Essa a avó (Honorata) que sempre me acompanhou, pois vivíamos todos na mesma casa, o casarão da família Adolfo Pinheiro, em Santo Amaro.
Ela era negra, filha de escrava, teve dois "maridos", um santista rico que desejava casar-se com ela e levá-la para Santos para viver com ele, foi pai de min...Continuar leitura
Essa a avó (Honorata) que sempre me acompanhou, pois vivíamos todos na mesma casa, o casarão da família Adolfo Pinheiro, em Santo Amaro.
Ela era negra, filha de escrava, teve dois "maridos", um santista rico que desejava casar-se com ela e levá-la para Santos para viver com ele, foi pai de minha mãe e de minha tia ("Negra") Benedita da Conceição Dias Batista; o outro, que eventualmente ouvi o nome mas não me lembro, era pai de meu tio ("Negrinho") Benedito de Moura. Ela tinha um gênio forte e personalidade inquebrantável e nunca submeteu-se aos companheiros, desejava ter uma vida livre em que pesassem as dificuldades que atravessasse. Vivia por si mesma em companhia do filhos, visto que as filhas já estavam casadas; a sua renda era auferida da confecção de doces e salgados e do fornecimento de alimentação. Em sua casa reinava a liberdade e as portas eram abertas e quem ali chegasse, comia-se e bebia-se a vontade o que a fazia possuir um largo círculo de amizades. No seu trabalho também não visava enriquecer e sim somente sobreviver, não fazendo questão de coisas materiais, de possuir coisas.
Muitas pessoas chegavam a abusar de sua bondade, comiam e bebiam às vezes por largo período, e depois davam o fora sem pagar. Ela dizia, coitado, não tenho raiva dele, que Deus o ajude, porque Ele me ajuda e esse prejuízo que tive receberei em dobro. De fato tinha razão porque a sua casa sempre estava repleta de alimentos.
A sua vida era o trabalho, às vezes ia ao bar com alguns conhecidos tomar uma cerveja e jogar conversa fora, mas não passava das imediações de onde residia, pois tinha horror de tomar um "carro de praça", como eram conhecidos os táxis aquele tempo. Meu irmão e eu sempre estávamos a reboque, para "descolarmos" um guaraná. Ela não tinha preconceito, a sua amizade não excluía negros, brancos, ou prostitutas, todos eram queridos e respeitados.
Às vezes que ela colocava uma mesa nas quermesses para vender doces, salgados, quentão e café, muitas vezes presenciei ela chamar pessoas que estavam olhando, sem comprar nada e dizer, coma alguma coisa As pessoas diziam não possuir dinheiro para comprar, mas ela insistia até que as pessoas se servissem.
Quando ela estava com seus noventa e cinco anos foi residir nos fundos da casa de minha tia; continuou a sua produção de doces feitas em forno de barro, ela e meu tio saiam com uma cesta para vender o produto do trabalho. Minha tia com medo que ela viesse a se ferir no fogo, proibiu dela trabalhar, demolindo o forno em que ela assava os seus quitutes. Daí em diante ela passou a sentir-se inútil e foi definhando até falecer com a idade de cento e um anos. Esse é um erro que geralmente as pessoas cometem com os idosos, julgando que eles já não são úteis e que deverão terminar os dias apenas vegetando, quando ainda poderão produzir muito e sentirem-se participantes do grupo. O potencial que uma pessoa idosa acumulou durante os seus anos de vida é um patrimônio importante que não poderá simplesmente ser jogado fora e sim aproveitado para que através de suas experiências os jovens possam ter um direcionamento que os levará à felicidade. Mesmo que você não seja tocado unicamente pelo egoísmo, que tenha a melhor das intenções, antes de decidir o destino de um ser humano, reflexione se é de fato isso, que ele deseja. Deixe cada pessoa resolver sobre o seu destino, simplesmente ajude-o a alcançar os seus objetivos.
(José Wladimir Klein enviou seu depoimento para o Museu da Pessoa em 06 de julho de 1998 pela página na internet, atualizada em 29 de janeiro de 1999.)Recolher