Ser filha de devotos de Nossa Senhora da Conceição rendeu-me este nome – Maria da Conceição dos Santos. Tenho 46 anos, trabalho como comerciante numa oficina e auto-peças. Nasci na década de 1960, período assinalado pela queda de vários tabus, pela mudança de alguns hábitos e costumes e ...Continuar leitura
Ser filha de devotos de Nossa Senhora da Conceição rendeu-me este nome – Maria da Conceição dos Santos. Tenho 46 anos, trabalho como comerciante numa oficina e auto-peças. Nasci na década de 1960, período assinalado pela queda de vários tabus, pela mudança de alguns hábitos e costumes e pela revolução sexual – o uso da pílula anticoncepcional mudou de forma definitiva a vida das mulheres de lá para cá.
1962 foi meu ano, o Brasil tinha como presidente João Goulart (1961-64), num estilo de governo parlamentarista. Naquele ano também, o governo criou a Eletrobras com o intuito de expandir o setor energético. A seleção brasileira foi campeã da VII Copa Mundial de Futebol, no Chile. No mundo, Os Beatles lançaram o primeiro compacto, com as músicas "Love me Do" e "P.S. I Love you", com produção de George Martin.
Numa família de trabalhadores do bairro Campo do América de Jequié, eu fui gerada e educada. Minha mãe, Hilda Vieira dos Santos, não teve a oportunidade de conhecer as letras. Trabalhou desde a infância em fazendas de cacau no sul da Bahia. Meu pai, Claudionor Camilo dos Santos, um jovem muito teimoso, abandonou o lar aos 14 anos. Saiu para o mundo cheio de esperanças e confiante no futuro. Escolheu Jequié para começar uma profissão – encanador.
Ser fruto desta união, para mim, é motivo de muito orgulho. Sou um misto de “terra e aventura”. São significados muito exclusivos, que dificilmente eu explicaria com poucas palavras. A minha história de vida, é impregnada de altos e baixos, fortalecidos pela certeza de que tudo passa e as pessoas mudam, contudo as recordações que guardamos ao longo da vida permanecem no nosso íntimo, voltando sempre à nossa lembrança quando precisamos ou quando alguma coisa nos remete a elas, como por exemplo: um perfume, uma música, uma imagem etc. Essas recordações nos ajudam a formar um objetivo, uma direção. Não sei se posso lembrar o passado, mas vou tentar reconstruí-lo nesta biografia. Percebo que não deixei para traz a criança ou a adolescente de outrora, elas pulsam dentro de mim, participam do meu dia-a-dia, me ajudam a compreender os acontecimentos do presente.
Prazeres da infância
No bairro do Campo do América, na rua Manoel Vitorino, eu gostava de brincar, de correr, de pular. Costumava ir à escola a pé ou de carona no quadro da bicicleta do meu pai. Aos domingos ia à matinê no Cine Auditorium. Lá trocava gibis e figurinhas com a garotada. Minha infância foi recheada de brincadeiras: cozinhados, bola de gude, bambolê, peteca, balanço no pé de manga no quintal, e a nossa maior farra: ajudar a vizinha a lavar o tanque, que ficava no chão. Era a nossa piscina por algumas horas. Não posso deixar de salientar que minha educação foi severa e muito disciplinada, mas também cheia de muito carinho e atenção.
Acompanhava minha mãe todos os domingos à missa na Capela da Imaculada Conceição e esperava com ansiedade o mês de setembro, pois meu pai oferecia caruru no dia 27 (dia de seu aniversário e também dia de Cosme e Damião) e rezava a ladainha. Esperava também o mês de dezembro para acompanhar na rua a apresentação dos Ternos de Reis e Bumba-meu-boi. Não sei por que, mas sempre fico emocionada quando ouço o reisado. Muito bom também é lembrar da padaria que tinha bem próxima à minha casa - Padaria Vitória. Todas as tardes a criançada ia até lá comer pão quentinho com manteiga. Os pães nos eram dados por um dos funcionários da padaria.
Tive uma infância marcada por dificuldades de todas as ordens, mas nem por isso fui abatida pela tristeza ou desalento. Ganhei forças e alegria para conviver com pessoas de vários credos, idades e cores. Fui adiante, seguir meu caminho, fui bem mais longe do que aquele período propiciava.
A adolescência foi conflituosa, às vezes me perdia entre o que as pessoas consideravam como atitude “normal”, ou seja, entre o “certo” e o “errado”, achava que as pessoas não me entendiam, ou eu não entendia as pessoas, não sei bem ao certo.
Entretanto, eu queria viver tudo ao mesmo tempo, queria experimentar todos os sabores, todos os perfumes, todos os toques, só que nem sempre estas coisas estavam em conformidade com o “permitido”, o que me deixava extremamente angustiada.
Sempre fui festeira, gosto de estar no meio de muita gente. E foi numa noitada com colegas de trabalho que conheci meu marido, um dançarino de bolero que me encantou e que me dá grandes alegrias.
Na escola
Entrar na escola foi maravilhoso, eu sonhava com aquele momento. A escola funcionava de forma adaptada num clube social do bairro – JTC (Jequié Tênis Clube) - para alfabetizar crianças. Vestida de jardineira azul e blusa branca, ia carregando a merendeira, feliz como quem vai a uma festa. Engraçado como me deter para reconstruir estes momentos, me causa tão gostosa sensação de felicidade.
Assim como muitas meninas da época, eu gostava de brincar de professora para minhas irmãs e amiguinhas, várias vezes assumimos esse papel.
A partir do primeiro ano primário (primeira série) fui estudar no Grupo Escolar Castro Alves, onde fiquei até o quinto ano primário (quinta série). Saia pregueada, blusa branca com escudo bordado, meias ¾, assim eu me apresentava todos os dias pela
manhã. Levava na “pasta” e no coração um misto de incertezas, angústias e alegria. A escola era tradicionalíssima, tanto no currículo como na rigidez dos professores. Lá se aprendia de forma vertical o português, aritmética, ciências e estudos sociais e outras matérias para completar o currículo formal de cada série.
Não tínhamos oportunidade de questionar, tudo vinha pronto e acabado, todo o conteúdo era transmitido de forma oral ou pela leitura dos livros empoeirados da pequena biblioteca. Tinha
hora para tudo: sair do padrão estabelecido, nem pensar. As professoras (digo professoras pois, naquela época, era difícil um professor nos cursos primários, que eram quase sempre tidos como a continuação do lar) eram muito conservadoras, raramente deixavam escapar algum sentimento bondoso a algum aluno. O tratamento era muito formal.
Brincadeiras, só na hora do recreio; na sala, eram proibidas conversas ou desatenção. Reproduzíamos os assuntos como uma máquina que trabalha em série. Quase diariamente fazíamos leitura de texto, e a professora observava tudo, "tim-tim por tim-tim”: pontuação, entonação da voz, postura... Quando alguém se atrapalhava, era motivo de severas correções.
Aprender matemática era mergulhar num poço escuro de medo e insegurança. Eu tinha pavor da sabatina, porque era obrigatório saber a tabuada na “ponta da língua”. Devo confessar que errei por várias vezes, e quando isso acontecia me sentia morta por dentro.
Os valores tradicionais imperavam, os professores tinham uma postura autoritária, as aulas praticamente não se diferenciavam quanto à estrutura de apresentação de conteúdo e aplicação de exercícios, os conceitos e fórmulas deveriam ser repetidos e memorizados, o intenso controle disciplinar era constante, tanto dentro quanto fora das salas de aula. Éramos obrigados a decorar tudo, para não correr o risco de sermos ridicularizados ou humilhados diante de todos. Dessa forma, a escola se transformava num concurso freqüente, estimulando a competição, o individualismo o sentimento de superioridade ou inferioridade, dependendo do resultado. Era com alívio que recebíamos as provas com notas acima de oito, “passar de ano” era fundamental.
Todavia nem tudo era tão ruim assim. Tenho lembranças gostosas também deste período como a hora do recreio, as brincadeiras, os colegas e as festas cívicas (desfiles e apresentações) que não deixavam de ser interessantes; nas sextas-feiras podíamos desenhar cantar, criar versos e apresentar tudo isso na sala. Eram momentos de relaxamento e descontração.
A partir da sexta série ingressei no Instituto de Educação Régis Pacheco – IERP, colégio de tradição na cidade e região. Muito rigor, muita disciplina, muita ordem e também muita educação tradicional, ou seja, ali tudo era igual ao Grupo Escolar, a diferença estava apenas na distribuição das aulas e nos cursos ou disciplinas paralelas que tínhamos no turno oposto. Eu, por exemplo, estudava no turno vespertino e tinha aulas de educação física, educação para o lar e técnicas comerciais no turno matutino. Infelizmente, no decorrer dos anos, o ensino público foi entrando em descrença devido à má qualidade da educação, justamente quando a oitava série estava batendo na porta.
Hora de trabalhar
No ensino médio continuei na mesma escola, mas foi chegado o momento de optar por um dos cursos técnicos oferecidos no turno noturno, pois para mim não era mais possível estudar durante o dia, precisava trabalhar. Era hora de escolher, então optei pelo curso de Técnico em Contabilidade, um curso que não me preparou para o mercado de trabalho, muito menos para a vida.
Cheguei a trabalhar em uma indústria de roupas, mas não me sentia feliz ou realizada. Assim, emergiu o desejo de aprofundar a reflexão sobre as práticas educativas e as relações entre os sujeitos dessa práxis no seu processo de construção de conhecimento.
Aí nascia o interesse pelos atos de ensinar e aprender, partindo da reflexão sobre a educação como uma prática social que, na perspectiva escolar, pouco evidenciava o seu lado prazeroso. Era o começo de um direcionamento profissional, o despertar do desejo de atuar no campo da docência, no sentido de promover transformações necessárias para que essa atuação viesse a contribuir com enriquecimento da vida e da formação de sujeitos autônomos. De repente, a vida brincou comigo ou talvez apenas almejasse testar minhas convicções, pois colocou diante de mim a faculdade de Enfermagem, que cursei por dois anos. Depois desisti. Não consegui me identificar com o curso.
Foi neste meio tempo que veio o casamento, com um marido “completo”, pois até os filhos ele trouxe pronto. Quatro filhos, quatro amigos e muito trabalho, adiando o sonho de estudar e lecionar. Mas, como eu disse, adiando e não enterrando o sonho, pois agora com os filhos já criados, mergulhei outra vez nas minhas aspirações. Estou buscando minhas realizações profissional e pessoal.
A faculdade de História
A escolha pelo prosseguimento em grau superior num curso de licenciatura, não foi bem vista, por alguns amigos que reagiram negativamente diante da minha determinação de ser professora. Protestavam contra o investimento em um caminho que não originaria uma real elevação social ou melhoramento econômico. Claro que entendo o medo pertinente de cada um deles pois, por ser de uma origem pobre, deveria escolher uma profissão que me desse mais retorno financeiro, tendo em vista que ajudo a família no sustento da casa.
Todavia não se ergue um sonho de uma hora para a outra, não se desiste de um sonho só porque ele não vai dar o lucro esperado, afinal sonho não é para dar lucro e sim para dar satisfação e prazer. Entendo que, se para alguns ser professora é frustrante, para mim é a realização de um anseio. É indiscutivelmente um convite à alegria voltar a estudar, produzir conhecimento, viver a universidade, pensar e viver o mundo.
Ser professora sempre foi um propósito na minha vida, o que acrescentei ao longo dos anos foi o gosto pela História, saber por que determinadas coisas aconteceram, conhecer os fatos, as relações sociais, as idéias, o que as pessoas pensavam e criaram no passado sempre me fascinou.
(História enviada em 8 de dezembro de 2008)Recolher