P/1 – Satíe, queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Satíe Wada de Oliveira, eu nasci em São Paulo, no dia dez de janeiro de 1961.
P/1 – E qual são os nomes de seus pais?
R – Meus pais são falecidos, meu...Continuar leitura
P/1 – Satíe, queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Satíe Wada de Oliveira, eu nasci em São Paulo, no dia dez de janeiro de 1961.
P/1 – E qual são os nomes de seus pais?
R – Meus pais são falecidos, meu pai chamava Alcione de Oliveira e a minha mãe Geni Wada de Oliveira.
P/1 – Onde eles nasceram? Sabe um pouquinho da história deles?
R – Meu pai era mineiro, de Cataguases e ele tem uma descendência portuguesa, o meu bisavô era português, ele que foi migrante, e meu avô acho que ele já nasceu aqui no Brasil. Os meus avós maternos eram japoneses, e eles vieram pra cá no final dos anos vinte. A minha avó veio primeiro, depois meu avô veio atrás dela e casaram, tiveram sete filhos. O meu avô era agrônomo e ele veio pro Brasil porque todas as experiências que ele fazia com terras brasileiras eram muito positivas, o Brasil sempre se apresentou de forma muito fértil. Então ele veio pro Brasil com esse... já com esse conhecimento e ele comprou um sítio aqui em São Paulo, em Carapicuíba, e lá ele montou a família e teve os filhos e trabalhou na terra a vida toda. E eles eram... no Japão, eles estudavam na Universidade, e eles eram super urbanos, tinham carro, era um outro planeta, muito diferente do Brasil dos anos vinte. Quando eles chegaram aqui, a minha avó que era super fina, só andava de luva no Japão, eles chegaram aqui e foram pegar na enxada. Então pro meu avô, que era um cientista e tal, ele via muita beleza naquilo. Agora minha avó veio meio em condições que assim... foi a circunstância que ela encontrou; e ela foi pegar na enxada, então pra ela foi bastante sofrido. Mas eles criaram os filhos todos, e quem pôde ir pra Universidade foi, e eles foram muito guerreiros assim. E então a minha mãe, tendo essa história familiar, ela veio pra São Paulo, ela queria fazer estatística, mas aí ela casou e o meu pai não deixou ela estudar. E naquela época as mulheres obedeciam aos maridos, e aí ela foi ter filho e ele também não deixava ela trabalhar, então ela ficava dando aula particular em casa e cuidando dos filhos. Foi assim uma situação bem tradicional da mulher daquela época, bem dentro dos moldes mesmo, né.
P/1 – E você tem irmãos, então?
R – Eu tenho três irmãos. Eu sou a mais velha e tenho três irmãos menores: o Mitsuo, o Hideo e o Hiromi. E, muito interessante que você percebe que nós temos nome japonês porque os meus avós não queriam que a minha mãe casasse com brasileiro. E o meu pai, pra conquistar o meu avô, ele colocou o nome, é... português brasileiro nos filhos... japonês quer dizer, desculpa, vou refazer a fala: o meu pai, pra agradar o meu avô, ele colocou nome japonês nos filhos. Então, isso foi lá só depois terceiro, quarto filho que meu avô flexibilizou, porque ele não aceitava o casamento e, enfim, depois que os filhos nasceram, meus avós... então a família se aproximou, a gente pôde ter bastante contato com eles.
P/1 – E vocês tinham costumes japoneses?
R – Não, viu? A gente era criado de uma forma bem Ocidental, porque os meus avós já criaram… eles já logo se adaptaram com a cultura brasileira, sabe? Porque ficava tão contrastante. Eles não mantiveram muito… Eles tinham muita relação com o pessoal da terra, da cidade e tal e eles foram se adaptando com o modo brasileiro de ser; e até quando eles chegaram eles iam comer com... eles comiam com hashi, aquele palito, e eles tiveram que comer com talher, então eles se machucaram. A avó contava que eles ficaram com a boca ferida. Os japoneses todos que chegavam, os imigrantes, tinham essa dificuldade um pouco de se adaptar com os talheres, então você vê que é uma adaptação bastante difícil, mas era o que tínhamos e aí eles... sei lá, foram essas diferenças culturais e tal, e se adaptaram.
P/1 – E como era essa relação com seus pais e seus irmãos?
R – Ai, sempre foi muito legal, porque os meus pais eles tiveram juntos até a minha mãe morrer, a minha mãe morreu muito cedo. Eu tinha vinte e um anos quando ela morreu. Ela sofria de bronquite e ela tomava Cortisona e o Cortisona atacava muito o coração e ela tomava uma dose altíssima. Naquela época não tinha... hoje ninguém mais quase morre de bronquite asmática, mas aquela época morria. Mas era muito boa, minha mãe em casa, sempre em casa o tempo todo e o meu pai trabalhando. Saía de casa cedinho, ele trabalhava na indústria automobilística, era técnico na indústria automobilística e ele voltava pra casa, era do trabalho pra casa e era uma vida bem caseira, bem familiar. A gente era bem classe média. E tinha uma característica dos meus pais que a gente... nas férias, por exemplo, a gente fazia viagens curtas, porque eram quatro filhos, então também não dava pra... a gente não tinha poder aquisitivo pra gastar tanto, mas além disso eles sempre tiveram uma mentalidade de poupar, porque se o meu pai perdesse o emprego ele era o único responsável, ele era o provedor único da casa pros quatro filhos. E a gente, no primário, estudava em escola particular, depois nós fomos pro ginásio que, naquela época o Fundamental e... esqueci, como chama, depois do Fundamental? O...
P/1 – Fundamental dois?
R – Então, depois do Fundamental você tem o...?
P/1 – Ensino médio.
R – Ensino Médio. E no Ensino Médio a gente foi pra Escola Pública, que era uma escola muito boa, vocacional, a gente estudava música, fazia dança, fazia idioma. Então eles tinham essa preocupação. A gente não gastava com... os gastos tinha prioridade ali para a educação. E isso foi até acabar o colegial, até entrar na faculdade. Então era uma vida, assim, espartana, a gente tinha conforto e tal, mas era muito voltado pra educação, eles tiveram sempre essa preocupação. Eles acompanhavam, eram muito presentes, então foi um lar assim que na época, eu acho até que era mais comum. Era um lar muito harmônico, sabe?
P/1 – E você lembra da sua casa de infância?
R – Lembro, lembro muito bem. Outro dia alguém falou “qual a sua primeira (a minha filha perguntou) qual a sua primeira memória?” Quando eu tinha três anos brincando com a minha mãe, a gente, as duas sentadas numa poltrona como se fosse um carro, e eu era a mãe, então eu dirigindo e ela era a filha e eu dava as ordens pra ela. A gente morou até os cinco anos de idade, a gente morou num prédio na Avenida Paulista, e num prédio no edifício Nações Unidas, ele fica ali na esquina da Brigadeiro Luis Antônio. Depois, nós mudamos pra uma casa no Brooklin, aí meu pai comprou a casa do lado, que eram casas geminadas; ele comprou a casa do lado e fez uma casa só, então ficou uma casa de quatro quartos, uma casa grande, com a gente crescendo e tal. Daí eu só saí de lá quando eu fui morar com o pai das minhas filhas. Então eu passei vinte anos lá no Brooklin, foi bem legal.
P/1 – E o que você lembra do bairro, da rua, as brincadeiras que vocês costumavam brincar?
[00:10:22]
R – A rua era de terra, então... e aquela época você não tinha violência, os pais deixavam os filhos brincando na rua. A gente tinha um regramento de horários e tal, mas a gente jogava muito bola na rua, e brincava os meninos e as meninas juntos. A gente jogava, botava rede; quando a gente começou a jogar vôlei na escola, a gente botou rede na rua porque o chão permitia furar a rua e botar as estacas. Então, queimada a gente jogava muito, era brincadeira de correr, de taco, bolinha de gude, eram brincadeiras que hoje, o pessoal aqui urbano não tem nem noção do que é. E era uma vida muito gostosa, assim, quase rural, porque o Brooklin não era... a região ainda não era super urbana, sabe? Ele foi ser... as ruas foram ser asfaltadas um tempo depois, a luz também chegou um tempo depois; então aquela região foi urbanizando, mas, sei lá, até os anos setenta, era uma região rural praticamente. Olha, era rural! Tinha o rio lá embaixo, e o rio era a várzea de Pinheiros, e ali tinha muita fazenda. Quando chovia muito, abriam as porteiras, sei lá o que acontecia, tinha horas que passava um monte de cavalo na minha rua, uma manada de boi, entrava cabrito no jardim pra comer o jardim, então era meio rural. E olha, era anos setenta. Então teve uma... teve essa região toda aqui, Pinheiros, Brooklin toda teve uma mudança muito grande, uma loucura, sair aquela situação rural e crescer tanto prédio. Eu vi tudo isso acontecer. Então, eu fui escrever num Jornal, meu primeiro trabalho, num Jornal do Brooklin, eu falava que... e o cara queria que eu fizesse uma matéria engrandecendo o bairro que tava se modernizando. Eu falava “não, cada dia a gente vê menos o sol, porque os prédios vão subindo e você vai vendo menos paisagem, tá perdendo a graça, tá ficando tudo cinza”. Claro que ele cortou a matéria no meio, retalhou, tirou, ficou uma matéria sem pé nem cabeça, mas foi isso, eu vivi essa história de desenvolvimento de São Paulo.
P/1 – E você lembra de alguma história marcante dessa época ou dos seus irmãos, da sua família, do bairro.
R – Olha, história marcante, assim... tem história pra mim né, marcante. Eu tinha um irmão... meu terceiro irmão ele sempre foi muito danado, então o meu pai, diversas vezes, chegava da rua com meu irmão pendurado pela fralda, todo de barro, porque ele tava nadando na lama, ali a rua de terra, ele tava nadando ali e não tinha perigo, a gente andava de carrinho de rolimã sem capacete, sem tornozeleira, sem joelheira. Se ralava inteiro e tudo bem, limpava e saía andando sem maiores problemas, era tudo muito livre, foi uma infância muito livre. Se eu lembrar de alguma história, que eu sei que é importante, no decorrer aqui a gente interrompe e corta. Porque assim, uma história, sei lá, uma história marcante assim eu não sei, eu sei que era uma infância muito simples, não tinha grandes eventos, tudo muito normal, mas de uma normalidade tão maravilhosa que deu um esteio pra... eu acho que essa geração que viveu isso teve uma formação e ah, uma vivência que foi muito prazerosa. E também assim, era muito raro ter assédio, então a gente acaba tendo uma... você tem uma evolução, por um lado né, de direitos, de material e da cidade e tal, mas a relação que a gente tinha com a infância era outra totalmente diferente.
P/1 – E você pensava o que você queria fazer quando crescesse, com o que você gostaria de trabalhar?
R – Olha, eu sempre gostei de arte. Quando eu tinha seis anos, eu tava estudando no Pequenópolis, eu fui num aniversário de uma amiga e a uma certa altura do aniversário, a mãe abriu a sala e tinha um piano de calda, uma bateria e veio um cara com um instrumento enorme, um contrabaixo, que pra mim era enorme, eles se posicionaram ali e era o Zimbo Trio, e eles começaram a fazer um som maravilhoso e eu fiquei completamente abismada com aquilo, maravilhada, apaixonada. Eu cheguei em casa e falei pra minha mãe “eu quero tocar um instrumento, eu quero fazer música”. Eu adorei, nossa, aquilo mexeu muito comigo, eu insisti muito com ela, eu tinha seis anos. Dos seis aos oito eu fiquei insistindo e ela falou “calma, você não tá alfabetizada ainda, vamos com calma”. Quando eu fiz oito anos eu ganhei um violão, e aí eu comecei a estudar violão e aí foi uma paixão pra minha vida toda, porque um violão pra um adolescente é assim, um companheiro muito grande e o meu pai ele era muito rígido, eu não podia ir em festa, não podia namorar; meus amidos todos adolescentes saindo, passeando, meu pai me prendia muito em casa. Ele tinha uma mentalidade muito de pessoal do interior assim, ali no interior esse negócio de assédio é mais bravo, né. Ele tinha medo que eu sofresse qualquer coisa e me segurava muito em casa e eu tinha o violão como um esteio, porque tinha horas que eu... tava tendo festa e meus amigos todos reunidos se divertindo e eu estava em casa. E eu casei com um desses meus amigos e ele tem as fotos da festa e eu sabia o que eu tava perdendo ali. Mas eu tinha a música, e aquilo lá me livrava de qualquer ideia de suicídio, porque nessa hora o adolescente fala “eu quero me matar, porque eu tenho esse pai? não dá”, e o violão me livrava disso.
Então foi muito importante eu ter tido essa formação de música e ter o violão como companheiro. Além disso eu fazia dança também e eu adorava. Podia tá chovendo, eu podia tá com febre, eu não faltava à aula de dança e todo fim de ano tinha um espetáculo num teatro de São Paulo, no Bandeirantes, no Teatro São Pedro, em uns grandes teatros a gente dançava. Então eu lembro muito do cheiro da coxia e do palco e o som no teatro todo, era uma vivência... foi muito importante pra mim. São emoções que eu guardo assim com muito carinho. E a própria performance no palco que também era muito importante. Então eu queria ser... fazer música e dança a minha vida toda. Mas eu gostava de escrever muito também, então quando eu fui fazer vestibular, o que eu encontrei ali foi o Jornalismo, porque eu podia escrever, podia falar de dança, podia fazer música... e como eu não era nenhum talento brilhante em música e em dança, era bem média assim, fazia aquele sonzinho bem médio e tal, eu já tinha consciência de que eu não brilharia e nem ganharia dinheiro com aquilo, então pelo menos no jornalismo eu podia atacar nas outras áreas e o jornalismo poderia ser uma possibilidade de uma profissão que me rendesse lá meu ganha pão, né.
P/1 – Voltando um pouquinho, antes da universidade, qual a sua primeira lembrança da sua escola?
R – Da minha escola? A primeira lembrança que eu tenho da escola, é... essa escola era uma escola... eu fui pra escola com seis anos, e era o pré-primário, era uma escola particular. E eu tinha muitos amigos, mas eu sempre fui namoradeira, e eu com seis anos já tinha um namorado. E eu ganhei uma caixa de lápis de cor de vinte e quatro cores que naquela época, a gente de classe média assim era meio raro, era um presente meio de gente rica, e eu ganhei essa caixa de vinte e quatro cores e eu guardava aquilo e cuidava com muito cuidado né, e eu perdi o lápis que eu mais gostava, que era o lápis cor de rosa. E eu tava lá na classe chorando porque eu tinha perdido o lápis cor de rosa. Esse menino, que era meu namorado, chegou e falou, “mas por que você tá chorando?”, eu olhei e disse “porque eu perdi meu lápis cor de rosa”. Ele falou “qual que é?”, ai eu falei “é o número tal”, porque até o número do lápis eu sabia, aí ele falou “ah, pode ser esse daqui?”, ele tinha um estojo também igual, novinho, aí eu falei “é, então pode”, aí ele “então vou te dar o meu”. Essa lembrança pra mim é muito cara, porque foi uma demonstração de solidariedade, de amor assim, então pra mim é uma lembrança muito forte que eu tenho dessa, dessa... se for alguma, mas eu tenho muitas outras.
P/1 – Aí logo você mudou de colégio?
R – Não, eu passei... fui até o primário nesse... até dez anos eu fiquei no Pequenópolis, que eu fazia dança também lá e era uma escola muito boa. A minha mãe achava que a gente tinha que ter a base numa escola particular. E depois eu fui pro Vocacional, que era uma escola, que foi uma escola muito importante na pedagogia de São Paulo – do Brasil todo eu acho – porque eles tinham um ensino, eles tinham um projeto pedagógico que era muito revolucionário pra época, porque a criançada interagia com o meio externo, então, a gente tinha aula fora da escola, fazia grupos de trabalho fora da escola, tinha trabalho em equipe. Foi uma escola que teve intervenção, intervenção militar, porque era uma escola que dava formação... ah... muito de esquerda. Então a diretora foi presa, perseguida, depois veio um diretor interventor que tentava manter ali o negócio, mas era é... foi uma escola muito importante na minha formação.
P/1 – Você lembra de algum professor que tenha te marcado?
R – Ah, diversos. Tinha a Maria Teresa, de Matemática, de Geografia, são professores, Eneida de Geografia; a Misecleia, de Inglês; a Professora Ivete de Português e Literatura. Foram professores que tiveram muita importância na formação, na nossa formação toda. Eu digo nossa porque meu grupo, eu tenho um grupo de amigos do Vocacional ainda, até hoje, que a gente se encontra. Tem um Núcleo Duro, que nós somos muito amigas. Então a gente tem lembranças que são muito rememoradas, porque as pessoas trazem a memória, né? Tem o grupo ______, um grupo dos alunos do Vocacional, que é um grupo formado por alunos que passaram pelo Vocacional desde os anos sessenta, então a gente tem uma dedicação pro Vocacional, pra memória do Vocacional que foi realmente muito importante.
P/1 – Você se formou nesse colégio?
R – É, eu fui até o terceiro colegial.
P/1 – Satíe, e na sua juventude, como você se divertia? Você falou que o violão era um companheiro, mas quando você começou a sair, o que você gostava de fazer nessas horas de lazer?
R – Ai, música sempre. Era um período que a música brasileira era muito fértil e eu me ligava muito nos meus amigos que faziam música. Então a gente sempre se reunia e tocava, isso era assim, condição. Mas tinha... naquela época os shoppings começaram a ser construídos e o primeiro que apareceu ali foi o da Faria Lima, o Iguatemi. Então, imagina, era um lugar que era muito diferente pra gente ir, então a gente gostava de ir no shopping, pouco também, porque era só pra passear, não tinha aquela coisa que consumo. Mas, eu acho que era mais a roda de música mesmo, que a gente curtia. Tinha as festas que, quando eu podia ir escondida eu ia, os bailes. Eu sempre fui muito alta, e os meus amigos eram mais baixos, então eu ia de tamanco e eu dava os meus tamancos pra eles ficarem mais altos, porque, eu acho que até hoje deve ter isso do homem não curtir muito, mas adolescente ser mais baixo do que a menina, eles ficavam incomodados, então eu levava meu tamanco pra eles dançarem. Então assim, nos bailes a gente, quando eu podia ir, a gente curtia muito. É, tinha muita brincadeira na rua, mas era muita conversa, nossa, a gente conversava o tempo todo, juntava lá as amigas, os amigos e a gente conversava o tempo todo. Eu tinha no Vocacional umas aulas extracurriculares, então a gente tinha aula de teatro e tinha os ensaios, a gente fazia peças e ensaios. Então os ensaios e a conversa sobre teatro era também era uma atividade que a gente tinha. Tinha aula de Artes Plásticas, artes industriais, educação doméstica, práticas comerciais, que eram a tarde. Então também era um outro universo de conhecimento prático que normalmente as escolas não tinham. E era muito prazeroso. Em Artes Plásticas, a gente tinha a liberdade de construir uma... protótipo de favela, por exemplo, então dos trabalhos que a gente fez, que o meu grupo fez, foi uma favela que era uma crítica social, a gente tinha treze, quatorze anos, sabe, naquela época. Eu olhando isso eu acho muita maturidade pra aquela época. Hoje uma criança de treze, quatorze anos não tem muita formação, eu acho que são até meio poupados da realidade social que é muito dura. Aquela época a gente já encarava mesmo. O que tinha de conflito a gente discutia, por isso também que a escola era uma escola diferente. Então a gente fez uma favela, que tinha um chão de terra. Eu lembro que eu levei um tênis do meu irmão bem velhinho, coloquei lá; a gente botou varal, escreveu nos muros ENEMARU, que era uma mensagem da milícia paulista na época. ENEMARU, tinha ‘cão fila quilometro dezesseis’. No quilometro dezesseis da Raposo Tavares eles criavam os cachorros pastores alemães pra fornecer pro DOI-CODI, pra polícia repressiva e era assim, “olha pessoal, se liga porque cão fila quilômetro dezesseis”. Então são imagens que tão vindo assim, que alimentavam a nossa, o nosso protesto. Então a gente colocou no muro da favelinha que nós construímos. Então tinha assim, trabalhos que eram de expressão do que adolescentes daquela época estavam vivendo e eu acho que foram muito ricas, essas experiências.
P/1 – E como foi o processo de descobrir a sexualidade, como foi o período da menstruação, vocês conversavam sobre isso com amigos, com a mãe?
R – A gente tinha muita orientação na escola. Tinha uma matéria de Educação Doméstica e eles dedicaram dois bimestres pra gente estudar educação sexual e era integrado com outras matérias, então, em literatura deu pra gente estudar Diário de Dani e Diário de ..., tinha o nome da menina. Os meninos liam Diário de Dani e as meninas liam o diário da menina correspondente. Então era a aula de educação sexual, tinha os modelos, os professores ensinavam como acontecia a reprodução. Em Biologia a gente estudava a parte científica, então era integrado. O Vocacional era muito... tinha uma, uma concepção pedagógica assim muito inteligente. E em casa sempre a minha mãe super me orientou, a gente tinha diálogo aberto e ela tinha um sentido muito moralista no que ela colocava, não era só científico, mas ela foi me dando as informações que eu precisava ter. E entre nós amigas, a gente se complementava. Tinha uma mãe de uma amiga que era psiquiatra e ela foi muito importante na minha formação também. Uma vez eu tava andando na rua, tava esperando o ônibus e parou um carro na minha frente, abriu a porta e o cara começou a se masturbar, e eu fiquei muito chocada, eu fiquei assim, aterrorizada e saí correndo, com medo dele me agarrar e tal. Eu corri tipo um quilometro assim, num tempo recorde e cheguei lá na casa dessa minha amiga arfando e a mãe falou “o que aconteceu?” – e ela psiquiatra – contei pra ela e tal aí ela me acalmou, ela falou “olha, isso é uma doença que certas pessoas têm”, e me contou como é essa patologia. Então eu tive muita sorte de encontrar pessoas que foram me dando elementos para que eu não me tornasse uma pessoa preconceituosa, uma pessoa, ah, sei lá, com maus pensamentos, e porque eu sempre tinha muita gente me instruindo e eu era muito curiosa, então eu ia atrás também, de informação. E essa época aconteceu isso. Quando eu tinha oito anos era sócia de um clube, o Açaí Clube, era um clube de bairro que era uma delícia, era super familiar, meu pai comprou o título porque eu sofri uma situação de afogamento num clube e aí no dia seguinte quando eu cheguei em casa e falei “olha, sofri um afogamento e tal”, quando eu cheguei em casa, quando eu cheguei e contei pra ele, no dia seguinte ele comprou o título do clube e botou a gente pra aprender a nadar, aprender natação. A gente frequentava esse clube e nesse clube eu sempre fui muito amiga do bedel, do cara que tomava conta da piscina, dos faxineiros... Um dia o bedel entrou comigo e falou “vem aqui que eu vou te mostrar os troféus do clube”, e entrei nas salas de troféus e ele fechou a porta, e eu falei, “é, mais porque que você fechou a porta”, ele falou “ah não, é pra gente ficar mais à vontade aqui”. Na hora – eu tinha oito anos – na hora eu senti que aquilo tava errado. Aí eu falei “olha Décio, eu acho melhor você abrir a porta porque eu vou começar a gritar se você tentar qualquer coisa”, “não, não só um beijinho, só um beijinho”, mas eu falei (alterando a voz) “pode abrir a porta!”, eu comecei a falar alto, ele viu que eu ia fazer um escândalo e abriu a porta eu saí de lá e fui pra diretoria falar “olha, aconteceu isso com o Décio, eu adoro ele, mas ele vai fazer isso comigo e com outras pessoas, se já não tiver feito”. Então eu acho que ele tem que ser mandado embora. Eu tinha oito anos. E aí ele foi mandado embora. Vou contanto as histórias que vão também pinçando assim da memória, porque acho assim, sei lá, o tema tem a ver, né. Então você vê, menina tá sempre… menino também, mas acho que menina mais, tá sempre ali à mercê de sofrer uma violência, alguma coisa. Então se a gente tem essa formação em casa, porque a minha mãe, como ela morava em sítio e em sítio era bem normal acontecer isso, ela escapou também de sofrer assédios. Ela conta uma história (muito chapeuzinho vermelho), ela tinha o padrinho dela que estava doente e aí a mãe dela falou “ó, leva essa cestinha de comida pro seu padrinho, que ele tá doente”.
Quando ela chegou lá na casa dele ele falou “fecha a porta ai e vai se lavar” e ela falou “mas porque, por quê?”, “não, vai lá, me obedece, vai se lavar”, e quando ela foi fechar a porta ela saiu correndo, contou pra mãe dela e falou “olha, eu nunca mais vou entrar na casa do meu padrinho e a partir de hoje ele não é mais meu padrinho coisa nenhuma”. Então, ela me contava essa história e eu entendi o que era, porque ela fala pra mim “você não deixa nem a sua calcinha aparecendo na frente do seu pai, você dorme sempre coberta”. E eu dormia sempre coberta, nunca acordei descoberta. Eu acho que eu fui crescendo com uma tensão, porque eu não podia ficar descoberta na frente do meu pai, porque “olha, ele é homem”, e sabe, pode acontecer. Então ela tinha esse repertório, ela nunca revelou que sofreu qualquer tipo de violência em casa e tal, mas ela passava esse repertório pra mim, e eu fui crescendo bem esperta quanto a isso.
P/1 – E nessa época você teve relações amorosas, começou a namorar?
R – Não, meu pai não deixava eu namorar. Mas, como eu era namoradeira, eu tinha doze anos, eu tive o meu primeiro namorado, mas que era mais sério assim, que era o Alberto Guerini, a gente até de vez em quando se encontra porque ele é do Vocacional também e a gente tem muito carinho um pelo outro, mas não rolou nem um beijo, porque ele tinha tanto medo do meu pai e eu também, que acabou a gente só se pegando de mão, a gente só andava de mãos dadas. E eu fui namorar mais mesmo quando eu fiz dezoito anos, porque aí eles me liberaram e eu me senti liberada também. Então durante esse tempo todo eu tinha lá minhas paqueras e tal, mas não podia namorar. E aí quando eu comecei a namorar, daí, na verdade, com dezesseis anos eu comecei a namorar e aí foi um namorado super sério assim, a gente quase casou, mas não casou. Depois eu fui ter um outro namorado com dezoito anos, que aí foi quando eu perdi a virgindade. E foi tudo muito preparado, muito ritualizado e tal, foi bem bacana.
P/1 – E como foi a transição do colégio pra faculdade?
R – Do
colégio pra faculdade?
P/1 – Isso.
R – Olha, a transição do colégio pra faculdade, se por um lado representava novidade, representava estar num outro status, foi também bem sofrido, porque o grupo que com quem eu vivi, o grupo que eu frequentava, era um grupo que vinha se formando desde que a gente tinha onze anos, então dos onze aos dezessete, são amigos assim pro resto da vida, inseparáveis. Então essa separação que naturalmente vai acontecendo, foi sofrida, e ah, eu fui pra um outro universo, um outro espaço, outra escola, pra mim foi meio sofrido. Eu fiz cursinho entre um e outro, então teve um pouco de... teve um atenuante aí né, no meio da mudança radical, mas foi sofrido sim. Eu cheguei na faculdade e não conhecia ninguém, e eu também não tava... eu fui mal humorada, eu não tava muito a fim de fazer amizade, num primeiro momento, depois que eu fui me adaptando, que eu fui entendo, daí eu comecei a curtir a faculdade, aí foi muito bom.
P/1 – E nessa época você começou a trabalhar?
R – O primeiro cheque que eu recebi, eu tinha onze anos, porque eu dava aula particular pros alunos que vinham de herança da minha mãe. Minha mãe dava aula particular, e aí ela dava aula de matemática e eu era muito boa de português, então alguns alunos que precisavam de português também, eu dava aula. Mesmo com onze anos, que uma criança de onze anos sabe, mas eu já conhecia gramática suficiente pra ensinar o pessoal do quarto ano pra trás. Então a gente lia e eu incentivava muito ler, então a gente sentava juntos e eu tinha um método meu de leitura, que a gente ia lendo juntos e o cara ia falando o que ele ia entendendo e quando ele percebe que ele tem capacidade de entender, porque até então ele achava que ele não tinha capacidade de entender, ele era um mal leitor, em algum momento da vida ele encontrou com esse obstáculo e ali na aula ele começou a ter retorno e perceber que ele era inteligente, que ele era capaz e que ele também podia entender. Então meus alunos viravam ótimos alunos, a gente foi tendo muitos bons resultados. Então minha mãe falou “tá bom, você pode dar aula”, então eu fiquei dando aula durantes anos. Com o dinheirinho que eu ganhava eu podia comprar as minhas coisas, comprava meus luxinhos, porque ela tinha quatro filhos, não dava pra ela ficar dando sapato pra todo mundo, sei lá, coisinhas pra todo mundo, até eu também podia dar presentes pros meus irmãos, porque eu ganhava uma graninha legal. Então era muito prazeroso poder já trabalhar né. Quando eu fiz dezoito anos que meu pai até então não deixava viajar eu falei “olha, eu tô com um dinheiro aqui, eu vou viajar e você não vai precisar desembolsar nada”. A partir daí eu pagava as minhas viagens e tal, então ele também não tinha muito como me impedir de viajar. Às vezes você faz a pergunta, eu vou falando, vou viajando e aí eu perco até de onde eu comecei, mas se você quiser retomar alguma coisa, você me fala, que eu tô aqui soltando a memória.
P/1 – É, então. Aí durante a faculdade você começou a trabalhar, estagiou ou...
R – Então, quando eu entrei na faculdade, o primeiro ano pra ver se era aquilo mesmo do Jornalismo, daí eu fui fazer um estágio no jornal da zona sul, que foi aquele jornal que eu falei que eu escrevi a matéria sobre o bairro, e além disso eu fazia matéria de assessoria de imprensa também, porque aquela época tava aparecendo e a gente assessorava pessoas, então eu tinha que escrever sobre a pessoa e batalhar nos diversos órgãos da imprensa pra que soltassem a matéria sobre aquela pessoa. Trabalhei um tempo nesse jornal e depois eu fui trabalhar na... a gente começou a fazer vídeo na faculdade. Quando você começa a fazer vídeo, você fica um pouco desprezando o texto escrito, porque o vídeo, o áudio... tem tanta arte nessa mídia, que a gente ficou absolutamente encantados e o professor também era um professor que incentivava muito, dava muito material pra gente ler, informava muito, e cinema e tal, bom, eu larguei o texto escrito e fiquei na mídia, mas não tinha como, não era pago ainda, então eu fui trabalhar num jornal de empresa. Então eu fazia o jornal da empresa e ia lá três vezes por semana, comecei como estagiária e aí depois, o meu chefe que era um cara muito bacana, falou “olha eu vou aumentar o seu salário então eu vou te colocar numa outra...”, então ele me registrou de uma outra forma, pra aumentar o meu salário. E aí eu fiquei fazendo o jornal dessa empresa durante um bom tempo, aí eu pude ir morar na minha própria casa, aluguei uma casa com outras pessoas, saí da minha casa, e aí eu fui me profissionalizar. Eu não sei se você queria eu falasse mais de estágio alguma coisa assim. E, ah, e teve uma... isso também eu acho que é legal. Quando eu tava no terceiro ano, eu prestei um concurso pra editora Abril, na época eles faziam um concurso pra chamar pessoas pra trabalhar lá e aí eu prestei um concurso e fui trabalhar no departamento de sistemas, e aquela época era a época que estava se implantando o sistema de computação nas revistas e na imprensa. E foi muito interessante, porque era um embate entre o pessoal que tava formando a equipe que ia entrar com o sistema, que ia implantar o sistema e os empregados, porque muitos estavam sendo mandados embora, as redações estavam diminuindo, e a gráfica principalmente, então eu com vinte e um anos entrei lá, uma menina super ingênua, porque eu não tinha vivência né, vivência de conflitos de empresa e tal, e eu entrei lá e fui dar treinamento pro pessoal que tinha, que assumia ali novas funções e também preparar as pessoas que estavam saindo, então foi um pouco difícil, foi um trabalho difícil que eu fiz ali, tanto é que eu não fiquei muito tempo, era aquilo e a maravilha do mundo, do vídeo da edição e do cinema e da reportagem, então eu fiquei pouco tempo na editora Abril e fui pro vídeo. Não tive oportunidade de passar por redação, fiquei no vídeo o resto da vida (risos), para todos que fazem vídeo.
P/1 – (risos) E você foi morar fora, você foi morar sozinha?
R – Fui. Quando eu tinha 21 anos a minha mãe morreu. Eu estava pronta pra ir pra Salvador porque a dança e a música eram muito fortes na minha vida ainda, e lá em Salvador eu conseguiria um espaço pra trabalhar com dança e música, ensinando dança e música pra criança carente, então eu tava indo, mas a minha mãe morreu, então eu tive que abortar esse plano porque eu não tive coragem de deixar meus irmãos e meu pai aqui sem a minha mãe, porque eles estavam muito pirados, aí eu fiquei e aí continuei o curso de jornalismo aqui e esse plano de ir pra Salvador morreu. Ainda eu alimento... até hoje alimento esse sonho de morar em Salvador, fazer alguma atividade artística lá. Pode ser até uma atividade de direito, mas eu tenho certeza que eu vou lá. Eu vou contar pra vocês quando eu for.
P/1 – E como foi esse momento de perda?
R – Da minha mãe? Olha, foi... é bastante interessante, porque a minha mãe na verdade era quem me prendia. O meu pai era o bravo e quem fazia a cabeça do meu pai era a minha mãe. Então quando ela morreu o meu pai se transformou, e no dia seguinte que ela morreu ele falou “olha, agora é cada um por si, vocês se viram porque eu não tenho condição de ficar tomando conta de vocês do jeito que a sua mãe tomava, então vocês tenham juízo e se cuidem”. Então ele deu a carta de alforria pra gente quando a minha mãe morreu, e aí eu fui testando até onde ia a nossa liberdade, e aí a nossa liberdade foi total. Eu dormia fora, não precisava mais avisar, ele realmente ficou assim, deixou a gente ficar independente. Então foi um lado bom, com a morte da minha mãe. Foi incrível falar isso, mas é verdade. Eu fiquei livre pra fazer o que eu precisava, o que eu queria fazer, porque eu era muito ativa, eu fazia aula de música, fazia aula de dança, cantava em banda, trabalhava, fazia estágio. Eu dormia três horas por noite. Tinha fim de semana que eu estava num stress tão grande, porque era muita demanda durante a semana. Mas era a época que eu tinha pra fazer tudo que eu tinha que fazer. Não tinha tanta responsabilidade com o trabalho, não tinha família e filhos, então eu aproveitava muito. E foi depois que minha mãe morreu, que eu pude ser eu, podia fazer o que eu queria. Claro que foi dolorido, porque eu era a única filha, a gente era muito amiga, e ver meus irmãos sofrendo muito, o meu pai, porque ela era o esteio da casa, ela era uma graça, até hoje eu ando no bairro e tem gente que encontra comigo e chora, depois de cinquenta anos que ela morreu, não, quarenta anos, trinta e nove anos. Então, até hoje, muita gente lembra dela, mas teve esse contraponto, para os meus irmãos foi bem mais sofrido, mas pra mim, como eu tava com muita atividade, então eu fui absorvida por essa atividade, por essa maravilha que é o mundo, de te oferecer tanta oportunidade. Então eu não sofri tanto. Depois de três meses assim, que saiu aquela sensação de morte, eu realmente bati asas.
P/1 – E como foi o desenrolar dessa vida profissional...? Demorou um pouco?
R – Eu fiquei sócia de cinco pessoas, cinco colegas, quatro colegas do jornalismo e um que veio da FAU, ele veio fazer a matéria do Arlindo Machado também, que foi um super professor querido, falecido recentemente, e ele... o Julio, que é o pai das minhas filhas, ele veio trabalhar com a gente também, veio ser sócio e a gente começou a namorar, e depois de algum tempo nós fomos morar juntos. Então nós ficamos sócios e marido e mulher. Então a gente tinha uma convivência bastante intensa, e depois de um tempo vieram os filhos, a gente fez a produtora em casa. Então eu vivi a vida toda muito em função do vídeo, eu ia incorporando a realidade na produtora, no vídeo. Foram anos muito vibrantes.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Olha, quando eu comecei a fazer, eu tava saindo da faculdade, então eu tava com vinte e três anos. Eu fui morar com o Julio eu tinha vinte e quatro anos e... mas aí a gente tava fazendo o vídeo num esquema bem amador ainda, e trabalhava, e dançava, tocava, fazia mil coisas. A gente ficou morando numa casa alugada com mais outras pessoas e depois que a gente foi morar só nós dois num outro lugar.
[00:54:18]
P/1 – Então vocês resolveram juntar tudo, morar só vocês?
R – Só eu e o Julio? É. Foi interessante, por um lado, porque a gente ia ter uma vida de casal. Mas fazia falta, os amigos faziam falta. E a gente era muito novo, era muito novo. A gente tava experimentando muita coisa. Mas a gente tinha uma vida gostosa, assim, uma vida de casal, porque aí a gente já tava com a produtora mais estável, já tinha passado daquela fase inicial, que a gente fazia casamento pra juntar grana pra comprar equipamento. E fazer casamento era muito tenso, era muito difícil pra gente porque você tem um objeto que não tem interesse, não tinha interesse pra gente. Era um trabalho, tudo bem, mas não um trabalho nem que rendia muita grana, e a gente tinha que obedecer o pedido do pai da noiva, da mãe da noiva, enfim. E tinha aquela tensão de não poder perder o horário de chegada, o beijo, o sim, a aliança, não era... era tudo feito ali ao vivo, não tinha ‘repete a cena’, sabe? Então era muito tenso pra gente, depois a gente tinha que editar e se o cliente não gostasse, você tinha que fazer mil mágicas pro casamento ficar bom. E não tinha efeito. Mal tinha corte seco e música, era tudo que você tinha, depois começou a ter máquina de efeito que tinha que juntar duas máquinas mais uma terceira, aí você perdia a qualidade porque você gerava outro master, outro original. Então eram recursos da idade da pedra, da TV e do VT.
P/1 – Quer dizer que então você acompanhava casamento, filmava...
R – Então, eu entrevistava o noivo e a noiva, e via de regra, quando eles vinham pra pedir um vídeo, eles já tinha um roteiro na cabeça. E aí vinha o noivo e a noiva, (risos) eles já tinham um álbum de fotos enorme que a gente tinha filmar todas as fotos e fazer um clipe com os fotos, gente, eu... lembrar disso, realmente é assim, muito engraçado, porque eles já vinham com as fotos pra gente filmar todas, um calhamaço, e aí ela trazia um poema. Era legal quando ela trazia o poema, porque às vezes eles queriam que a gente criasse um poema. E aí pra conquistar o cliente a gente falava “ah, tudo bem, vamos fazer uma coisa aqui”, aí às vezes passava a madrugada pra fazer um poema pro cliente, mas era... era aquilo, a gente tinha que levantar uma grana pra comprar equipamento, e casamento era o que dava, porque ninguém ia contratar um bando de cabeludo de vinte e poucos anos pra fazer trabalho de empresa, trabalho mais profissional. O vídeo tava começando, então, não tinha gente rica na nossa equipe, não tinha quem financiasse, a gente mesmo que tinha que comprar o tripé de luz, o iluminador, a lâmpada, tudo custava. Então o dinheiro do casamento era uma forma da gente ir juntando recurso. E aí tinha que fazer, agradar os noivos e fazer, desde essa parte – porque essa parte do vídeo é um vídeo a parte que é um produto que a gente inventou que chamava top line – e aí a gente fazia o vídeo de introdução, porque na hora da festa ficava passando esse vídeo com as fotos do noivo, as fotos da noiva, eles pequenos, a vida toda; contava a história da vida deles a vida toda e aí, enfim, era um vídeo que passava lá durante o jantar. E a gente fazia esse vídeo também e fazia o vídeo do casamento. Então foi um produto que a gente teve que fazer assim na marra, porque... e quanto mais fizesse melhor, porque a gente queria, sabia onde chegar. Até que, graças a Deus, chegou uma hora que a gente não precisou mais fazer casamento, a gente já tinha comprado a câmera. Naquela época não era câmera e VT tudo num mesmo equipamento, era câmera e VT e mais um cabo no meio. Então tinha...e era um matique, primeiro tinha uma bitola VHS, que era mais caseira (vídeo home system, que é caseiro) e tinha um matique, que era mais profissional, era semi-profissional, que profissional mesmo era uma polegada que era o que rolava na TV, e tudo aquilo custava, tipo quinze mil dólares, vai, era um conjunto na época assim. E pra juntar quinze mil dólares com casamento a gente tinha que trabalhar muito. Mas a gente foi fazendo, depois a gente comprou uma em ilhinha de edição que aí deu mais autonomia pra gente e aí nós fomos crescendo. Mas a gente não tinha maturidade comercial, empresarial. Então a gente misturava um pouco as contas, todo mundo era super honesto, mas a gente faltou esse conhecimento. Então a nossa empresa não era uma empresa muito saudável financeiramente. Mas como trabalho a gente fez muita coisa interessante.
P/1 – Como era trabalhar e voltar pra casa junto com o companheiro?
R – Como é? Trabalhar junto com o companheiro? Você tá falando do Julio, né? A gente era o tempo todo, a gente juntos o tempo todo. Então era bem intenso a nossa convivência, e depois quando os filhos foram chegando, aí ficou mais forte ainda, mas é interessante porque nós dois víamos o vídeo pela câmera, era uma descoberta que a gente tava fazendo, então muito gostoso compartilhar uma visão de mundo assim com uma pessoa que, meio que enxerga junto com você, não é... é interessante quando você tem um olhar diverso sim, se a pessoa tá em outro ramo, em outro lugar e tal, mas é gostoso também você compartilhar um casamento com uma pessoa que faz a mesma coisa que você. Até muito interessante pra essa área porque, a gente passava a madrugada fora, cada um viajava pra um canto. Só – trabalhando nessa área – quem é do ramo pra aguentar um casamento assim, porque é difícil um casamento de pessoas de áreas diferentes, a mulher fica em casa e o marido vai viajar, ou ao contrário, a mulher vai viajar o marido fica em casa, é difícil pra eles compreenderem. Meu marido hoje... é incompatível eu ter esse trabalho de vídeo, muito por isso também que eu fui pra área do direito, porque se eu tivesse que viajar, passar madrugadas fora tal, certamente era conflito em casa. Então é interessante os dois trabalharem na mesma área, sabe?
P/1 – E como foi esse momento de ter filho, foi uma decisão, ou aconteceu?
R – O Julio, o pai das minhas filhas, ele já tinha um filho quando a gente começou a namorar e ele já foi claro comigo logo de cara ele falou “olha, eu gerei um filho, eu não assumi esse filho, eu tô com dificuldade, mas ele existe”. Aí teve um processo muito bonito da gente ir atrás do filho dele e trazer o filho dele pra família que também não tinha assumido o menino, e depois, então o filho dele reinou durante um tempo e nós começamos a planejar a vinda da próxima filha, que era a Mayumi, que tá com trinta anos hoje, e foi bem planejado, eu queria saber se ele tava a fim de ter um segundo filho e se ele ia continuar junto, se a gente ia continuar junto porque a gente tinha uma relação bastante flexível assim, a gente até admitia outras relações, a gente tava experimentando tudo, e aí eu queria saber se ele ia assumir esse filho mesmo, se a gente ia criar juntos, porque eu não tava afim de criar filho sozinha, então nós fizemos um pacto que a gente ia ter o segundo filho e a gente já fez plano de saúde e tudo direitinho pra depois de vencida a carência do plano de saúde eu poder ter o filho num lugar legal, seguro e com médico que nos desse atenção e informação e tudo o que fosse necessário. E assim foi bem planejado. A Mayumi foi bem planejado. Quem não foi, foi a Milah. A Milah já veio depois de sete anos, a gente já tava com a relação bem balançada, meio encaminhando pro fim e ali num acidente, escapou a camisinha e tal, e eu engravidei e ela veio e foi muito bem-vinda, e eu fiquei super feliz porque eu não queria ter só um filho, só a Mayumi né, eu criei o Jan, mas eu queria ter mais filhos. E a Milah, ela veio meio sem planejar, assim, mas ela foi depois de sete anos. Quando a Mayumi, na verdade, autorizou que ela viesse e ela foi consultada porque ela falava “ai mãe, eu ainda não tô pronta pra ter mais uma irmã e tal”, isso com quatro anos, cinco, e eu sempre tava perguntando, e aí ela uma certa altura falou “não, eu agora tô pronta pra ter uma irmã” e aí a gente... não, eu acho que foi até meio inconsciente assim, porque a gente tava meio mal, então “ah, ter filho agora, não sei e tal”, mas enfim, escapou, daí ela veio depois e taí, linda.
P/1 – E o que a maternidade representou assim, na sua vida? Como foi se tornar mãe?
R – Ah, eu sempre fui muito maternal nas minhas relações, eu era irmã mais velha e a minha mãe um pouco me incutiu a maternidade, eu cuidava dos meus irmãos, eu tinha uma preocupação com eles que ela me transmitia e depois com os meus amigos também, e eu acho que eu fui fomentando junto com um talento pra ser mãe assim, então quando eu virei mãe eu, nossa, eu deitei e rolei, amei, é uma delícia. Acho lindo, desde a hora de pensar em ter filho, a gravidez toda é um momento impar na vida de uma mulher, porque a sociedade toda se rende pra sua maternidade; então você tá no trabalho, além de internamente você ficar mais criativa, você tá mais inspirada, externamente também com a receptividade, fica um momento mágico, pra mim foi assim, as duas gravidezes. Na rua o trânsito para pra você atravessar, então parece que a vida fica transformada, e como eu passava muito bem na minha gravidez, os problemas de saúde, bobagens até, mas queda de cabelo, tudo melhora, tudo fica mais viçoso e então pra mim gravidez sempre foi um momento lindo, se eu pudesse eu teria diversos momentos, porque foram muito boas as minhas gravidezes.
P/1 – E você se preparou, você estudou, fazia curso, pesquisava?
R – Olha, eu me preparava um pouco, mas eu não ficava tão absorvida pela maternidade, eu vivia, eu vivia, e assim, a minha grande consultora era a obstetra, ela me dava todas as informações. Então, a primeira, ela era a minha ginecologista desde muitos anos e era uma médica que era particular e na hora que ela me deu o valor do parto eu assustei, porque era muito caro e ainda tinha mais os honorários da equipe e tal e eu não tinha aquela grana pra pagar e eu já pagava o convênio, já tinha feito o plano e tal, e aí eu fiquei totalmente surpreendida com preço dela, eu falei “escuta, com esse valor eu posso comprar um carro novo, eu posso fazer uma super viagem, você ficaria muito chateada se eu não fizesse o parto com você?” ela ficou: “imagina, mas a gente tem uma relação antiga, eu já conheço..”, meio querendo me gerar uma insegurança, sabe? Ah, eu falei “olha, sinto muito, esse valor tá totalmente fora dos meus planos, do que eu imaginava. Eu fiz um plano de saúde pra ter um parto com valor mais baixo, então não dá”. E olha, eu tive coragem de me libertar dela e fui procurar um outro médico e ele foi maravilhoso, foi incrível, além de ser lindo, gato, aí fiz o parto com ele e foi super incrível. Na hora do parto ele botou um radinho de pilha pendurado e junto com o Julio, ele e o Julio, trabalhando no parto ali foi muito legal, foi muito bacana.
P/1 – O segundo parto?
R – O segundo parto, eu vou contar da gravidez, eu já tava com trinta e oito anos. Eu tava super forte e saudável. Gente, até hoje se eu ficasse grávida eu tô com cinquenta e nove anos, mas até hoje eu toparia uma gravidez, sabia? Porque é um momento tão legal, é o máximo pra uma mulher. Eu tenho algumas amigas que optaram por não ter filho, os filhos são as peças, são as músicas, são outras produções e agora eu, particularmente, pra mim a maternidade, a gravidez e a maternidade eu passei e passaria de novo, porque eu acho que é muito... são momentos muito interessantes pra mulher. Então, eu tava com trinta e oito anos quando eu engravidei da Milah e a médica falou “olha, vamo fazer uma amniocentese porque você já tá com trinta e oito anos e com trinta e oito anos a gente começa a ter uma mudança no organismo e pode ter uma mudança genética. Se a gente constatar uma mudança genética no feto, a gente pode interromper a gravidez”. E eu fui seguindo o conselho dela, fui falar com meu pai, porque o meu pai era muito católico, falei “olha, se eu tiver algum problema a gente tem a possibilidade de interromper a gravidez e eu queria trocar uma ideia com o senhor e tal”. Ele falou “olha, você que vai decidir porque o filho é seu, se você tiver filho e tiver problema você é que vai criar e tal, então fica na sua mão, eu vou tá te apoiando no que você decidir”. Enfim, nós fizemos a amniocentese e é um exame que eles enfiam uma agulha desse tamanho, porque é claro né, você imagina, a mulher tá com uma barriga desse tamanho, com água, com líquido amniótico, eles tem que enfiar uma agulha pra colher material genético e aí eles monitoram com ultrassom e empurram o feto pro lado e colhem o líquido por ali né, é um exame... o médico na época fazia parte de um projeto de genética super confiável e tal, numa clínica no Paraíso chamada São Rafael, ele me atendeu super bem, me deu uma aula de genética. Falou pro Julio “olha Julio, se você quiser cooperar com nosso banco de espermas, se você ter aqui seu esperma guardado pra uma futura gestação, nós estamos aqui”. Mostrou os certificados dele, as participações dele nos projetos genéticos acontecendo em volta do mundo, então era um médico muito carimbado. Nós tivemos uma relação ali de professor e aluno, uma coisa muito legal. E a clínica fazia parto também e eu falei pra ele até, eu perguntei pra ele “dá pra fazer parto aqui na clínica?”, ele falou “dá, mas eu não indicaria não, pra você fazer com meu irmão”. Eu achei estranho, porque um irmão não indicar o outro, eu achei até que ele tava brincando e tal, mas eu não levei adiante, só constatei que ali naquela clínica poderia ser feito um parto. Então, depois de receber o resultado dos exames, tudo certo, continua a gravidez e foi barbara. Eu trabalhei até a véspera de ter a Milah e foi uma gravidez muito tranquila. Só que, a gente tinha uma previsão dela nascer lá pelo meio de junho e ela deu uma adiantada e eu meio negligente, não tinha escolhido ainda a clínica onde eu ia fazer o parto e quando eu... daí no dia dez de junho, que foi o dia de estreia do Brasil na copa do mundo e o Brasil estava indo atrás do Penta, o Brasil todo queria o Penta e quando teve aquele jogo, a gente ganhou da Escócia e saiu todo mundo pra rua, foi um congestionamento monstro e a bolsa arrebentou e eu tinha que ir pra maternidade aquela hora, tava na casa do meu pai e o meu pai me levou até a minha casa, e chegando lá o Julio já tava pronto e ligando pra clínica onde a gente ia fazer o parto e nós resolvemos ir pra uma clínica lá perto do Butantã. E quando eu cheguei lá, a médica não deixou, a médica parteira não queria deixar o Julio assistir o parto e eu falei “mas ele, imagina, ele já assistiu o parto da outra, parto normal e tal”, ela falou “não, não, mas aqui o protocolo é diferente e tal”, eu falei “olha querida, então tchau! Porque eu não vou fazer o parto aqui sem o meu marido”. E saí dessa clínica com quatro dedos de dilatação, já tava meio pra nascer, mas eu não queria ter naquela clínica sem o Julio. E daí nós fomos pra uma outra clínica que não tinha ninguém, mas o médico tava chegando, a anestesista também tava chegando, foi assim jogo rápido e aí o médico começou a dar a anestesia, enquanto isso ele começou a preparar um objeto que tinha um algodão na ponta e passar na minha barriga. Aí eu falei pra ele “mas pra que você tá passando esse algodão na minha barriga?”, aí ele “não, porque nós vamos fazer uma cesárea..”’, eu falei “não doutor, o parto é normal, eu já tive parto normal, o feto está posicionado, está tudo certo, é só dar um espirro aqui que vai sair porque eu já fiz outro parto...”, aí ele surpreso falou “ah, mas aqui quem é o médico?” eu falei “não, o senhor é o médico, eu sou a parturiente, mas é que a gente está fazendo meio de surpresa assim...” e tentei negociar com ele porque eu achei que ele tava se enganando, só que ele forçou a barra, ele tava forçando a barra pra fazer a cesárea, porque a cesárea era rapidinha e o parto normal ia demorar mais, tinha que demorar chegar a dilatação, apesar que tava bem encaminhada, mas ia demorar um pouco mais. Enfim, ele começou a insistir que ele ia fazer a cesárea e tal e aí a equipe já tinha chegado, todo mundo se preparando, eu falei “olha doutor, eu não vou fazer cesárea, o senhor vai providenciar aqui o que o senhor tiver que providenciar, mas eu tenho direito de ter um parto normal, porque meu prontuário está todo aqui, você pode ver, tem aqui o ultrassom, do posicionamento do bebê que já faz meses que ela já ta posicionada, então não tem porque não fazer. Dá pra ver até o cordão posicionado, tudo certo aqui, não tem por que não fazer parto normal”. Enfim, ele ficou contrariado e “tá bom, então nós vamos fazer um parto, mas você vai sentir muita dor, porque na bíblia está escrito ‘mulher, parirás com dor’”. Então ele foi fazendo, criando um clima de que eu ficasse insegura e que eu ficasse com medo, então se eu ficasse com medo eu ia fazer parto cesárea. Só que eu já tinha passado por um parto, e o parto normal, tudo bem, você tem contração, é um pouco incômodo e tal, mas depois de horas que você faz o parto normal, você já pode sair andando, tá tudo certo, é a natureza ali é perfeita, sendo que um parto com cesárea a gente sabe que, ah, dá ponto, você dá ponto em músculo, você dá ponto em sete peles, você depois fica com dor, é terrível, todo mundo reclama. Eu acho uma loucura quem não precisa fazer o parto cesariana fazer, porque é totalmente antinatural. Então, ele começou a ver que eu tava muito firme na minha decisão e falou “ah, mas você é muito articulada, que profissão que é a sua?”, “ah, sou jornalista”, ah, quando eu falei isso mudou o clima. Mudou o clima da sala, mudou o clima entre a equipe, eu percebi e falei “olha doutor, é o seguinte, você sabe que o jornalista tá correndo muito atrás de qualquer evento que acontece, qualquer acidente que aconteça, médico, então se acontecer algum acidente aqui comigo ou com o bebê você sabe que amanhã a imprensa vai estar aí toda na porta porque tá todo mundo louco pra essas notícias, e o senhor não vai querer isso”. Nessa hora, eu não sabia que aquela clínica era uma clínica de aborto e ele tava muito preocupado de chamar a atenção de qualquer forma, então ele mudou na hora, fez o parto, foi super tranquilo, fez o parto normal, com a equipe. Fez o parto normal e saiu, porque chegou o obstetra que devia ter chegado antes e não conseguiu, aí o obstetra acabou os procedimentos e tal, a menina inteira, super em ordem e tal, tudo certo. Então, e realmente depois de alguns anos, saiu uma notícia no jornal de que a clínica tava sendo observada pela polícia federal e que o médico tava sendo preso e que era o doutor Waldir, que fez o parto. Então, esse foi um momento que é incrível como a gente tem uma proteção interna, uma força interna, principalmente nesse momento de concepção, nesse momento de dar à luz, porque realmente, na hora que a Milah nasceu, eu senti que aquele lugar se iluminou. Foi realmente uma força ali do bem, ressurgindo e nascendo, e brilhando e foi uma sensação maravilhosa ter vencido, mas foi uma batalha. E foi uma batalha contra um médico que não precisava ter feito isso, ele fez isso por interesses econômicos, totalmente materiais. Não teve nenhuma solidariedade com a paciente dele que tava ali. Tudo bem, eu tava fazendo um parto pelo seguro saúde, que ele ia receber na época, era um valor ridículo, tipo cinquenta reais, contra os três mil reais que ele recebia pra fazer as cirurgias dele, né. Então, eu percebo que ele tava ali segurando uma onda que ele nem tava afim, sabe, mas não interessa, era a obrigação dele, ele jurou, ele fez aquele juramento quando ele se formou, então ele tinha que ter dado um atendimento e ele teve essa conduta agressiva e criminosa. Na época eu não tinha consciência, a gente nem fala desse tipo de assédio, mas depois muitas mulheres foram reclamando e aí foi se configurando uma espécie de atitude criminosa desse profissional.
P/1 – E você se sentiu desrespeitada em algum momento?
R – Ah, o tempo todo. Desde a hora que ele quis impor que eu fizesse uma cesariana, daí pra frente claro que eu me senti desrespeitada. O Julio também foi impedido um pouco de entrar na sala, mas ele forçou a barra e aí ele conseguiu entrar. Então era uma situação de total desrespeito com o paciente que... era muito simples a relação ali, ele transformou a relação numa relação criminosa mesmo. Eu atribuo crime. Crime porque na hora ali podia acontecer deu sair com algum problema, da minha filha ter algum problema, algum acidente, é uma situação muito delicada.
P/1 – E pós-parto você e o Julio conversaram, tentaram tomar alguma medida, falar com alguém?
R – Não. Você sabe que infelizmente o Julio nessa hora foi um pouco ausente, ele não entendeu o que que aconteceu na hora, eu acredito nisso. Ele não teve noção que o médico tava me agredindo. Ele achava que eu tava exagerando e aí eu me senti muito enfraquecida, porque o meu parceiro não comprou a briga comigo, entende? Ah, e eu tava tão feliz que ela tinha nascido também, falei “ah, depois a gente vê, sabe? eu não vou entrar nessa vibe agora não”, porque a Milah deu muito trabalho logo que nasceu. Ela não dormia, ela chorava, ela ficou muito incomodada assim, sei lá, com o ambiente externo. Então eu queria ficar cuidando e trazendo ela pro mundo mesmo assim de uma forma muito receptiva, muito carinhosa. Não tinha tempo pra ir brigar com médico. Depois o destino ia dar conta dele, como deu. Uns anos depois eu numa cadeira de dentista eu ouço falar que a clínica foi fechada e ele foi preso. Tudo bem, foi solto depois, pagou a fiança e tal, mas tem algumas matérias, tem sessenta e tantos processos contra ele de atos – eu nem entrei nos processos – mas contra atos dele que... então assim, não tem muita tranquilidade. Acho que ele cometeu... ele teve atitudes diversas, contrárias à ética da medicina. E eu não tô dizendo aborto, porque eu acho importante os médicos que fazem a interrupção quando necessária ou quando a paciente achar necessário. Eu digo dessa conduta antiética com as pacientes que ele vai fazer parto.
P/1 – E quando a Milah nasceu você pegou ela, teve esse contato todo? Ele te deu, assim, você brigou por isso, você conseguiu ter essa relação imediata?
R – É incrível, porque eu não fiquei abalada. Eu tive a certeza do meu lado o tempo todo. Então foi um stress realmente, a equipe, quando o obstetra novo chegou, quando o obstetra chegou (que era o obstetra que devia ter feito o parto), ele já sabia da história, ele falou “puxa mãe, que stress né, vamos acalmar agora, vamos ficar tranquila”. Eu falei “olha doutor, a minha filha tá super bem” eu já tinha pego, já tinha dado de mamar, já tinha constatado que tava tudo certo, ela tava no colo do Julio. Eu falei pra ele “eu tô super tranquila porque eu tenho certeza que eu fiz a coisa certa” e eu tava com a minha barriguinha inteira, minha linda barriguinha, na época, malhada, toda cuidada, inteira e sem dor e depois de seis horas eu já queria ir pra casa, é que o hospital não deixa, mas eu já tava totalmente pronta. Então eu tinha essa certeza, eu queria muito que a Milah também fizesse essa passagem do nascimento mesmo, de passar pelo canal vaginal, que tem toda uma dinâmica física, biológica tal, importante pro bebê ali, então pra mim tava garantido, tava tudo certo.
P/1 – E como foi o seu pós-parto?
R – Então, foi super tranquilo. Eu não sei o que é depressão pós-parto. Eu fico muito cansada e fico muito preocupada porque, realmente, a gente, nós seres humanos, temos uma condição que é incrível, porque se você largar um ser humano à míngua, ele morre. Então, todo esse cuidado de amamentar, da proteção, de também receber o bebê pra essa atmosfera diferente que a atmosfera do útero, então eu fico que nem uma leoa, assim cem por cento só mesmo cuidando do bebê, me alimentando pra alimentar o bebê e foi muito tranquilo assim, eu não sei o que é depressão pós-parto, graças a Deus nenhuma das duas gravidez eu tive. Já depois de um mês eu tava trabalhando e bola pra frente.
P/1 – E a relação com o Julio? Ficou abalada por conta disso?
R – Depois de alguns anos, a gente já tava... a relação já tava desgastada e acho que... foram dezessete anos que eu digo que foram trinta e quatro, porque como a gente trabalhava juntos e era marido e mulher, então dobrava a carga, né? E também a gente sabe que o casamento quando ele foi inventado, ele teve uma concepção pra durar o tempo que as pessoas duravam, porque na época que ele foi inventado a expectativa de vida era de quarenta anos, então se a pessoa casasse com vinte anos o casamento era pra durar vinte anos, então tá bom, o meu já tinha durado dezessete e eu achei que tava lá na média, achei que era o tempo regulamentar assim. Tava tudo bem. E a nossa separação foi muito consensual, foi muito negociada, foi muito tranquila, o Julio mudou pra casa da frente, então as meninas podiam ir pra lá e pra cá e não sentiram a ausência do pai... então foi bacana, foi tranquilo. A gente pôde negociar tudo, todos os direitos, pudemos negociar o que cada um queria, o que cada um esperava e foi tranquilo.
P/1 – E você voltou a trabalhar logo em seguida?
R – Ah, depois de um mês eu já tava trabalhando. Depois de um mês dos partos eu já tava trabalhando. A Mayumi, coitada, ficava numa salinha comigo na produtora, e ela dormia o tempo todo e mamava de tempos em tempos, e tal. Assim que ela criou estruturinha eu tive que enfiar lá na creche, infelizmente foi muito rápido. A Milah já nasceu dentro da produtora, então a gente tinha... a ilha de edição ficava na parte de baixo da casa, aí tinha a sala e tinha o quarto dela em cima. Aí a gente tinha uma... sabe a caverna do Batman, que você tem um cano? Então descia, chegava na sala tinha um cano que descia na ilha de edição e tinha uma escadinha também da ilha de edição, então eu subia por dentro e ia pro quarto; eu deixava um monitor no quarto dela, quando ela acordasse eu ouvia. Na ilha de edição ficava os foninhos, então qualquer respirada mais forte dela eu ouvia da ilha de edição, então eu já subia pegava ela pra mamar e descia pelo caninho do Batman, uma mão aqui, outra aqui e dava mamar pra ela. Ela na ilha e fica editando, quatro horas da manhã elas tavam lá. Dia de edição o cliente fala “escuta, escuta neném, você, quatro horas da manhã você ta brincando ainda aí, você não tem sono não?”, “não, eu já tô acostumada!”, ai coitadas. Mas olha, não fez nenhum mal pra elas, viu? Porque elas super estruturadas, elas são super organizadas, elas são super equilibradas, só dão orgulho. Então eu acho que quando você tem o amor assim na relação “ah, vamos junto, vamos junto”, porque tá bem alimentada, a gente está tendo uma convivência saudável, eu acho que é o que importa. Foi uma experiência que muita gente me criticava porque “ah, a mãe dela é meio doidinha”, mas sabe, deu certo, então era como eu podia fazer na época, eu tinha que trabalhar. E esse nosso trabalho, vocês sabem, que assim, a gente tem que editar de madrugada, tem que editar, tem que gravar de acordo com o tempo, com as condições externas, a gente não tem um mando, uma voz. Então tem que fazer quando é possível e aí os horários são malucos mesmo. Mas elas acompanhavam e foram felizes, acho que passaram a infância bem felizes e o resultado é bom hoje.
P/1 – E você continuou nesse trabalho, por um tempo?
R – Olha, eu continuei por um tempo, mas aí... eu acho que todas as condições do Brasil, as minhas condições, muita gente trabalhando nessa área, porque os brasileiros são muito criativos e lidam muito bem com equipamento, enfim. Ficou uma seara muito disputada e aí eu comecei a ter muita dificuldade e comecei a procurar outra área, que aí que eu resolvi ir pro direito e eu comecei prestando concurso, daí eu fui fazer um trabalho no litoral, eu fiquei lá durante um tempo fazendo cobertura jornalística, reportagem, no litoral que foi um trabalho super gostoso. Então eu fazia pauta junto com a chefia, saía pra entrevistar, gravar, colher material, voltava, editava e entregava, sei lá, uma matéria a cada dois dias, três dias, então era tranquilo, gostoso, prazeroso. Esse trabalho na gestão pública me fez ficar muito interessada por direito e eu parti pro direito e agora já tô acabando o terceiro ano rumo logo mais a buscar o diploma. Quer que eu falo um pouco disso?
P/1 – Sim.
R – Bom, uma pessoa de cinquenta e nove anos, pensa bem, na faculdade com gente de vinte e poucos anos e no estágio também, de vinte e poucos anos. Então é um desafio, porque a gente não pode se sentir velho e eu não me sinto velha, sinceramente eu me sinto com muita energia. Eu me sinto com energia de gente jovem, pra mim cinquenta e nove anos não é nada. Tudo bem, eu tenho uma experiência de vida, eu tenho um físico já de uma pessoa de mais idade, mas eu não me sinto com cinquenta e nove anos, eu me sinto com muito menos idade. E isso me proporciona essa possibilidade de ir à luta por uma nova profissão, então se eu pensar bem, se eu acabar o curso daqui a dois anos eu vou ter, sei lá, quinze anos de profissão, vinte anos de profissão, sei lá, vale a pena você investir tanto, porque bicho, é difícil, é um curso difícil, eu estudo de manhã, tarde e noite. Eu tenho um pouco mais de dificuldade porque eu só quero ter nota boa, claro, e eu quero fazer trabalhos criteriosos, trabalhos bons, de qualidade, então eu me esfolo pra ir bem nesse curso. E tem os professores, são muito exigentes. Agora então, na pandemia que a gente tá tendo aula online, é muito mais cansativo, os professores exigem mais, a gente trabalha mais. Então, todos esses desafios a gente tem que ir vencendo e eu me sinto muito bem de conseguir fazer os trabalhos online, fazer os encontros online, tudo que... toda a dinâmica que essa realidade tá proporcionando pra gente, eu vou me adaptando pela necessidade mesmo, e assim, vou tranquila. Agora, eu acho muito interessante uma pessoa, que chega a uma certa altura da vida, cansou daquele trabalho, não vê mais muito sentido, não vê perspectiva, e abrir pra outro, porque, se eu não tivesse feito isso, agora, na pandemia eu acho que eu ia passar um período muito difícil como eu tenho visto muita gente passar, por falta de perspectiva. E quando a gente ta lidando com o conhecimento, é outro universo, e o Direito, em especial, ele dá uma fé, uma esperança, porque pelo direito, você pode alcançar muito, você pode ultrapassar muitas dificuldades, você pode ajudar muitas pessoas, você pode atuar em diversas áreas; você tem lá a defensoria pública, que é um trabalho maravilhoso, dos advogados trabalharem pro governo pra atender uma população carente. E a gente tem um sistema prisional no Brasil que é... que foi considerado até inconstitucional. Então é um lugar que você pode desenvolver um trabalho. Então é uma área, o Direito é uma área que abre muitos campos. Eu fui prestar o concurso pra estágio, e no Jornalismo você tem seiscentas pessoas pra uma vaga, no Direito você tem muitas vagas. E tem sempre, são diversas as áreas que tão chamando os profissionais e tal, tem campo pra muita... tem muito mais campo. Então eu tô muito contente com essa opção que eu fiz. E eu acho incrível, pra quem quiser abrir uma nova frente, já quando tiver mais velho assim e ir pra uma escola e se reabastecer de conhecimento. Porque, eu acho que é um grande lance na vida, é muito prazeroso e tem muito retorno.
P/1 – E como você está conciliando estudo, faculdade, estágio, pandemia, saúde mental?
R – Olha, eu não tenho muita dificuldade não, porque eu tô numa situação muito privilegiada, né... eu tenho as minhas despesas... Vou começar de novo: eu tenho uma situação muito privilegiada, primeiro porque, atualmente, o meu marido banca todas as despesas e eu tô podendo estudar, o nosso pacto. Ele se propôs a me ajudar, então todas as despesas são pagas e eu ganho um salário na Sabesp, que é o melhor salário de estagiário, e a faculdade eu tenho uma bolsa de cem por cento, a FAAP me deu uma bolsa de cem por cento e é um privilégio também, então eu consegui, nessa atividade, ter muitas condições favoráveis, sabe quando você ta fazendo a coisa certa e que dá tudo certo? Você sente uma conexão com tudo? É isso, é esse momento da minha vida. Então eu acho que o Direito é um lugar que eu posso ir, mas que eu tenho um compromisso de dar um retorno pra sociedade, por isso que tá dando certo.
P/1 – E como é o seu dia a dia?
R – Ah, todo dia de manhã tem aula bem cedo e eu faço questão de chegar super na hora, eu sou bastante participante, eu sou aquela que fica com câmera ligada, sabe? A minha classe inteira fica todo mundo dormindo, sei lá fazendo o que, mil coisas, tomando café, tomando banho, e eu tô lá, ligada, bonitinha, dente escovado, cabelinho, vestida dos pés à cabeça, às vezes eu tô de chinelinho, mas totalmente pronta, se eu tiver que levantar, ficar de pé, não tô de cueca, assisto a aula e sou super participante porque, acho que que coitado do professor, fica lá e aquele monte de sigla na tela, eu fico solidária. Então eu falo, gosto de falar, e fico com a câmera ligada né. Depois, à tarde, eu tenho o estágio, agora a gente tá trabalhando bem menos, mas os estagiários as Sabesp, do Direito, tão tendo que ir ajudar os advogados muito a ver os processos que são os processos físicos ainda, porque a Sabesp tem muitas causas antigas e que são processos físicos que não são online ainda. Então a gente tem que ir no cartório e o cartório também, assim, tem um monte de gente, um monte de gente que ficou doente no cartório, é um ambiente bem insalubre. Então a gente tem que ter todo um cuidado ali de distanciamento, máscara, álcool gel, tudo isso pra manipular os processos. Então eu tenho que trazer informação dos processos pros advogados e isso, a gente tá fazendo com uma certa constância e os advogados continuam trabalhando nessas questões. Então o meu estágio agora tá limitado a isso. Fora o estágio, tem mais as matérias, os trabalhos que precisam ser feitos e tal, então eu tô assim, o dia todo bem ocupada com o Direito, tá me absorvendo bastante, porque acho que não dá pra ser diferente, porque são muitos códigos, muitas leis, um conhecimento que você tem que ter histórico, você tem que ter o conhecimento atual que tá rolando todo dia, porque todo dia aparece uma lei nova, todo dia acontece alguma coisa, no cenário político, tudo envolve direito, é muito interessante, mas também é uma carga de informação muito grande. Tem também como que o Direito tá se preparando pra encarar o futuro, porque assim, apesar do Direito ser um pouco a reação do que a sociedade pede no momento, ele também tem que se preparar pro futuro, tanto na tecnologia, porque agora tá mudando muito as formas de lidar com a materialidade do direito, como os assuntos todos que tão vindo, os assuntos todos que estão se prospectando aí. Então, por exemplo, agora na pandemia, tem um aumento de contrastes, todos os contrastes que o Brasil tem aumentaram muito, então, desigualdade aumentou muito, violência, muito, então tudo isso envolve o direito, vai defender o direito das pessoas. É uma área que é muito interessante e sempre falta gente e eu acho que é muito interessante você se dedicar profissionalmente, como curioso, porque se você entende o Brasil aos olhos do Direito, você consegue entender a realidade melhor. Quando eu era jornalista, por exemplo, a minha visão de realidade brasileira era muito diferente do que é agora, não que uma seja melhor que a outra, mas hoje eu tenho um embasamento que é muito maior, que é muito mais interessante.
P/1 – Satíe, quais são os seus sonhos?
R – Humm... olha, eu sonho muito com essa profissão que eu vou ter aí pelos próximos vinte anos. Então essa profissão, ela passa por ver justiça, justiça principalmente pros que são as maiores vítimas da justiça no Brasil, que é a população carente, que é a população de preto e pobre. Isso eu trabalhei a minha vida toda, fora a época que eu fiz casamento e a época que a gente fazia um pouco de institucional, pra ter uma grana, mas os projetos sociais sempre foram as minhas opções, e continuam sendo. Então eu quero, gostaria muito de poder trabalhar, por exemplo, na defensoria pública, manja advogado de porta de cadeia? Eu acho que eu tô meio voltada pra isso, sabe, então a minha vida sempre foi muito em função do profissional, eu me realizo muito nessa atividade. Você vê que eu falo com paixão, porque trabalhar pra mim é uma necessidade. Então eu acho que uma das possibilidades de atuar no Direito é essa. Bom, eu quero muito meus netos também, porque as minhas filhas agora tão estudando, tão se preparando, ainda se formando, mas eu gostaria muito de viver essa segunda maternidade, que eu acho que deve ser muito interessante. Esses são meus projetos de vida pessoal. Agora se você perguntar pra mim “o que você quer por Brasil”, isso são mais complicados (risos).
P/1 – E Satíe, você já entrou na menopausa?
R – Já. Já há muito tempo.
P/1 – Como foi esse momento?
R – Já entrei faz dez anos. Quando eu casei com o Ricardo, ele pegou o finzinho da minha... do período de pré-menopausa, que eu não tinha o menor sintoma, tava tudo normal. Ele viu ainda uma última menstruação minha. Logo depois, olha que louco, eu entrei na menopausa. Ele fala que eu tiro o casaco e ponho sete vezes, no cinema, que eu tiro e ponho o casaco, tiro e ponho. Então é esse incômodo há dez anos porque eu não quis fazer reposição hormonal, porque nenhum médico falou pra mim “olha, eu te garanto que reposição hormonal não tem efeito colateral que prejudique a mulher”, nenhum médico me falou isso, então eu não me senti segura de fazer reposição hormonal. Então vamos de fitoterápicos, vamos fazer uns tratamentos alternativos. E pra mim, eu sou muito indisciplinada com remédio e tal, e eu nunca consegui chegar a um resultado bom, então eu sofro de insônia, calor há dez anos. Agora eu encontrei uma médica muito boa, eu também ô num momento de maturidade que eu tô disciplinada com... ela me deu uma fórmula, eu comecei a tomar essa fórmula e tô dormindo e é maravilhoso, fazia muitos anos que eu não conseguia dormir. E olha, você não conseguir dormir e ter uma atividade diária assim pesada prejudica muito, desde o raciocínio eu percebo que falha muito, a memória falha, a disposição pra fazer exercício físico, tudo isso que é importante agora na minha idade pra eu ter uma velhice saudável, então eu acho que agora, com esse tratamento, eu tô me sentindo muito melhor e eu acho que vai dar certo esse tratamento e tem diversos tratamentos. Esse é um tratamento muito simples, é uma fórmula que ela me passou que eu tenho que tomar ali, todo dia e alguns complementos, tipo, um gel vaginal... porque a nossa anatomia ela muda muito. Eu acho que assim, se eu tiver que criticar a concepção da nossa anatomia, seria essa porque, quando a mulher entra na menopausa ela não presta pra mais nada, gente. Primeira coisa, a gente perde a cintura, que é a parte mais atraente pro homem, então você fica aquele balãozinho. E daí você perde as suas funções reprodutoras e aí pronto, a mulher não tem mais nenhuma função. E é muito cruel isso, porque a nossa sociedade esticou a função da mulher pra muitos anos depois. Então se você fica sem os atrativos sexuais e tal, ele interfere de forma muito importante na vida de produção, de trabalho, trabalho intelectual, de trabalho de atividades da mulher em geral. Então eu acho que é muito cruel essa parte física da mulher. Agora, a medicina tá fazendo o diabo pra que a gente consiga atenuar esses sintomas. O homem conseguiu o viagra, então resolveu o problema maior do homem que, paralelamente à mulher que é... a função reprodutora do homem também diminui, né. Só que ele... o viagra pra ele resolveu ali, então o resto todo ele continua dominando, e a gente ficou com essa dificuldade, mas a medicina tá fazendo, ta tendo progressos muito grandes. Então, por exemplo, a mulher tem um desgaste vaginal, a musculatura ela fica flácida, os tecidos ficam muito sensíveis, então a relação sexual passa a ser dolorida, olha que coisa mais... é pérfida, por um lado é muito perfeita, mas por outro, não é mais pra ter reprodução. Então a medicina inventou um laser, que você enfia na vagina e ele recupera a parede. Com exercício físico você também recupera a musculatura, então, a mulher pode não ser mais a reprodutora, mas ela pode continuar a ter prazer, então a gente vai negociando desse jeito. E é incrível porque a medicina vai, é só você ter acesso à informação e tal que a gente consegue estender essa função de prazer da mulher mesmo.
P/1 – Satíe, você gostaria de acrescentar alguma coisa, contar alguma história, fazer algum comentário.
R – Ai, eu acho que eu já falei um monte da minha vidinha simples, a minha passagem aqui que pra mim é maravilhosa. Eu acho a vida linda nesse planeta, e eu acho encarnar nesse planeta, aqui nesse Brasil maravilhoso, cheio de contradição, mas que por outro lado a gente tá todo dia incentivado a lutar pra que ele seja melhor e eu quero muito ainda contribuir pra que o Brasil seja melhor. Então hoje a gente tá numa dificuldade política, econômica e internacionalmente doente, mas eu acredito muito que logo mais a gente vai retomar aí o nosso caminho de evolução. Acredito que esse momento político que a gente tá vivendo, tão adverso, que ele tem uma visão muito importante pra gente entender o que a gente não quer. Porque antes do Bolsonaro a gente achava que os direitos que a gente tinha conquistado, eles eram conquistados e ninguém mais tirava da gente. E agora você olha “como nós estamos perdendo esses direitos?”, eles eram conquistados, todo mundo sabe que ninguém quer mais ditadura. Não é todo mundo que quer. E nós vivemos numa democracia e a democracia permite diversos pensamentos, diversas concepções de vida. Engraçado que ela não permite a expressão. A não democracia não permite que você se expresse, mas a democracia permite. Então a gente tá vivendo isso e eu acho que é um aprendizado, é uma revisão de valores que a gente tem que fazer e que eu acredito que a gente nas próximas eleições vai consegui mudar o quadro como a gente tá vendo a mudança aí na América Latina e em diversos países, que a gente acreditava que não seria, que ia durar muito tempo, os países que têm um governo mais à direita, mais forte, mais ditatorial e a gente tá vendo que isso tá rapidamente caindo por terra, que não se sustenta. Não se sustenta uma situação de penúria de desprezo pelo humano, como a gente tá vendo aqui no Brasil. Então o que eu puder colaborar com essa possibilidade de ver um Brasil melhor eu quero, eu sonho com isso. Acho que é isso.
P/1 – E o que você achou da proposta de mulheres serem convidadas a contarem suas histórias de vida, pra falar sobre saúde da mulher nesse projeto de memória?
R – Primeiro que essa estrutura toda, esse trabalho que é feito nesse museu, nessa instituição, eu acho de uma profunda importância, porque nunca foi feito isso na história, e a gente tem a possibilidade de ter tantos... de ter um mosaico da diversidade, de como é o Brasil, realmente, na voz das pessoas que vivem isso. Setorizando então isso, como é a mulher agora? É uma época da nossa história que é uma época da evolução e uma época que tudo vai evoluindo muito rápido, então, um depoimento que você teve semana passada, você já tem uma outra visão mais adiante numa outra semana, uma dinâmica, e além da diversidade que você tem, né, de classes diversas, de pensamentos diversos. Eu sou super fã desse projeto, acho maravilhoso, eu fico muito honrada de ser chamada pra dar o depoimento aqui da minha vidinha que é uma vidinha que é, perante o universo, um grãozinho de areia, mas pra mim é o meu universo maravilhoso e que eu amo demais, então eu queria até dar parabéns pra toda a estrutura, pra todo o grupo que é um pessoal que é muito... recebe a gente muito bem e é receptivo pra ouvir. Então eu queria agradecer muito esse trabalho e eu acho muito importante. E eu acho que a gente tem que poder ouvir mais desse trabalho, a divulgação, ser uma divulgação, que ele possa ser mais divulgado, pra que mais pessoas possam ter acesso e tanto poder contribuir como poder usufruir desse trabalho que eu acho muito importante. Imagina quantas pessoas não vêm fazer trabalho cientifico, não precisam consultar, acho que é uma plataforma maravilhosa.
P/1 – E pra você, como foi a experiência de estar ai hoje, me contanto essas histórias?
R – Foi um mergulho, foi um mergulho na minha memória, porque eu acho que eu nunca falei tanto tempo sobre a minha vida toda assim, então a gente vai passando pelas diversas situações e eu acho que, certamente, eu sou outra pessoa saindo daqui. A Satíe que entrou aqui vai ser diferente daqui... porque, enquanto eu tava falando, eu comecei a enxergar outros pontos de vista, então eu mudei a relação com as pessoas que eu tenho na minha vida, pô, eu acho isso interessante, no mínimo, né, só na terapia que a gente consegue isso, então, é bárbaro. O trabalho é bárbaro. Eu sou fã mesmo.Recolher