Meu nome é Denise, e Belém foi a cidade onde naci e me criei. Lembro-me da época em que a cidade era bem diferente. Eu tinha amiguinhos na vizinhança, e nos finais das tardes a gente se reunia na rua, em frente de casa, e ali a gente bricava. Meus pais sentavam à porta e acompanhavam as bricade...Continuar leitura
Meu nome é Denise, e Belém foi a cidade onde naci e me criei. Lembro-me da época em que a cidade era bem diferente. Eu tinha amiguinhos na vizinhança, e nos finais das tardes a gente se reunia na rua, em frente de casa, e ali a gente bricava. Meus pais sentavam à porta e acompanhavam as bricadeiras.
Nessa idade eu queria ser médica, para cuidar dos outros. Mas, conforme eu fui crescendo, fui vendo que a faculdade de Medicina não ia caber na minha vida – por causa da dedicação integral que o curso exige. Eu sempre quis estudar, mas eu queria ter um tempo para a minha família, e isso deixou a Medicina pra trás. Mesmo assim, fiz três vestibulares para Medicina, mas me encontrei mesmo na Psicologia.
Um fato que marcou o início da minha vida como profissional foi quando trabalhei no Cras, onde eu era incumbida de acompanhar uma pequena comunidade distante de Belém no Pará. A energia elétrica, quando chegou no lugar, trouxe consigo a primeira videolocadora, que alugava filmes sem limite de idade, até filmes pornográficos. Um rapaz de dezesseis anos pagou cinquenta centavos, assistiu um filme com cenas de sexo explícito, depois estuprou a sobrinha de nove anos. Ela teve que ser toda costurada, internamente e externamente, tamanha a violência!
A partir desse fato, decidi dedicar minha profissão e meu trabalho na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes e na prevenção do abuso e da exploração sexual. Quando fui selecionada para integrar a equipe da primeira turma do projeto Vira Vida no SESI de Belém, tive a chance de colocar em prática tudo o que aprendi na faculdade de Psicologia, no hospital e na clínica em que trabalhei.
No começo foi difícil ganhar a confiança dos jovens – tão arredios e agressivos. Foi o meu primeiro desafio. Não consegui entrar na faculdade de Medicina, mas aqueles meninos e meninas me fizeram compreender que havia encontrado a minha verdadeira vocação: a Psicologia. E a minha grande paixão: o Vira Vida. Um trabalho que me ensinou a deixar de lado os preconceitos e ver a vida com outros olhos. Trabalho que também me auxilia no meu papel de mãe de três filhas: tenho uma de quinze, uma de onze e outra de sete anos de idade.
Mudei meus conceitos, minha visão. Foi a ressignificação de tudo que achava sobre família e exploração sexual. Aprendi a ser mais flexível, a valorizar minha própria vida. Para quem gosta de desafios e não desiste diante de dificuldades, aqui é o lugar: nunca um dia é igual ao outro! Toda hora surge um novo problema, que exige um tipo diferente de intervenção, de escuta individual e coletiva, até fazer com que os alunos respeitem as normas pactuadas no primeiro dia de aula. Não pode faltar sem justificativa, tem que usar uniforme e chegar na hora para as atividades. É muito trabalho.
Respeitamos quando o jovem resolve desistir, também. Temos que respeitar o desejo deles de não continuar. Mas antes de deixá-lo ir, esgotamos todas as possibilidades. Conversamos, ouvimos, explicamos que ele vai perder a oportunidade de se conhecer melhor, de ter um emprego, chamamos a família e, se ele insistir que não quer mesmo, o mandamos de volta para a instituição que o encaminhou até nós.
Até agora, dos cem alunos que passaram por nós, doze desistiram. Os que ficaram agradecem até os “puxões de orelha” recebidos. Reconhecem que mudaram muito. Aprenderam a se respeitar, a falar sem agredir e a exigir seus direitos.
Sinto, nesse trabalho, a oportunidade para o aperfeiçoamento de conhecimentos, não no campo teórico, mas prática, no corriqueiro, no cotidiano. É olhar no olho do outro e entendê-lo. Ao conhecer um desses jovens, a gente, em pouco tempo, só pelo olhar, passa a conhecer a todos. Quando eu percebo que alguma coisa não está bem com um deles, eu pergunto: “Fulano, o que tu tens?” E eles, sempre supresos, respondem: “Credo, tu és bruxa, cadê sua bola de cristal?” Não, não é bola de cristal, é que a gente está direto com eles, e percebemos quando o olhar fica diferente.
Eu sempre acreditei na capacidade de mudança e de transformação dos seres humanos. Aqui, a gente percebe o processo todo de metamorfose que acontece com esses jovens, e não é só com eles, é com todos nós... Não é à toa que o símbolo do Vira Vida é uma borboleta. Ela se fecha num casulo e depois vira uma outra coisa. Aqui, a transformação realmente acontece.Recolher