Quando eu nasci, a parteira já falou pra minha mãe: “Ah, nasceu uma grande mulher, uma rezadeira, que talvez vá salvar muitas vidas.” Isso porque eu tinha uma cruz vermelha tipo de sangue na minha cabeça. De criança, eu falava coisas pros outros que diziam que eu nem sabia o que falava, mas...Continuar leitura
resumo
"Nasceu uma grande mulher, uma rezadeira", foi o que disseram quando Domingas Coimbra veio ao mundo. Na cabeça da menina, uma mancha vermelha como um desenho de sangue, parecia contar sobre o destino daquela criança. Domingas não fez diferente. Desde cedo, começou a curar pessoas. No início, pouco entendia do que ela mesma fazia, mas logo a clientela foi se formando e ela passou a dedicar uma grande parte da sua vida em tratar as pessoas necessitadas da cidade de Juruti-PA. Dona Domingas, como é conhecida, aprendeu a suprir uma carência de médicos e cuidados levando apenas palavras, rezas e remédios próprios.
história
Domingas Coimbra de Souza
Mulher usando uma camisa florida. Está gesticulando e sorrindo. Ao fundo, há um tecido também florido.
Domingas Coimbra de Souza
Mulher usando uma camisa florida. Está gesticulando e sorrindo. Ao fundo, há um tecido também florido.
Domingas Coimbra de Souza
Mulher usando uma camisa florida. Ao fundo, há um tecido também florido.
Domingas Coimbra de Souza
Mulher usando uma camisa florida e um chapéu preto. Está de pé. Ao fundo, há um tecido também florido.
Domingas Coimbra de Souza
Mulher usando uma camisa florida. Está sentada em uma cadeira azul e está sorrindo. Ao fundo, há móveis de uma sala de estar.
Domingas Coimbra de Souza
Mulher usando uma camisa florida. Está sentada em uma cadeira azul e está sorrindo. Ao fundo, há móveis de uma sala de estar.
história na íntegra
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- Ficha técnica
Tags: pais, infância, família, vida rural, escola, brincadeiras, rezadeira, conflito, dom, ervas, casa, casamento, sonho
Entrevistada por Thiago Majolo
Entrevista de Domingas Coimbra de Souza
Juruti, 18 de abril de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV_102
Transcrito por Andiara Pin...Continuar leitura
Tags: pais, infância, família, vida rural, escola, brincadeiras, rezadeira, conflito, dom, ervas, casa, casamento, sonho
Entrevistada por Thiago Majolo
Entrevista de Domingas Coimbra de Souza
Juruti, 18 de abril de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV_102
Transcrito por Andiara Pinheiro
Revisado por Soloni Rampin
P/1 – A gente começa perguntando sempre o nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Domingas Coimbra de Souza. Eu nasci em 11 de julho de 1948, Paraná, Dona Rosa. É nesse município perto daqui, Juruti.
P/1 – Domingas, eu queria que você contasse um pouco dos seus pais.
R – Olha, meus pais eram pessoas humildes, mas eram muito bons. Levei muita sorte. Meu pai era uma pessoa muito especial. Não era alcoólatra, em primeiro lugar. Lutava muito pra criar a gente com sacrifício, trabalhando na juta com o gado, mas não tínhamos vida de rico, mas nunca passamos fome, como pobre. Vida humilde, todo mundo trabalhava. Desde pequena, dos meus sete anos, por aí, eu já comecei a ajudar minha mãe a cuidar dos meus irmãos, porque eu sou a primeira filha deles, né, do casamento deles. Então, quando nasceu a minha segunda irmã, que eu gostaria que ela tivesse aqui, mas não está, eu já ia fazer quatro anos. Nessa época meu pai adoeceu muito, quase que morreu, mas mamãe dizia sempre que foi Deus que ouviu a minha oração, que eu ficava o maior tempo orando por ele e ele ficou bom. Depois, nasceu mais os outros filhos. Vieram os meninos, que não tinha nenhum, vieram quatro meninos mais uma menina, mamãe ainda perdeu um menino. Mas a minha vida não era de rico, era de pobre. Mas era feliz. Eu cresci com o adubo do amor, sempre quis amar muita gente. A família do meu pai eles eram em poucas pessoas e da minha mãe era uma família muito... era numerosa, sabe? Muitos irmãos, muitas pessoas. Só que minha avó, do meu pai, era muito católica, ela era muito crente, assim, de ajudar as pessoas, era uma pessoa muito amável, respeitada lá na comunidade dela, porque ela ajudava muito as pessoas; ela tirava do pouco que tinha, assim, eu acho que isso aí eu já comecei a aprender com ela, né? Desde criança tentar ajudar as pessoas mesmo com pouquinho, mas ajudando, né? Então, o adubo maior do crescimento do ser humano é o amor. Acho que é por isso que eu sou bem grandona assim (risos). Bastante amor da minha família. E eu cresci com meus irmãos formando uma família, assim, que todo mundo cresceu e trabalhou, nunca se envolveu em certas coisas diferentes da vida às custas dos nossos pais. Somos três, todas as três casadas e os meninos todos são casados. Todos têm sua família e eu sou muito família. Meus filhos não moram comigo mas eu fiz, como se diz? Cumpri a melhor missão da minha vida, que, por isso, eu me sinto feliz: criei meus quatro filhos e também dei tudo o que pude. Não dei mais porque eu não pude, mas na medida do meu possível eu sempre lutei por eles, muito mesmo. Já passei por muitas dificuldades, que todo ser humano leva um dia bem, três piores e tem que levantar de novo, né? Passei por crises de doença, por crises de... no casamento, por muitas coisas difíceis, mas a gente nunca deve esmorecer na caminhada da vida e, concluindo, é sempre o meu trabalho, desde pequena eu comecei a ajudar as pessoas. Fazia massagem, orava nas crianças, até nos adultos, falava coisas que eu não lembro, ainda, e, por isso, eu comecei a sofrer muito, porque as pessoas... sempre é assim: quando temos um dom, somos diferentes. Mas as pessoas parecem que têm medo da gente, outros já se aproveitam e por aí vai. Nunca cobrei nada do meu trabalho, comecei com 16 anos, vou fazer 62 e praticamente todo dia. Se você vier amanhã, você vai ver. Uma turma de gente que eu não sei por quê. Eu não tenho nenhum comercial no rádio, nem na televisão, nem sequer colocado por aí pelos postes, pelas coisas, um aviso, uma coisa assim. Não. É assim: uma pessoa convida outra e vão chegando. Eu acho que se dão bem, porque se não se dessem bem, não voltavam, né? Então, tudo aquilo que eu posso fazer pelo meu irmão, eu luto pra fazer. Eu sou assim, sempre simples, gosto das minhas coisas com muito sigilo. Porque eu não quis que vocês gravassem o meu ambiente de trabalho? Porque eu acho, assim, que é muito particular. A minha vida quando eu estou lá, é como se eu fosse um personagem de novela, eu vou executar aquilo que eu tenho que fazer, o meu trabalho. Quando eu saio de lá, eu me visto na simplicidade. Sou uma pessoa bem diferente do que eu sou lá dentro. Sou uma pessoa comum. Agora, se eu tenho inimigos, eu tenho oculto, porque a maioria das pessoas eu sinto que gostam de mim. Porque se não gostassem eu não recebia muitos abraços na rua, as pessoas falam comigo e também recebo elogios falsos, mas a gente sente e sente quando é verdadeiro, com abraço, com amor, com carinho. E sabe quando um elogio é assim, só pra ganhar tempo, espaço, né? A gente vai passando os anos na vida e vai aprendendo muitas coisas com a vida que nós, no dia-a-dia aqui na Amazônia, nós temos, como se diz? Improvisar, aprender. Uma mulher verdadeiramente mãe de família, ela tem que saber muitas coisas, aprender como fazer pra melhorar o dia-a-dia da família. Porque eu nunca tive dinheiro fácil, eu sempre lutei muito pra ter, pra não faltar em casa o mais necessário, o básico. Eu não tenho luxo, tá vendo, a minha casa é muito simples; a minha pessoa e tudo meu é bem pobrezinho, porque eu não comercializo meu trabalho, eu nunca cobrei. As pessoas me ajudam de coração. Então, eu tenho o meu lema assim: eu ajudo você. Se você achar que deve me ajudar, você me ajuda. Se eu tenho disposição pra te ajudar, tu também vai ter pra me ajudar, né? Então, é assim que eu vivo.
P/1 – Eu quero voltar agora, um pouquinho, ainda pra infância. Você falou dos seus pais... não falou o nome deles. Qual o nome deles?
R – O nome do meu pai era Joaquim dos Santos Coimbra. Da minha mãe era Delmira da Silva Coimbra, porque já recebeu o nome do meu pai, né? O meu nome de solteira era Domingas da Silva Coimbra, que ainda meus irmãos todos, os homens, ainda assinam assim, né? E meu pai faz 12 anos que ele morreu, a minha mãe faz quatro, mas ainda estão presentes, muito presentes. Ainda não foram embora da mente nem do coração, porque eles foram... eu perdi quase só numa época as pessoas que eu mais amava. Quando os meus filhos mudaram pra Manaus, porque aqui não tinha emprego, né, trabalho. E, logo após, meu pai morreu. Aí foi como se fosse a metade de mim. Sofri muito e sofro até hoje... de saudade (pausa). Eu tenho muita saudade dos meus filhos e ainda dos meus pais. Meus irmãos são divididos: um mora em Belém, mais as crianças e a Esmeralda; o Louco e a Natalie moram em Oriximiná; mora a Maria, o Joaquim, o Eraldo e eu aqui em Juruti. Mas eles são muito ocupados, os meus irmãos. Trabalham muito desde cedo e eu também trabalho muito. A gente não tem muito tempo de ficar mais, assim, juntos toda semana, né? Mas sempre eles vêm na minha casa, eu vou na casa deles. É quando a gente liga, pelo menos, para saber; quando não, as mulheres deles vêm aqui, as minhas cunhadas. E os meus filhos também, eles ligam pra mim, sempre eu tô ligando pra eles. Eu sou feliz com os meus filhos, graças a Deus, eles não são cheios de problemas. Todos têm os seus trabalhos e já construíram as casas deles lá em Manaus. Eu tenho quatro netos, em véspera de cinco, com esse que essa menina que é a minha filha tá esperando. Ela é a última. Eu tenho quatro homens e a última é ela. Mas eu ainda nunca sofri tanto pelos meus filhos, assim, senão a saudade por eles estarem longe de mim, por eu não poder tê-los aqui. Se fosse assim: tivesse naquela época trabalho pra eles aqui, eles não teriam ido embora, mas eles foram porque a nossa cidade não oferecia meios de ficar aqui, praticamente. As moças e os rapazes ficavam... se formavam e iam embora. Então, devido a isso, são muito divididas as famílias jurutienses. Se você conversar com as pessoas daqui, a maioria tem os filhos tudo fora daqui de Juruti. Por que onde a gente ia colocar? Não tinha onde trabalhar. Se eles fossem pra roça que nem foi a nossa vida, a gente não ia querer mais esse preço. É preferível chorar saudade que ver os nossos filhos pescadores, lutando na roça que não é fácil. Eu comecei muito cedo a trabalhar e eu prometi pra mim mesma que eu ia esperar render os filhos. Nunca meus filhos iam viver na chuva, na lama como eu vivia. Lama é aquela terra mole do interior, né? Que a gente pisa e vai metendo o pé e ela vai puxando a gente mais pra dentro. Eu já passei muito por isso. Já pesquei, já fiz farinha, já tratei de boi, de plantas, de horta, de crianças que eram os meus irmãos quando mamãe ia... nós morávamos, primeiro no Paraná, a gente ficava Paraná e (Murilo Teiva?). Depois com 13 anos a gente foi pra Santa Rita e lá nós plantávamos roça, juta, gerimum, melancia, verduras, assim; gosto de couve, maxixe, todas essa coisas pra gente vender na cidade. Milho, feijão, feijão da praia que chama esse feijão branco que a gente faz o baião. Já plantei muito, já plantamos muito. Macaxeira, que vocês dizem aí que entra lá que a gente chama de macaxeira, né? E a gente lá em Santa Rita, antes, tinha muito peixe, muito mesmo. Como eu digo até hoje pros meus filhos, “Ai meus filhos, eu nunca passei, assim, nunca teve comida especial, mas peixe com farinha e arroz nunca faltou, graças a Deus”. E era peixe gostoso. Pegado lá no lago e trazido pra consumo. É muito bom.
P/1 – E colégio, Domingas, era em Óbidos, como que era?
R – Não, colégio, nós... comecei a estudar lá no interior. Era assim: uma professora, eles faziam uma escola, que eles chamavam de grupo escolar, né? Aí, pegava uma professora da cidade e levava. O máximo eram duas professoras: uma ensinava os pequenos, né, que era da alfabetização até a primeira série, né? De lá pegava a segunda, terceira e quarta, todos juntos, né? Era até a quarta série. Só que quando foi em 70, nós mudamos pra cá e aí eu trabalhava de dia, aí nesse Clube Dom Bosco, que ainda tem o nome escrito ali, com as irmãs, eu já trabalhava no meu trabalho de reza, que eu tinha 23 anos. Eu já tinha começado com 16, né? Aí que eu trabalhava de manhã no meu trabalho de reza, aí quando terminava, eu ia pro Dom Bosco. Eu saía já de noitinha, pras seis horas, eu chegava em casa, pegava meu livro e estudava na escola paroquial ali. Aí eu comecei: segunda, terceira, quarta e quinta séries estudando de noite. Quando eu chegava do colégio, dez, 11 horas da noite, eu tinha que fazer toda a minha tarefa. Dormia duas horas, três horas, quando eram cinco horas eu tinha que estar de pé pra fazer a lida de casa, porque a minha mãe ia pra roça. Mesmo quando nós viemos pra cá... a minha mãe tinha um irmão que tinha o jará, nós temos um sítio pra ir. Pra lá eles plantavam roça. E ela saía cedinho e ia embora, ela e meu pai. Quando o meu pai ia pescar e a minha mãe ficava fazendo as coisas enquanto trabalhava. De manhã pro colégio, era Américo Pereira Lima, bem aqui perto.
P/1 – E nessa época de criança, teve alguém que você lembra que te marcou, assim, muito diferente, que não fosse os seus pais. Alguém que era muito amigo, ou que era uma pessoa mais velha que tinha um contato grande com você?
R – Olha, como eu digo, assim, morei muito com meus avós de pai, né? A minha avó, o meu avô. Que a minha avó... o meu avô, ele era brasileiro, mas era filho de português, porque ele já nasceu aqui no Brasil. Só que, por isso que é Coimbra, porque meu avô era Antônio Teodoro Coimbra, porque ele era filho de português. Já era paraense, mas era filho de português, né? E a minha avó, a Teresa dos Santos Coimbra, ela era filha de cearense. Aí, ela veio pra cá, vieram pro Pará e aí que eles se encontraram e casaram.
P/1 – Esses avós eram maternos?
R – Paternos?
P/1 – Paternos.
R – É.
P/1 – E os maternos?
R – Os maternos era Fábio Pereira da Silva e Jacinta Lopes da Silva.
P/1 – E como é que é esse convívio com eles?
R – Olha, com a minha avó de mãe, eu fui começar... não conheci o meu avô, o pai da minha mãe, né? Quando eu nasci... quando a minha mãe conheceu meu pai, ela não tinha mais o pai dela. Ele morreu, ela ainda tinha parece que 23 anos, 24, por aí. E quando ela casou com meu pai ela tinha 26 anos. Eu quando casei tinha 27 (risos). Tive o meu primeiro menino tinha 28. Aí quando eu nasci a minha mãe já tinha 27 anos. Que ela casou com o meu pai, ela era de Santa Rita e meu pai era do Paraná de Dona Rosa.
P/1 – Então, esse convívio foi só com os paternos mesmo.
R – É. Quando eu conheci a minha avó, assim, que nós fomos morar próximos dela, né? Eu já tinha 13 anos. Foi difícil, eu não era acostumada com a família da minha mãe. Eu gostava muito deles. Essa moça aqui, minha prima, ela é filha do irmão da minha mãe, o tio José. Então, eu não tinha... assim, me acostumava muito lá não. Era acostumada a ir no Paraná, a gente morava perto, próximo da casa do meu tio Antônio Coimbra, ele está velhinho, velhinho. Ele é irmão do meu pai, muito parecido com o meu pai. Ele está agora parecido. E eu convivia com os meus primos que são os filhos deles, né? E com ele, a minha tia, que chamavam de Jarina, era Raimunda o nome dela, ela era uma excelente pessoa, muito boa, muito boa mulher, ela tinha um coração de mãe mesmo.
P/1 – E com os seus primos tinham brincadeiras...
R – Tinha, nós brincávamos muito, muito mesmo, assim. E tinha... eu tenho os meus irmãos que não são filhos da minha mãe. Quando o meu pai ainda não tinha conhecido a minha mãe, ele teve cinco filhos particulares da minha mãe: três com a dona Vijoca e dois com dona Duvina. Eu me criei com meus irmãos, que não era com a minha mãe. Porque nós vivíamos tudo próximo, no interior. Tanto fazia no Paraná, como no (Murilo Teiva?) quando a gente ia. Então, elas não eram muito unidas assim de dizer que ficassem juntos lá com mãe, elas tinham vergonha, mas elas não... mamãe não proibia, e nem elas, de que a gente fosse criado junto. Eles ficavam a maior parte do tempo em casa com nós.
P/1 – Quais eram as brincadeiras que tinha?
R – A gente brincava... de noite, quando fazia luar, porque não tinha luz elétrica, né? A gente brincava fazendo aquelas rodas, cantando. E de dia a gente arrumava aquele monte de bonecas, as meninas, e a gente ia fazer os vestidos delas e fazia as festas delas, fazia as bonecas dançarem (risos), fazia tudo: cantava, e outras faziam dançar, era meio um teatrinho, sabe? Da meninada. A gente pegava e tinha umas árvores bonitas no quintal assim, né? A gente se reunia pra fazer aquelas brincadeiras. E os meninos ficavam brincando de peão, de bola, de vez em quando acertavam a gente também (risos) pelas costas, pra não se meter no meio deles. Expulsavam a gente da turma, mas a gente voltava de novo. Tinham dias que aceitavam: a gente jogava bola com eles, jogava peão, peteca, no meio dos outros lá, dos moleques. Aí quando eles iam querer detonar nossas bonecas lá ia briga (risos), era uma guerra por causa de brinquedo, mas passava e pronto. A gente tomava muito banho de rio. Mamãe não deixava a gente ficar sem roupa. Não. Ninguém tomava banho sem roupa, mesmo lá no interior. Muitas crianças tomavam banho sem roupa, mas nós não podíamos tomar banho pelados, mamãe não deixava (risos). Ela fazia uns calçãozinhos, né? E as blusinhas pra gente tomar banho, porque a vovó não consentia, nem a mamãe, de tomar banho porque passavam muitas pessoas lá no rio, aí no Paraná. E lá no (Murilo Teiva?) tinham muitos vaqueiros que passavam, que chamavam, né? Aqueles peões que vão nos cavalos, muita gente pela água, por terra nos cavalos e elas não deixavam, mamãe não consentia que a gente fosse tomar banho sem roupa, tinha que tomar banho de roupa e ficava ela, ou a titia, ou a velha que era a mãe da titia, a dona Maxica, ficava nos vigiando.
P/1 – Normalmente, interior tem muita história de visagem, essas coisas, não tem?
R – É. Eu nunca fui muito corajosa, mas nunca fui muito medrosa, não. O papai ensinava que a lei da vida a gente tinha que ser mais forte de que o perigo. Tinha que ser guerreiro, porque se a gente não fosse um guerreiro valente, a gente podia correr do nada. Eu aprendi, com a força da vida, que ninguém corre sem ver de quê. Eu nunca corri sem ver de quê, porque era a lei do meu pai, da minha avó, ninguém corre sem ver de quê. Veja para crer, isso aí você pode correr. Se for uma coisa que vá lhe fazer mal, corra, mas se não for, espere pra ver. E eu sou assim, eu não tenho medo, só do castigo de Deus, do resto eu não tenho medo. Não tenho medo de doenças, porque as pessoas vêem um doente e tem muitas pessoas que comentam “Tu atende pessoas que são doentes de doença perigosa?”, nunca me pegou nem nos meus filhos. Se eu não tivesse problema cardíaco e não fosse obesa, eu era sadia, eu me sentia como se eu tivesse 30. Posso garantir. Eu vou, faço meu check up. Se não fosse o coração, que ele já adoeceu de tanto amar sem ser amado, eu acho que se decepcionou demais (risos). E, por isso, ele tá morrendo devagarzinho, mas eu não deixo ele morrer. Eu sempre dou, assim, uma força, um ânimo nele, pra ele criar mais vontade de viver. Eu não quero ver bisnetos, porque vai ser impossível, mas eu quero ver mais netos. Não quero só esses cinco. Olha, o Coimbra, que a gente chama, né? É Francisco (Machoria?) já me deu três, dois meninos e uma menina. O Souza, que é o mais velho, já me deu uma neta. A Miriam vai me dar uma neta. (Melquiano?) ainda não me deu nenhum, ele tem que dar frutos (risos). Ele tem que dar frutos ainda, por isso que eu não posso morrer (risos). Eu tenho mais que viver...
P/1 – É mérito, né?
R – É.
P/1 – Domingas, na sua comunidade lá no Paraná, ou mesmo aqui, depois, quando você se mudou, tinha alguém que fazia o que você faz hoje?
R – Olha...
P/1 – Benzer...
R – Tinha. Antes tinham muito mais pessoas que faziam isso. Hoje em dia as pessoas que trabalham, não vou menosprezar, eles não trabalham mais, assim, com reza, a maioria é negócio de candomblé, esse outro lado aí, que faz outros tipos de coisa, né? Mas se você pedir pra eles pegarem um tropeção, machucar o seu pé: “Faz uma massagem aqui, coloca meu osso. Faz uma oração para parar essa dor na minha perna, me ensina um remédio”, ele não vai saber não. Então, isso aqui, mais tarde, daqui uns 20 anos, talvez, não exista mais. Só vai ficar os médicos e o pessoal que trabalha com esse lado aí, que cada vez eles vão adotando mais e esquecendo do que ajuda mesmo, verdadeiramente.
P/1 – Mas quando você era pequena, você chegou a ver alguém que fazia reza, que tratou de você, por exemplo, ou não?
R – Olha, eu tinha uma senhora, era dona Mocinha que chamavam, parece que era Maria José o nome dela. Era uma senhora que nem eu, bem forte assim, clara, ela fazia reza na gente.
P/1 – Você já chegou a ir nela quando era pequena?
R – Eu fui. Mamãe me levou umas duas vezes: uma vez que eu tava muito doente mesmo, que eu até desmaiei, porque quando eu tava muito fraca, aí mamãe me levou pra lá. O irmão dela era enfermeiro e ela era rezadeira. Aí ele me aplicou uma injeção. Quase que eu morri, fiquei muito mal. Desmaiei lá na casa dela, mamãe me levou pra lá; ela também tinha o reservado dela lá, aí, ela orou em mim até que passou de mim. Agora desde que eu nasci, já diziam que eu ia ser rezadeira.
P/1 – Quem dizia?
R – Lá no interior...
P/1 – Quem que dizia?
R – Porque era parteira naquela época, elas tinham assim, como se diz, uma visão diferente, né? Elas conheciam certas coisas, que as crianças: como nascia, como era o comportamento duma pessoa que ia ser rezadeira e outra que não.
P/1 – Elas mesmas falavam pra você desde pequenininha?
R – Elas mesmas. Quando eu nasci, ela já falou pra minha mãe “Ai, nasceu uma grande mulher, uma rezadeira que talvez vá salvar muitas vidas”.
P/1 – Como será que ela sabia?
R – Porque eu tinha uma cruz vermelha tipo de sangue na minha cabeça, aí elas sabiam por isso.
P/1 – Atrás?
R – É. Era uma cruz, pegava daqui e a mamãe dizia que até aqui, aí elas sabiam.
P/1 – Interessante. Nasceu já com ela, já?
R – Nasci e por isso que ela disse. Quando eu era bebê meu cabelo era bem clarinho, e meus olhos. Aí depois eu cresci, eu não quis mais meu cabelo claro, comecei mandar pintar até que ele ficou preto (risos).
P/1 – Por quê?
R – Porque me chamavam de loira e eu não queria ser loira (risos). Então, mandei pintar até ficar preto, depois que eu cresci (risos).
P/1 – Mas como que era pra você, quando você era pequenininha, falarem que você seria rezadeira. Como você lidava com isso?
R – Como eu lidava? Eu sempre fui assim muito emotiva, né? Muitas vezes eu chorava, ficava triste, eu pensava que ninguém ia querer namorar comigo nem casar comigo, mas eu pensava assim, né? Mas só que não era bem assim. Depois que eu cresci, tinha muitos amigos, muitas pessoas gostavam de mim. E eu comecei desde criança a fazer essas coisas.
P/1 – Você fazia como quando era criança?
R – Eu falava coisa pros outros que disseram que eu nem sabia se falava. Pensavam que era brincadeira de criança e dava certo. Aí foi assim que eu comecei a arrumar essas pessoas que até hoje são como, praticamente, meus seguidores (risos), que gostam de mim desde criança. Já tratei dos pais, já tratei dos filhos, já fui pros netos, já tô pra ir pros bisnetos daqueles. Eu comecei muito cedo fazer essas coisas na minha vida.
P/1 – Domingas, você via que as pessoas dessa comunidade tinham um olhar diferente da mocinha, pra senhora que você está falando...
R – Tinha, porque, eu não sei, eu sempre fui, assim, muito diferente das outras meninas, eu não tinha esse negócio de ficar só com as meninas quando eu cresci e fiquei adolescente, né? Não, eu sempre gostei de ficar com os adultos também. Eles me contavam as histórias deles, eu conversava com eles e explicava coisas pra eles que eles tinham pouca sabedoria, né? E eu acabava tendo, assim, não sei por quê um conhecimento maior de quê, que me vinha e eu falava coisas pra eles, ensinava remédios, falava pra acalmar eles em certas situações e assim eu fui crescendo, assim eu fui vivendo no interior e até hoje, tanto o pessoal de Paraná, Dona Rosa, como de Santa Rita, eles não... qualquer um problema, eles vêm aqui comigo.
P/1 – Toda criança quando é pequena, quase toda criança, tem um sonho, né?
R – É.
P/1 – Às vezes meio maluco assim: vou ser astronauta, e às vezes é mais pé no chão. Você tinha um sonho?
R – Eu tinha.
P/1 – Qual era?
R – Eu gostaria de ter estudado pra ser uma médica. Gostaria. Porque eu pensava que, assim, eu via na minha comunidade as crianças muito doentes, as pessoas, né? Eu sentia muita vontade de estudar, de poder ajudar, de fazer alguma coisa, mas meu pai não tinha condições. Ele sempre dizia “Minha filha, tu já ajuda as pessoas”, só que não era só isso que eu queria, eu queria mais. Mas não deu. Eu me conformo, porque a maior alegria da minha vida é quando eu vejo, assim, uma pessoa ficar boa, que chegam muitas pessoas aqui muito doentes, debilitadas mesmo. E depois quando elas voltam saudáveis já, as crianças, pessoas adultas, pra mim isso faz parte de uma alegria sem preço. Eu acho que eu gosto das pessoas de graça (risos). E por isso, muitas vezes, eu arrumo problema com o meu marido. Ele não gosta. Ele não tá aqui, porque ele não queria que eu desse a entrevista, ele saiu meio que quebrando pau comigo (risos). Mas tudo bem, eu tô acostumada mesmo. Ele nunca gostou do meu trabalho, ele acha que ninguém... as pessoas tiram nossa privacidade. Claro, tiram nossa privacidade, eu não descanso, não tenho tempo pra mim. O pouco que eu tenho, eu dou um jeito na aparência, eu dou um jeito nas coisas pra mim, mas ele não gosta muito, porque, realmente, nós não temos privacidade aqui em casa. Não temos. Nem podemos vestir uma roupa pra ficar à vontade, né? Nós não podemos ficar nem um dia assim, tem pessoas diferentes aqui em casa. Mas, pra mim, isso não incomoda, não. Eu já fico triste se eu ficar sozinha, eu não sei ficar só eu, eu não sei estar calada e eu me sinto triste. Porque eu já comecei com uma porção de irmãos, de primos desde criança, meus pais, minha tia casou. Ela... também teve um tempo junto com ela, que ela era a última filha do meu avô, né? E quando ela casou, eu já estava com uns sete, oito anos, ela casou e foi embora. Senti muita falta também dela. Não que eu soube viver, assim, sozinha, sempre tive bastante pessoas por perto e quando eu fico só eu, não gosto. Solidão não faz parte de mim, não sou muito chegada com ela não. Porque quando ficamos assim, muito isolados, passam muitas coisas pela nossa mente e não são só boas, passam coisas... o filme do terror também.
P/1 – Eu queria que você contasse, então, pra gente, já que vamos entrar num assunto mais do seu trabalho agora. Você falou que começou mesmo, mais de verdade, com 16 anos.
R – É.
P/1 – Como foi? Porque você aprendeu de observar, né? Você aprendeu sozinha. Como é que você criou a sua maneira de fazer essa reza e falou “Agora eu vou começar a fazer mesmo”.
R – Olha, como foi? Eu fui ficando doente, muito doente. Eu fiquei tão magrinha que chegava meus tios brincarem que iam me amarrar, pro vento não me carregar. E eu não dormia, praticamente, eu não comia quase nada, eu ia ficando muito fraquinha, muito fraquinha, cada vez mais.
P/1 – O que você tinha? Você sabe?
R – Eu não tinha vontade de me alimentar, eu não dormia, porque a minha mãe... eles não queriam aceitar, eles começavam a dizer que não queriam mais aquele povo lá em casa, que todos os dias ficavam atrás de mim pra eu ensinar remédio, pra eu rezar. Eles não queriam pra eles e nem pra mim. E isso aí foi porque, eu acho, que eles pisaram contra, não queriam, né? Eu fui ficando muito doente, aí quando foi um dia, eu fiquei muito mal mesmo, meu pai me levou pra Óbidos, com a mamãe também. Pegaram o barco e me levaram. Tinha uma senhora que já tinha feito reza no meu pai, dessa vez que eu te falei que quase ele morre. Eles acharam que não deviam me levar e ela disse “Olha compadre, se você não deixar ela fazer as rezas dela, ela não vai agüentar, ela vai morrer, porque o senhor tá proibindo uma coisa que é o dom dela”. Aí ela pediu pro papai deixar que eu ficasse uns meses lá com ela, aí ela fazia reza em mim, mandava eu rezar nas crianças e foi a única pessoa, assim, que me ajudou, porque se não eu morria mesmo.
P/1 – Qual o nome dela?
R – Era... ela já morreu. Era Ondina, dona Ondina. Ela morava em Óbidos e depois foi pra longe. Ela foi uma rezadeira muito famosa lá em Óbidos, muito mesmo. E ela que me ajudou porque ela deu força, fez o papai ver que era melhor que eu fizesse isso, de que eu morresse. Aí eles deixaram.
P/1 – Aí você aprendeu com ela, tudo.
R – Não, aprender não, porque é, como se diz assim, a gente já vai com o tempo descobrindo, fazendo nosso trabalho e, na prática, a gente aprende. A teoria é boa, a gente vai vendo os livros, né? Mas a prática é a verdadeira escola com quem eu aprendi, no dia-a-dia da vida vendo cada dificuldade, a dor de cada pessoa e como ajudar a aliviar.
P/1 – Então Domingas, eu tinha perguntado antes: quanto tempo você ficou com essa senhora aí?
R – Olha, geralmente, quando é pra formar mesmo assim, sem medo de ser feliz, né? A gente fica o chamado um ano e um dia de oração, mas não precisa ser direto, né? Eu vinha, passava uns meses com minha família e voltava. Eu já passei mais de um ano pra lá, porque sempre a minha mãe me mandava voltar pra lá, que ela não queria que eu ficasse doente, né? Aí eu voltava, mas eu ajudava muito ela, a minha mãe quando estava em casa, e as pessoas da minha comunidade. Aí, eu voltava pra lá, pra Óbidos, ficava uns três, no máximo eram seis meses que eu ficava, eu não agüentava longe dos irmãos, da mãe, do pai, eu vinha embora. Eu chegava num dia e no outro dia era uma porção de barco no porto de casa. Eles estavam certinhos pra me ver chegar. Uns falavam pros outros, iam só fazendo aquela corrente de comunicação. E quando eu chegava já era uma porção de gente pra casa. Era isso que o papai não gostava e nem a mamãe. Então, esta minha vida já começou desde a minha infância, eu comecei a sofrer pelos outros. Então, o meu trabalho, ele envolve um bocado de sacrifício para mim, sabe? Porque nunca a minha família aceitou, começou lá dos meus pais e também a minha família não tem muita aceitação, porque eles... olha: se você tem uma pessoa na sua família, uma rezadeira, uma pessoa diferente, as pessoas não vão gostar muito de ter como mãe, como mulher, como filha, mas isso pra mim não importa. Eu não sinto que os meus filhos não gostam do meu trabalho, eles não são chegados assim, mas também eles não têm nada, não falam nada contra, porque não querem me machucar. E depois os meus pais, eles também acostumaram. E os meus irmãos também não ligam muito pra mim, assim, nessa parte do meu trabalho, pra eles tanto faz. Se eles precisam é diferente, mas também eu não sou de falar do meu trabalho. Inclusive, muitas pessoas me perguntam: “Domingas, por que você não fala do seu trabalho?”, porque pra mim ele é uma exclusividade, na hora do meu trabalho, é trabalho. Na hora que eu estou me divertindo, tô numa festa, tô num passeio, eu sou uma pessoa que nem as outras, não tenho nada a ver com esse lado. Então eu não falo do meu trabalho, isto eu tenho. Você vê, eu não gosto que ninguém... que eu num tenho uma fotografia de lá, da minha mesa, não tenho. E todo dia eu me visto de branco e vou pro meu trabalho. E faço.
P/1 – Fiquei curioso. Você já teve, assim, algum caso, alguma coisa, de preconceito, de discriminar mesmo, por isso?
R – Olha, a gente sempre tem. Especialmente com as outras igrejas evangélicas, né? Muitos deles acham que a gente faz coisas erradas, né? É bruxo, é isso, é aquilo. Mas, na realidade, por que Jesus Cristo foi crucificado? Porque ele curava as pessoas, ressuscitava e por aí, né? Mesmo ele, que veio Deus em forma de humano, ele não foi aceito por todos, não, e assim também nós. Ele deixou-nos uma missão: “De que aqueles que seguissem a ele, os ensinamentos, tinham que sofrer”, e, por isso, eu me conformo em sofrer pelas pessoas, porque se cada pessoa não tivesse tanto orgulho dentro de si, fizesse um pouquinho pelas pessoas que têm necessidade, o mundo seria muito melhor. Porque a partilha pra mim, não é só muito dinheiro, tudo nós podemos partilhar. Depende da vontade de cada pessoa. Então, eu desde criança tive isso: achar que eu posso ajudar meu irmão, por mais que seja pouca coisa que eu faça, mas ajudando já começo a me sentir bem. E eu não tenho no meu coração ambição, assim, de dizer: “Você me traz um quilo de carne?”, vamos dizer, eu aceito como se você tivesse me dado um boi. Eu sou assim, você deu o que você pôde. Então se você já repartiu comigo, já é muita coisa pra mim. Eu não sou de exigir muito não. Então, eu acho assim que isso faz essas pessoas, os meus clientes, não se afastarem de mim Eu não queria nada dos outros, eu faço o que posso fazer. Agora, eu não sou só jovem e nem sou adulta, tem vezes de estar velha. Olha, eu tenho um amigo que ele sempre me pergunta “Que dia é hoje?”, porque sempre eu digo assim: “Tem dias que eu tô com 20, com 30, com 60, outros que eu tô até com 120, de mim, sabe?” Porque ele pergunta pra mim com quantos anos que eu tô naquele dia, porque quando eu tô velha, é o dia que eu tô muito cansada, cheia de dor, magoada, aí eu já tô velha, né? E quando eu tô feliz, tô alegre, eu tô jovem. Então pra mim a vida é assim, ela não é só de um jeito, não é só uma idade, ela é conforme o nosso dia. Nós temos o nosso dia de ficar feliz, nós temos o nosso dia de ficarmos tristes, perdemos pessoas amadas, perdemos coisas nossas. Pra mim, material não faz muita importância. Se você pega um objeto meu, eu fico triste, mas também... agora, a vida pra mim é muito importante. O ser humano, pra mim, ele é uma coisa que faz parte de mim. Mesmo que você não seja meu conhecido, a primeira vez que eu lhe vejo, eu vejo você e eu sinto a pessoa que você é.
P/1 – Todas as pessoas que trabalham com bênção e rezas são emotivas assim?
R – São. E praticamente todas sofrem do coração. E todas que eu conheço morrem do coração, inclusive, eu tô na lista, porque a minha família toda sofre e morre do coração, da parte da minha mãe, né? E a minha mãe morreu assim, eu já fiz um cateterismo, a minha irmã já usa um marcapasso, meus irmãos todos já têm problema cardíaco. Eu, desde 91, vivo lutando com essa guerra do coração, tenho pressão alta que não posso me alimentar mais de qualquer coisa, assim, e aí eu vou ao médico e ele diz: “Tem que emagrecer 20, 30 quilos” , mas não agüento passar muita fome, não sei, e acabo não emagrecendo muito.
P/1 – Domingas, e esse conhecimento de ervas, como você aprendeu isso?
R – Isso? Como eu te digo, assim, aqui na Amazônia, nós temos que aprender a se virar com o que temos. Então, o que acontece? Nós só temos que conhecer as ervas, em que proporção, em que quantidade se usa, né, e pra quê. Cada erva, ela tem a sua função de cura, porque os medicamentos que são feitos nos laboratórios, eles não são feitos sem química de plantas, de frutos, de raízes, de tudo: tudo vem da terra, tudo da natureza. Então, na natureza nós temos nosso laboratório pronto, só depende da gente pegar e colocar, porque se nós não soubermos quem é quem, podemos nos envenenar. Por exemplo, andiroba. Andiroba é um remédio poderoso, mas sem excesso, e tem que ser numa medida certa: no que você vai tomar, no que você vai passar num (barque?), num machucado. Copaíba é muito remédio, mas elas estão puras, a gente só tem que ver quantias, doses, jeito de usar, porque se nós vamos tomar, vamos dizer, um copo de copaíba, não vai fazer bem não, passa mal. Por quê? Porque ela está pura. Se você vai ver no remédio que já passou por laboratório, já foi preparado por químicos, ele tem pouquíssima quantia daquele material. E aí muita gente não tem esse conhecimento. Toma além do que tinha que tomar. E tem muitas ervas que ela tem o mesmo poder. Se você coloca duas ou três ervas da mesma natureza, elas ficam com uma química muito forte, então, ele disse assim: “Você vai preparar um chá que ela tem umas três ou quatro composições. Você tem que saber quem é quem”. Vamos dizer, pra barriga, inflamação, cisto e outras doenças de barriga de mulher tem que saber somente a erva própria. Uma infecção urinária, só temos que saber... pra anemia, temos que saber o xarope; pra asma; pra essa coisas aí. Pra esse negócio que entope o nariz e fica ran-ran-ran na garganta, essa coisas aí, tudo nós temos remédio na natureza, vai depender só de saber usar.
P/ - E você foi aprendendo de ver, de...
R – De ver e de ter aquela intuição, de saber, de praticar. E vai.
P/1 – Muito pela intuição também, né?
R – É. A gente vê quem é quem e vai fazendo.
P/1 – Queria que você contasse um pouco, assim, quais rezas você faz pra quais doenças, o que você cura. Normalmente te procuram por quê?
R – Olha, de modo geral, tanto pelo físico como espiritual, né? Porque as pessoas, elas... nós não sofremos só do físico. O físico não precisa... o espírito não precisa do físico, mas o físico precisa do espírito, né? Então, o que é que acontece? Se as pessoas não cuidarem do físico, do espírito, elas vão ficar fracas. Então, nós temos que... geralmente quando uma pessoa adoece, ela fica com muito medo de morrer, o sistema nervoso fica abalado, ela não pensa em outra coisa senão de morrer ou de ficar deficiente, não prestar mais pra nada, tudo isso. Eu já fiquei doente, eu sei como é que é. Então, isso aí, se a gente não cuida, vira uma depressão. Depressão, muitas vezes, não é uma depressão do nada, ela já vem há muitos anos, a pessoa vem acumulando coisas na sua vida e depois enfraquece o físico e o espírito. E quando isso acontece, nós não resistimos. Muitas pessoas morrem assim, que ainda não era tempo de morrer. Só de medo de morrer, então, porque (risos) enfraqueceu tudo e é isso aí que eu cuido. Dou aquela injeção de ânimo, né? Ensino remédios, banhos de ervas pra pessoa se libertar de toda aquela coisa, aquele medo que sente, de toda aquela perturbação e muitas pessoas dizem que não, eles simplesmente não sabem separar as coisas da vida. Eles fazem uma salada e aí eles misturam autopiedade com tristeza, com... sofrem muito. Têm muitas pessoas que sofrem antecipado, ele não tem, como se diz, espera. É um espírito inquieto, ele não sabe esperar. Ele fica naquela inquietação tão grande que ele acaba, ele mesmo, se machucando, então, é isso que eu gosto de fazer. Ajudar as pessoas pra que elas tenham calma, serenidade. Espere que muitas vezes as coisas boas acontecem. No meio, como se diz assim, numa atribulação, acontece a graça divina. Nós recebemos graça, ficamos bons; passa as coisas da vida, não permanecem. É como o dia e a noite: a noite passa, o dia vem. Muitas vezes temos uma noite tão atribulada, noutro dia vamos ter um dia de felicidade, né? E por aí afora, a vida é isso. Então, nós temos que cuidar não só do físico, mas do espírito. Nosso espírito, ele precisa de oração, pra que a gente tenha força. Nós precisamos ter, pelo menos, um tempinho no dia pra nós, pra gente fazer uma reflexão, porque, muitas vezes, eu mesma já me encontrei em situação que eu não sei que rumo tomar. E se você mesma não parasse, você não tem por quem chamar, você faz loucuras. Por que muitas pessoas se suicidam? Porque chegou o ponto do enfraquecimento.
P/1 – A sua rotina, então, aqui, é todo dia você acorda, aí essa sala aqui enche de gente. Como é que é isso?
R – É.
P/1 – Conta pra gente entender.
R – Olha, é assim: de manhã eu me levanto muito cedo porque eu não tenho secretária do lar, né? Só quando a minha afilhada vem e a minha filha quando pode me ajudar, porque ela trabalha, ela estuda, né? Então, ela não pode ficar só metida na lida de casa. Aí, eu já ajudo o que posso, já deixo adiantado. Aí, eu vou, me arrumo. Primeiro eu estou de faxineira, né? De cozinheira, de lavadeira, de tudo que pedem. Depois eu me visto já, como eu tava falando pra você, incorporo o meu personagem de trabalho. Aí, lá eu sou tudo: sou psicóloga, sou enfermeira, sou curandeira (risos), sou rezadeira, de um tudo em si. Porque a gente tem aqui, na nossa região, nós não temos, assim, meios como vocês têm pra lá. Aqui, como eu digo, a gente tem que saber ajudar o nosso irmão, porque se não, não tem como. Tudo o que a gente, o rezador pode, a rezadeira pode fazer, já tira a carga do médico. Que os nossos médicos aqui são muito ocupados. Têm muitas pessoas para poucos.
P/1 – E aí todo dia tem muita gente, a senhora acha?
R – É, tem muita gente. E aí eu rezo nos bebezinhos, ensino uns remedinhos pras mães fazerem pra ajudar a tirar a cólica das crianças e vai ajudando.
P/1 – Então elas esperam aqui na sala...
R – Esperam. Aí eu vou chamando, como você foi pra lá, por vez, eu não dou ficha, é como chega, vai sendo atendida.
P/1 – Até que horas isso?
R – Olha, eu não gosto de passar das 11, mas muitos dias eu sou sacrificada, principalmente, dia de segunda e sexta é o dia que dá mais gente, porque a maior parte é do povo do interior. Aí os outros dias eu atendo mais o povo da cidade, mas sempre têm pessoas das comunidades todos os dias na cidade. Que vêm fazer as coisas deles na cidade, resolver os problemas deles. E vêm também em busca de saúde, né?
P/1 – E pra você isso é um dom, então?
R – Pra mim é. Porque eu não aprendi em livros, eu não aprendi com ninguém. E como eu já te falei, já sofri demais pra... e sofro pra fazer isso. Então é como se eu tivesse que fazer. Eu faço, assim, força de largar, “Eu vou deixar isso aí e tal”, mas depois eu vou deixando de lado e o tempo vai passando e eu nunca saio dessa situação, que eu sempre fico com pena das pessoas que chegam.
P/1 – Tem alguém mais novo, ou que você ensina, orienta ou que você sabe que já esta fazendo já e pode substituir você?
R – Não. Nunca eu preparei nenhuma pessoa, porque de todas as que eu quis preparar, elas não aceitaram muito, sabe? E eu nunca encontrei uma pessoa que tivesse essa coragem, essa disposição. Eu já ajudei muitos médiuns, muitos, que podiam dar um rezador, mas eles tinham outras coisas, nunca quiseram se ocupar. Porque uma eu digo: nós somos discriminados, somos diferentes e pra gente assumir uma missão em que somos diferentes dos outros precisa muita coragem, muita mesmo. E isso é difícil, é difícil ter essa coragem.
P/1 – Você já pensou em desistir alguma vez?
R – Muitas. Inclusive quando eu adoeci do meu coração em 2002, que eu tive que fazer esse cateterismo. Eu fiquei um ano muito fraca, eu queria parar, meus filhos também; mas depois eu fui me recuperando e a coragem voltou (risos). E aí eu não consegui parar até agora.
P/1 – Domingas, eu queria que você me contasse a história da sua vinda pra cá e pra essa casa. Contar uma historinha, de quando chegou, construiu...
R – Olha, foi... pra eu construir essa casa, eu morava... quando eu me casei eu fui morar na casa da minha sogra. Como a minha sogra tinha outra casa, ela foi pra outra. Uns tempos depois ela foi pra outra casa e disse pra eu ficar nessa casa, porque a outra casa tava se destruindo, porque não tinha ninguém morando lá. E a casa abandonada vai se destruindo, né? Aí ela foi pra essa casa e eu fiquei na casa dela. Como construí uma casa? Eu tinha os meus filhos pequenos, era a época que eu tava tendo as crianças e eu tinha que manter tudo na vida e não dava. Aí eu falei com a irmã Brunilde, que ela tinha, ela fazia essas casas que chamavam União e Progresso. Aí eu fui, me inscrevi no grupo, nós éramos um grupo de sete pessoas, deixa eu ver: Marlu, um vizinho que tem uma casa igualzinha a minha aqui, subindo, né? O compadre Vanderlei; meu cunhado Manoel; meu irmão Joaquim; o José, que ele é até taxista. Deixa eu ver, eram cinco: Vanderlei, Marlu, Manoel, José, Joaquim e eu, seis. Éramos seis desse grupo. Foi assim que construímos. Eles que faziam os adubos e a gente pagava pra irmã Brunilde trazer no caminhão da igreja, né? Comprávamos os tijolos, o material todo. Nós tínhamos uma caderneta. Quando a gente ia receber um material, levávamos a caderneta e o dinheiro, né? A importância. Lá, ela anotava o material que nós recebíamos e o dinheiro que ficava, como se nós tivéssemos tirando numa loja de material de construção. Tudo nós íamos pagando e tirando. Dávamos aquela importância, tirávamos um pouco mais, aí mandava trabalhar. Depois lutava pra arrumar mais dinheiro e levava lá; o material pra frente. E pagava o desembarque, né? Que vinha nas balsas: telha, tijolos, cimento, ferro. Nós tínhamos que pagar uma pessoa pra desembarcar, que a gente não tinha como, as mulheres não tinham força de desembarcar, né? E a gente pagava uma pessoa, um homem, e eles desembarcavam e levavam pro depósito. Lá ela tomava conta e ela ia despachando pra gente e a gente já mandava construir, o grupo construía. A gente pagava o pedreiro, porque eles não eram pedreiros, era só o meu marido que era pedreiro, mas ele trabalhava noutras obras, não era toda vez que ele podia estar presente. E os outros, nenhum entendia de pedreiro, mas eles estavam aí: faziam massa, carregavam tijolos e, vamos dizer, era tipo, como se chama aqui na Amazônia, mutirão, né? Hoje, tal dia, vai ser trabalho do fulano, ele tá com o material, todo mundo lá. Aí, quando era no outro dia, você é Thiago, né? É. Hoje é na casa do Thiago, íamos pra lá; é na casa da Domingas, pra minha casa. E assim nós construímos essas seis casas, e até hoje nós ainda temos elas.
P/1 – E assim que foi fazendo.
R – Foi. E consegui construir.
P/1 – Agora fiquei curioso, então, com a história do seu casamento. Como você conheceu o seu noivo e quando casou? Porque como você falou, não é todo mundo que aceita o que você faz, ele é uma pessoa que, por mais que não aceite, quis casar com você. Conta um pouquinho.
R – Olha, quando eu conheci ele... nós viemos pra cá em 70, que nós morávamos na Santa Rita, né? Aí, depois que eu cheguei pra cá, foi em 72, eu
conheci ele, aí em 75 nós casamos. E foi, assim, por acaso conhecer ele, porque o padrasto dele ficou muito doente e a mãe dele veio me pedir pra ir lá na casa deles e a gente se viu assim de repente. Eu acho que ele se apaixonou à primeira vista. Eu nem tanto. Não era muito de ficar, assim, prestando atenção nas pessoas, né, quando ia na casa de uma pessoa, visitar um doente. E, depois, me procurou pra falar comigo e aos poucos eu sei que, por intermédio da tia dele, que também ele gostava de mim e já nos conhecíamos desde o dia em que chegamos pra cá, pra nossa casa. Que o meu pai comprou uma casa bem próxima daqui da onde eu moro e eu acabei conhecendo a tia dele. A minha irmã é casada com o filho dela, mais criança, da tia dele e eu sou casada com ele. Ela era irmã da minha sogra (risos).
P/1 – Como foi o casamento?
R – Foi no cartório, no civil, né? Foi oito horas da manhã. E oito horas da noite foi na igreja. Aí, no cartório a gente casou assim, mais simples, né? Tava de conjunto: calça comprida e blusa, que eu sempre gostei, né? Assim, blazer. E de noite, vesti vestido de noiva, tava toda bonitona (risos). Bem arrumada (risos). Aí de noite a gente festejou, né, depois do casamento; casamos numa terça-feira, que tem a Novena do Perpétuo Socorro, né? Aí, quando terminava a novena, o padre fazia o casamento. Quem fez o meu casamento foi o Padre Afonso.
P/1 – Bacana.
R – É. Vê, em 75, o Padre Afonso já estava aqui, foi ele que me casou.
P/1 – Queria que você contasse, um pouquinho, como foi ter o seu primeiro filho.
R – O meu primeiro filho?
P/1 – O sentimento de ser mãe pela primeira vez...
R – Ah, não tem explicação, acho que não tem não. Quando nós esperamos o primeiro a gente, como se diz? É divino, é uma coisa bem diferente. Mesmo eu já tendo cuidado muito dos meus irmãos, pra mim foi uma coisa muito nova, muito diferente. Eu amei muito ser mãe. Comecei a ser mãe com 28 anos, parei com 35, mas foi bom demais (risos).
P/1 – E você também já fez parto, né?
R – Já. Uns três assim. Nas horas mais difíceis da vida, onde não tinha quem fizesse, mas eu soube fazer, soube desempenhar bem, ajudar.
P/1 – Mas tem parteira ainda aqui em Juruti, ou não tem mais?
R – Eu acho que ainda tem. Ainda tem as parteiras daqui que fazem o parto no hospital, né? Enfermeira-parteira.
P/1 – Mas e fora do hospital?
R – Fora do hospital tem uma que ela é enfermeira, Terezinha. A Terezinha mora pra cá, no Bairro das Palmeiras.
P/1 – Domingas, eu queria que você contasse um ou dois casos, histórias marcantes desse seu trabalho de cura, assim, que te marcou muito, nesse tempo todo.
R – Olha, têm tantos, que eu não sei nem qual eu posso escolher. Já vi muitos casos na minha vida, já ajudei muitas pessoas e já vi coisas muito tristes que só Deus mesmo, muita fé, e muita luz divina podiam curar. Já vi crianças praticamente mortas. Já passei por situações muito difíceis, não uma vez, muitas. Dos pais chegarem pra mim, não ter como levar pra Santarém nem pra Manaus e “Me mandaram embora, porque não têm mais o que fazer pelo filhinho ali no hospital”. Colocar nos meus braços e dizer “Cuida dele. Se você não cuidar, eu levo pra casa pra morrer”. É fácil isso? Você ouvir isso de um pai e de uma mãe desesperados? Não. Pra mim que sou mãe, fui quatro vezes mãe, um dia eu vou ser cinco vezes avó, que é outra vez ser mãe, não dá. Se o senhor fica com os olhos cheios de lágrimas e recebe aquela criança e vai pedir a Deus, só confiar no que Deus quiser. Mas, na hora, a gente consegue? E Deus já meu deu tanta força disso aí, e muitas graças, que eu nunca perdi uma criança assim, desses que me entregam e diz “Toma, porque eu não tenho pra onde levar, eu não tenho mais o que fazer”. Uma vez, uma situação marcou muito a minha vida. Eu tinha um vizinho, eles eram de outra igreja, né? Eram evangélicos. E uma senhora me chamou pra ir ver o bebê. Cheguei lá, a mãe tava muito desesperada, já disse pra mim assim: “Eu entreguei esse menino, ele está morto, não tem mais jeito”. Eu olhei, o bebê me olhou assim, eu disse “Olha, eu vou tratar seu filho. Tu deixa que eu trate?”, ela disse “Trata”. Outra senhora que era da mesma igreja dela disse: “Eu ajudo você”, aí ficamos só eu e ela no quarto, eu orei no bebê e depois fui fazer remédio caseiro. Era uma febre tão alta, o menino branquinho estava que nem um camarãozinho cozido, e nós começamos a lidar, eu e a outra senhora. Quando foram umas cinco horas da tarde, ele viveu de novo. Passou a febre, saiu daquele... tipo um sono que ele tava quase em coma mesmo, né? E está um homem feito, bonito, cheio de vida. Conseguimos, eu e a outra senhora. Ela segurava o menino e dava o remédio, de vez em quando. E quando o pessoal chegou, um barco cheio de gente pro velório, eles não souberam o quão agradecer o Senhor (risos).
P/1 – E esse menino vem aqui ainda?
R – Ele vem, mas é difícil, eu não o vejo mais ele, ele ficou... faz uns dois anos, o pai me trouxe ele aqui pra ver e depois... é que nem você. Alto assim, bonito, tem os olhos claros. Eu não conhecia mais.
P/1 – As pessoas que vêm aqui, normalmente, depois acabam criando um relacionamento...
R – É. E isso me marcou muito, porque eles tinham dado o menino como morto, né? Tinham mandado chamar a família pra vir já pro velório, pro enterro. E quando eles chegaram o menino tava rindo com todo mundo, andando de braço em braço lá (risos), todo mundo carregava ele. Ficou feliz.
P/1 – Qual foi o sentimento da senhora?
R – Ah, muito, muito... é uma felicidade sem comparação. E a família deles... mais agradeceram muito. Os avós dele diziam pra mim, o pai dele até hoje quando me encontra diz: “Ô senhora abençoada! Meu filho tá muito bem”, ele diz assim. Porque já tinham dado ele morto, mas eu via os olhinhos dele fazendo, um jeitinho assim na respiração dele e falei “Não, não tá morto não”. Isso pra mim foi uma grande graça que eu recebi, porque hoje ele é um homem
forte.
P/1 – E esse dom, então, é um dom que é uma graça e é um sacrifício...
R – É um sacrifício longo da minha vida, desde criança. Às vezes, eu fico pensando, têm dias que eu tô cansada, eu não queria mais, mas não sei como encontro forças e acabo continuando a caminhada.
P/1 – Você acha que você não vai parar nunca, é isso?
R – Eu gostaria, né, de dar um tempo pra mim, pra eu curtir mais a minha vida, que eu não tenho, praticamente, vida própria. Eu vivo em função das pessoas. Essa minha afilhada, minha filha aqui que vê como que é a minha vida. Amanhece o dia e eu não tenho tempo, é correndo, mas se tiver 50 pessoas pra eu falar, eu falo com todas, eu falo rapidinho e vou dando atenção pra todo mundo. Têm dias que eu fico meio chata, como todo ser humano. A gente é fraco, por mais que se faça de forte, mas tem o dia da fraqueza, não é? E quando a gente fica fraca, a gente fica meio ignorante também (risos). Quando pisam na gente, a gente, às vezes, não faz com aquele que fez com a gente, aí a gente vai querer se vingar lá naquele outro, que não tem nada a ver (risos). Sempre é assim, né? Mas o que eu posso segurar pra não explodir com os meus irmãos, eu seguro.
P/1 – Qual é o seu sonho, Domingas?
R – Olha, um sonho maior que eu tinha era poder ter meus filhos por perto, não que fosse na mesma casa, mas que eu pudesse, pelo menos uma vez por mês, ter eles próximos, abraçar meus netos, meus filhos e minhas noras, que eu gosto delas também. Realizar essa vida da minha filha, que ela termine os estudos dela, conseguisse um trabalho bom pra ela e também ver, antes que eu morresse, ver a minha filha casada, ter a vida dela, a família dela, né? E outro sonho que eu tenho, é conhecer o Nordeste. Eu acho que... eu não sei se eu ainda vou conhecer (risos). Eu sinto muita vontade. Pra mim, se eu tivesse dinheiro, eu não ia fazer turismo fora do Brasil, eu gostaria de ver o meu Brasil. Por quê? Porque pra mim, eu só vejo pela televisão, mas pra mim eu tenho o Brasil desde criança, inteirinho aqui, ó. Todo o lugar do Brasil tá dentro de mim. É como se eu estivesse em todos os lugares, e eu me sinto assim, brasileira, verdadeiramente brasileira. Eu gosto não só de cidades, mas gosto do interior, das coisas que eu vejo, pra mim é maravilhoso. Eu gostaria de... se eu tivesse dinheiro, eu não queria ir pra fora do Brasil, eu gostaria de conhecer o Brasil, o meu Brasil inteiro. Isso é um sonho meu, mas eu sei que é impossível, esses sonhos são muito impossíveis, porque meus filhos não vão poder vir pra cá assim, talvez um dia, né? Eles têm vontade de vir, mas eu nunca vou ter dinheiro pra ir, já trabalhei tanto, mas não tenho condições de ir, de sair muito longe. Mas a Deus pertence, né? Ainda não morri, ainda estou viva. De repente, né? (risos)
P/1 – Domingas, eu vou fazer uma última pergunta. O que você achou de falar com a gente?
R – Achei legal. Pelo menos, uma calma, não tem ninguém perturbando a gente. Falamos assim, bem, numa boa, sem pressão (risos), né?
P/1 – Queria agradecer muito o seu tempo, a entrevista. Obrigado mesmo.
R – Tá. Eu também agradeço a vocês, foi bom conhecer vocês. Espero que eu tenha, da minha parte, assim, colaborado um pouco com a minha história, né? Que ela é cheia de altos e baixos, mas isso é a minha vida. Uma novela com muitos capítulos. Ainda não contei a metade, mas ela é bastante grande, a minha vida. Eu, muitas vezes, brinco com a minha filha: “Eu não vivi só 62 anos ainda, já vivi 124 anos por tudo o que eu já vivi”. Eu já peguei muitas coisas difíceis na vida, mas tudo bem. Eu agradeço a Deus por sair da casa dos meus pais pra viver com marido, nunca tive que passar esses outros lados aí, da vida.
P/1 – Obrigado Domingas, obrigado mesmo.
R – Eu sempre fui família tanto na casa dos meus pais...Recolher
Título: Minha missão é rezar
Data: 18/04/2010
Local de produção: Brasil / Pará / Juruti
Personagem: Domingas Coimbra de Souza Transcritor: Andiara Pinheiro Entrevistador: Thiago Majolo Revisor: Soloni Rampin Autor: Museu da PessoaO Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.