Português e fiquei na Fundação.
P1- E qual a impressão que a senhora teve da Fundação Bradesco, assim, a senhora lembra do primeiro dia?
R- Eu lembro do primeiro dia. Ninguém acreditava que eu soubesse nada. Eu só comecei a ser alguma coisa quando as pessoas compreenderam que eu sabia alguma coisa. Porque é muito forte em São Paulo, isso eu senti na USP [Universidade de São Paulo] também. A minha irmã que está lá no Rio Grande do Sul, fez doutorado aqui na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], é professora lá no Rio Grande do Sul, já é diretora de departamento na universidade, mas, é uma coisa sub-reptícia, mas, a gente sente. As pessoas olham. Agora, eu não sei se tem isso ainda, não deve ter mais, não é possível que tenha, mas, eu me lembro de estar na USP fazendo os cursos e as pessoas me olhavam assim: “Ah, sabe nada, veio lá do Ceará, ela sabe coisa nenhuma.” E quando eu comecei a ter fala, a ter voz, quando as pessoas começaram a...
Foi que eu comecei a ter amigos, são pessoas que ______ É engraçado isso. Aqui na Fundação foi um pouco parecido com isso, não a Fundação, algumas pessoas, sobretudo, porque eu fiquei um ano sendo professora e em seguida eu fui pra um cargo que devia ter o quê? Umas 30 pessoas esperando esse cargo, aí
já fui pra esse cargo aqui.
P1- Que era?
R- Era de orientadora educacional. Foi a Regina que me convidou também. Então, só fiquei um ano como professora. Daí, a Fundação virou uma paixão, uma grande paixão na minha vida. Eu só tenho outra paixão na vida, não, tenho duas antes, né? Tem a minha filha e qual a outra mesmo? A vida, tá? A Fundação foi assim amor à primeira vista, eu fiquei... Porque assim, o contraponto da Fundação era o Estado. Eu era professora de Estado de escola da periferia. Então, tudo o que eu não conseguia fazer no Estado eu conseguia fazer na Fundação, porque ela potencializava todas essas coisas, né? O trato com as crianças, os recursos, a possibilidade de crescimento de você fazer cursos, de você... Muito cedo o seu João me deixou fazer um curso na França, seu João (Carilo?), tá? Eu fui fazer um curso na França, imagina menina, eu me achava na época.
P2- Curso do quê?
R- Eu fui fazer, na época, não era propriamente um curso, na época, estava muito na moda em Paris Célestin Freinet, a escola de Freinet, que é uma escola cooperativa que começou no interior da França e depois se institucionalizou. Tornou-se uma metodologia, que era um estudo, não tinha esse negócio de livro, nada, os meninos que construíam os livros e era uma escola cooperativa. Então, essas ideias são muito fortes porque são ideias relacionadas com o construtivismo. Na época, o seu João deixou eu ir pra lá ficar um tempo em Paris, né? Ainda como funcionária da Fundação. Então, na Fundação eu me envolvia demais, me deixava maluca assim, quase que eu...
P1- Como era o dia a dia?
R- O dia a dia da Fundação era: tinha aulas, muitos encontros. Na época a gente tinha muitas discussões de professores, havia muitas possibilidade de discussões de estudos, hoje isso existe muito mais, né? Num nível muito melhor, num nível muito mais articulado, mas na época se estudava muito, tinha encontros semanais com professor, se discutiam dinâmicas de aula, se discutia planejamento. Havia muitos cursos, a Fundação propiciava muitos cursos e tinha recursos pra trabalhar, a gente tinha material, tinha instrumental de trabalho, como se diz. No Estado, você só tinha o giz e o cuspe, né? Aquela coisa pesada do Estado, muito pobreza, muita criança sem se alimentar, na época eu me lembro que não tinha nem gás pra fazer lanche para os meninos do Estado. Eu chegava aí na Fundação e aqueles lanches balanceados, a criançada toda muito bem alimentada. Então, eu fiquei o tempo todo fazendo o contraponto. Por outro lado, tinha uma coisa muito legal: tudo o que eu aprendia na Fundação dava pra fazer no Estado, eu levava as coisas pro Estado. Dava em termos, né? Assim, os materiais que a gente produzia na Fundação e levava para o Estado. Então, eu dava boas aulas no Estado na época para aquelas crianças que não tinham nada. E na Fundação eu vi essa possibilidade de crescer e foi crescendo isso dentro de mim, essa coisa da Fundação, sabe? É uma coisa que se apodera da gente, a Fundação, sabe? E eu fiquei por muitos anos com a vontade de fazer mais, mas eu não tinha muito como articular isso aí, como eu ia fazer mais, eu não podia. Na Fundação teve um tempo que tinha um grupo de pessoas que, na minha compreensão, na época, segurava um pouco o crescimento da Fundação, o crescimento qualitativo. Se construía muita coisa, abria-se muita escola, mas as pessoas não estavam muito preocupadas com a qualidade de ensino, tá? Não eram todas pessoas, uma ou duas, as pessoas nem estão mais lá. Aí, quando a Denise veio pra Fundação, veio a Ana Luiza, aí foi um sopro de renovação que a Fundação teve, né? E quase que na mesma época eu fui chamada para ser diretora.
P2- Em que ano que veio a senhora?
R- Quando a Denise veio para a Fundação eu já era orientadora na época. Ela veio em 1980 e, foi depois que o avô dela morreu, acho que foi em 1989 que a Denise veio pra Fundação.
P2- Como é que foi essa renovação?
R- Essa renovação foi isso que estou falando pra vocês. Foi em cima das questões qualitativas. Então eu comecei a ver a Fundação que eu queria que se projetasse no futuro. Era essa Fundação voltada para a qualidade do ensino. Então, eu vi também a Denise preocupada com o lado material, mesmo porque a Fundação tem esse lado do apoio material dos recursos. Mas, eu vi a Denise também como visionária nesse sentido, sabe, assim de começar a fazer coisas. Isso objetivamente acontecia de pensar nessa coisa da inclusão, em pensar em fazer movimentos, tanto que eu organizei, têm muitas fotos ali dos primeiros movimentos solidários que a gente começou a fazer na escola, foi ela que me chamou um vez e disse. Eu entendi assim: “Olha, aproveita essa liderança que você tem, esse papel e começa a fazer isso.” Isso cresceu hoje e já toma conta da Fundação, esses movimentos solidários, sabe? De solidariedade, os meninos se mobilizando e fazendo essas coisas. E a coisa também da qualidade de ensino. A Denise foi quem primeiro na Fundação falou sobre o Construtivismo. Não deixamos de usar a cartilha para usar o pensamento, as ideias e as concepções construtivistas de educação. Foi a Denise que começou na Fundação.
P2- Como é essa atividade de solidariedade?
R- Nós temos muitas atividades de solidariedade na Fundação. Têm muitos movimentos solidários, mas tem um que é anual, em que a gente envolve toda a Fundação: a gente faz o Dia Nacional da Solidariedade. A gente atende pessoas do Brasil inteiro, as escolas viram escolas de atendimento. Sabe esses movimentos globais que a Globo faz dentro do Sesi [Serviço Social da Indústria]. A gente tem hoje institucionalizado dentro da Fundação. Toda a comunidade se envolve. No ano passado, atendemos 700 mil pessoas no Brasil todo.
P2- Tem um Dia do Voluntariado.
R- Tem um Dia do Voluntariado. Isso é um movimento, só que na escola a gente faz esse movimento. Esse ano, por exemplo, já é a segunda vez que fazemos o quê? Essa escola, que é de referência, é uma escola cuja clientela, vocês viram lá por onde vocês andaram, é completamente diferente essa clientela que eu tenho aqui da clientela das escolas que eu tenho da Fundação. É uma clientela que tem um poder aquisitivo razoável se você considerar as outras, se você fizer um paralelo com as outras. Então, a gente está fazendo assim já pela segunda vez: as crianças dessa escola mandam, escolhem crianças de Bodoquena, Canuanã e do Jardim Conceição e mandam presentes personalizados. Então, é uma coisa belíssima, a escola inteira se envolve com isso e não é aquele presentinho que você compra e manda não. Você escolhe uma pessoa que tem nome, que tem idade, sexo e você escolhe o presente, vai comprar. Eu não gosto nem que os pais comprem, eu oriento os pais a deixarem os meninos comprarem. Assim, por um valor simbólico, por uma coisa assim. E o menino faz uma cartinha. Então, a gente aluga os caminhões e eles levam todos esses presentes embalados para essas crianças pobres, muitas que nunca tiveram presente na vida. Ano passado, teve uma criança que nunca na vida abriu um presente, de oito anos, de Bodoquena. Então, esses é um dos movimentos que a gente faz. A gente faz movimentos em hospitais, em asilos, fizemos com a AACD [Associação de Assistência à Criança Deficiente]. O que a gente, o que eu procuro fazer e que todos que acreditam nisso e é muita gente hoje, graças a Deus, é criar essa cultura do voluntariado, ensinar esses meninos a fazerem isso quando não estiverem mais na escola. Porque não somos ingênuos de saber que vai resolver as demandas do Brasil com o Dia Nacional da Solidariedade, mas o menino que fica comigo, que organiza aquele atendimento, vai se sensibilizar pra poder fazer isso sozinho depois, pra ver os outros de forma diferente, tá? Então, todos esses movimentos que a gente faz eu penso um pouco nisso, que eu estou formando pessoas melhores do que eu, elas vão ser pessoas melhores do que eu para sociedade.
P2- O trabalho da inclusão, como foi o processo?
R- O processo na inclusão eu comecei a ver na minha ótica, né? Estou falando aqui porque as pessoas todas percebiam isso. Eu comecei a ver essa coisa da Denise estar preocupada com o menino carente, né, da escola, da Fundação cada vez mais ter essa conotação de atender essa clientela de carências sociais, né? Eu comecei a ver isso mais profundamente com a presença dela na Fundação.
P2- Mas, esse critério já vinha sendo utilizado?
R- Sim, esse critério já era de raiz, né? Um critério de meta. Nosso criador, nosso fundador, já tinha meta de fornecer a sociedade, retornar para a sociedade aquilo tudo que o banco estava recebendo. E retornar em escola, né? Em formação. Mas, isso ele estava lá no pedestal dele, a gente não tinha muita aproximação, com Denise dentro da Fundação eu vi isso mais próximo, tá? Essa coisa do cuidado dela. Eram coisas pequenas, na época, ela ficou toda feliz que tinha arrumado duas bolsas de estudos pra dois meninos nos Estados Unidos. E ela: “Eu escolho os meninos mais pobres da escola, escolhi um menino de dois metros, um “negão” azul-marinho, ele não era negro, era azul-marinho.” Um menino pobre, mas, muito esperto, o André. E eu tive uma alegria muito grande esses dias, eu estava na minha sala, isso faz uns cinco, seis anos, entrou aquele moleque enorme com a farda dos Estados Unidos, a armada americana. Eu olhei: “Dona Mirian”. “Mas eu não acredito”. Hoje ele é militar da força americana, a porta que a gente abriu pra ele foi essa bolsa de estudos que ele teve de seis meses. Ele voltou para os Estados Unidos, conseguiu trabalhar, comprou um carro, comprou uma casa na Califórnia, levou os irmãos paupérrimos. O irmão agora vai levar a mãe. Então, sabe essas coisas pequenas, ela chegou com aquele brilho no olho dela: “Vamos fazer isso” e eu disse: “Vamos.” Aí, fomos comprar roupa para esse menino, compramos um enxoval, foi pra lá. O outro que foi junto com ele também conseguiu. Hoje trabalha no banco, está fazendo carreira no banco. Então, eu estou dando um exemplo aqui pra vocês que estão perguntando do exemplo. Existia a coisa configurada, né? Quer dizer, o ideal da Fundação, a base ideológica da Fundação, a base filosófica, é isso. Mas, eu comecei, eu, próxima à Denise, comecei a ver essas coisas no dia a dia. Esse olhar de mais ternura pros meninos, essa preocupação maior com o mais carente. Eu me lembro que um menininho tinha um problema genético, não tinha uma perna, ficava assim se arrastando pela escola e ela: “Vamos dar a perna desse menino” e deu a perna pra esse menino e até hoje ela dá, o moleque já é um homem e cada vez que precisa mudar a prótese a gente se lembra, vai lá e manda, sabe? É coisa da ternura, do olhar. Ela tem condições de fazer muito mais, mas eu comecei a ver isso de mais perto. E a Ana, quando entrou na Fundação, o que que eu comecei a ver com a Ana? O lado da qualidade do ensino. Ela altamente assim, totalmente preocupada: “Vamos melhorar o que se faz. A gente não quer só dar em cima, a gente não quer ser só uma instituição assistencialista, a gente quer dar com qualidade isso aí.” Então, a preocupação com o que o professor está fazendo na ponta, sabe? Você está acompanhando o trabalho do professor, você está vendo como ele ensina. Isso aí nesses últimos dez anos eu vejo com muita alegria essa coisa da Fundação hoje. A gente tem, a gente se compara as escolas particulares que têm muito poder aquisitivo, porque a gente tem tudo para oferecer na Fundação que essas escolas oferecem. Então, é nossa obrigação cada vez mais fazer melhor na Fundação. Isso é uma coisa que me impulsiona, que me dá um sopro, que me dá uma energia que eu não sei aonde que eu vou parar com isso, né? [risos].
P1- Essas duas maneiras de olhar, dona Mirian, são duas maneiras muito características do fundador, né, do senhor Aguiar. Acredita que a Denise, a dona Ana, tenham isso muito firme nelas?
R- Eu acredito, mas foi com a presença das duas que isso foi, vou usar uma palavra de empresa, foi operacionalizado, vamos dizer assim. O que o senhor Aguiar fazia?
P1- Elas deram continuidade, aprimoraram.
R- Elas deram a continuidade com pertinência. Então, o senhor Aguiar criava aquele monte de escola. Ih, tinha hora que ele inaugurava três escolas. Ele sabia o que estava fazendo, queria isso mas depois veio alguém depois dele pra fazer isso acontecer. Então, não era só dar o lanche, dar boa escola, era fazer uma escola de qualidade. Aquele menino que está lá em Bodoquena, não só merece uma escola, merece uma escola boa, merece uma escola de qualidade. Então, eu via a Denise fazendo isso, via a Ana fazendo isso e assim me empolgou cada vez mais. Empolgou, eu não gosto dessa palavra, empolgou, é babaca essa palavra. É essa Fundação que eu quis sempre ver, sabe? Era assim que eu queria ver, mas nesse caminho. Estou vendo isso acontecer na escola.
P1- E o que mais mudou? No que a Fundação Bradesco mais mudou durante essa trajetória que a senhora tenha notado?
R- Mudou como?
P1- O que mais mudou?
R- Mudou nesse sentido aí. Acho que o que mais mudou foi esse foco para a qualidade da escola, para a qualidade do ensino. Ninguém perdeu o outro foco, que era o social, o foco da escola, o foco de abrir portas, de multiplicar saber, de não sei de quê. Mas, esse foco foi pro lado e, hoje, com o planejamento estratégico que é a forma científica de avaliarmos o que está acontecendo, quer dizer, vamos saber se a gente está fazendo coisa boa mesmo, como a gente pode fazer isso? Hoje, já tem mecanismo pra isso, é muito arrojado isso aí, é muito contemporâneo, muito novo. Poucas instituições de ensino estão fazendo isso, nós estamos fazendo. A gente podia só continuar dando escola, né? Mas, atualmente, essa coisa de procurar cada vez mais a instituição, se especializar em fazer bem, em trabalhar com qualidade, acho que não tem outra forma de falar isso. É trabalhar bem a educação. Ninguém deixou de lado esse foco da informação, de ampliar o espaço pras pessoas.
P1- Dos ideais todos.
R- Dos ideais todos. Mas eu acho que junto com isso, casou muito bem essa determinação da Denise de fazer isso cada vez melhor, tá?
P2- E esse projeto de inclusão digital lá, Centro de Inclusão Digital na aldeia?
R- São muitos centros, foram 32.
P2- Faz parte dessa?
R- É desta ampliação, mesmo porque esse aí é o foco do futuro, né? A Fundação vai se projetar para o futuro com essa ideia. Inclusive, o curso que eu estou fazendo agora na pós-graduação é Educação à Distância. Eu resolvi aprender isso também, estou tentando aprender. É o que? É uma forma de você cada vez mais democratizar o ensino, é o que o mundo todo está fazendo isso, né? Quer dizer, as novas tecnologias nos dão essa possibilidade. Você, ao invés de dar uma sala de aula, pode dar 50 salas de aulas, 100 salas de aula para as pessoas usando a virtualidade, usando as tecnologias de ponta, né? Você pode fazer isso. Então, a Fundação está se voltando pra isso. Vai, inclusive, não sei se você sabe, vai ter um departamento novo que vai inaugurar essa visão, eu posso até dizer assim, cosmopolita e ampliada de educação. É você multiplicar, usar esses recursos da tecnologia pra levar saberes para muitas pessoas, para socializar mais ainda o ensino, né? A educação, a formação continuada, porque aí a Fundação, além de dar escola, ela pode trabalhar e a vai, já está fazendo isso, que a gente já tem a escola virtual, oferecer educação permanente, né? Continuada pras pessoas.
P2- São quantos centros de inclusão digital?
R- Acho que são 32 funcionando. O CID [Centro de Inclusão Digital], né?
P2- O CID.
R- A ideia é a gente ter 40, nós vamos chegar lá no 40, né?
P1- Nós vamos respirar um pouquinho pra trocar o CD.
R- Gente, como vocês me fazem falar esse tanto? [risos].
(troca de fita)
P1- Bom, uma coisa interessante, pra tudo isso acontecer é necessário esta população de funcionários que a Fundação tem também, né? Todos os funcionários de todos as regiões têm uma importância para isso. E a Fundação, qual a importância pra Fundação Bradesco, o que ela representa para os funcionários no passado e atualmente na sua opinião?
R- Eu acho que a Fundação - isso dá pra gravar – tem um rabo muito grande. Porque eu não conheço ninguém que chega na Fundação pra não se apaixonar, pra não dar o melhor, pra não se envolver, pra não… Os pouquíssimos casos foram expurgados, saíram naturalmente porque são equipes de trabalho que a gente têm. Tudo o que eu consegui na minha vida nessa escola, onde eu pude trabalhar pela Fundação, foi por causa de uma equipe. Uma equipe laboriosa, inteligente, esperta, interessada, comprometida. Porque você sabe que a gente não tem política, como é que se diz, salários competitivos, até poderia ter, né? A Fundação não tem, mas são pessoas muito interessantes, muito inteligentes e muito competentes que vão para a Fundação. É impressionante, sabe? E você vê também uma coisa: como esses meninos que passam pela Fundação viram profissionais e quando eles viram profissionais da Fundação é um outro encantamento dessas pessoas que tomam conta. Então, as meninas que eu tenho, que foram alunas da escola, que hoje são professoras ou que são orientadoras, dentistas, tem uma que acabou de entrar que é dentista, você precisa de ver a dedicação dessas pessoas da Fundação, é demais. Então, eu acho que tem alguma coisa, eu não sei se é subjacente, eu não sei como que é, essa coisa das pessoas gostarem de fazer as coisas na Fundação, gostarem de estar lá, de fazer as coisas, sabe? Eu acho que à isso se deve muito, porque não é a dona ____ sozinha, nem ninguém sozinho conseguiria fazer. As ideias se propagam, tomam conta da gente na Fundação. Se apregoa uma coisa aqui hoje na Fundação, amanhã já virou história, as pessoas já estão fazendo, tá?
Isso é uma coisa muito forte na Instituição. Às vezes, eu vou aí, as pessoas me chamam pra conversar em algum outra escola, universidade. Outro dia, eu fui numa faculdade, pra mim tinha mais multidão do que estudante, eu nunca vi tanta gente, faculdade grande aí de São Paulo e eles me perguntando o que tem de diferente na Instituição. Eu acho que são essas coisas das pessoas tomarem conta da Fundação, fazerem as coisas, sabe? Acreditar nas coisas que a gente está fazendo. Todo mundo acredita no que você está fazendo na Fundação. Você vem com uma ideia nova e a pessoa acolhe a ideia, já não é mais sua, é de todo mundo.
P2- E desafio nessa trajetória toda?
R- Todo dia. Desafio de ter família, de ser casada e eu era mais da Fundação do que do marido, né? O casamento não acabou porque a morte acabou com o casamento antes, né? Mas eu era muito mais da Fundação do que da minha casa. Eu ficava mais na Fundação do que na minha casa. Agora, o meu marido ficou doente muito cedo, daí ele morreu. Então, agora eu tenho a Fundação em toda a sua plenitude. Tem a minha filha, que é a minha outra grande paixão, grande desafio também educar a minha filha, foi muito difícil. Uma pessoa muito inteligente, é jornalista da Revista Veja, a Juliana. Foi muito difícil essa passagem da vida, perdeu o pai e eu ficava sozinha com ela. Uma relação complicada, uma relação, como eu diria pra vocês, uma relação de aprendizagem, mas de muito sofrimento, de muito conflito, muito desafio. Aí, ela foi morar em Londres. Quando ela voltou, estava diferente. Hoje ela mora sozinha, eu também moro sozinha e a gente tem uma coexistência pacífica e amorosa, tá? Então, é um grande desafio essa coisa de educar uma filha, de ter um casamento e de ter a Fundação na minha vida. E de não parar de estudar, né? Porque eu estava estudando, foi um grande desafio. E o desafio maior era o de todo mundo, que ainda é o meu desafio hoje na Fundação. São as ideias que a gente quer por no papel, por na vida, por na realidade, é a coisa complicadíssima você educar gente hoje, você enfrentar as relações complicadíssimas dos meninos com as famílias, sabe? De você construir coisas que as famílias, muitas vezes, não consolidam em casa, às vezes, até atrapalham, então, esse é desafio de todo dia. O desafio do trabalho como professor, todo dia tem um desafio na escola, não tem um dia diferente pra mim na Fundação, todo dia é um novo, é um dia diferente, é dia desafiador, isso me mobiliza toda hora.
P1- E, dona Mirian, a senhora é viúva. Como foi o episódio do casamento, como é o nome do marido da senhora?
R- Idílio, o nome é romântico. O casamento não foi muito romântico, mas o nome é. Idílio [risos].
P1- Idílio do quê?
R- Idílio Pereira Filho, é o próprio. Idílio [risos].
P1- E como a senhora conheceu ele?
R- Eu conheci ele no Ceará. Ele foi, na época eu trabalhava no palácio do governo no Ceará e ele foi fazer, era uma época….Não sei se foi o governo ou se foi o Sesc [Serviço Social do Comércio] que convidou, ele foi dar uns cursos no Ceará, ele era supervisor do SENAC [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial], alguma coisa também na área de educação. Eu fui receber esse grupo de educação de São Paulo e conheci ele. Ele era noivo, chegou lá com a aliança, só durou 15 dias a aliança dele no Ceará [risos]. “Puta” aliança no dedo! [risos]. Aquele calor do Ceará, o areal, aquele negócio lá, aquelas praias que você conhece, enfim. Daí, eu recebi o homem, fiz a recepção fiz as honras da casa e pronto. Começamos a namorar, ele veio pra cá, acabou com a namorada, a noiva, a moça de Piracicaba. Veio pra cá. Aí, no meio do ano eu inventei uma história de ir pra Argentina, aí, fiquei no Brasil, não fui pra Argentina, fiquei aqui mesmo em São Paulo. Fiquei um mês aqui de férias e quando foi setembro ele veio casar, foi assim. O namoro na época só era telefone, não tinha internet, só telefone, o namoro.
P1- Foi rapidinho então?
R- Bem rapidinho. Eu conheci depois que casei [risos]. Isso aí fica na subliminar [risos].
P1- Fica nos bastidores [risos].
R- Subliminar [risos]. E aí a grande alegria foi a minha filha, Juliana.
P1- A senhora tem uma filha?
R- Tenho uma filha só, uma menina linda, exuberante, mas, bem difícil.
P1- Com quantos anos?
R- 28 anos. Eu estou com medo dela qualquer dia ter um problema. Esses dias elas me escreveu daquele cara lá, o publicitário, como é que é?
P1- O Duda Mendonça?
R- Duda Mendonça, o bandido. Eu disse: “Minha filha, se eu tiver que brigar com o Duda Mendonça, eu vou ter que vender o Ceará pra pagar” [risos]. “Pelo amor de Deus.” E assina, né? A… [risos].
P1- Lembra alguma coisa, né?
R- “Ju, faz favor, não escreve o seu nome embaixo, a mãe...” . “Eu sou profissional” se vier encrenca, o que eu vou fazer pra resolver é encrenca [risos]. A minha filha é arrojada, assim muito mais que eu, sabe? Escreve muito bem, muito bem mesmo. Tem um texto fácil, uma linguagem fácil, facilmente ela põe o texto na mão e escreve. Nunca foi estudiosa, mas sempre leu muito, acho que é isso, né? Ele fez Jornalismo na PUC [Pontifícia Universidade Católica], fazia, na época, História na USP, mas fechou o curso. Ela nunca foi
de estudar muito, mas, aprendeu muito com leitura. Hoje ela é compulsiva mesmo, leitora compulsiva.
P1- E o que mais a senhora gosta de fazer na hora do lazer, assim?
R- Na hora de lazer? [risos]. Também tem coisa que não pode gravar, né? [risos].
P1- Pois é. A gente pergunta, né? [risos].
R- Ah, eu vou muito ao cinema, eu gosto muito de concerto, eu sou sócia da orquestra da Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo], eu vou àqueles concertos na Osesp. Gosto muito de cinema. Eu tenho muitos amigos, que têm uma coisa engraçada, você, quando separa, isso é um traço social horrível, mas eu observei aí na minha trajetória de ser avulsa, que eu sou avulsa hoje, né? Eu me chamo de avulsa. Você, quando separa, quando se desquita, a sociedade te olha de um jeito, as pessoas te olham de um jeito, os amigos somem um pouco, sei lá. Quando você fica viúva, é engraçado, as pessoas parecem que te acolhem mais. Eu fiquei com mais amigos depois que fiquei viúva. E amigos com quem eu viajo, vou pra Europa, vou para o Ceará. Casais de amigos, eu ando muito com os meus amigos, tem casais maravilhosos, então, eu gosto muito de estar com eles, de viajar, de sair no fim de semana. E o que mais eu gosto de fazer? Gosto muito quando a minha filha me dá bola, às vezes, ela me dá bola, a gente sai, vai ao cinema. Esses dias, eu fui ver o filme que eu falei pra vocês, lá dos cafundó da Paraíba, Fim e Princípio, de Eduardo Coutinho. Um documentário maravilhoso lá em Araçás, bem pertinho do Brejo do Cruz, fim do mundo, o oco do mundo, sabe? Pensa assim quando acaba o mundo?
P1- É lá.
R- É lá. Araçás.
P2- É um documentário?
R- É um documentário igual a ele, porque aquele homem é maravilhoso, né?
Ele não faz nada, só deixa as pessoas falarem. Então, ele entra lá naqueles “bambuzeiros”, naqueles cafundós e deixa as pessoas, é como vocês estão me deixando aqui agora. Acho que essa coisa do cineasta, da alma, né? Que deixa as pessoas extravasarem, falarem. Então, ele vai, cutuca aquelas pessoas humildes lá do cafundó do Judas e a pessoa vai falando, aquilo é o filme, é a fala da pessoa que é o filme. Não é nada assim, como que eu diria pra vocês, ah, eu pensei: “Eu não vou porque deve ser bom, eu vou ver o sofrimento do meu povo, a miséria do meu povo.” Não é triste, não é sofrido, é pungente. Você acha bonito a pessoa falar da miséria, não é aquela miséria de sofrimento, de desgraça, aquela coisa que o povo gosta de fazer tese, né? É a miséria que está lá e que alguém foi e escutou. Então, é como se eu estivesse abrindo uma flor do algodão ali no meio da roça, sabe? Coisa linda o filme, vocês têm que ver.
P1- Eu vi uma chamada no programa da Cultura. A senhora conheceu o seu Amador?
R- Conheci, muito, convivi com ele.
P- Conviveu com ele?
R- Almocei com ele algumas vezes.
P1- Quais são as lembranças dele?
R- Eu tenho muita ternura pelo seu Amador. Eu achava assim, quando eu o conheci, ele já estava, não é que ele estava velhinho, estava doente. Tinha uma asma, uma coisa assim. Era uma figura assim: um cara elegante, você vai ver nesse texto que eu escrevi. Tudo o que eu falei do seu Amador é extremamente verdadeiro, porque eu sentia aquilo por ele. Eu sentia a grandiosidade daquele
homem ter pensado em fazer isso que vocês vêem hoje. Eu sentia aquele aura, tá? Não é aquela de santo, aquela aura de uma pessoa especial, eu sentia, sabe? Ele chegava na escola de terno muito elegante, uma figura esguia assim, olhava os meninos, gostava de ficar no meio da molecada e perguntar como os meninos estavam. Então, várias vezes eu tive momentos de vê-lo assim pela escola. Ele ficava muito bravo se tinha coto de cigarro pela escola. Oh, quando a gente sabia que ele ia lá ficava todo mundo catando, na época, ____ fumar, ficava catando... [risos].
P1- Se ele visse, ficava bravo.
R- Ficava bravo.
P1- E ele acompanhava todo o trabalho?
R- Ele estava sempre presente, né? Por exemplo, o seu João viajou muito com ele para essas escolas do interior. O seu João que ia, o seu João conviveu muito com o senhor Aguiar, conviveu muito mais do que eu. Eu era professora, né? Não tinha acesso, mas ele ia muito na escola. Eu tenho muita lembrança dele no pátio da escola cercado chamando os meninos pra conversar, conversando pausadamente, olhava, aquele olhar prestador assim, parecia que ele via tudo. Quem parece muito com ele é a Denise. A Denise, chega assim, ela vê tudo. Coisa que a gente não vê, ela enxerga num lance de olhar. O seu Aguiar era um pouco assim, ele olhava assim, você via que ela estava prestando atenção, sabe? Pesquisando com aquele olhar de profundidade, de busca mesmo, de eu quero saber tudo. Mas, eu via muita ternura nele, sabe? O jeito de acolher as crianças, de escutar as pessoas. Eu o queria muito bem, assim, bem no sentido de respeitá-lo, né? Como hoje eu tenho a maior facilidade de escrever sobre seu Aguiar. Todo ano eu tenho que ter uma inspiração pra escrever, mas não é difícil falar dele, tá? Eu não mistifico assim, não é uma figura mística, é uma figura real, mas, especial. Eu diria pra vocês, uma figura real, mas, especial pra mim.
P1- E esta escola em São Paulo, ela tem assim uma informação de é um pouco, foi um pouco, ainda é um laboratório pras outras escolas, né? Como foi a relação da senhora dirigindo essa escola com as outras escolas, como é isso?
R- Isso me envaidece muito, vou ser sincera pra vocês. Eu tenho plena consciência da minha participação nesse trabalho. Foi uma contribuição muito valiosíssima que eu, juntamente com a minha equipe, eu também não nunca estive sozinha, sempre tive uma equipe, era uma coisa que eu tinha muita vontade de fazer e eu comecei a fazer quando virei diretora da escola. Porque durante muito tempo eu fui diretora pedagógica de todo o complexo. Tinha a Márcia, que era a diretora administrativa e tinha eu que era a diretora pedagógica. Então, eu comecei a construir materiais junto com a minha equipe e esses materiais hoje subsidiam toda, hoje, claro que eles foram aperfeiçoados, depois grandes autores, pessoas das áreas, das respectivas áreas começaram a trabalhar, mas, a construção desse material foi na escola. Ele foi gestado na escola e eu me sinto muito responsável por isso. De ajudar as pessoas a escrever, de trazer materiais, de pesquisar muito, de começar a fazer à mão. É tanto que depois de alguns anos eu cheguei com o pacote de materiais e mostrei pra Ana. Eu disse “Ana, olha, isso aqui é construção nossa que o seu João tem muita vontade de ter esse material de produção da própria escola.” Daí, isso se expandiu pelo país inteiro é usado hoje nas escolas. Também assim, eu acho que eu contribui muito no dia a dia da organização da escola. Muitas coisas se perpetuaram nas outras escolas. É claro que se aperfeiçoaram porque a Fundação hoje tem uma estrutura, na época não tinha, ela tem hoje uma estrutura pedagógica e administrativa. Na época não tinha, tinha a Sandra, aquele que veio aqui, duas
ou três pessoas e os modelos, as coisas se multiplicavam através dessa escola mesmo. Nessa escola, as coisas iam se multiplicando e eu acho que eu contribui muito. Isso é uma coisa da qual eu tenho muito orgulho, de ter com a minha equipe feito muita coisa, ter colaborado muito pra socializar essas coisas nas demais escolas da Fundação.
P1- E a senhora acompanhou também a implantação de novos cursos pioneiros, como de Informática mesmo. Como foi isso?
R- É essa cultura da informática eu contribui, embora eu não seja expert.
P1- Como foi o desenvolvimento disso e...
R- Nós passamos na Fundação por todas as fases que os educadores passaram com relação à informática. Nós passamos pela fase de se assustar, de não saber se deveríamos ou não introduzir a informática e houve muita pesquisa, muito estudo com relação a isso. Passamos pela fase da informática ser uma coisa que estava lá presente, ela acontece e já era aquela fase: o que nós vamos fazer com a informática? Aí, houve muito investimento pra se dar resposta à esta pergunta. Paralelamente a isso chegou o Nivaldo, que é também uma pessoa iluminada pra mim. Quando ele chegou, contribuiu muito para que se criasse essa cultura da informática nas escolas da Fundação. Isso foi se expandindo, foi crescendo, hoje a gente usa a informática como instrumental didático pedagógico, tá? É uma coisa, é um desafio de todo dia o professor aceitar, se interessar, entender que ele vai melhorar a performance dele, que ele não vai ser substituído pela tecnologia. E eu acho que cada dia se consolida mais essa cultura da informática nas nossas escolas. Mas, teve toda essa trajetória de pesquisa, de estudo, de dúvida, desafio, nós passamos por tudo isso. E quem começou realmente com isso foi essa escola aqui.
P1- O pioneirismo disso...
R- É, pioneirismo acho uma palavra muito antipática, acho que ninguém é pioneiro, você está, sei lá, você tem o privilégio de começar, vamos dizer, eu vejo dessa maneira. Eu tive o privilégio de começar os cursos aí. A escola já começou com o curso de Informática antes de mim. Já tinha um curso de informática para os meninos. É um curso que cresceu muito, que se agigantou e que hoje, de certa forma, é a marca da Fundação, é marca da escola. O curso de Informática a gente formou muitas pessoas que estão muito bem no mercado hoje, tá? Paralelamente a isso foi se consolidando essa coisa da cultura da informática nas escolas. Hoje, a gente tem projetos muito arrojados. A gente ganhou, outro dia, o campeonato de robótica. Estamos classificados para ir pra Atlanta. Vamos para Atlanta representando o Brasil no campeonato de robótica, que também é um trabalho construído pela escola, já algum tempo a gente vêm com esses materiais, com esses projetos dos meninos usando tecnologia. Esses projetos, cada dia mais, estão crescendo, são divulgados nas outras escolas. As outras escolas também têm grandes projetos hoje.
P1- E prometem um futuro na Fundação, né?
R- Sim, prometem.
P1- Um futuro promissor na Fundação Bradesco, né? Todos esses projetos.
R- Sim, claro. Mesmo porque senão, você fica à margem da história. Porque quando a gente começava a discutir, vamos ou não vamos ter informática, ou você tem informática e usa e potencializa a informática para a educação ou então você fica à margem. Porque os meninos, sabe? Avançam muito nas questões da informática, né? Se a escola não estiver par a par, ela fica pra trás. A escola tem que usar o recurso, usar a tecnologia de forma produtiva, de forma proativa, vamos dizer assim, é isso que a gente está tentando fazer na Fundação.
P1- Dona Mirian, qual o sentimento de saber que o seu trabalho beneficia tanta gente, principalmente crianças?
R- É um sentimento de que, meu Deus? Não é de posse, nem de propriedade, acho que de alegria. Essa alegria toda que eu tenho, acho que vem muito disso aí, sabe, de eu sentir quantas portas que eu já pude abrir, quantos empurrões eu já dei, quantas lamparinas eu acendi. Vocês sabem o que é lamparina?
P1- Sim.
R- Eu acendi muitas lamparinas, eu tenho certeza disso, sabe? Então, isso me enche de vigor, me enche de energia e de vontade de ir pra frente, de fazer mais, sabe? De crescer, de aprender mais pra fazer melhor e de multiplicar, essas coisas.
P1 – Puxa!
R- Que foi o “puxa”, foi para...
R- Puxa o cabelo? [risos].
P1- Puxa pra ótimo [risos].
P2- A senhora, que já foi educadora em escola estadual e vem acompanhando muitos anos de educação na Fundação. Gostaria que a senhora falasse um pouco assim da importância da educação da Fundação Bradesco, né? Olhando hoje para o
nosso quadro de educação brasileira?
R- O que representa a Fundação? Eu acho que é assim: um país com tanta demandas, um país com tantos problemas sociais e se você pensar, a fonte talvez dos maiores problemas é a questão das carências educacionais. E eu falo isso de cátedra, né? Eu venho de uma região onde as coisas são muito complicadas, as carências são muito maiores ainda, né? E o papel da Fundação acho que é um papel motivador. Porque a Fundação também não vai resolver todos os problemas sociais da escola, mas, a Fundação está lá como uma motivação, não só no sentido de beneficiar as pessoas, bem como de mobilizar as pessoas que também podem fazer. Porque eu tenho certeza que esses meninos que passam por nós na Fundação saem melhores. Eles vão fazer aquela coisa que eu falei pra vocês antes, eles vão para a sociedade melhor do que eu, vão ser pessoas diferentes, eu acho. Então, nesse sentido, eu acho que é uma contribuição futurista, que nós estamos formando uma geração que vai contribuir muito mais pra amenizar ou pra transformar a sociedade do que a geração passada. Apesar de no país a gente ser um punhado de pessoas, mas, são pessoas que têm tanta vontade que são tomadas por esse desejo de levantar, de transformar, essas pessoas têm um poder significativo nesse universo de tantos problemas e dificuldades. Quando eu vejo o menino que foi para os Estados Unidos, é um exemplo, mas, que me diz assim: “Dona Mirian, tudo o que eu faço no exército americano de assimilar a filosofia do exército, a filosofia de simpatia pelo povo, de disciplina, eu aprendi aqui na Fundação Bradesco.” Esses dias estou recebendo na escola dois meninos que trabalham com o Ratinho, foram meninos muito ativos, que me deram muito trabalho, eles chamam “Azeitona” e “Caroço”, apelido dos dois. Então, eles chegaram na escola,
estavam hoje lá na escola dizendo pra mim que eles têm muito carinho pela Fundação, porque a gente era muito enérgica com eles. Mas, que essa energia que a Fundação passava pra eles hoje valeu muito pra sua vida, eles aprenderam muito e que agradecem os puxões de orelha que eu dava. Um deles, no dia da formatura, pulou e quebrou o pau, acabou o pau, aí, eu dei escândalo falei que ele não ia se formar, que aquilo era um absurdo, como ele fazia um negócio daquele. Ele chorou, aí veio pedir pra mim depois pra se formar e eu deixei. Ele diz que entendeu muito esse gesto, que é um gesto, como é que ele falou? Um gesto carinhoso ele disse que aprendeu pra vida dele. Ele está em um trabalho, que pode parecer um trabalho agressivo, que é um programa no mínimo polêmico, programa do Ratinho, mas, que ele convive com as pessoas, tem um trato especial com as pessoas. Ele sabe que aprendeu isso com a gente. Eu acho, por exemplo, têm muitas coisas na escola que eu também consegui, que eu batalhei muito. Eu tenho um coral hoje na escola. Eu digo eu tenho, eu tenho não, o coral é da escola, mas eu contribui muito para que a gente criasse esse coral. Um trabalho belíssimo. Esses meninos já gravaram CDs, eles são pessoas diferentes. Eu sei que, no mínimo, nenhum deles nunca vai tocar fogo em um índio, nenhum desses meninos que passam por essa experiência positiva, sabe? De agregação, de formação, de discussão, de música, de expressão, tudo isso a gente têm na Fundação. O menino pode fazer música, pode se expressar, cantar. Se você oferece isso pra uma pessoa, ela vai ser diferente lá fora. Se você faz um trabalho voluntário com um adolescente, eu falei isso, estou ficando repetitiva, você não vai mudar o mundo naquela hora que está fazendo aquele trabalho voluntário, você vai ajudar a mudar aquela pessoa. Aquela pessoa, na frente no futuro, você não está mais nem aqui pra ver, mas, ela vai ser uma cidadã diferente. Ela não vai quebrar telefone na rua, talvez não vá querer passar por cima do outro, talvez não vá ser uma pessoa azeda com o outro, vai ser uma pessoa diferente. Então, essa certeza me dá também a certeza de que nós estamos contribuindo, senão para o Brasil, mas, para a humanidade. Nós estamos formando pessoas diferentes para a humanidade eu tenho absoluta certeza disso.
P1- Tá contribuindo.
R- Com certeza [risos].
P1- Dona Mirian, pra senhora, qual a importância desse projeto Memória 50 Anos da Fundação Bradesco?
R- Eu não estou entendo muito bem esse negócio aí que vocês estão fazendo, sabe? Eu estou entendendo, assim, a coisa do resgate da memória. Eu acho que isso é muito da Fundação, essa coisa da memória.
P1- E ele vai se transformar em um livro. A nossa coordenadora pode te explicar melhor, diga.
P2- Eu vou explicar pra senhora.
R- Não está no script, mas você me explicando, eu me empolgo aqui e falo o que eu acho.
P2- É contar a história da Fundação Bradesco com a história das pessoas que participaram durante os 50 anos da Fundação Bradesco. Então é um livro, o produto será um livro pra contar toda essa história, com os depoimentos das pessoas.
R- Pois não tem coisa que se pareça mais com a Fundação do que esse gesto [risos].
P1- Português e inglês, para o mundo.
R- Porque eu acho que a Fundação é isso, são as pessoas, essa construção coletiva, é essa roda em cima de uma ideia, em cima de um projeto. Porque a Fundação é essa ternura aí, sabe? De valorizar o outro, de escutar o outro, de achar que é o outro que faz, não sou só que faço. Tudo que eu estou falando aqui só é possível porque são pessoas que estão agregadas à mim, são pessoas que comungam das minhas ideias, são pessoas que compartilham. Então, essa vai ser uma história belíssima, vai ser uma história muito bonita. A história da Fundação são as pessoas. É o seu caso atravessando o rio com a mala na mão pra ir lá construir Bodoquena é o seu João (Carilo?), 41 anos na Fundação, é a dona Regina, que a vida dela, não casou, não teve filhos, a vida dela é a Fundação, sabe?
É a dona Mirian que está aqui contando [risos].
P1- As revoluções armadas [risos].
R- Todas as revoluções da vida e o encantamento que eu tenho pela Fundação. É o encantamento que eu tenho pela história da Fundação. Então, eu acho que não tem coisa que pareça mais com a Fundação do que esse negócio aí que vocês vão fazer. Não sei se vocês vão fazer isso muito bem, mas, que parece muito bem com a Fundação, parece [risos].
P1- Eu acho melhor fazer, né? [risos].
R- Eu acho bom [risos].
P1- E o que a senhora achou de participar dessa entrevista para esse projeto de história oral da Fundação?
R- “Putz”, eu ganhei o dia. Eu vim assim meio receosa, porque eu achei que vocês iam fazer umas perguntas meio babacas: “Que a senhora acha da Fundação, quantos anos a senhora está na Fundação?” sabe, essas coisas assim que todo mundo pergunta: “Vocês acham que a Fundação não é o banco que sustenta?” “Vocês acham que o banco não paga imposto de renda?” Aí, eu pensei que vocês iam me fazer essas perguntas. Mas sabe, estou achando que vocês estão também entrando muito no espírito da Fundação [risos].
P1- No espírito da Fundação [risos].
R- Então, eu estou muito feliz. Daqui a pouco, vou encontrar umas pessoas aí muito simpáticas e vou contar essa história. Daqui a pouco, vou ligar pra minha filha, ela está lá na redação da Veja esperando. Eu fiquei de dizer pra ela como tinha sido a experiência, né? E eu estou muito feliz, estou alegre, estou...
P1- De participar dessa história, dessa entrevista.
R- “Putz”, eu vou ver o meu nome nessa revista nessa história. Essa história de luta, de conquista, de ideal, de encantamento, eu fazer parte disso. Meus Deus do céu!
P1- Vai estar registrado.
R- Vai estar registrado.
P1- Então, em nome da Fundação Bradesco e do Museu da Pessoa, a gente agradece muito o seu tempo e a sua preciosa entrevista.
R- E eu agradeço muito a oportunidade, sabe? Estou muito feliz. E você também, baixinho que ficou aí. Vai ser PhD [Doutor de Filosofia] em Fundação, se Deus quiser, né? [risos].
P1- [risos].
P2- [risos].
- - - FIM DA ENTREVISTA - - -Recolher