Projeto Instituto Vladimir Herzog
Depoimento de Clarice Herzog
Entrevistado por Karen Worcman, Luiz Egypto e Gunnar Carioba
São Paulo, 05/09/2019
PCSH_HV803
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
Revisado por Luiz Egypto
P/1 - Para ver a sua lembrança, só para marcar, eu...Continuar leitura
Projeto Instituto Vladimir Herzog
Depoimento de Clarice Herzog
Entrevistado por Karen Worcman, Luiz Egypto e Gunnar Carioba
São Paulo, 05/09/2019
PCSH_HV803
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
Revisado por Luiz Egypto
P/1 - Para ver a sua lembrança, só para marcar, eu queria que você dissesse seu nome inteiro e o local e a data do seu nascimento.
R – 01/07/1941, e o meu... Você quer o meu nome? De solteira?
P/1 - Seu nome inteiro.
R - É Clarice Ribeiro Chaves. E eu lembro, quando eu estava na USP, que foram ver que era Vladimir Herzog, o... Como ele chamava? O grandão lá falou: "Você com um nome tão maravilhoso, Ribeiro Chaves, e foi ter Herzog". Porque eu virei Herzog, aí falou: "Por que você usa Herzog?" "Ah, porque eu casei com ele e fiquei com o nome dele", porque era assim, a gente recebia o nome do [marido]. Pode ser que hoje não, você [decide]: quero continuar com meu nome. Me casei com o Vlado, peguei o nome dele, fiquei com o nome dele.
P/1 - E você nasceu em São Paulo?
R - São Paulo. Vivi minha vida toda na [rua] Ferreira de Araújo, que tem uma escola até hoje, que eu comecei a fazer pequenininha lá, que eu fazia, e eu até pus aqui, Alfredo Bresser, que está lá ainda, Alfredo Bresser.
P/1 - Era uma escola pública?
R - Escola pública. Toda semana tinha que cantar o hino nacional, ficava lá penduradinha, todas, cantando. E era muito gostoso porque as minhas amigas da rua eram minhas amigas da escola, porque era pertinho assim, muito perto, e entre a escola e a casa em que eu morava tinha uma casa enorme da minha avó paterna, era uma casa grande, tinha árvore, a gente pulava nas árvores, e pulava. Foi uma época gostosa, era uma época bem gostosa. Bem gostosa. Se bem que minha mãe não se dava muito bem com a avó, de tanto que amolou meu pai, tantas vezes, que foi morando cada vez mais longe, que acabou lá no sítio [em Bragança Paulista]. Mas era muito gostoso, eu tinha uns amigos lá, e era gostoso porque eu tinha aula com eles.
P/1 - Mas me conta melhor essa história assim: vocês moravam em Pinheiros.
R - Pinheiros.
P/1 - E a sua avó... Como era o nome da sua avó? Essa é a avó paterna que a gente está falando, não é?
R - Ah, eu não sei o sobrenome dela.
P/1 - Não, não. O primeiro nome.
R - Eu não tinha muito contato com ela, sabe por quê? Ela ficava esperando os filhos às cinco da tarde, iam lá, iam beijar ela antes de ir para casa, e minha mãe detestava isso. E cada vez ficava mais longe. Eu tinha muito contato era com os meus avós maternos, avós maternos que eu amava, amava.
P/1 - Você pode me contar um pouquinho? Quem eles eram?
R - O meu avô era italiano, ele chegou com 18 anos, e tinha a minha avó, Inês, de origem alemã. E chegou aqui, ficou com o meu avô, eles eram maravilhosos os dois, amava os dois. Eu tenho uma impressão interessante, minha avó era muito, muito... A gente ia para a casa dela, eu chegava e levava amigas para lá, e ela preparava macarrão, fazia comidinha. Meu avô trabalhava no cemitério do Araçá, ele fazia os designs das coisinhas. Aí ele chegava às vezes com dez [amigos], porque ele fazia os designs e tinha uns caras que faziam, ele levava todo mundo, minha avó sempre recebia numa boa. Minha avó era maravilhosa. Eu tinha muito contato com os meus avós do lado da minha mãe; não do meu pai, que não tinha muito contato.
P/1 - Me conta um pouquinho, o que você sabe da história deles? Quer dizer, ele veio com 18 anos da Itália.
R - Veio, da Itália.
P/1 - Por quê? Você sabe?
R - Ah, nunca perguntei para ele, nunca ouvi falar sobre isso.
P/1 - Você não sabia da história?
R - Não.
P/1 - Mas assim, por que ele veio para o Brasil?
R - É, a única coisa que eu tentei fazer, que eu fui buscar informações depois que eu já estava adulta, para quem chegou com ele lá. Aí eu fui me informar e só estava o nome dele, não tinha o nome de mais ninguém. Porque eu queria saber se eu podia ter uma tia de segundo grau, terceiro, mas não tinha o nome de ninguém, só dele.
P/1 - E mesmo da família dele, tios-avós, você não conheceu mesmo?
R - Só o meu avô, meu avô e a minha avó.
P/1 - E ela?
R - A minha avó ainda ela tinha um... A gente foi, ela me levou junto, porque ele cuidava de abelhas, tinha abelhagem, coisas de abelha, e nós fomos uma vez lá. Mas que morava bem longe, não é que fazia parte do dia a dia, não. Eu era muito ligada com meus avós maternos, muito, muito ligada.
P/1 - E ela era alemã?
R - De origem.
P/1 - Mas era brasileira?
R - É, ela veio para cá.
P/1 - Mas ela nasceu na Alemanha ou nasceu no Brasil, você sabe?
R - Não, ela nasceu na Alemanha, ela chegou da Alemanha.
P/1 - Você também não sabe por que ela veio?
R - Não. São coisas que a gente não pergunta, uma criança, para uma avó: "Por que você veio para cá?" Também não tinha essa preocupação. Não tinha. E aqui ela se casou com o meu avô, sempre foi tudo muito bom, muito, eu vivia na casa deles, gostava muito de lá.
P/1 - Eles moravam onde, Clarice?
R - Como chama a rua lá que nós passamos outro dia? Eles perderam a casa, foi uma tristeza isso. Como chama aquela rua? Oscar Freire. Eles perderam um pedaço da casa. Meu avô nessa época estava internado e minha avó não teve coragem de falar para ele, porque ele construiu a casa e eles perderam a casa porque foi tomada, um espaço enorme lá. Tanto que você anda, às vezes eu ando para ver se vejo alguma coisa que eu possa lembrar, porque eu era criança. Eu gostava muito, eu morava em Pinheiros, pegava a bicicleta, subia lá tudo, e ia de bicicleta para casa deles. Depois voltava de bicicleta. Eu adorava eles. Não tinha muito contato com a família do meu pai, porque minha mãe já era meio contra e eu não tinha, eu só sabia que eu tinha um avô, que ele tinha... Era uma casa grandona e tinha dois espaços dele, um que ele dormia e outro que ele escrevia, sei lá o que ele fazia. Eu sei que um dia eu entrei por trás assim, não sei por que eu resolvi entrar lá, e veio ele todo de preto, eu virei as costas e saí correndo.
P/1 - Não?
R - Nunca. Ele ficava trancado lá.
P/1 - Escrevendo?
R - Sei lá o que ele fazia lá, ele ficava trancado lá no quarto. E não dormia com a minha avó. Tinha o quarto dela e ele tinha quarto que ele dormia e o quarto que ele trabalhava.
P/1 - Você nem sabe qual era esse trabalho?
R - Ah, não tenho a mínima ideia. Ele foi um cara rico. Ele chegou, foi o que todo mundo falava, foi o primeiro cara que chegou com um carro aqui. Veio de Portugal, sei lá de onde ele veio, para falar a verdade. E eu não tive, não tinha contato, de conversar. A minha mãe disse que quando eu era pequenininha, eu ficava penteando o cabelinho dele, não sei o quê, mas ele ficava trancado lá, eu nunca via, nunca via. Ah, tem essa história. Ele teve uma outra, e teve umas três mulheres, três filhas. E elas iam visitá-lo, e minha avó sempre dizia: "Coitadinha dela, o velho fez mal para ela, coitada, deixa", então ela ia lá. E quando ele estava para morrer, ele tinha três filhas. Falou: "Eu não vou conseguir entrar na igreja com elas, mas eu quero". E chamou os três filhos, cada um deles entrou com uma das filhas dele, quando casaram, eu lembro disso, que eu achei bonito. Ele chamou e falou: "Eu não posso, não tenho condições de caminhar, nada", e chamou os três filhos e falou: "Eu quero que cada um de vocês entra com uma, você entra com fulano, fulano e fulano". Para os três filhos. E minha avó não tinha problema nenhum, ao contrário, dizia assim: "Coitadinha da fulana, o velho fez mal para ela". A minha avó era sossegada, "fez mal para ela".
P/1 - E eles eram então três irmãos. Então a família da sua avó, oficial, eram três filhos homens e a outra família três filhas mulheres, era isso?
R - Não, isso daqui é do lado do meu pai.
P/1 - Avô, do lado do seu pai. Então seu pai tinha dois irmãos?
R - Era, da minha avó eu tinha a minha mãe, obviamente, e uma irmã dela.
P/1 - Sua avó materna?
R - Materna.
P/1 - E a sua avó paterna então tinha três filhos homens.
R - Três filhos homens. E ele foi um homem que era muito rico. Foi o primeiro a chegar com carro, andar com carro por aí, não sei que século que ele chegou, mas todo mundo falava isso. Foi a primeira pessoa a andar com carro.
P/1 - Me conta um pouquinho mais, assim, um pouquinho agora da sua mãe. Então ela cresceu nessa família, como eram, quais são as lembranças que você tem? Me descreve um pouquinho.
R - Minha mãe era brava. Brava. Muito brava. Eu, por exemplo, sempre fui de comer mal, então eu ficava beliscando. Aí ela falava: "Sai da mesa", e eu saía da mesa. "Sai da mesa, Clarice. Não vai comer, sai da mesa." E meu pai, escondido, levava sobremesa para mim, porque ele sabia que a sobremesa eu gostava. E escondido, porque senão... Minha mãe era brava, muito brava. E a gente precisava tomar cuidado. Não sei se ela me batia, não lembro, de apanhar assim não lembro, mas ela era brava.
P/1 - Você tinha medo dela?
R - Tinha. Uma vez quebrou todos os pratos da casa, ela, sei lá o que ela tinha, ela brigava com meu pai. Eu tenho um irmão com um machucado aqui, porque ele se agarrou no meu pai, assim no meu pai, então ele tem um machucado aqui. Ela era bem maluca. Bem maluca, bem mesmo. Ela tinha alguma coisa, eu sempre digo Alzheimer, qualquer coisa, depois ela teve mesmo Alzheimer, que ela foi para o sítio com a gente, para ela ficar num lugar mais sossegado e tudo. Eu lembro que eu falava assim: "Mãe, eu sou Clarice, sua filha. Fala comigo". Que nada: ela pirou mesmo.
P/1 - Isso com que idade, Clarice? Que isso aconteceu?
R - Faz anos, anos, muitos anos isso.
P/1 - Você já era adulta?
R - Ah, eu já era, já devia ter uns... Assim, mas quando eu sofria, que eu ia falar com ela, que meu pai falava: "Fica com a sua mãe". Eu devia ter meus 15 anos por aí, acho que quinze.
P/3 - Dez anos atrás que ela morreu.
R - Morreu, mas quando eu ficava lá, que meu pai me fazia ir para lá: "Fica com a sua mãe". 15 anos. Nossa, eu tenho a impressão que é muito mais anos.
P/1 - Eu queria voltar um pouquinho para isso, da sua infância. Você tinha medo dela, como era esse cotidiano com a sua mãe, como era?
R - É, mas ela não batia, não fazia nada disso, ela controlava muito. É que minha mãe ela queria ser... Tem a madame não sei o que lá da... Como que chama?
P/3 - Ela trabalhava, ela era costureira num estúdio de costura da madame Rosita.
R - É, da Rosita, madame. E ela queria fazer isso na vida dela.
P/1 - Ser estilista assim?
R - É. E ela fazia coisas bonitas mesmo. O problema é que ela estava com filhos, e a coisa aí com o meu pai eu não sei se a coisa funcionava, eu não sei. Eu tinha um irmão, João. Você sabe quem é o João, não é?, que o João que fez cinema, fez “A Patética”, fez o... Eu estou com todos os... Acho que tinham quatro ou cinco que foram para o teatro mesmo, que a gente assistiu. Mas o João ele morreu cedo, ele era... O que eu posso falar que ele era? Homossexual. Morreu de Aids. E foi uma pena porque ele tinha um potencial incrível. Quando ele era pequeno, que ele estava na escola, ele escrevia para o jornal de São Paulo. Para o jornal de São Paulo não, para o jornal do bairro. Ele via peças, aí ele escrevia, fazia comentários e ia lá sempre, já escrevia lá para o jornalzinho e tudo. Mas, enfim, depois não deu certo.
P/1 - Então a sua mãe no fundo ela queria esse trabalho, ela trabalhava.
R - Gostava de trabalhar, mas meu pai não deixava ela trabalhar porque "imagina, homem tem que sustentar a família, não vou pôr ela para trabalhar, de jeito nenhum". Então tinha esse negócio na minha casa, que meu pai não aceitava ela ir trabalhar.
P/1 - Você me conta um pouquinho do seu pai? Como que ele era, qual a sua lembrança dele?
R - Ah, tudo coisa boa. Tudo coisa boa. Porque ela era muito brava, eu me lembro dela uma vez quebrar um negócio lá todo, todas as coisas, meu pai sempre segurando, não brigava, ele não... Ele: "Vamos com calma, Inês, vai com calma, tranquila", não sei o quê. Meu pai era bem mais sossegado.
P/1 - Ele chamava como?
R - Meu pai... João.
P/2 - O que ele fazia, qual era a profissão dele?
R - Eu não sei o que meu pai fazia.
P/3 - Construía.
R - Ah, ele construía. Desculpe, eu me lembrei agora. Se você entrar... Como chama aquelas ruas que são travessas ali, tem um monte de sobradinhos? Tudo que meu pai fazia, ele fazia e vendia. Não alugava, ele vendia, ele fazia até um monte de prédios... Não são prédios, não.
P/1 - Ele era engenheiro, então?
R - É, ele fazia. Não sei se ele chegava a ser engenheiro, mas ele fazia.
P/2 - Mestre de obras.
R - Pode ser. De obras, então ele fazia e fazia muito. Tem um monte de casas, uma atrás da outra, tudo que era do meu pai, meu pai construiu tudo isso. Ele tinha o pessoal que trabalhava, obviamente, não era ele que pegava, sei lá, para bater o negócio, mas ele que desenhava tudo e acompanhava.
P/2 - E sempre no bairro aqui, nas imediações?
R - Nas travessas aqui, sempre. Depois dali nós fomos para Bragança Paulista, aí ele começou a construir uma casa maravilhosa, que eu outro dia eu fui ver, eu queria dar uma espiadinha na casa, porque lá de cima a gente ficava vendo a cidade. Só que foi vendido e fizeram muros altíssimos, as pessoas hoje têm medo. Nós tínhamos a... entrávamos lá, tinha o negócio, entrávamos, agora o pessoal faz muros altíssimos, eu não consegui ver. Eu falei: "Ivo, vou dar uma olhadinha para ver a casa do meu pai", porque eu ficava sentada lá e a gente via a cidade ao longe, e eu fui para espiar e descobri que fizeram à volta toda dela, a volta toda, o negócio é enorme. Isso é tristeza, porque eu tentei dar uma... Onde eu fui quase criada, descobri tudo aquilo através dele, tudo. E sumiu tudo. Sumiu tudo.
P/1 - Você sabe como seu pai conheceu a sua mãe? Por que eles se casaram, como era a relação deles, o que você via?
R - A relação era tranquila, a minha mãe que era muito nervosa. Minha mãe sempre foi muito nervosa. Eu lembro que uma vez ela bateu com um negócio na cabeça dele, eu vi.
P/1 - Dele?
R - Dele. Ele nunca levantou a mão, berrou, nada. E o meu irmão, ele menorzinho, ficou assustado e agarrou, e ele tem um corte aqui, o meu irmão, que agora já é um homão. Mas ele tem um corte porque ela bateu na cabeça e estourou aqui. A minha mãe era isso, muito terrível, muito terrível. E ela ficou mal, ela teve Alzheimer eu acho, Alzheimer, porque nós levamos ela para o sítio, para ficar mais sossegado lá no sítio, tudo isso, e não adiantou nada, nada. Nada. Era totalmente... E era uma mulher linda. Eu lembro quando eu morava em Londres, tinha os meus filhinhos – meus "filhinhos" já são homões –, a gente fazia piquenique, ficava lá, eles iam sempre falar com ela, ela tinha um cabelo vermelho aloirado assim, não perguntava para a gente as coisas, os ingleses iam direto, observando e iam perguntar. Eu lembro que uma vez num banheiro ela disse: "Clarice, help", e ela falava "help" porque iam perguntando coisas, porque ela não sabia como responder, ela não falava inglês, mas ela tinha o jeitão dela. Ela era grandona, bonita. Ela era grande, não era pequenininha, não. E era uma mulher alta, bonita, loira. Loira e avermelhado o cabelo. Não puxei ela não, eu sou parecida com meu pai. Moreninha. Sou moreninha.
P/2 - Esse sítio de Bragança era uma propriedade da família? Como é a história desse sítio?
R - O negócio é que chegou uma época do meu pai, e eu acho que ele estava mais velho, tudo, ele deu o sítio para mim e um apartamento para o meu irmão, ali perto. Que ele construía, então ele comprou aquele sítio. E ele deu o sítio para mim, porque ele sabia que eu nunca iria morar lá. E deu um apartamento lá para o meu irmão que é muito gostoso, tem piscina, tem tudo, que mora lá hoje. Ele tinha um problema de coração.
P/1 - Seu pai?
R - É. E aí ele entrou em... Enfim, ele morreu muito cedo. A gente levou ele para casa, ele deu uma melhorada, foi internado outra vez, e aí ele acabou falecendo.
P/2 - Tem nome esse sítio?
R - Sítio...
P/3 - Sítio do Zico.
R - Do Zico, meu pai. Era o Zico, a gente chamava de Zico, ele era chamado de Zico, então é o Sítio do Zico. Eu pus um negócio assim, bonito, pus “Sítio do Zico”.
P/2 - E o sítio era só para lazer ou tinha algum tipo de produção?
R - Não, lazer só. Lazer. Porque o que meu pai fazia era construção de casas. Então o sítio ele não tinha o que fazer não, ele nem morou no sítio. A minha mãe ficou um tempo.
P/2 - Eles moraram no sítio.
R - Eles ficaram um tempo.
P/3 - Eles foram lá para Bragança, porque você já tinha o sítio lá, então eles foram morar no sítio, moraram algum tempo no sítio.
R - Moraram, ele sabe mais do que eu. Eu não lembro deles morando lá dentro da casa, junto com a gente.
P/2 - Clarice, conta um pouquinho como era esse bairro onde você nasceu, se criou, teve a sua infância, como era Pinheiros? Esses seus passeios de bicicleta?
R - Olha, eu andava de bicicleta, era uma coisa incrível porque... Bom, eu quebrei o joelho. Porque onde hoje tem [o Instituto] Tomie Ohtake, eu vinha com as mãos assim, e aí meu primo pulou atrás, e eu "desce, desce", e ele não desceu, naturalmente. E quebrei aqui. Eu fiquei com o negócio daqui até aqui enfaixado. Meu pai quando descobriu que eu caí ele ficou desesperado, achou que eu estava... Ele foi a pé me pegar lá. Meu pai era ligadíssimo comigo, era muito ligado. E eu morava ali, mas eu tinha amigos, e isso que eu falei no começo, que era muito gostoso, que eu tinha escola, que era perto, na mesma rua. Do primário, do primário. E são as meninas que eu brincava na rua, e eram da escola. Então já é tudo muito junto assim. Eu tinha umas amigas japonesas, que na época moravam por ali e a gente estava sempre brincando, sempre brincando na porta, pulando corda, aquelas coisas que a gente fazia nessa época. E era gostoso. Era gostoso.
P/1 - Clarice, agora falando dessa época, eu queria que você começasse a me contar qual foi a imagem que te veio quando eu pedi para você lembrar, suas primeiras imagens? Quais eram? Me conta.
R - Quando você começou a falar, eu comecei pensando eu quando era criança, na escola, como que era. Eu tenho fotos, que eu fui guardando, com as amigas. Depois quando eu fiquei um pouco maiorzinha, éramos três, eu, a Fátima [Pacheco Jordão] e mais uma amiga, que a gente ia para tudo quanto é lugar junta, todas. Tenho bastante foto com elas. E sempre juntos. Eu me lembro da vez que eu fui ao cinema, e encontrei meu pai, ele vinha do mercado: "Onde você vai?" "Estou indo para o cinema", isso eram quatro horas da tarde. Aí eu fui na casa da minha amiga japonesa, que ficou esperando os primos. Quando nós chegamos lá, já era tarde, ficamos lá sentados. Aí estava o filme, que eu vi três vezes o filme esse dia, porque eu estava esperando os primos chegarem. Aí de repente eu vi assim o lanterninha, eu falei: "Ih, eles vão tirar a gente", porque a gente era menor. Quando eu olho de novo, [vejo] a minha mãe junto. Eles ligaram para mil coisas, para hospital se tinha ido, para não sei o quê, para mil coisas, porque eu sumi, fui às quatro da tarde, meia-noite eu estava lá... Onze horas da noite, era, era onze horas da noite. Eu só sei que eu saía e minha mãe: "Eu vou sair". Chegando no Largo de Pinheiros está ele [o pai] com meus dois irmãos, eu falei: "Pô, a coisa está feia hoje". Aí chega em casa: "Vai comer", "Mas eu não quero comer", porque eu não comia.
P/1 - Ela?
R - Ele. Ele que era: "Come. Come senão eu te dou um...", ele pegou [o cinto] da cintura e me deu no bumbum, "Come". Aí eu comi. Ele era gente boa, minha mãe que era meio... [ela] teve Alzheimer e depois, tudo. E ele falava: "Fica com a sua mãe, fica", e ela começava a me bater. Eu não sabia disso, mas tem uma violência. Eu não conseguia, eu falei: "Eu vou lá, ela me bate", quer que eu fique e eEu não tenho o que fazer. Foi uma judiação, minha mãe foi uma judiação. Ela foi uma mulher até que interessante e tudo.
P/1 - Mas então me explica, ela queria trabalhar, mas ela não trabalhava, ele não deixava.
R - Não. Aquele negócio de homão. É a coisa: "Eu tenho uma família e eu sustento essa família, faço questão disso", aquela coisa toda. Eles tiveram problemas.
P/1 - E conta assim, por exemplo, quem cozinhava em casa? Quando você tinha seus dez anos.
R - É, eu acho que ela que cozinhava, eu também não lembro desses detalhes, eu lembro que ela me tirava da mesa porque eu ficava enrolando e enrolando. Ela: "Sai da mesa".
P/1 - Você tem dois irmãos ou um irmão?
R - Dois irmãos, um faleceu já. O outro mora em Bragança.
P/1 - Então eram três filhos.
R - Sim, dois meninos e eu.
P/1 - Essa história do cinema... mas depois você podia sair, quando você já era mais jovem, namorar, como foi?
R - Não, não tinha namorado nenhum. Eu acho que eu não tive namorado, o meu primeiro namorado foi o Vlado. Eu já era mocinha, eu já estava na USP. Estava na USP, conheci lá ele.
P/1 - Você nunca tinha namorado antes?
R - Tive um namorado. Que outro dia, gozado, ele ligou para mim. Faz anos, eu era uma criança, era bem pequena, e ele falou: "Clarice" – ligou lá para o escritório – "eu estou arrependido de não ter casado com você."
P/1 - Ligou para dizer isso?
R - Depois de tantos anos. Eu falei: "Eu nunca me casaria com você, você queria mandar em tudo". Não, eu nunca... É, ele me ligou faz uns seis meses, no escritório, eu estava trabalhando, me divertiu. Aí a Fátima falou: "Mas você foi má com ele, você podia ter dito assim 'ai que pena, mas passou tempo, eu já casei'". Eu não, falei: "Ainda bem, claro que eu não ia casar com você, você queria ser mandão, ia querer mandar em tudo".
P/2 - Clarice, ainda nesse tempo da escola, do primário, do ginásio, tem algum professor ou professora que tivesse marcado a sua memória?
R - Ah, uma que eu adorava, adorava, adorava ela, já no ginásio, naquele intervalo, eu gostava muito dela, ela dava Latim. Eu aprendi muito escrever em função do latim. Eu adorava ela. E quando eu saí de lá escrevi uma carta e dei para ela, adorava ela, era uma grande professora. Em compensação, tinha um professor que cantava lá, e fazia as coisas, e me chamava de “voz de taquara rachada”. Taquara rachada, porque eu [cantava] ruim. Como ele fazia as coisas, a gente tinha que ir marcando as coisas. E quando eu fui fazer exame final, eu falei assim: "Se eu tiver zero, eu passo de ano?" Aí ele ficou fazendo conta: "Você passa com zero". Falei: "Então é ótimo para nós dois, porque eu estou pronta para ir embora e o senhor não precisa ouvir mais a [minha] voz". Ele caiu na risada. Ah, mas eu cobrei dele, não precisa ouvir a voz de taquara rachada. Eu sempre fui meio de cutucar, de brigar pelo o que eu queria, essas coisas todas. Eu sempre fui, sempre fui.
P/1 - Como foi a sua adolescência, o que você lembra da sua adolescência?
R - O que eu lembro? Então, eu lembro de escola, que era muito gostoso, eu tinha uns professores maravilhosos.
P/1 - Era ainda essa escola?
R - Hã?
P/1 - Você foi para que escola quando ficou adolescente?
R - Fernão Dias. É Fernão Dias, que tem hoje ainda. Que eu estou louca para um dia dar uma espiada lá. E tinha professores maravilhosos, por exemplo, eu tinha um professor de Português e ele colocava... Tinha o pessoal sentado e ele punha, esse é de primeiro, melhor, esse e aquele, quem a gente era bom, a gente ia na casa dele corrigir as provas. Olha só que maravilha, eu ir na casa do professor? Corrigir provas, ajudar a corrigir provas? Eu adorei, eu adorava os meus professores todos. Tinha Francês, que eu não desenvolvi muito o meu francês; falo a verdade, não desenvolvi. Mas os outros professores eu gostava muito deles. Desse professor, que era de Português, a esposa dele dava aula também para gente. E essa que... que eu preciso sempre lembrar, porque eu estou com a cabeça ruim, mas... Onde hoje eu não chego perto, lá na Europa, que eu acho ruim, na França. Francês. Quando eu fui para a USP, eu fiz o exame de francês, eu podia fazer francês ou... Sei lá, tinha uma outra coisa, eu falei: "Vou fazer francês". Porque eu tive uma grande professora de Francês no Fernão Dias.
P/2 - Escola pública?
R - Escola pública. Meu pai nunca pagou escola para mim. Nunca. Quando eu era pequenininha, na escola no bairro ali, depois eu fui para o Fernão Dias, que está lá o Fernão Dias até hoje, tive professores maravilhosos. E depois eu fui para a USP.
P/1 - Você foi para a USP fazer...
R - Na verdade, eu comecei a fazer um negócio, eu não sei explicar muito bem, que eu tinha que queimar umas coisas, Química que eu fiz, eu não sei por que eu me meti nesse negócio de química, tanto que o meu avô me levava num lugar, no outro, para eu ficar testando as coisas de química, só que eu me queimava o tempo todo, eu vivia me queimando, porque pingava coisas. Entrei na USP por acaso, porque de repente eu fui olhar lá, eu estava justamente fazendo um negócio, experiências aí e me queimava, aquela coisa toda, aí eu fui lá na USP ver o que era, falei: "Ah, em vez de eu ficar fazendo essas coisinhas, eu vou é lá ver o que eu posso fazer lá dentro". Aí entrei na USP.
P/2 - Não era a USP, Cidade Universitária, não é?
R - Não, ela era no centro, na Rua Maria Antônia. Fiz tudo lá na Maria Antônia.
P/2 - E esse curso de química?
R - Química era em frente, que era Mackenzie, tinha uma parte de química lá no Mackenzie, eu estava no Mackenzie. Fazia essas coisas de química, meu avô me levava num canto e no outro, depois aí um dia eu fui ver o que tinha lá na frente. Eu estava lá por espiar. Aí fui espiar e achei que era muito mais interessante do que eu ficar queimando as coisas, e fui para lá.
P/1 - Mas você lembra como você fez para mudar de Universidade? Você teve que fazer prova, tudo de novo, não é?
R - Fiz, aí eu tive que escolher se eu ia para o francês ou inglês, eu escolhi um desses, que eu já não me lembro qual era. O Florestan Fernandes, Fernando Henrique, foi professor da gente. Eu me lembro quando eu fui para Inglaterra, eles me levaram negócio para eu estudar. Ele falou: "Não, você vai continuar o estudo nessa escola". Eu levei tudo, escrito, que eu era boa aluna, todas aquelas coisas que eles fazem, que eu ia lá para continuar estudando. Só que eu cheguei lá, nós éramos três, que íamos para lá, que eles iam trabalhar na BBC, o Vlado e mais dois amigos, o Fernando, o marido da Fátima, o... Como ele chama?
P/2 - Fernando Jordão.
R – É, o Fernando Jordão e o Nemércio [Nogueira], os três. Na verdade, lá em Londres desenvolvi muito bem o inglês. Porque só se falava português, tudo amigo, tudo em português, mas eu fazia apresentações que vinham para cá, eu recebia em inglês e passava para português. Mas era uma época gostosa, eu gostei bastante de morar lá.
P/2 - Vamos para trás um pouco, Clarice, como você, diz que não namorava e tudo mais, como você conheceu o Vlado?
R - Não, eu tive um namoro, um namorado. Esse que ligou agora, que queria casar comigo, eu falei: "Eu nunca me casaria com você". O Vlado tinha uma amiga... Como chama? A Nilce.
P/3 - Nilce Tranjan.
R - Tranjan, que gostava muito do Vlado, era muito ligada com o Vlado. E uma vez eu estava na USP vendendo livros, que naquela entrada lá, que agora não tem nada disso: fui espiar, fiquei tão frustrada... Tinha um lugar lá, então eu estava lá vendendo livros. Aí apareceu o Vlado. "O que você está fazendo?" "Estou vendendo." A gente não se conhecia direito. Não, não se conhecia: se conheceu lá.
P/1 - Ele era estudante também?
R - Ele fez Filosofia.
P/1 - Nessa época?
R - Já tinha terminado. Eu acho que já tinha terminado, ou se estava nos finais, finalmentes. E aí ele me convidou para ir ao cinema, fomos ao cinema, ele morava lá no centro, aí resolvemos fazer uma festa lá, que a Fátima estava, um grupo lá, fizemos a festa, e aí uma vez ele, nessa festa, falou: "Eu te levo para casa". Reclamou que era no fim do mundo; claro que era o fim do mundo, eu morava na [perto do colégio] Fernão Dias, ali.
P/1 - E a festa era onde?
R - E ele morava no centro, ele morava lá no centro. E aí me trouxe: "Você foi morar no fim do mundo". Eu falei: “Ué, é onde eu moro, você quer vir aqui, você quis vir, não precisava vir". Depois a gente começou a namorar.
P/1 - E você lembra como vocês começaram a namorar?
R - Começou a partir daí mais ou menos, porque ele era muito amigo do [Fernando Pacheco Jordão]. Eles eram amigos e a gente começou sair, comecei a ir ao cinema. E aí foi se aproximando, aproximando. E a gente se casou mesmo. Com o Gunnar não, mas com ele eu me casei. O Gunnar é só ficar junto, não é, Gunnar?
P/2 - E ele comentava muito filme, ele tinha muito essa...
R - Filme, cinema, muito, tinha ligação. Ele queria fazer cinema, ele queria fazer cinema. Ele chegou a fazer alguma coisa em teatro, que eu não lembro o nome agora, que ele participou de um negócio aí no teatro, mas ele queria fazer cinema mesmo, cinema. E ele cantava sabe, cantava óperas em tons diferentes, então gente viajava, eu dirigia, ele não dirigia, e ele sempre ia cantando no caminho, cantando. Foi interessante, uma vez saímos de onde ele morava, eu estava dirigindo o carro, na Europa isso, e aí paramos, não sei por que, ele começou a falar – eu não entendia nada – como uma senhorinha, uma senhorinha falando com ele, falando, falando. Ele quieto, ela falando. Quando acabou tudo, falei: "Vlado, o que vocês falaram tanto? Não entendi nada que foi falado". "Nada, ela estava reclamando que é um absurdo você dirigindo e eu estar do lado". A senhorinha deu uma bronca nele, que ele não dirigia. O Vlado nunca dirigiu. Imagina, era um cara que escrevia em jornais, tudo, foi fazer o teste para tirar a carta e não passou no teste. Falei: "Meu Deus". Ele não era para dirigir mesmo.
P/2 - Como ele era? Qual característica pessoal dele mais marcante?
R - O Vlado adorava o trabalho, tinha uma relação com o trabalho muito forte, e ele treinava pessoas. Por exemplo, quando ele foi preso, foram várias moças e rapazes para lá também, junto comigo, tudo, porque ele treinava as pessoas, ele trabalhava nisso. Rapazes, moças, tudo, ele ficava treinando.
P/2 - Essa afeição desmesurada, digamos assim, pelo trabalho, não atrapalhava a relação de vocês? Ele ficava muito tempo no trabalho e pouco tempo com vocês?
R - Não, não atrapalhava. Eu lembro que lá no sítio ele foi uma vez e ficou sentadinho, aí falaram: "Vlado, vamos lá passear, correr um pouco”. Ele disse assim: "Não, vou ficar lendo aqui". Era de ficar lendo, mais sossegado, mas isso não atrapalhou, não.
P/2 - Ele falava alto, falava baixo?
R - Suave, ele era suave. Nunca ele berrou, nunca, não lembro disso, dele ter berrado com um filho, comigo, nunca.
P/1 - Vocês casaram então Clarice, aqui, certo? Seus pais acharam bom o casamento, teve algum tipo de conflito?
R - A minha mãe falava assim: "Olha, ele é judeu, não vai dar certo esse casamento". "Não, ele é legal e tudo." Depois eles se encontraram e se gostaram. E foi gozado que a Dona Zora, que é a mãe dele, falou: "Filho, tantas mulheres bonitas, simpáticas, não sei o quê” – como que chama o negócio deles, lá da colônia? – "e você foi pegar uma gói?" Ele falou para mim. Eu, a gói. Uma gói!
P/1 - Mas a família dele não rejeitou fortemente?
R - Não, de jeito nenhum, não. Imagina, logo tivemos bebês, fomos lá, até estar com os netinhos, e tudo bem. O Gunnar gostava muito da Dona Zora. Ela andou doente no final da vida e ele ia todo dia, todo dia ele ia lá, ou umas duas vezes por semana. Ficar de mãos dadas com ela. De mãos dadas, conversando.
P/2 - O casamento de vocês foi no cartório, no civil?
R - Só cartório. Só no civil. Aí eu fiz uma festa em casa, eu trabalhava na “Última Hora”, chamei todos os amigos lá, a gente fez um baile na casa da minha mãe, na casa dos meus pais. Eles fizeram lá uma festona, porque a minha mãe falou: "Ele não vai casar com você, não vai, é gói, você é gói para ele". Mas não, sempre foi legal, sempre bom, a relação muito boa deles. E aliás, a gente estava nos Estados Unidos, quando iam pedir informação falavam para ela, porque ruiva, cabelo avermelhado, tudo, iam falar com ela: "Ai, Clarice, help!", ela me chamava, não entendia nada de inglês.
P/2 - Você disse que trabalhava na “Última Hora”.
R - Eu trabalhei na “Última Hora” e ele trabalhava no “Estadão”.
P/2 - O que você fazia na “Última Hora”?
R - Escrevia. Eu tinha um espaço para mim. Quer dizer, eu era a única mulher lá dentro, quando eu comecei eu era a única mulher. Eu fui aprendendo coisas, aprendendo, de repente eles perceberam que eu escrevia bem, me deram um espaço. Eu tinha na “Última Hora” um espaço que eu escrevia coisas, escrevia. E passava para o Vlado. Às vezes eu chegava e falava: "Dá uma olhadinha, vê se você não melhora isso". Ele sempre dava uma melhoradinha, sempre achava que melhorava, às vezes ele mudava duas ou três coisinhas, mas eu achava que ficava muito mais interessante.
P/1 - Mas você escrevia sobre o que, Clarice? Algum tema?
R - Eu escrevia sobre várias coisas, eu escrevia muito sobre as mulheres, o que as mulheres têm que fazer, porque não ficar nessa, não tem que ficar... Sobre aceitar qualquer coisa que vem do marido, eu inventava coisas. Outro dia eu comecei a procurar, mas como eu mudei de um lugar para o outro... Se você for na minha casa você vai ver, eu tenho uma livraria, e eu tinha outra livraria. Quando eu mudei, eu perdi muita coisa. Eu escrevia, tinha um espaço meu. Eu escrevia muito coisas sobre mulheres, eu focava isso. Claro que eu fazia outras coisas, mas o meu foco era esse mesmo. Bom, quando eu fui lá numa exposição... Não, não é exposição, como que é lá? Eu fui carregada, porque eu comecei a falar que a mulher briga, a mulher não deixa passar. Eu fiz um negócio de mulher, mas é verdade, eu acredito: mulher vai atrás do que ela quer, o que ela quer ela vai atrás. Eu só sei que eu fui carregada, de repente me carregaram. Mas é verdade, porque a mulher vai atrás do que ela quer, do que ela acha que é certo, eu acredito nisso. Não sei se é porque eu sou, mas eu acho que a mulher vai atrás sim, vai atrás. E ela briga.
P/2 - Mal comparando, se pode dizer que era uma coluna feminista que você tinha no jornal?
R - Não, escrevia por várias coisas nessa época. Quando eu falei esse negócio das mulheres, foi aí na coisa que eu tive... Como que chama lá, Gunnar? Que eu não sei onde é. Foi recentemente, que eu fiz uma apresentação, me puseram no palco, minha filha, eu comecei a falar. Mas eu não tinha esse negócio de "mulher, mulher, mulher, mulher". Não.
P/2 - Quem te levou para a “Última Hora”? Como foi essa chegada ao jornal?
R - Sabe que eu não sei... Eu não lembro, tantos anos isso daí que eu não lembro. Eu lembro que eu era a única lá dentro da “Última Hora”, única mulher, única.
P/2 - Ainda estudante?
R - Ia para a escola sim, ia para a escola. E aí eles acharam que eu escrevia legal e me deram um espaço. F foi aí que eu comecei a escrever, escrever mesmo.
P/1 - Então Clarice, eu queria voltar: quando foi que você começou a trabalhar?
R - Acho que eu comecei a trabalhar quando eu fui para a “Última Hora”.
P/1 - Então você estava estudando Sociologia e por que você foi? Você lembra por que você foi? Você que foi procurar trabalho? O que era trabalhar para você naquela época? Você precisava?
R - Eu queria ser independente, não pedir dinheiro para o meu pai, nem para minha mãe.
P/1 - Esse era o objetivo que você tinha?
R - Ah, sim. "Por que? Você quer o dinheiro para quê? Para ir ao cinema? Você já foi ao cinema na semana passada." Eu não queria dar essas coisas, eu queria ser dona de mim. E aí eu fui e não pedia dinheiro para ele, nem nada.
P/1 - E ele não reclamou de você arrumar um trabalho?
R - Não, não. Não reclamou nada, achou ótimo.
P/2 - Sim, mas tinha uma má vontade com a sua mãe para trabalhar, mas com você ele teve que aturar?
R - É, eu fui trabalhar ele reclamou, falei: "Olha, eu estava trabalhando na ‘Última Hora’", o Vlado trabalhava no “Estadão”.
P/1 - Vocês já estavam casados?
R - Um pouco depois a gente se aproximou mais. Nós tínhamos uma amiga mesma dos dois, aí foi se aproximando, essas coisas todas. Eu estava na USP já quando o Vlado... A gente saiu, eu com o Vlado e tudo, que eu lembro que eu estava vendendo livro lá na USP, não sei por que, tinha um monte de livros, e aí ele falou, a primeira vez: "Vamos pegar um cinema? Você está aqui há tanto tempo, vamos para o cinema". Fomos para o cinema, voltamos para o cinema, atravessamos até não sei onde, fazer uma festa, e foi. E ia com o rapazinho junto, ele levava o rapazinho junto.
P/1 - Clarice, deixa eu te fazer uma pergunta: ele não nasceu no Brasil, né?
R - O Vlado, não.
P/1 - Ele nasceu na Iugoslávia, eu acho?
R - Iugoslávia. Ele nasceu na Iugoslávia.
P/1 - Isso.
R - Eu estive com ele na Iugoslávia.
P/1 - Como foi que você conheceu a história da família dele, o motivo de ele ter vindo para o Brasil? Isso tudo foi algo inusitado para você?
R - Não, não foi, não. Tinha um negócio que o pai dele escreveu, de toda a dificuldade, quando os nazistas assumiram lá, eles tiveram a fuga. Um negócio que a Dona Zora falava muito, que ele estava com um negócio com Vlado. E eles foram escorregando para a Itália. Para conseguir passar, um cara falou: "Me dá dinheiro, suas joias, que eu faço essa passagem". Pegou todas as joias dela e sumiu. Foi só um ladrão. É um absurdo essas coisas, não é? Eram ladrões. Eles falaram para elapara dar as joias que iam facilitar a passagem para a Itália. Pegou e sumiu. Perdeu tudo, a Dona Zora ficou triste, porque eram coisas dela.
P/1 - E você sabe por que motivo eles vieram para o Brasil?
R - Eles vieram para o Brasil porque não estavam aceitando mais gente nos Estados Unidos, eles queriam ir para os Estados Unidos. Na verdade, a Dona Zora queria ir para os Estados Unidos, mas não tinha mais espaço para ir para os Estados Unidos. Entrou em contato com uma amiga, que falou de São Paulo, eles moravam ali atrás onde tinha muita gente que morava, onde... Como chama aquele...
P/3 - Mooca.
R - É, na Mooca. Eu nunca sei o nome desses negócios, na Mooca. E tinha vários amigos lá. E ela entrou em contato, e ele falou: "Vem para cá, tem espaço, tem trabalho, tem não sei o quê". Aí eles foram para o Brasil. Só que o Brasil ele era pequeno. E o Vlado desenhava muito, desde pequeno. Eu lembro que saiu até no jornal acho, que, ele, conforme foi chegando, ele foi desenhando, fazendo o design do que ele ia enxergando. Eles passaram primeiro lá para cima, depois que veio para São Paulo. E ele, o que ele via, ele ia desenhando, prédios, e isso e aquilo, e isso daí até ficou marcado bastante. Ele era um garotinho pequenininho quando chegou. Mas eu conheci depois através de amigos, enquanto eu estava na USP.
P/2 - Família fugia da perseguição aos judeus, não era isso?
R - É, porque estava, claro, porque estavam entrando os nazistas lá. E ele não queria ir, o pai dele, aí a Dona Zora falou: "Se você quiser, tudo bem, você fica, mas eu vou salvar meu filho", e aí ele foi atrás.
P/1 - Como você disse, as mulheres sabem o que querem.
R - Sabem. Ela era uma mulher muito interessante, muito. Ele também era ótimo, ele escreveu um negócio bonito, andei procurando, que ele conta a história toda, sabe? Ele escreveu. O pai, estou falando agora. Mas eu não sei onde foi parar. Até mexi nos meus livros, falei onde será? Eu devo ter dobrado bastante, não sei o quê, para não perder. E eu lembro de sentar com o meu neto, Lucas, pequenininho, o Lucas sentado ali do lado, eu peguei o que ele escreveu, tudo, e li tudo, a história da família, para ele. E eu não sei onde eu enfiei aquilo. Já mexi.
P/3 - Está no Itaú [Cultural].
R - Não. Quando ele escreveu isso, você...
P/3 - Não, isso, essa carta, está no Itaú.
R - Está no Itaú?
P/2 - É, o que está ali [o texto, lido por] Milton Hatoum.
R - Ah, é? Como foi parar lá? Não sei então. Porque eu falei que perdi isso aí, já não achei mais.
P/3 - A vida do Vlado está lá.
R - Vou dar uma olhada nisso. Que foi o pai que escreveu tudo isso. Foi o pai.
P/2 - E esse tempo em que vocês estavam muito juntos, ainda antes do casamento, quais eram os programas que vocês faziam pela cidade? Era só cinema, que ele era aficionado?
R - A gente ia para o cinema, a gente ia para festas onde ele morava, chamava amigos, ficávamos lá conversando, com música também, ele estava muito ligado com música, batíamos papos.
P/2 - O que vocês ouviam?
R - Ah, tudo. Muita música, muita ópera, essas coisas, mais para ópera.
P/1 - Politicamente vocês já conversavam muito sobre política?
R - Não, não lembro de conversar.
P/1 - Não? Mesmo você tendo feito Sociologia, você era muito ligada em política, ou ele, já nessa época?
R - Não. O Vlado era ligado ao trabalho dele, ao trabalho e a preparar as pessoas, então ele tinha rapazes e moças que ele preparava, que ele ia preparando.
P/1 - Então quando vocês se casaram, Clarice, ele já tinha um trabalho, ele fazia o quê?
R - Ele estava no “Estadão”. Estava no “Estadão”.
P/1 - Vocês casaram e ele estava no “Estadão”. Os seus filhos não nasceram aqui, eles nasceram fora. Vocês foram viajar para fora? Me conta o que aconteceu logo depois.
R - Ele foi trabalhar na Inglaterra, na BBC, porque um amigo resolveu. Nós éramos três, o Fernando Jordão, aquele que está lá no sítio, o Nemércio, que está lá no sítio, e ele. E eles resolveram ir para lá, então nós nos mudamos para lá.
P/1 - Eles resolveram, ou alguém chamou?
R - Ah, todo mundo, achou que tinha trabalho, que era um negócio interessante. Ele trabalhou um bom tempo, meus filhos nasceram lá. Uns quatro anos, acho, que nós moramos lá. E a tristeza foi a volta, porque eu voltei antes com as crianças e ele estava querendo fazer um filme lá. E ele falou: "Eu vou ficar para terminar isso e você vai com as crianças". "Tudo bem, eu vou e fico esperando você." Nesse meio tempo, eu lembro que gente estava conversando e ficou discutindo se ele vinha para cá, porque estava péssima a situação política.
P/3 - O AI-5.
R - É, mas aí veio o AI-5 depois, eu estava discutindo se era o caso dele vir, ou de eu pegar as crianças e ir para lá. Aí, nessa discussão, veio o AI-5. E aí nós ficamos conversando, se vai, se eu vou com as crianças para lá, se ele vem para cá, e depois tomou a decisão de vir para cá. E aí foi uma porcaria.
P/2 - E no que ele fundamentava essa decisão de voltar? Já que a situação estava tão carregada?
R - Ele achou que tinha coisa que podia fazer aqui. Podia fazer cinema, fazer outra coisa. Ele estava desconfortável com essa situação, mas também ele estava desconfortável de ficar longe da família. Então era uma coisa meio complicada. E aí resolveu vir para cá.
P/2 - Mas tinha alguma intenção de mudar o país, de mudar o mundo, de contribuir para que de algum modo a situação melhorasse? Tinha essa preocupação?
R - Sim, tinha essa preocupação, sim. E não era só ele, tinha uns amigos que discutiam, se encontravam, tudo isso, para discutir. Mas ao mesmo tempo sentia que eles não tinham poder, sabe? Tinha essa coisa toda. Uma coisa que eu falei: "Vai fazer cinema, você quer fazer cinema. Vai fazer cinema, é isso que vai te deixar feliz". Não deu certo.
P/2 - Mas ele fez um filme, não é? Um documentário.
R - Fez. Só esse, mas a ideia dele era ir longe.
P/2 - E nesse ínterim, nesse momento, você, profissional, fazia o que exatamente?
R - Será que eu já estava na Ogilvy e não sei? Acho que não. Onde que eu estava?
P/3 - Não, fazendo pesquisa na Lintas.
R - Eu estava na Lintas antes, porque eu estava na Lintas e me chamaram depois para lá. Quando eu vim para cá, estavam já me esperando lá. Eu vim de navio com as crianças, eu vim de navio. Que aliás, levei um tombo lá de cima, que a gente dormia naquelas coisas. Um filho acordou, o Ivo, e eu desci para o outro não acordar quando chorar. Só que eu esqueci que eu estava no terceiro [beliche]. Quando eu acordei, todo mundo caiu. Mas eu vim antes justamente para isso, eu vim antes para conversar – e ele vinha para fazer cinema – para procurar uma casa, todas essas coisas.
P/1 - Aí vocês foram morar onde?
R - Nós fomos morar numa casa onde a minha avó morava, como chama aquela rua mesmo? Oscar Freire. Morava na Oscar Freire. E eu morava na casa dos fundos. E fui descobrir depois que a pessoa que morava ali em cima, que eu acabei conhecendo, já não morava mais lá, era de esquerda também. Eu morava lá e eu levava, às vezes 20 ou 30 crianças lá, punha música. A gente fazia muita coisa, porque o Vlado ficava muito dedicado ao trabalho. Ele, na verdade, ele ficava muito pouco com os filhos, porque ele estava muito dedicado ao trabalho, muito dedicado. Uma vez discutindo com o Ivo pequeno, ele falou depois: "Eu nem lembro do meu pai, não lembro do meu pai", porque ele não ficava em casa, ele estava sempre trabalhando, fazendo coisas.
P/2 - Clarice, você também tinha uma preocupação profissional, quer dizer, você nunca deixou de trabalhar depois da volta de Londres.
R - É, trabalhava.
P/2 - Como vocês se organizavam ali no dia a dia, para que, enfim, cada um pudesse trabalhar na sua área?
R - Tinha uma escola para as crianças, arranjei um lugar, começou o Ivo, que era o maior, que durou muito pouco essa primeira escola, porque veio uma professora reclamar porque ele fechou as professoras todas, você acredita? Trancou todas as professoras, me falaram. E eu esperando, mas não percebi que ele estava trancando, tinha trancado as professoras. Aí foi reclamar em casa, aí eu mudei de escola, porque eu falei: "Eu não posso ele ter um cara pequenininho já ter essa coisa de sem vergonha, faz coisas". Aí eu comecei a fazer... Como chama a escola maravilhosa, que ele foi? Vera Cruz, foi para o Vera Cruz, que são escolas muito boas. Botou ele no lugar certo.
P/2 - E você fazia o quê
R - Eu trabalhava para Ogilvy, eu fiz trabalhos interessantes, que apresentei depois fora, não só aqui, mas fora. E esse trabalho que eu fiz, que foi um trabalho grande, eu até gostaria de rever o que é, porque tinha propaganda naquela época, muita propaganda. Como quem está fora da sociedade de consumo enxerga a propaganda? Então é um negócio que eu fiz, enorme, ficou lindo, eu fui para o interior conversar com pessoas. O Ivo foi e ia filmando as coisas que eu ia falando, os depoimentos todos. E é um trabalho bonito, eu apresentei isso na Alemanha, foi na Alemanha acho que eu apresentei. Aí um cara da Inglaterra falou se eu dava uma cópia para ele, aí fomos tirar uma cópia porque ele queria pôr na BBC, falei: "Claro que pode". Não sei se ele pôs ou não, porque eu não vi. Mas foi o trabalho que eu fiz.
P/2 - A sua expertise sempre foi pesquisa, não é?
R - Pesquisa. Porque eu comecei nisso não sei, eu trabalhei em jornal, eu escrevia no jornal, tinha uma coluna para mim e tudo. Eu quando voltei de Londres, foi assim que aconteceu, quando eu chego, tem umas amigas que falaram: "Tem emprego para você", e eu fui primeiro trabalhar na Lintas. "Tem emprego para você, estão esperando você", mas fiquei muito pouco, não me dei muito bem com ela. Aí eu saí e fui trabalhar na Ogilvy.
P/1 - E aí Vlado veio depois? Quem ganhava dinheiro na casa de vocês? Quem sustentava a casa?
R - Ah, não sei, ele tinha a parte dele, eu tinha a minha parte. Eu ganhava e ele ganhava. Eu nunca tive essa preocupação.
P/1 - Não tinha uma coisa assim "quem tem que cuidar da casa é você ou eu".
R - Não, não. A gente sempre se deu bem. Imagina se eu ia cobrar uma coisa dessa, nem ele cobrava de mim. Ele ganhava, eu ganhava, ele comprava algumas coisas que queria, eu comprava as coisas que queria. Não, não tinha problema, nós nunca tivemos problemas assim.
P/2 - O que ele gostava de ter em casa? De comer?
R - Ah, sei lá. Eu não cozinhava, nem hoje eu cozinho. Sei lá o que ele comia, ele trabalhava fora, possivelmente ele comia fora, muito com os amigos também. Ele tinha muito essa coisa de fazer um encontro de amigos.
P/1 - Então na verdade ele tinha uma vida muito voltada para o trabalho?
R - Muito voltada. Ele treinava os rapazes e as moças, as meninas todas.
P/1 - E você achava isso ok? Não se irritava?
R - Não. De jeito nenhum. Eu tinha os meus trabalhos, ele tinha os dele, eu respeitava o dele e ele respeitava o meu. Então nunca teve problema.
P/2 - E tinham momentos comuns, assim, fim de semana saiam juntos? O que vocês faziam?
R - Eu ia muito para o sítio com as crianças, não só os meus, como eu levava um monte. Mas ele ficava trabalhando. Eu lembro que uma vez ele foi para lá, eu até achei legal, ele se sentou na piscina, assim num canto, mas ficou lendo. Ficou lendo. Eu ficava com as crianças, levava tanto para lá como para Ilhabela; eu saía com as crianças. Eu gosto com criança. Até na casa que eu morava, na Oscar Freire, lá em cima, acho que eu levei uns 40 lá para fazer música, tudo, eu gostava dessas coisas, eu gostava. Hoje eu não faço mais nada, mas também está tudo velho já. Mas eu fazia muito, eu gostava muito. Mas a gente não tinha problema, não.
P/1 - Clarice, depois que ele chegou, como foi vocês vivendo? Já estava uma ditadura muito forte.
R - Estava na ditadura, ficamos discutindo para onde que a gente ia, se voltávamos para lá ou ficávamos, e a decisão foi ficar.
P/1 - Vocês tinham noção de que tinha perigo ficar aqui?
R - Não.
P/1 - Que tinham pessoas que desapareciam, vocês discutiam isso?
R - Não. Não discutíamos isso não. Nunca discutimos isso. O que a gente discutia muito era a questão do trabalho, e das pessoas que ele queria treinar. Era isso muito: treinar as pessoas. E ele foi trabalhar, como ele foi trabalhar, como chamava, que eu nunca vi o conselho? Você lembra? Depois que foi para a [TV] Cultura. E lá ele ficou, lá ficou bastante.
P/1 - E lá ele queria formar as pessoas?
R - Formar pessoas na Cultura, ele ficou um bom tempo lá na Cultura. Tem o nome dele perto, quando você chega lá, perto da Cultura, você passou do nome do Vlado, por ali. Eu falei: "Eles estão pondo nome de rua, do Vlado?".
P/2 - Ele tinha intenção de uma TV pública de qualidade.
R - É, ele estava querendo fazer. Mas não deu. É uma coisa que eu falo, não deu tempo. Faleceu antes. É, foi terrível aquele negócio com ele. Mataram ele. Eu, na minha cabeça, eu não estava lá, eu não vi, eu fico imaginando o que aconteceu. Eles foram procurar o Vlado, bateram na [minha] porta. "Queria falar com o Vlado." "Não, ele está trabalhando." "Mas ele precisa tirar umas fotos." Eu falei: "Mas ele não é fotógrafo, ele está trabalhando". "E onde ele está trabalhando?" "Ah, ele trabalha em tal lugar." "E como que eu chego lá?" "Não tenho nem ideia, eu sei que é lá, mas eu não sei chegar lá", e não sabia mesmo chegar. Mas eu acabei de falar e liguei para o Vlado. Eu percebi uns homões grandes que chegaram lá, falei: "Vlado, está chegando gente aí. Vão querer te pegar, vão te pegar". E já fui para lá.
P/1 - Você já tinha noção, então.
R - Sim, já. Estava bem claro isso. E fui para lá, e peguei meus dois filhos. Eu falei: “Eu vou fazer o seguinte: eu chego lá com as crianças, pego o Vlado e vamos para o sítio. Eles não vão descobrir onde nós estamos, vamos para o sítio”. Só que quando eu cheguei [na TV Cultura], eles já estavam. Eles já estavam lá.
P/1 - E aí? O que aconteceu?
R - Ele estava lá, começaram a negociar, ele falou: "Olha, vamos fazer o seguinte: eu não sou ladrão, eu não vou fugir, eu não vou fazer nada, eu quero me apresentar". E ele se apresentou, porque ele foi para casa, ficou em casa, dormiu lá.
P/1 - Eles foram embora e deixaram ele se apresentar?
R - É, e ele se apresentou no outro dia. Eu acredito que lá no outro dia, o que aconteceu... é na minha cabeça, é que ele... Porque tinha uns rapazinhos que trabalhavam com ele, o pessoal que ficou mais ou menos vendo que eles machucavam ele, sabe, para dizer não sei o que tinha que dizer.
P/1 - Mas eles viram ele ser torturado?
R - Alguns ouviram, porque tinha o barulho e eles me falaram, depois vieram conversar comigo, que estavam lá. E eu não sei o que aconteceu. Eu acho que aconteceu o seguinte: eles estavam exigindo que ele desse nomes, nomes, nomes, e ele não ia dar nome de porra nenhuma, desculpa, porque ele não ia nunca fazer isso. E numa dessa ele reagiu. É o que eu acho: que ele reagiu e os caras foram em cima. Mataram ele. E fizeram tão mal feito, porque diziam que ele tinha se enforcado. Você já viu gente que se enforca com o pé no chão? Agora, eles se sentiam tão poderosos que eles podiam mostrar isso, as fotos que vinham em revistas, em jornais, tudo, ele com o pé... e dizendo que ele se enforcou. Ninguém se enforca com os pés no chão. Eu briguei muito com isso, mas não acontece, não acontece, ninguém responde, não responde. Há pouco tempo eu fiz uma apresentação, que foi lá na... Onde que foi? E eu lembrei disso e falei, e cobrei outra vez, num negócio que eu estava participando, eu falei, mas falo, não adianta, não adianta.
P/2 - Clarice, depois do assassinato, da farsa do suicídio e tudo mais, você resolveu processar o Estado brasileiro.
R - É, eu entrei com um processo.
P/2 - Ninguém chegou para você e falou "para com isso, não se mete nisso, não vale a pena". Alguém tentou de demover desse tipo de ação?
R - Não, eu fiz um negócio lá, entrei, o primeiro que foi... Fomos discutindo as coisas, discutindo, e eu percebi que esse cara estava entendendo tudo, como chamava esse...
P/2 - O juiz?
R - É, o primeiro.
P/3 - João Gomes Martins.
R - João Gomes Martins. Sabe o que fizeram? Tiraram ele fora. Tiraram. Tanto que ele tem um livro que... Como chama o livro dele? “O tempo que não foi”. Eles tiraram ele. E aí veio um jovenzinho, eu falei: "Ai, meu Deus, não vai dar, não vai dar, e é o fim", e o jovem, como ele chama lá? Você que sabe o nome todo.
P/3 - Márcio.
R - Ótimo. Ele assumiu, era um garotinho, eu falei: "Meu Deus do céu, é agora que eu vou me estrepar toda". Mas esse rapazinho, jovenzinho, fez um trabalho importantíssimo. E o antes [o juiz anterior, João Gomes Martins] ele escreveu um livro, só que esse livro não conseguiu acordo, eles tiraram, tiraram, puseram de férias. Você acredita nisso?
[Em 1978, a Família Herzog moveu uma ação declaratória contra a União Federal a fim de contestar a versão oficial então vigente de que Vladimir Herzog havia se suicidado e de responsabilizar o Estado pela prisão arbitrária, tortura e morte do jornalista. Os advogados responsáveis por propor a ação contra o Estado foram Sérgio Bermudes, Samuel Mac Dowell de Figueiredo e Marco Antônio Rodrigues Barbosa. No primeiro momento, o juiz responsável pelo caso seria João Gomes Martins, mas o regime militar entrou com um mandado de segurança e impediu que Martins prolatasse a sentença. O raciocínio dos militares era de que Martins, às vésperas de completar 70 anos e se aposentar compulsoriamente, teria menos a perder condenando a União do que um jovem juiz substituto, com toda a carreira pela frente. O caso então caiu nas mãos de Márcio José de Moraes, auxiliar de Martins e juiz federal havia apenas dois meses. Ele conta que tirou férias para se dedicar ao processo e, para garantir a segurança da esposa e das duas filhas, mandou-as para o interior. Até que no dia 27 de outubro de 1978, três anos depois do crime, o juiz proferiu a sentença: “Pelo exposto, julgo a presente ação procedente e o faço para declarar a existência de relação jurídica entre os autores e a ré, consistente na obrigação desta, indenizar aqueles danos materiais e morais decorrentes da morte do jornalista Vladimir Herzog, marido e pai dos autores”. Graças à sentença do juiz Márcio José de Moraes, a Família Herzog recebeu, em março de 2013, um novo atestado de óbito que, ao invés do suicídio, aponta como causas da morte do jornalista lesões e maus-tratos. No entanto, falta ainda determinar os culpados. E o julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos pode, finalmente, fazer isso.]
P/1 - Então vamos voltar, Clarice, para a cena do dia então que ele resolveu se apresentar. O que aconteceu nesse dia?
R - Não, ele não podia fugir, não era assassino, não era nada.
P/1 - Ele acordou e foi lá dar depoimento?
P/3 - Passou a noite o pessoal lá na sua casa?
R - Não, eles passaram em casa. Quando eu cheguei eles estavam todos em casa já. Eram uns caras enormes.
P/1 - Sim, mas durante a noite eles não foram embora, eles ficaram esperando dentro lá.
R - Um ficou. Os outros foram embora. Um dormiu lá.
P/1 - Dormiu lá?
R - Dormiu lá.
P/1 - Para não deixar vocês sozinhos.
R - É, ficou um. Acho que eles acharam que a gente ia fugir, sei lá o que, não sei. Não sei.
P/2 - Não era o funcionário da TV Cultura que acompanhou o Vlado?
R - Foi. Que foi em casa e tudo, era um rapaz de lá, era um rapazinho, um jovenzinho. Era bem jovem, ele ficou dormindo. Falou: "Não quero dormir". Falei: "Não, tem um quarto" – também não tinha tanto quarto em casa, não. Mas ele dormiu na sala, ficou dormindo na sala.
P/1 - Você já contou muitas vezes, mas, só para completar esse momento da história, quando foi que você percebeu que o Vlado tinha sido assassinado naquele dia? O que aconteceu? Você ficou em casa, ele foi dar o depoimento.
R - Começou a chegar gente, começou telefone [a tocar], perguntar do Vlado, isso e aquilo, e eu comecei a achar que tinha acontecido alguma coisa. Pelo fato de as pessoas ficarem ligando e tudo isso. Eu nunca imaginei que fosse acontecer isso, que ele ia morrer lá. O que eu acho é que depois ele reagiu, que ele reagiu, porque estavam exigindo. Os rapazes que ficavam lá, [sofrendo] choques, essas coisas, vieram falar essas coisas para mim.
P/3 - O lance do bilhete, que botaram ele ali para escrever o bilhete.
R - Ah, aquele bilhete é um horror.
P/3 - E daí ele rasgou o bilhete.
R - É, eu acho que aconteceu isso. Exigiram alguma coisa estúpida, e ele escreveu, e acabou ali. Deve ter jogado na cara do cara e xingou. E aí pegaram ele. Massacraram. É o que eu acho. É o que eu acredito que aconteceu. Mas você não sabe. Mas eu acredito que aconteceu isso: ele reagiu, ele não ia entregar ninguém. Não tinha por que entregar. Ele nunca ia entregar, ele nunca faria uma coisa dessas. E ele reagiu. Fizeram ele escrever uma besteira lá, e ele rasgou. Eu acredito, rasgou e jogou. Foi aí que acabaram com ele. É o que vem na minha cabeça. Não quer dizer que seja, é o que vem, que eu acho que possa ter acontecido. Aquele negócio que ele escreveu, vocês lembram o que está escrito? Eu não lembro, eu precisaria pegar aquilo lá. Nunca ele escreveria aquilo. Nunca. Nunca.
P/2 - Clarice, malgrado o drama, o assassinato, a farsa e tudo mais, o fato gerou um desdobramento transcendental na história, sobretudo a partir da missa de sétimo dia dele, o ato ecumênico. Como é que você viveu esse dia, com aquele monte de gente na Praça da Sé, com a significação que teveesse ato?
R - Com os meus dois filhos. Se você vir as fotos você vai ver: eu estou com os meus dois filhinhos, fui com os dois meninos. Eles participaram de tudo. Eles foram quando ele foi enterrado. Eu lembro que o Vlado estava indo lá no negócio [no caixão], o menor, o André, falou: "Mãe, você tem certeza que o meu pai está aí?". Aí eu falei: "Tenho. Infelizmente está". Mas aquele ato foi uma beleza. Dom Paulo [Evaristo Arns] estava lá, eram o Dom Paulo e mais dois.
P/3 - Era o Jaime Nelson Wright e o Henry Sobel.
R - O Sobel?
P/3 - E o Wright.
R - O Wright, que veio do Rio de Janeiro. Um deles veio do Rio de Janeiro, acho que era o Wright, não sei. E foi uma coisa impressionante. Eu lembro que eu estava trabalhando e fui para lá, e o presidente [da agência] falou assim: "Você não vai, está um perigo. Cercaram tudo, os policiais". Lá por cima a gente viu o pessoal com armas e tudo. Eu fui, claro que eu fui, imagina se eu não iria? Eu fui, eu falei: "Eu vou e pronto". Peguei os filhos e fui para lá. E foi um negócio bonito. E você sabe que eu, no final, fui falar com o Dom Paulo, dar um abraço no Dom Paulo e Dom Paulo estava chorando, chorando. E eu estava chorando, chorando. E ele: "Acalma, acalma". Aí tinha o Dom Hélder [Câmara, que] falou: "Não, deixa ela pôr toda a raiva dela, ela tem que botar o ódio dela para fora; deixa ela berrar, deixa ela chorar". Eu lembro dele pequenininho, ele era pequenininho. E eu lembro dele pequeninho dizendo: "Paulo, deixa, ela tem que pôr essa raiva para fora".
P/1 - Você lembra do ódio que você sentiu?
R - Claro, claro. Eu chorava como louca, chorava à beça.
P/2 - E depois houve aquele abaixo-assinado de 1004 jornalistas.
R - Houve, foi. Saiu nos jornais, tudo.
P/2 - Há quem diga, Clarice, que a ditadura começou a cair ali, demorou um pouquinho, mas foi a partir dali.
R - Quebrou a coisa?
P/1 - Qual é a sua visão desse momento?
R - Não sei, eu não posso dizer. Eu não posso dizer. Eu acho que as coisas foram mudando mesmo, porque na hora que teve o negócio do Vlado, com o Dom Paulo, o Dom Hélder, tinha [milhares] de pessoas. Eu lembro que eu estava chegando e estavam falando, "é, porque mataram não sei o que, não sei quem", e começou a chegar gente, gente, estava assim, assim. E ficaram lá fora também, ficaram lá fora.
P/2 - A atitude que você tomou na opção pelas vias legais, mesmo sob ditadura, isso acabou virando um exemplo para outras situações semelhantes, outras famílias que também perderam pessoas sob tortura, ou desaparecidas pela ditadura. A sua atitude abriu outros caminhos. Você tem consciência disso? De que a sua coragem, de algum modo, foi útil para outras pessoas?
R - Não, não tenho. Não, não tive isso na cabeça não. Nunca passou isso na minha cabeça. O problema é que eu achava que eu tinha que fazer isso. Eu tinha que fazer, e eu fui em frente. Fui em frente.
P/3 - O que você sentiu na primeira vez que ouviu a música “O Bêbado e a Equilibrista”, do João Bosco e Aldir Blanc?
R - Eu lembro que eu estava fora, estava trabalhando, fazendo um trabalho para a Ogilvy, quando chegou um colega e falou: "Olha, saiu uma música". E veio cantar para mim a música, que ele tinha acabado de ouvir. Veio trazer para mim, porque tinha que ver comigo. Eu lembro que eu estava fazendo um trabalho para a Ogilvy, no interior, e ele veio com a música para mim: "A música é sua, é para você, a música foi feita para você". Um negócio, eu me lembro disso. Eu lembro disso.
P/1 - Como ficou a sua vida, Clarice, depois disso? Quer dizer, você começou a fazer esse processo, mas você tinha dois filhos, você estava trabalhando, como você foi levando o seu dia a dia depois desse evento do Vlado?
R - Eu sempre trabalhei, eu tinha que trabalhar. Eu tinha dois filhos para sustentar, não tinha ninguém, meu pai nunca chegou e me deu um dinheiro, [ou] falou: "Olha, Clarice, vou te ajudar aqui". Não. Nem ele nem ninguém. Mas eu também não achei que eles tinham obrigação, eu achei que era eu que tinha que trabalhar. Então fui, fui trabalhar e estava trabalhando. Eu lembro que os meninos às vezes eu deixava lá no escritório. E eles adoravam, porque ficavam correndo de lado para o outro, tinha um salão que é quatro vezes isso, era um negócio enorme o salão que eu tinha lá. E eles ficavam brincando, adoravam. Sei lá, eu não tenho essa... eu tenho a tristeza, não tenho raiva.
P/1 - Agora ficou essa tristeza, logo depois.
R - A tristeza sempre, a tristeza sempre. Ódio, ódio, não. Claro que eu tinha raiva. Bateram na minha porta, inclusive, convidando ele, que tinha que tirar umas fotos. Eu sabia que eram policiais, foi daí que eu liguei para o Vlado: "Estão chegando aí, e eu estou indo com as crianças". Eu com as crianças, porque eu queria passar, pegá-lo e ir para o sítio, mas eu cheguei e eles foram mais rápidos do que eu. E eles queriam saber onde era, eu disse: "Eu sei onde é, mas eu não sei chegar lá".
P/1 - Você se pergunta se alguma coisa tivesse sido diferente, que tudo podia ter mudado, você se pegou perguntando isso?
R – Eu acho que o Vlado reagiu lá, ele reagiu. A única forma que podia ter salvado o Vlado foi se ele não tivesse sido preso, mas ele foi preso. E ele reagiu. Ele reagiu. Aí mataram o Vlado. A foto que vinha, acho que vocês lembram da foto, ele enforcado com o pé no chão. Quem se mata com o pé no chão? Foi uma farsa e todo mundo engoliu. Tem um problema sério, que tem as pessoas que sabiam o que acontecia na ditadura, e tinha pessoas que estavam em outra. Eu lembro que um amigo do meu pai o encontrou e falou: "Mas o seu [genro] está louco? Tem filhos, tem tudo e se mata?". [Havia] pessoas que não tinham essa percepção do que acontecia na ditadura. Então foi cobrar do meu pai: "Como que seu genro faz uma coisa dessa, se suicida? Com duas crianças". Muitos que não acompanhavam o que acontecia nesse país achavam que ele tinha se matado mesmo. E é uma foto terrível, ele com os pés no chão. Mataram e penduraram ele. Que coisa terrível. É duro ficar falando essas coisas. Desculpe, mas me incomoda muito, me incomoda muito.
P/1 - Não, imagina. Desculpe a gente te perguntar pela décima vez a mesma história.
P/2 - Mas aí, como você recompôs a sua vida? A vida profissional você já explicou. E sua vida sentimental, como foi recomposta depois de todo esse episódio?
R - Eu ficava sozinha, cuidando das crianças, preocupada com as crianças. O Gunnar eu conheci na Ogilvy. Eu era... O que eu era lá? Uma vez o Ivo falou: "E quando ele morrer, você fica dona lá?”
P/2 - Você era chefe dele?
R - É, eu era vice-presidente. E eu conheci o Gunnar lá. Conheci de uma forma que disseram que você ia ser mandado embora; aí eu entrei em contato com você e para falar: "Olha, vê o que você está fazendo, você não está fazendo direito o trabalho". Mas aí a gente nem tinha muito contato, e de repente a gente foi se aproximando, porque ele é um cara muito bacana. O Gunnar ele cuida de tudo, ele cuida da gente, cuida... E, não sei, deu certo a gente.
P/1 - Então vocês se conheciam no trabalho. E aí?
R - É, mas assim, relâmpago. Foi assim. E aí ficamos juntos.
P/1 - Quanto tempo tem isso?
R - Ah, o Gunnar sabe as coisas.
P/3 - 42 anos.
R – Já? Olha só, ele sabe até o "dois". Eu deixo tudo para ele. No trabalho eu faço o meu trabalho, mas pagamentos, ele que cuida de tudo. Eu falo que não quero saber disso.
P/1 - Então, isso que eu queria entender. Porque aí vocês foram ficando juntos, você na Ogilvy e o Gunnar na Ogilvy também. Lá onde vocês trabalhavam.
R - É, mas ele ficou pouco, ele estava saindo, ele já estava sendo mandado embora. Eu falei: "Olha, você está sendo mandado embora".
P/1 - Mas aí depois vocês montaram um negócio de vocês? Como foi?
R - Eu já tinha, não tinha?
P/3 - Eu fui trabalhar em outros lugares, e a Clarice continuou na Ogilvy.
R - Eu fiquei na Ogilvy. Na Ogilvy foi o seguinte: foi muito bom, eu tinha uma sala que era umas cinco vezes isso aqui, era um “negoção” enorme e tudo. Só que começou uma briga interna. "Ah, você protege o presidente", eu não protejo não, eu estou na Ogilvy, eu quero é trabalhar na Ogilvy e fazer um trabalho bem feito. Mas começou uma briga assim, de poder, e aí eu abri meu escritório. Eu falei: “Eu não vou ficar aqui, não vou. Não tenho nada a ver com esses caras aí”. Peguei e abri meu escritório.
P/2 - Você demitiu o patrão?
R - Demiti o patrão, os patrões de lá. Até outro dia teve um... Infelizmente morreu um deles, que é um amigo nosso e eu não fiquei sabendo. Ele foi a um encontro, todos foram lá, eu não fiquei sabendo, eu estou fora da empresa, mas foi uma pena. E dizem que estavam todos lá. Eu falei: "Que pena eu não estar lá", porque eu queria ver as pessoas com quem eu tinha trabalhado. Às vezes eu fico falando: "Será que está vivo ainda? Será que não está?". Porque eu perdi o contato.
P/2 - E esse escritório que vocês abriram, qual era o escopo, qual era o foco dele?
R - O que eu abri?
P/2 - É.
R - Ah, continuar vivendo. Ter trabalho.
P/2 - Não, mas especializado em que? Escritório de pesquisa também?
R - De pesquisa. E até hoje. Agora que eu não estou fazendo mais porque não tenho trabalho mesmo, porque não estão investindo no Brasil, mas eu virava noite. Eu chegava, fazia os grupos, que são grupos que discutiam, passava a noite fazendo análise, de manhã estava no cliente fazendo apresentação. Fazia isso.
P/1 - E quer dizer, você fazia isso.
R - Tudo.
P/1 - E aí vocês já eram sócios, o Gunnar cuidava do escritório?
P/3 - Eu era funcionário.
R - O Gunnar ele cuidava dos pagamentos, das cobranças, nessa parte que eu não fazia.
P/3 - Abrimos juntos, mas eu era funcionário da empresa dela.
R - Tá bom. Mas eu falei, essa coisa de dinheiro, de pagamento, eu não quero saber não, cuida disso para mim. Aí deixei ele cuidar disso.
P/1 - E quem fazia a venda?
R - Venda?
P/1 - Venda assim, de projetos. Ou o pessoal te telefonava?
R - Não existe essa venda, eles entram em contato comigo, sabiam que eu fazia isso.
P/1 - Você já tinha muito nome.
R - Sim, já tinha muito nome, isso desde a época da Ogilvy, então ele já entrava em contato direto comigo.
P/1 - E só você fazia as entrevistas e análises?
R - Eu fazia tudo. E eu inventei isso, porque não existia isso: as pessoas faziam aquelas coisas complicadas, e eu fiz um negócio de conversa. Eu faço o grupo e vamos discutindo, pega um problema e nós vamos discutindo, ver o que está funcionando, o que não está funcionando, é papo. É mais do que um trabalho, sabe? Porque a gente descobre coisas discutindo, discutindo. É uma sala para oito pessoas e você jogava os problemas, ia colocando.
P/1 - Mas Clarice, me explica, por exemplo, quem convidava as pessoas? Como você decidia as pessoas que vinham no grupo?
R - Ah, eu tenho uma empresa, quer dizer, existe uma empresa que eu falava: "Eu preciso de pessoas, homens e mulheres, tais idades, e não sei o quê". Mandava todo o perfil que eu queria, eles contratavam e essas pessoas chegavam lá. Não é eu que contrato.
P/1 - E quem fazia toda a discussão era você?
R - Eu, fazia a discussão, fazia análise e apresentava para o cliente.
P/1 - Me conta um pouquinho, como você fazia essa análise? Quais eram as ferramentas?
R - Ouvir. Porque quando eu vou fazer um trabalho, tem já uma série de coisas que tem que ser discutidas, quer dizer, eu não recebo para falar nada, para bater papo, não. Então vem uma série de coisas que eu tenho que explorar na hora, então exploro. Tem um cara lá atrás, do vidro, que está tomando nota de tudo, tudo que é falado. Não, na verdade não é ele, é ela que fica ali sentadinha, dentro... É uma taquígrafa. Então é uma taquígrafa que toma nota de tudo. E, no outro dia de manhã, ela já me mandava tudo, ia para lá, já me mandava tudo, e eu fazia uma análise a partir disso. E fazia a apresentação para o cliente, então ia lá, a gente marcava um horário, eles que definiam e perguntavam se eu podia ir: "Você pode ir tal dia fazer a apresentação?" "Posso." Se eu pudesse eu iria.
P/1 - Mas essa análise você me disse que fazia em uma noite? Ou ela demorava mais do que uma noite?
R - Não, não, eu passava a noite. Porque você já sabe quais são as coisas importantes.
P/1 - Você já sabe?
R - Por exemplo, eu para fazer o grupo já tenho que apresentar o negócio lá. Então eu já sei quais são os problemas, então eu vou explorando esses problemas, e tem alguém tomando nota de tudo, tem gente tomando nota.
P/1 - Entendi, assim, me dá um exemplo de um que te marcou bastante, de uma análise que você acha que você... Só para eu entender melhor como funciona, porque você inventou um método. Então me explica o seu método.
R - Bom, eu não sei o que você quer dizer. Eu sei fazer isso, eu não sei fazer outras coisas, eu sei fazer isso. Campanhas, eram muitas campanhas quando tinha propaganda.
P/1 - Então você tinha uma campanha e você apresentava a campanha para o pessoal?
R - Sim, e vai discutir o que funciona, o que não funciona, isso que eu falei, que eu fui no interior mostrar para as pessoas que estavam fora da sociedade de consumo, quando viam a propaganda o que elas estavam enxergando lá. Eu cheguei a fazer isso fora, tudo, eu tenho isso tudo feito. Então é uma coisa que você aprende a fazer e vai fazendo. Outro dia por exemplo foi uma senhora aí para fazer negócio de supermercado. Aí era papinho, assim, supermercado. Ah, descobri tanto supermercado. Claro, porque tinha um monte de supermercado que eu não conheço. E aí ela disse: "Por que você está aqui, você vai em tal lugar, você põe a mão tá tudo durinho, você compra, está tudo podre". A outra reclamava do outro, outra reclamado do outro, aí eu fui em muitos até descobrir esses supermercados que estavam com coisas assim. E então o que acontece, eu sou contratada por uma empresa para fazer isso. Então eu faço, às vezes eles assistem, às vezes não assistem, aí eu faço uma análise de tudo que aconteceu e vou apresentar, e apresento.
P/3 - Com todas as recomendações.
R - Ah, e todas as recomendações. É isso que era minha diferença dos outros: eu fazia as recomendações, eu me metia lá na coisa.
P/1 - Foi isso que foi o que fez uma empresa de muito sucesso, não é?
R - Tivemos sucesso, mas já não tem mais.
P/2 - Você marcou época.
P/1 - Quanto tempo foi essa empresa? Durou até quando?
R - Ah, muitos anos, 30, 40 anos. É que agora foi cortado, tem pessoas que me pediram: "Ah, Clarice, o Brasil foi cortado", daqui a pouco o Brasil afunda mesmo.
P/2 - Os métodos mudaram, não é?
P/1 - Mas, Clarice, por exemplo, só uma pergunta. Por exemplo, você falou que o Fernando Pacheco era amigo do Vlado, e a Fátima Pacheco Jordão é uma pessoa de pesquisa, depois teve a Ipsos, um pessoal que fazia pesquisa política. Então existiam várias pesquisas nesse campo.
R - Eu inventei essa.
P/1 - Esse tipo?
R - É outra coisa. Isso não tem nada a ver com política.
P/1 - Era de comportamento?
R - De comportamento, coisas que acontecem na vida das pessoas. Eu era chamada para fazer, para discutir coisas assim. É outra coisa, não tem nada a ver com política, nada com política. Nunca fiz um negócio de política. A Fátima trabalha com isso, eu nunca. E a gente se conhece desde pequeninha.
P/1 - Essa que é a Fátima que era sua amiga na escola também?
R - Pacheco Jordão. Sim, sim.
P/1 - A mesma Fátima que você falou "Era minha amiga na escola", que vocês eram amigas de infância?
R - É, eu ia para casa dela.
P/1 - Essa é a mesma Fátima?
R - É a única que eu conheço. É a Fátima. Ela tinha uma irmã que escrevia num jornal, sabe? E a gente ia para o teatro, era tudo de graça. Como chama aquele teatrão do centro da cidade? Teatro Municipal. Tinha um senhorzinho que ficou encantado com a gente. Ele deixava marcado o nosso lugar, chegava: "Olha, o lugar de vocês é lá, vai lá, senta logo que eu já guardei para vocês". Foi uma época boa, essa. O pai da Fátima era legal, ele levava a gente até o Municipal e depois ia buscar. Só se estava alguma coisa muito problemática que a gente tomava um táxi e vinha, senão ele ia. Meu pai? Imagina se meu pai ia até lá e voltava. Não era disso. Também ele não dirigia, meu pai. Mas não ia, não. O pai da Fátima ia lá, deixava a gente na porta e depois pegava a gente. Era uma família legal. A irmã dela era muito legal. Eu não sei o que aconteceu com a irmã dela, ela faleceu? Acho que faleceu, não sei. Porque ela tinha uma filha que tinha problemas seriíssimos, tinha um problema na cabeça, essas coisas loucas que acontecem. E a menina, eu lembro dela, era grandona, tudo, mas ela não funcionava. E a irmã da... Ah, não vou ficar contanto toda a vida, não é?
P/2 - Queria fazer uma pergunta óbvia, muito óbvia. Como você definiria a sua amizade com a Fátima? De tantos anos, de tanta convivência, tanta vida junta com você?
R – A gente tem uma vida muito próxima. Por exemplo, ela chegou lá no meu sítio, sentou lá e começou a falar besteira: "Ah, porque o Fulano vem aqui, vem comer, vai comer, vai fazer". Falei: "Vai à merda, vai, não me enche o saco, eu tenho coisas mais importantes para fazer do que ficar ouvindo..." Entende? A gente tem uma coisa muito próxima. Que ela foi lá falando besteira, besteira, ah, para encher assim a gente. Falei: "Ah, já me enche o saco, eu estou aqui e você fica falando besteira, só fala bobagem". Mas somos amigas. Continuamos amigas. Fomos sempre amigas, há muitos anos. A gente era criança, criança, nós somos amigas.
P/2 - Depois os seus maridos também firmaram uma amizade muito sólida.
R - Sim, eles trabalhavam juntos. O Fernando, quando ele estava lá, ele era muito bonito, o Fernando, era um rapaz, ficava lá conversando com ele, ficava deitadão lá, eu ia tirando os negocinhos, eu estava cuidando dele, não ela, bandida. Eu dou umas broncas nela. Amiga é assim. Então eu estava lá conversando com ele, aí eu falei: "Você está feliz aqui?" Ele falou: "Não, eu queria estar em casa".
P/1 - No hospital, você diz.
R - Ele estava no hospital. Aí eu ligo para Fátima, digo: "Fátima, o Fernando quer ficar em casa. Você tem um espaço enorme, bota ele lá, ele está morrendo, deixa ele morrer na casa dele". Aí ela falou um negócio que eu não tinha pensado, que o que ela recebe, ela recebe um negócio...
P/3 - O seguro.
R - O seguro não paga se ele está na casa. Você acredita, que loucura isso? O seguro não paga. Se morrer lá, no hospital, tudo bem, se morrer em casa, não. Não é louco isso? Você fica às vezes falando coisa que é inacreditável. Fiquei tão triste, eu gostava muito do Fernando, o Fernando morreu. E ele era muito ligado ao Vlado. Quando mataram o Vlado, ela falou para mim: "O Fernando não para de chorar, o Fernando não para de chorar". Era muito, eram muito amigos. É a vida, se a gente for pensar tudo... Pelo amor de Deus.
P/1 - É. Eu queria voltar para o seu casamento com o Gunnar, você contou que vocês estavam...
R - Nós não nos casamos. Nunca nos casamos.
P/1 - Aí você tinha dois filhos, e como que ficou essa nova família? Como era esse cotidiano de vocês, vocês decidiram se juntar?
R - É, fomos morar juntos. Ficamos. Aí eu ficava no escritório, fazia meus grupos, aquelas coisas todas que eu fazia, e falava para ele cuidar e ele cobrava, tanto que eu tinha os caras que vinham e ele cobrava, ele fazia essa parte, que eu não gosto de fazer, nem sei fazer direito, então ele cuidava disso, dessa parte de controlar os gastos, cobrar o pessoal, tudo. E fomos ficando juntos. As crianças se aproximaram. O único que reclamou foi o filho dele, o Ted, que não aceitou. Ele me deu dor de cabeça que não era brincadeira. Eu ia pegar meu carro, não funcionava o carro porque ele tinha desmontado não sei o quê. Eu tive uma hora que eu estourei, eu falei: "Não dá, porque está amolando a paciência o tempo todo". Reclamou porque o Ivo tinha o tal quarto. Aí eu falei: "Ele tem esse quarto, ele nasceu aqui. Ele não vai sair para te dar esse quarto". É óbvio, e ele queria o quarto, sabe? Ele criou vários problemas.
P/1 - Conta isso então, tinha o Ivo, o André, e o Gunnar tinha o...
R - Tinha dois também.
P/1 - Dois.
R - Que agora nós vamos visitar um deles, que está lá na Itália, que faz essas exposições, essas coisas, design ele faz, e música. Nós vamos para lá. [Com] ele eu nunca tive problema. E ele separou da mulher, não deu certo, não sei o que aconteceu. E é esse rapaz que agora de novo nós vamos visitar lá na Itália. Ele faz com música e faz design, faz coisas bonitas, eu tenho em casa umas coisas bonitas dele. E a gente se aproximou e deu certo, não é, Gunnar? Sem problemas.
P/2 - Ótimo. Clarice, e o Instituto Vladimir Herzog? Como isso surgiu e por que ele surgiu?
R - Eu não sei, você tem que perguntar isso para o Ivo. Eu nunca fui bem informada, eles faziam aquelas reuniões e não me chamavam, eu achava um absurdo, porque estão fazendo e não me chamam. Acho que você tem que falar com o Ivo. Eu não fui informada, eu fiquei sabendo que as coisas foram acontecendo, mas eu não fui informada "pretendemos fazer isso e aquilo".
P/1 - Mas você achou a iniciativa importante, boa?
R - Achei, achei. Achei importante, é importante. O Ivo trabalhou bastante nisso, bastante. E como eu estava sempre com trabalho também, então a coisa não... Foi de um lado e de outro lado assim.
P/2 - Mas ele acabou desempenhando um papel importante no projeto, na área da educação, direitos humanos. Isso não te faz pensar que o Instituto pode ser o legado da vida do Vlado?
R - Não, eu acho que não chega nisso, não. Eu acho que ele está fazendo coisas importantes, tem que continuar fazendo coisas importantes, agora não tem que ligar nada com o Vlado, não. É outra coisa. Inclusive o que me incomoda muito, começar a usar o nome do Vlado.
P/1 - Então isso te incomodou? Chamar "Instituto Vladimir Herzog" te incomodou?
R - Não, isso não me incomoda, não. Me incomodo ali e ali, grudado comigo, eles estão ali, eu estou grudada, a minha sala é grudadinha, uma sala pequenininha. Não, isso não me incomoda. Agora se eu começasse a usar o nome, muito... Não sei, não precisa, o Vlado ficou, o nome dele. Outro dia eu entrei na Tomie Ohtake, está assim: "Quem matou o Vlado", foi uma foto lá, sabe? Tudo, e o Vlado é um negócio que ficou no país, ficou marcado. Não tem que ficar usando. O Instituto é Vladimir Herzog, tudo bem, estão fazendo um trabalho em cima disso, não estão fazendo trabalho? Estão. O que eu reclamei deles é que eu não ficava sabendo o que estavam fazendo. Falei: "Eu quero que me coloquem informações". Então eles começaram a me envolver um pouco mais. Eu também tenho eu, que estou fazendo outras coisas, também tenho isso, não posso ficar culpando eles. Mas eu falei: "Olha, eu quero que quando for acontecer alguma coisa, vocês deixem aqui para mim, porque aí eu vejo se eu posso ir ou não posso ir, porque eu quero acompanhar o que acontece". Isso eu fiz, mas já faz tempo. Aí eles mandam um negocinho lá para mim. Manda pelo computador, também. Eu estou aqui numa salinha, a minha sala é bem pequena, é um quarto, e eles estão do lado ali, atrás. Até às vezes ele fala: "Ah, eu falo muito alto". Eu falo: "Pode falar que eu não estou... Não está me atrapalhando ".
P/2 - E sua rotina hoje, Clarice? Como é que você vê a vida?
R - Eu combinei com o Gunnar que a gente tem que começar a viajar. Não tenho trabalho, ou vários amigos nossos, que eu trabalhava internacionalmente, falaram que foi cortado o Brasil. Foi cortado. Eu falei: "Gunnar, vamos aproveitar enquanto a perna está durinha e vamos viajar, vamos, vamos viajar". Fomos viajar. Pantanal, nós fomos, já tivemos também lá em cima, como que era? Belém do Pará. Eu falei: "Vamos conhecer o país um pouco", porque a gente quer ver outros lugares que a gente conhece, eu estou neste país e não conheço este país. E lá onde nós fomos a coisa é feia, dizem que a cada três dias matam um. Gunnar, quando nós chegamos, olha só, a gente pegou um carrinho pequenininho, um táxi, e tinha assim uma hora que estava andando estavam indo uns quatro rapazes, ou cinco rapazes, nem reparei, não prestei atenção, aí o cara que estava conduzindo ligou para policiais, falando "na esquina de tal tal tem tantos caras, todos eles estão armados". Eu nem vi arma, eu estava lá no canto não reparei em arma nenhuma, mas estavam com arma. E a coisa é feia lá em cima, dizem que é muito feia. Eu lembro que nós fomos um dia no centro, aí eu falei com o Gunnar: "Vamos aqui por trás que é mais perto para chegar ao hotel, que estou cansada". Um velhinho: "Se a senhora entrar nessa rua, a senhora não sai mais viva, não sai viva". Isso é o nosso país. A gente precisa conhecer esse país, mas a coisa é barra pesada, barra pesada.
P/1 - Então agora vocês estão viajando muito pelo Brasil. E para fora também?
R - Agora nós vamos visitar o filho do Gunnar, que está fazendo essa exposição, e ele trabalha com música também, então nós vamos lá visitar. Em Milão.
P/1 - Então agora a ideia de vocês é ficar indo por aí?
R - Ah, viver o resto da vida, a gente já está velho, eu já estou com quase 80 anos, já fiz 80, não é?
P/3 - Não, quase.
R - É, quase. Vai chegar lá. Daqui a uns meses, menos de um ano, eu estou fazendo 80 anos. Tem que aproveitar a vida. Nós trabalhamos bastante. Acho que fiz as coisas que eu tinha que fazer. Eu não quero começar, a gente vai viajar um pouco, vamos passear. É isso.
P/3 – Vai visitar as netas em Washington.
R - Vamos lá, sempre.
P/3 - O filho vai para Moçambique?
R - É, meu filho [André] vai para Moçambique, está sendo mandando pelo Banco Mundial, para ficar três anos. Aí eu vou olhar o que tem em Moçambique, claro, eu descubro, eu vou olhar. Eu fiquei assustada, diz que é assustador, matam gente, tem isso, tem aquilo. Eu fiquei assustada com o negócio lá. "Não, mas eles vão ficar em um canto especial, não vai ficar no meio não sei do quê." Mas eu fiquei preocupada. E eles deram uma casa, que ele mostrou, uma beleza de casa que eles vão ficar lá. Mas aí eu falei "toma cuidado", porque eu entrei para descobrir como estava a situação lá e dizem que estava uma coisa feia. Vamos ver.
P/1 - Clarice, pensando agora nessa vida que você contou, você consegue pensar quais são as coisas que você tem mais orgulho de você mesma?
R - Ah, eu não tenho orgulho de mim.
P/1 - Não? Você tem...
R - Eu sei que eu sou assim, eu sou briguenta, eu entrei com processo, tive um outro antes, depois, mas isso acho que não é... faz parte. Faz parte porque eu faço isso naturalmente, eu luto, eu brigo, eu sou briguentinha, não é? Eu não sou briguenta, sou briguentinha.
P/2 - Conseguiu vitórias importantes, agora recentemente na Corte Interamericana de Direitos Humanos. E teve uma sentença favorável à sua demanda. Isso depois de tanto sofrimento e tanto drama é uma indignação santa, não é?
R - É. Mas é terrível. Nunca fizeram nada, nunca. Depois desse negócio que aconteceu com o Vlado, e não foi só com o Vlado, teve logo em seguida, eu lembro que eu abri o jornal, que eu tinha... Eu fui com as crianças para casa no Ceará de uma amiga, quando eu pego o jornal, era o... Como chama? [Manoel] Fiel Filho. Que se matou com... sei lá, botou um negócio assim, acho que era com uma meia. Eu lembro que eu estava vindo de lá, falei: "Miseráveis, mataram mais um". Mataram o Fiel Filho.
P/2 - Clarice, deixando o Vlado momentaneamente de lado, mas olhando para o seu papel. Você tem consciência de que a sua ação, a sua indignação, tanto no primeiro processo quanto no segundo, na Corte Internacional, isso transcendeu a figura de Clarice e virou um exemplo? Você tem noção disso?
R - Não, não tenho essa noção. Porque eu fiz isso como uma coisa que era para importante eu fazer, entende? Se isso explodiu e ficou uma coisa marcante, eu não sei, não tenho essa percepção, não tenho. Inclusive, porque toda vez que eu entro nessa eu fico mal, fico mal.
P/1 - Não te faz bem pensar nisso.
R - Não, me faz mal. Eu choro, fico...
P/1 - Angustiada.
R - Angustiada. Tudo isso. Agora, se eu tiver que ajudar alguém que não tem coragem de fazer e precise, eu talvez faça, eu vou lá e ajudo. Bom, depois que eu fui carregada por cem mulheres... É verdade, eram mulheres e eu comecei a falar. Porque eu acho que a mulher é briguenta, ela vai até o fundo, ela vai, ela não para, a mulher é muito mais forte que o homem, enfim, falei, falei e fui carregada depois. Eu concordo com isso, eu concordo com tudo isso. Que a mulher é mais briguenta, ela vai atrás do que ela quer.
P/1 - Eu também concordo.
R - Você concorda? Mas é verdade, vai lá atrás. Eu fiz [uma palestra], eu tinha umas cem mulheres. Eu sei que eu fui deitada assim, de repente, e saí carregada. Mas eu falei, eu fiz um negócio bonito, acho que eu falei uma hora, duas horas, e fui dando exemplos também. Não eu como exemplo; não, fui falando das mulheres. Eu acho que a mulher bem sabe o que quer, ela vai atrás do que ela quer. O homem não tem isso, não tem essa...
P/1 - Raça.
R - É. Não tem, não consegue fazer. Está em outra.
P/3 - Tem, mas tem menos.
P/1 - Clarice, você fala que gosta muito de ler, não é?
R - Eu gosto de ler.
P/1 - Alguma coisa especificamente? Como é o papel da leitura e do livro na sua vida?
R - Eu acho que eu preciso daquele momento de descanso, de dar um relax. Então eu sento, pego um livro. Agora estou meio exigente. Às vezes eu pego um livro e leio, três, quatro páginas. Eu tenho uma biblioteca em casa. Tem no sítio, também. No sítio é pequena, a de casa não.
P/1 - Você que foi montando essa biblioteca?
R - É, eu vou comprando sempre. Se eu entro em qualquer livraria eu saio com um livro na mão, não consigo sair sem um livro. Mas eu tenho coisas de muitos anos, de muitos anos. De vez em quando eu pego, e vou lendo, vou lendo as coisas.
P/1 - Tem algum autor ou alguma coisa específica?
R - Não, não.
P/1 - Que te diga assim, hoje em dia, por exemplo, o que você... Ou que te transformou alguma coisa?
R - Não, não, não tem não. Para mim, a leitura é um relax. Sento, fico lendo, bem gostoso, e se fica meio chato, às vezes, se der eu paro e ponho para fora. E pego outro. E eu empresto os livros. Então eu tenho um personal que gosta de falar "eu emprestei um monte de livros". Eu virei e falei: "Você precisa ler, você precisa ler". Para o Ivo eu não dou porque eu sei que ele não lê mesmo, mas o meu personal lê. Aí eu dou: “Vai, pega um livro, mas é para devolver”. Eu tenho essa coisa de meus livros. Eu não quero que eles desapareçam; eu empresto, mas eu quero de volta.
P/2 - Há quem diga que há dois tipos de trouxas, o que empresta e o que devolve.
R - Ah, eu gosto muito de ler. Eu lia muito, hoje eu estou lendo menos. Eu uso óculos para ler. Eu não tenho nada, eu tenho vista cansada. Então eu sempre sofri um negócio muito clarinho assim, sabe, muito clarinho, eu tenho que fazer muito esforço para ler. Que as vezes você pega umas coisas assim, escritas, é muito clarinho. Mas eu gosto de ler, eu tenho do meu lado assim um monte de livros para eu ler, porque eu não estou lendo, eu vou lendo os menores, porque tem uns dessa grossura, então os menores estão passando na frente.
P/1 - Agora você está com um monte de livros para ler.
R - Agora tenho mais tempo, não estou trabalhando, não tem trabalho, então eu tenho mais tempo para dar uma lida. Só que tem uma coisa hoje que atrapalha um pouco que é a televisão.
P/1 - Você gosta de ver TV?
R - De repente para ver alguma coisa lá na TV, ou ver um filme. "Ah, vamos ver um filme?" Então pega lá para ver um filme.
P/3 - Joguinho no computador.
R - Joguinho no computador. Eu tenho usado muito o computador. Ontem ou anteontem nós fomos no negócio que a cabeça tem que funcionar? É uma médica falando... Ah, o meu funciona, porque eu pego lá o computador e vou brincando com as coisas, você tem que ir acertando as coisas, estão fazendo a minha cabeça funcionar, não é? Então. Mas eu gosto de ler, mas tem que ser uma coisa gostosa assim. Eu tenho muita coisa, eu tenho uma biblioteca. E tem muita coisa que eu tenho que pegar para reler, que eu li muitos anos atrás.
P/1 - Você tem algum projeto nesse tipo, que não é de trabalho, mas uma coisa que você tem vontade agora, que você tem mais tempo de fazer?
R - Nós vamos viajar. Eu tenho falado muito isso. Tem muitas coisas que eu quero conhecer ainda enquanto eu estou viva. Vamos viajar.
P/1 - Você tem curiosidade em conhecer lugares.
R - Sim, vamos conhecer, vamos viajar, eu quero viajar. E eu tenho meu avô que era Carmine Varlotta, que ele nasceu do lado da minha mãe. Aí eu descobri que tem um bairro Carmine Varlotta, eu falei: "Eu quero ir lá ver o Carmine Varlotta". Porque a gente estava com um grupo que leva a gente para os lugares e alguém falou: "Tem alguém aí da Itália?". Eu falei: "Meu avô, Carmine Varlotta". Aí descobri que ele tem um lugar lá Carmine Varlotta. O meu avô ele desenhava no cemitério as coisas todas, ele desenhava tudo. E tinha o pessoal que fazia a coisa, o trabalho. E aí ele morava ali na Oscar Freire, e às vezes ele chegava com meia dúzia, dez, para fazer almoço, porque estavam trabalhando. "Vamos comer, vamos almoçar comigo". E minha avó sempre foi alegre, minha avó era uma santa, sabe? Sabe santa? E linda, era linda, linda. Eu lembro que ele passou mal, que foi internado e estava mesmo de cabeça ruinzinha, e aí ela levava para eu visitar meu avô toda sexta-feira. Pegava o carrinho, levava lá. Aí um dia foi lá, ela foi dar um beijo nele, aí ele falou: "Não quero carinho. Beijo de Judas". Ela falou: "O que foi, Carmine?" Aí ele falou: “É porque você está me traindo". Eu não sei se era com o padeiro, se era com açougueiro, se era com não sei o quê. Ela falou: "Oh, Carmine. Eu sempre te amei, desde o primeiro momento que eu te vi na minha frente eu te amei, e continuo te amando". Você acredita? Não é uma sábia? Minha avó é uma sábia. Quando ele falou isso minha mãe e minha tia já estavam pulando, eu falei: "Fica quieta, deixa eles se resolverem, não tem que se meter". Já estava todo bravo falando porque estava traindo com padeiro, com não sei o que, com açougueiro. E aí minha mãe e minha tia já iam lá pegar, eu falei: "Deixa eles resolverem, deixa eles resolverem". E minha avó respondeu tão bonito, não é? Era uma mulher incrível. Incrível a minha avozinha. Eu, lá em casa uma vez, ela estava lá em casa, ela estava na casa da minha tia e estavam fazendo um...
P/3 – Elas estavam morando lá com a gente, e o irmão da Clarice, o João, também estava morando com a gente. A gente foi ao cinema e na hora que voltamos do cinema tinha uma ambulância lá.
R - Tinha uma ambulância na porta. Eu falei: "Minha avó, aconteceu alguma coisa com a minha avó". Cheguei correndo lá. E na verdade foi meu irmão que teve um surto. Ela foi procurar informação, ligou para um médico. Ele teve um surto. E ela velhinha, desceu e tudo.
P/2 - Tomou providências.
R - Então, mas uma senhorinha, ela foi lá, pegou, abriu para ver onde era, para ligar, para fazer a ligação, fez a ligação, tudo. É isso. Aí meu irmão... Você sabe a história dele, do João.
P/1 - Me conta melhor a história do seu irmão.
R - João Ribeiro Chaves. Ele fez "A Patética". Ele tem umas quatro peças maravilhosas. Só que ele era homossexual, viveu com quatro rapazes, e aí deu... Como chama a doença lá?
P/1 - Aids.
R - Aids. Nossa, eu chorei... Nós fomos buscar onde ele estava, lá no Rio de Janeiro, fui lá, para trazer e tudo.
P/1 - Por quê? Ele morava com alguém?
R - Com mais três ou quatro. Um grupinho. Morreu de Aids. E é uma pena, porque ele estaria fazendo teatro ainda até hoje. Quando ele era menininho, ele escrevia para o jornal do bairro, peças, ele ia assistir, ele ia e fazia as peças, tudo. É uma pena ter acontecido isso, aconteceu. Nossa, eu chorei tanto, quando eu liguei.
P/1 - Você era muito ligada nele então.
R - Ah, amava ele. E eu lembro que eu liguei para saber o que estava... Eu estava com o Gunnar viajando. Quando aconteceu isso com o meu irmão, eu comecei chorar, mas eu chorava de berros, porque era um irmão que eu amava, e ele fazia coisas maravilhosas. Cinco coisas de teatro dele, ele escreveu, ele escreveu e tudo. E eles querem pôr lá na USP, mas eu vou tirar cópia, eu falei: "Eu não vou dar. Tirar uma cópia, tudo bem, mas eu não vou dar todo esse material, esse material é meu, do meu irmão". São peças que eu vi. E se ele estivesse vivo ainda, ele estaria escrevendo. Ele quando era pequenininho, na escola, ele fazia isso. Para o jornal de Pinheiros, para o jornal do bairro. Ele escrevia. É uma judiação essas coisas que acontecem... Você sabe que eu falei, o Ivo era pequeno, ele estava com os amigos lá, com os caras lá, e eu no caminho, no avião, eu falei: "É, esse aí é o João", não sei o que, eu comecei falar para ele, falei: "É, não sei o quê". Aí sabe o que ele – era pequenininho, o Ivo – falou? "Mãe, o tio é tão legal com a gente, por que você fica se metendo na vida dele?" Pequenininho o bandido, me deu uma bronca. "Por que você se mete na vida dele, ele é tão legal com a gente?". Pequenininho, o Ivo.
P/2 - Clarice, alguma coisa que você queria ter dito e não disse?
R - Ah, pode ser que muitas, mas eu não lembro de nenhuma. Eu achei que foi gostoso o papo, porque você foi perguntando e me fez falar algumas coisas, porque se eu me sentasse aqui e falasse: "Fala sobre você", eu ia falar: "Sou chata, reclamo de tudo".
P/2 - Não fomos nós que perguntamos, ela que disse.
R - Não, não.
P/2 - Clarice, você tem sonhos? Que sonhos você tem?
R - Não tenho sonhos. Eu não tenho sonhos. Ah, sonhos acordados. Acordados.
P/1 - Dormindo você não sonha?
R - Não.
P/1 - Você nunca sonhou?
R - Ah, não sei se eu já sonhei alguma vez.
P/1 - Você não lembra.
R - Mas eu não lembro de ter sonhado, eu caio na cama e durmo. Em geral chega uma hora, depende uma certa hora, eu falo: "Gunnar, eu estou indo para a cama", porque eu estou com sono, me deito lá, fico quietinha e pego no sono.
P/2 - Você tem algum vislumbre, alguma coisa que você desejaria?
R - E não tive? É isso que você quer?
P/1 - Não, quais são as suas vontades de futuro?
R - As minhas vontades de futuro são justamente essas, a gente começar a viajar. Viajar, conhecer coisas novas. Nós estivemos no Japão, foi muito interessante lá no Japão. Foi no Japão que eu fui falar com o guarda, porque esse “bandido” [Gunnar Carioba] me deixou sozinha lá e eu fiquei, mas estava de noite, não passava ninguém, ninguém. Passou um casalzinho, eu falei “eu não vou perguntar nada para eles”. Fiquei uns 15 minutos em pé. De repente eu fui lá, olhei, eu fui procurar o ônibus não achei, voltei. Andava à beça, andava, ele falou: "Vai atrás do ônibus", assim, ele falou: "Vai, passou o ônibus, vai lá, seu ônibus". Que meu ônibus, era nosso! Mas aí ele fez assim comigo. Tinha uma rua... não era uma rua, era um lugar grande, e eu vi um cara lá que estava todo bem arrumado, era um policial. Aí atravessei. Eu não queria dormir na rua, não é? O Gunnar sumiu. Eu falei: “Olha, eu não sou prostituta, não". Não tinha ninguém, essa hora parar com um cara, só podia ser uma prostituta. "Eu não sou prostituta não, eu perdi meu marido, ele sumiu, entrou por aí e não apareceu mais." Olha, rapidamente foi resolvido tudo. Eu sei que ele falou: "Fica sentadinha aqui", Tinha um lugarzinho lá, meio abertinho. "Fica aqui. Quer comer alguma coisa? Você quer alguma coisa?" "Não, não quero nada." E depois eu descobri que o hotel era perto até, mas eu não sabia. E aí fiquei sentadinha lá, aí entraram em contato com o pessoal e foram me pegar, rapidinho. Mas eu vi, achei que eu ia passar a noite, eu falei: "Eu não passo a noite na rua", agora eu passo lá, se ele resolver me colocar lá, me prender, tudo bem, eu fico lá, mas no chão eu não durmo. Ah, ele sumiu, ele sumiu.
P/3 - E de repente passou um ônibus, o ônibus estava vindo do estacionamento, eu falei: "Vai lá no ônibus então que eu vou procurar as pessoas", mas o ônibus não foi para o estacionamento, o ônibus foi embora.
R - Não, eu primeiro andei alguns quilômetros para chegar lá, que era longe à beça. E não tinha ninguém na rua. Aí eu falei: "Eu não vou dormir no chão". Aí quando eu vi o cara fui lá conversar. Durmo na cadeia, mas não durmo no chão.
P/2 - Tá certo.
P/3 - E a polícia de Tóquio achou a Clarice.
R - Que tem uma mulher perdida, tinha uma mulher perdida.
P/3 - Uma brasileira perdida no centro de Tóquio.
P/1 - Então, Clarice, obrigada pela entrevista. Espero que tenha sido...
R - Nem sei se é entrevista, é um bate papo, não é?
P/1 - É.
R - Um bate papo. Foi gostoso o papo.
P/2 - Obrigado pelas suas memórias, pela sua disponibilidade de contá-las. Ter dito coisas tão legais para nós.
R - Que bom, se eu ajudei em alguma coisa, fico feliz. Fico feliz.
P/2 - Muito obrigado.
R - De nada, foi um prazer.Recolher