Sou Monique Almeida dos Santos, estudante de Serra do Salitre (MG), e vou contar um trecho do percurso até o meu sonho.
Curva da Morte. O nome do trecho da BR-MG 146 é aterrador para um motorista de primeira viagem por essas terras mineiras. Mas não para mim. Acomodada no ônibus escolar, passo...Continuar leitura
Sou Monique Almeida dos Santos, estudante de Serra do Salitre (MG), e vou contar um trecho do percurso até o meu sonho.
Curva da Morte. O nome do trecho da BR-MG 146 é aterrador para um motorista de primeira viagem por essas terras mineiras. Mas não para mim. Acomodada no ônibus escolar, passo pela famosa curva envolta por pensamentos bem distantes ao dos acidentes fatais que garantiram o apelido àquele declive. O trajeto já faz parte da minha rotina. Há 4 anos, desperto ainda noite, coloco o material na mochila, percorro 7 quilômetros de estrada de terra e, antes das seis da manhã, entro na linha que me leva pela BR desde a zona rural do distrito de Catiara ao município de Serra do Salitre.
No caminho de pouco mais de uma hora, enquanto vejo o dia amanhecer penso no que o futuro me reserva. Estou naquela fase crítica dos 17 anos, com a prova do ENEM batendo à porta. Dependo de uma boa nota para cursar Odontologia. Vencer essa etapa, significa ser a primeira da família a entrar na universidade. Tenho o apoio incondicional de meu pai, gerente de fazenda, e de minha mãe, dona de casa, ambos com os estudos interrompidos na oitava série. E me espelho em minha irmã mais velha, que viu no curso técnico de Mineração uma garantia de emprego futuro nas empresas da região.
Para alcançar o sonho de ser dentista e ajudar crianças que, como eu, foram reféns do aparelho odontológico por anos, é que enfrento a madrugada e a Curva da Morte todos os dias. Na cidade, tem um estudo melhor do que o da escola rural de apenas três cômodos, com turmas distintas compartilhando a mesma sala. Faço a minha parte: empenho-me nas atividades da Escola Estadual de Serra do Salitre e abraço todas as oportunidades de aprendizado. Uma delas, em especial, foi transformadora.
Mais afeita aos números que às letras, fiquei um pouco incrédula quando fui selecionada para a oficina de Educomunicação, promovida pelo Instituto Lina Galvani, para estudantes e moradores do município. Porém, logo no primeiro encontro, percebei que seria uma experiência diferente. Havia uma abertura para expor as ideias, debater, sugerir e até discordar, sem aquela hierarquia professor e aluno. Era uma verdadeira troca, que motivava todos a se envolverem no processo.
O formato me encantou. Mergulhei no desafio de construir um fanzine com recortes, colagens, desenhos e ideias. Preconceito, as belezas do município e as pessoas invisíveis na sociedade foram alguns dos assuntos trabalhados pelo grupo. Eu fiquei com o tema do empoderamento feminino. A escolha não foi por acaso. Tenho a sorte de ter uma mãe muito determinada e consciente, que sempre incentivou a mim à minha irmã a ir contra o pensamento tradicional e sonhar com a carreira que desejássemos. Mas sei que as mulheres, no geral, são diminuídas, não têm apoio e são reprimidas até dentro de casa. Quando colocamos essa discussão no papel, me senti mais representada.
Com o fanzine nas mãos, custei a acreditar que ela e os companheiros de oficina tínhamos produzido um material tão atrativo. Mas a grande descoberta veio na hora de distribuir as cópias na escola. Ao contrário dos panfletinhos que as pessoas pegam, olham e jogam na primeira lixeira, os alunos recebiam, liam e gostavam. Nos dias seguintes, ouvi com orgulho os colegas discutindo sobre preconceito e empoderamento ou cumprimentando funcionários da escola e outras pessoas antes "invisíveis", como alertava o material.
Com a oficina de fanzine e os outros workshops de Educomunicação realizados nos meses seguintes - que abordaram fotonovela, jornal e vídeo -, despertei para o poder democrático e multiplicador das formas alternativas de comunicação. Acho que fizemos algo muito importante, que foi plantar várias sementes de conscientização sobre temas que a maioria dos jovens e adultos não costuma discutir no dia a dia. E se o aluno levou para casa e os pais, irmãos e amigos leram, espalhamos ainda mais a informação.
Participar desse processo me causou outro efeito transformador. A menina que gaguejava, tremia e virava a noite preocupada quando tinha que falar em público ganhou autoconfiança para colocar suas ideias, perguntar e se expor perante a turma. Foi algo que desenvolvi nas oficinas, que incentivam a interação e a fala de uma maneira muito aberta, livre. Nas atividades, também aprendi a ouvir outro, escutar todos os argumentos da pessoa, mesmo que contrários aos meus, e então fazer um debater civilizado. São lições que levarei para toda a vida, mesmo quando minha história ultrapassar os limites da BR-MG 146.Recolher